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A Primeira Megamáquina

Lewis Mumford

Tradução: Lúcio Reíner

1. Apresentação da Máquina Humana


Até o século XIX a História consistiu sobretudo em uma crônica das proezas e
das vilanias dos reis, dos nobres e dos exércitos. À guisa de reação contra a
indiferença geral manifestada em relação ávida e aos afazeres cotidianos do povo,
os historiadores democráticos passaram de um extremo ao outro, de modo que o
papel de fato representado pelos reis tem sido— no decorrer dos últimos cinqüenta
anos — sumariamente subestimado, quando, porém, a maioria dos atributos da
monarquia são agora exercidos, em uma escala incomparavelmente maior, pelo
Estado soberano todo-poderoso.
As primeiras fontes nos ensinam que o rei encarnava o conjunto da
comunidade e que, por direito divino, ele assumia as funções e os cargos da vida
pública. Apenas um aspecto da realeza foi omitido desta representação tra-
dicional; de forma estranha passou despercebida a mais importante e duradoura
empresa realizada pelo rei, quando sobre ela repousam todas as outras atividades
públicas. Com efeito, mesmo tendo o mito do poder real invocado a aprovação
divina para sua justificação, seu nascimento e difusão teriam sido impossíveis sem
a intervenção da máquina humana. Dado que o supremo feito da monarquia foi o
de realizar uma proeza tecnológica que foi transmitida, sob diversas formaS e pelo
intermédio de agentes exclusivamente humanos, ao longo de 5000 anos antes de
tornar-se, em seu último estágio, sob uma forma impessoal mais •igualmente
totalitária, a iecnologia moderna.
A percepção do ponto inicial e da linha de transmissão do fenômeno permite
considerar com olhos novos o destino e o futuro do homem moderno: consi-
derando que, enquanto nossa civilização não consiga controlar os processos e os
motivos que durante tanto tempo têm sido automaticamente — ou seja, incons-
cientemente —, postos a prova, as aberrações sociais que acompanharam o
desenvolvimento de uma tecnologia da máquina converter-se-ão em uma
ameaça, com conseqüências ainda mais terríveis do que na era das pirâmides, caso
chegue a concretizar-se.

Apesar de a máquina humana coletiva ter surgido concomitantemente à


primeira utilização industrial do cobre, foi uma invenção independente que na sua
origem não utilizou nenhuma ferramenta mecânica nova. Mas, uma vez con-
cebida, a máquina real foi rapidamente montada e sua utilização expandiu-se, não
por ter sido ela imitada, mas porque os reis, ao comportar-se como tão-somente os
deuses ou seus legítimos representantes ousariam fazê-lo, a impuseram à força.
Cada vez que a nova máquina foi montada com sucesso, ela dispôs de um poder e
desincumbiu-se de uma tarefa de uma vastidão até então inconcebível. A
possibilidade de assim concentrar imensas forças mecânicas provocou impulso
novo que varreu, pela magia do sucesso, as rotinas preguiçosas, as pequenas
inibições, e o morno cotidiano da cultura de base do povoado neolítico, no
passado teatro de inúmeras experiências nos campos da horticultura e da criação
animal.

As energias tornadas disponíveis para a máquina real — chamemo-la de


megamáquina — ampliaram as próprias dimensões do espaço e do tempo.
Trabalhos que, antes, teriam levado séculos eram agora executados no espaço de
uma geração. Se não se chegou a deslocar montanhas, pelo menos grandes partes
delas foram transportadas em blocos bem maiores dos que poderia carregar um
caminhão moderno, enquanto montanhas de pedras e tijolos fabricados pelo
homem, pirâmides e zigurates surgiam apedido dos reis nas regiões das planícies.
Jamais até a invasão da Europa Ocidental pelos moinhos de vento e de água a partir
do século XIV da nossa era, nenhuma máquina mecânica comparável a esse
mecanismo foi utilizada nessa escala.
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Por que esse novo mecanismo escapou à atenção do arqueólogo e do
historiador? Porque estava unicamente composto de elementos humanos e que pos-
suía uma estrutura funcional definida, enquanto a sociedade teve por bem não
considerar que os passes de mágica e as ordens reais que a originaram não eram
desafios lançados à humanidade. A partir do momento em que as forças
polarizantes da monarquia foram derrotadas — pelo ceticismo e pela resistência
bruta— a máquina em sua totalidade desarticular-se-á e seus elementos reagrupar-
se-ão em unidades menores (feudais ou urbanas ou desaparecerão por completo,
a exemplo de um exército quando desaparece o comando. As primeiras máquinas
coletivas foram tão frágeis e vulneráveis quanto os conceitos mágicos e teológicos
que foram indispensáveis ao seu funcionamento.
A máquina humana apresentou-se desde os primórdios sob dois aspectos: um
negativo e coercitivo, outro positivo e construtivo. De fato, os segundos fatores não
podiam atuar na ausência dos primeiros. Apesar da máquina militar ter feito sua
aparição provavelmente antes da máquina manual, foram as realizações desta
última que primeiro alcançaram uma perfeição incomparável, não somente no
que diz respeito à quantidade, mas também à qualidade do trabalho executado.
Chamar de máquinas essas entidades coletivas não é um mero jogo de palavras.
Caso possamos considerar uma máquina — mais ou menos de acordo com a
definição de Reuleux—, como a combinação de elementos sólidos tendo cada qual
sua função especifica e funcionando sob controle humano, para transmitir um
movimento e executar um trabalho, então a máquina humana era uma autêntica
máquina; e mais ainda pelo • fato que as partes que a constituíam, bem que
formadas por ossos, nervos, e músculos humanos, estavam reduzidas a puros
elementos mecânicos, estritamente limitados à execução das únicas tarefas
mecânicas.
Tais máquinas, de potência e utilidade praticamente imensas, haviam sido
inventadas, já no quarto milênio, pelos primeiros reis da era das pirâmides. Pelo
fato preciso de estarem alheias a toda estrutura exterior, elas tinham paradoxal-
mente uma maior capacidade de mudança e adaptação da que atualmente
possuem, na linha de montagem moderna, suas contrapartidas metálicas as mais
rígidas. De fato, é na construção das pirâmides que encontramos a primeira prova
irrefutável da existência da máquina e o primeiro testemunho da sua extraor-
dinária eficiência. Onde quer que seja que o poder real tenha se exercido a
máquina humana, seja na sua forma construtiva ou destrutiva, o acompanhou. O
que é válido tanto para a Mesopotâmiia, a Índia, a China ou o Peru como para o
Egito.

2. A Máquina Arquétipo

Examinemos o arquétipo da máquina humana na sua forma original. Havia


na sua primeira manifestação, como acontece amiúde, um tipo de clareza que
desapareceu quando o emprego da máquina generalizou-se e foi utilizada por
sociedades de tipos mais complexos, onde confundiu-se com formas mais
familiares, porém mais humildes. E se ela nunca mais atingiu desempenho similar,
pode ser que seja devido não apenas ao talento singular dos homens que a
conceberam e fizeram funcionar os primeiros espécimes, mas também, sem
dúvida, ao fato que o mito que havia mantido unidos os elementos humanos da
máquina nunca mais teve uma força de atração tão poderosa, e que ficou, como no
caso do Egito até a sexta dinastia, ao abrigo das contestações e dos declínios, sem
que suas perversões inerentes fossem trazidas à tona.

A pirâmide foi edificada como túmulo destinado a conter o corpo embalsa-


mado do faraó para assegurar-lhe a passagem, são e salvo, ao além: bem que o
faraó tenha sido o único, no início, a poder utilizar essa extensão quase divina dos
limites da existência, a idéia em si de poder fabricar uma imortalidade pessoal
denota uma total mudança das dimensões da existência.

Entre a pequena primeira pirâmide, em forma de escada, similar às que


encontraremos mais tarde na América Central, e a imponente pirâmide de
Quéops em Gize, a primeira e mais duradoura das sete maravilhas do Mundo
Antigo, decorre apenas um curto lapso de tempo de trezentos anos. Na escala do
tempo das amigas invenções, a forma mais primitiva e a forma mais elaborada— que
nunca mais foram igualadas — dessas construções são praticamente contem-
porâneas. A rapidez dessa evolução mostra que houve uma concentração de poder
material e de imaginação técnica; dado que foi necessário muito mais que a fé para
deslocar a verdadeira montanha de pedras que representa o último desses
monumentos. Essa transformação é tanto mais surpreendente ao sabermos que os
túmulos dos faraós não eram construções isoladas: faziam parte integrante de
verdadeiras cidades dos mortos onde se erigiam os prédios que abrigavam os
sacerdotes que presidiam os complicados rituais julgados necessários para
garantir um bem-aventurado além à defunta divindade.

A Grande Pirâmide é um dos exemplos mais perfeitos e colossais da arte


arquitetural de qualquer época e de qualquer cultura: caso consideremos a
situação de todas as outras artes no terceiro milênio, constataremos que, em nossos
dias, nenhuma construção ultrapassa a desse período, tanto no plano da
virtuosidade técnica como no da audácia da concepção. Esse imenso canteiro foi
obra de uma cultura que acabava de emergir da idade da pedra e que, durante
muito tempo, continuaria a utilizar utensílios de pedra, bem que já se conhecesse o
cobre que permitia a fabricação das tesouras e das serras destinadas a talhar as
pedras que serviriam à construção dos novos monumentos.

Os próprios trabalhos eram desempenhados por trabalhadores manuais


especializados, assistidos por um exército de operários mais ou menos qualí-
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ficados, arregimentados cada três meses dos efetivos agrícolas. O conjunto do
trabalho era efetuado sem outra ajuda material que a das "máquinas simples" da
mecânica clássica — o plano inclinado e a alavanca —, já que a roda, a polia e o
parafuso não haviam ainda sido inventados. Representações gráficas mostram que
as grandes pedras eram transportadas sobre trenós, por batalhões de homens,
através das areias do deserto. Mas a laje de pedra que recobre a câmara interna da
Grande Pirâmide onde repousa o faraó pesa sozinha cinqüenta toneladas. Hoje,
um arquiteto pensaria duas vezes antes de se lançar em uma proeza mecânica
similar.

Mas a Grande Pirâmide é bem mais do que uma formidável montanha de


pedra, de 280 metros de base e 146 metros de altura. É uma estrutura complexa
perfurada por uma série de passagens situadas em níveis diferentes desembocando
na câmara mortuária; e, pese a isso, cada uma das partes foi ajustada com uma
qualidade de precisão tal que, como relevou J. H. Breasted, mais se assemelha à
arte da óptica do que à do moderno construtor de pontes e arranha-céus. Os
blocos de pedra se ajustam em comprimentos consideráveis por juntas que não
ultrapassam o quinto de um milímetro; por outro lado não se têm mais de 20
centímetros de diferença entre os quatro lados da base da pirâmide, em uma
construção que cobre perto de três hectares. Ou seja, a precisão impecável e a
perfeição que hoje atribuímos à máquina já estavam presentes na construção desse
grande túmulo; que era tanto o símbolo da montanha da criação emergindo das
águas primitivas, como a materialização, até então brilhantemente coroada de
êxito na escala puramente humana, dos esforços para fixar simultaneamente o
tempo e o corpo humano em uma forma eterna. Nenhuma mão humana,
nenhuma tentativa do homem normal, nenhuma das formas habituais de
colaboração que pudessem então existir, quando se tratava de construir as cabanas
dos lugarejos ou de semear os campos, podia obter uma força tão sobre-
humana nem atingir esse resultado quase sobrenatural. Apenas um monarca
divino podia realizar um tal ato de vontade humana e operar uma transformação
da matéria em uma escala tão vasta.

Era possível criar uma estrutura dessa magnitude sem a ajuda da máquina?
Certamente que não. Mais uma vez repito que o próprio resultado da empresa
mostrou que ela não se realizou pelo único trabalho de uma máquina, e sim pelo
de um instrumento de precisão. Apesar de que, do ponto de vista técnico, o
equipamento do Egito dinástico fosse ainda bem primitivo, uma execução
paciente e um método disciplinado superaram essas imperfeições. A organização
social tinha dado um passo à frente de cinco mil anos para criar a primeira
máquina mecânica de grande porte: uma máquina com uma força de cem mil
pares de braços, ou seja, de aproximadamente dez mil cavalos-vapor; uma
máquina constituída por uma infinidade de peças uniformes, especializadas,
permutáveis, mas com funções diferenciadas, todas rigorosamente montadas e
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coordenadas conforme um método centralizador de organização e de direção;
cada peça comportando-se como a engrenagem mecânica de um todo mecanizado
insensível aos impulsos internos que teriam se imiscuído no funcionamento da
máquina.

A máquina humana coletiva foi construída em menos de três séculos. Uma vez
organizada e posta em marcha pelo faraó— por intermédio do seu arquiteto-chefe—, a
competência e a imaginação técnicas que haviam concebido o conjunto do projeto
foram transmitidas pelo meio de instruções orais e escritas, às diferentes
engrenagens: operários qualificados, vigilantes e contramestres, trabalhadores
silenciosos. O cérebro humano que imaginou a pirâmide era de um gênero novo,
capaz de um alto nível de abstração, sabendo aplicar as observações astronômicas
para a implantação do edifício, de tal maneira que cada uma de suas faces esteja
exatamente no prolongamento dos pontos cardeais reais: como no período das
inundações a localização das Pirâmides encontra-se apenas a 400 metros do rio,
fez-se necessário fazer as fundações na roca — o que implicou na retirada da areia.
Na Grande Pirâmide, o perímetro desta base desvia-se da horizontal em apenas
125 milímetros.

Mas os trabalhadores que realizaram o projeto tinham também um cérebro de


novo tipo; treinados a uma obediência minuciosa, simples executantes das ordens
provenientes do rei através de toda uma hierarquia burocrática, privados durante
toda a duração do trabalho de qualquer similitude de autonomia ou de iniciativa,
estavam acorrentados como escravos à execução da sua tarefa. Os chefes desses
homens eram capazes de ler ordens escritas; com efeito, como relata Edwards,
trabalhadores deixaram seus nomes escritos com ocre nos blocos da Pirâmide
Média: "Equipe do barco", "Equipe dos vigorosos". Não ficariam deslocados em
urna cadeia de montagem de hoje; faltava-lhes, apenas, as coristas levemente
vestidas.

Idênticas no que tange à organização, o modo de trabalhar e à produção, as


diversas máquinas que serviram à construção das pirâmides e à realização, em
outras regiões e culturas, de todos os outros trabalhos de "civilização" eram sem
dúvida máquinas verdadeiras. Com efeito, em operações de nivelamento,
desempenharam um trabalho equivalente ao de um exército de dragas, de
escavadeiras, de tratores, de serras mecânicas, de perfuratrizes pneumáticas, e com
urna precisão de medidas, um refinamento técnico e inclusive um poder de
rendimento do qual poderíamos nos orgulhar em nossos dias.

Esses ímpetos de grandeza em todas direções, esse retroceder dos limites do


esforço humano, a subordinação das faculdades e dos interesses do homem ao
trabalho mecânico empreendido, essa multidão de subalternos uniformemente
dedicados a um único objetivo, originário do poder divino exercido pelo rei,
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contribuíram respectivamente, em função do próprio êxito da empresa, a
fortalecer esse poder. Devemos ressaltar que era o rei que, de inicio, dava as
ordens, era o rei que exigia uma submissão absoluta e castigava toda desobe-
diência com a tortura, a mutilação ou a morte; somente ele tinha o poder divino de
transformar homens vivos em simples objetas mecânicos; enfim é o rei que reunia
os elementos constituintes da máquina e que impunha a nova disciplina da
organização mecânica, dotada da mesma regularidade que aquela que deslocava
os corpos celestes ao longo de unia trajetória imutável.

Deus algum da vegetação, mito algum da fertilidade poderia engendrar esse


tipo de ordem fria e abstrata, essa separação do poder e davida. Apenas um ser que
tivesse recebido seus poderes do deus sol poderia fazer retroceder de tal modo a
medida e os limites até então respeitados do esforço humano. Nas primeiras
histórias, o rei aparece como sendo de essência heróica: somente ele pode matar
leões sem ajuda, edificar as muralhas de uma grande cidade ou, como Menes,
desviar o curso dos rios. Essa ambição constrangedora, esse desafio no esforço é
exclusivo do rei e da máquina que ele coloca em marcha.

3. O Mecanismo de Transmissão

Para entender a natureza do desempenho realizado pela máquina humana,


não basta focalizar a atenção no ponto onde ela se materializa. Nossa própria
tecnologia atual, com sua vasta rede de máquinas bem reais, não pode ser
entendida se nos limitamos a esse ponto de vista exclusivo. Para montar uma
máquina coletiva composta unicamente de elementos humanos, era necessário
um mecanismo de transmissão complexo que possibilitasse a comunicação rápida
e exata, a cada parte do conjunto, das ordens formuladas na cúspide, de tal sorte
que as diferentes engrenagens se encaixassem para formar um único instrumento.

Dois dispositivos essenciais eram necessários ao funcionamento da máquina:


unia sólida organização dos conhecimentos naturais e sobrenaturais — e um
organismo bem estruturado permitindo a transmissão e a execução das ordens. O
1 primeiro ficava a cargo do clero, sem o apoio efetivo do qual a monarquia de
direito divino não poderia ter existido; o segundo estava entregue à burocracia:
duas organizações hierárquicas em cuja cúspide reinavam o templo e o palácio.
Sem esses dois organismos, o complexo mecânico não poderia ter funcionado.
Condição, por outra parte, que continua válida em nossos dias, apesar da existên-
cia de fábricas automatizadas e de conjuntos comandados por computadores
dissimular a presença dos elementos humanos indispensáveis à própria auto-
mação.

O que chamamos hoje de ciência fazia desde o início parte integrante do


sistema da nova máquina. Esta ciência, fundada nas constantes cósmicas, floresceu
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com o culto do sol: manutenção dos arquivos, contabilidade do tempo, observa-
ção das estrelas, confecção do calendário são os pilares da instituição monárquica
com a qual coincidem, não obstante uma parte considerável da tarefa do clero
consistir, por outro lado, na interpretação do significado dos acontecimentos
singulares, tais como a aparição de cometas e dos eclipses da lua e do sol, ou de
fatos naturais tais como o vôo dos pássaros ou as entranhas dos animais
sacrificados.

Rei algum podia agir em segurança ou com eficácia sem o apoio de um saber
de organização tão elevada, da mesma forma que hoje o Pentágono não pode
prescindir da ajuda dos cientistas, dos "teóricos dos jogos" e dos computadores;
nova hierarquia que se pretende menos falível que os adivinhos que liam o futuro
nas entranhas das vítimas, mas que em realidade não fica muito distante deles a
julgar pelos erros de cálculo freqüentes que comete. Para ser eficiente, esse gênero
de conhecimento deve continuar sendo o monopólio dos sacerdotes considerando
que, se todo mundo tivesse por igual acesso às fontes do saber e a seu sistema de
interpretação, ninguém mais acreditaria na sua infalibilidade já que os erros não
mais poderiam ser dissimulados. De onde concluímos que os indignados
protestos de Ipu-wer contra os revolucionários que tinham derrubado o Antigo
Reino eram devidos a que os "segredos do templo deveriam continuar sendo
confidenciais"; ou seja, que tinham sido tornado públicos os "relatórios" e as
"fichas". O segredo do saber é exclusivo de qualquer sistema de controle absoluto
e permaneceu como monopólio de classe até a invenção da imprensa.

O fato do rei, como o sol, exercer seu poder a distância, não era a única
semelhança existente entre a monarquia e o culto do sol. Pela primeira vez na
história, o poder tornou-se eficaz além dos limites imediatos da audição, da visão e
da mão. Nenhuma arma militar bastaria, por si só, para conceder um tal poder;
para isso era necessário um sistema de transmissão especial: um exército de
escribas, de mensageiros, de contadores, de vigilantes, de chefes de equipe e de
executantes mais ou menos importantes cuja própria existência dependia da
exatidão com que executassem as ordens do rei ou de seus poderosos ministros e
generais. Em outras palavras, uma burocracia: um grupo de homens capazes de
transmitir e de executar um comando com o ritual meticuloso do sacerdote e a
obediência passiva do soldado.

Imaginar que a burocracia é uma instituição relativamente recente é ignorar os


anais da história antiga: os primeiros documentos que assinalam a sua existência
remontam à época das pirâmides. Na descrição de um cenotáfio em Abidos,
funcionário de carreira que viveu sob Pepi 1 (sexta Dinastia, 2375 a.C.), temos o
seguinte relato: "Sua Majestade enviou-me no comando deste exército, enquanto
os condes, enquanto os guardiões dos selos do rei do baixo Egito, enquanto que os
únicos Companheiros do Palácio, enquanto que os monarcas (governadores) e os
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prefeitos do alto e do baixo Egito e os chefes de repartição estavam (cada um) no
comando de uma tropa do alto ou do baixo Egito, ou dos povoados e das cidades
que poderiam governar".

Esse texto prova não apenas a existência de uma burocracia: mostra também
que a divisão do trabalho e a especialização de funções necessárias para uma
operação mecânica eficaz estavam já presentes no seio de um organismo que,
como executante da vontade real, desde então controlava o conjunto dos trabalhos
da máquina militar e da máquina do trabalho. Esse fenômeno tinha se originado
há pelo menos três dinastias: não por mero acidente, mas por ocasião da
construção da grande pirâmide de pedra de Zoser em Saquarah. Na sua obra City
invencible, Wilson observa: "Atribui-se a Zoser não apenas o início da arquitetura
monumental de pedra no Egito, mas também a criação de um novo monstro: a
burocracia". Não se tratava de uma simples coincidência eW. F. Albright observa a
esse respeito que: "a maioria dos títulos encontrados nos esconderijos da Primeira
Dinastia.... pressupõem, com certeza, uma forma de administração avançada".

Quando a estrutura hierárquica da máquina humana foi implantada, não


mais existiram limites quanto ao número de braços que ela podia controlar e ao
poder que ela podia exercer. A supressão das dimensões humanas e das limitações
orgânicas é sem dúvida o principal tema de orgulho da máquina autoritária. Parte
de sua autoridade é devida ao constrangimento físico ilimitado que ela exerce para
vencer a fadiga corporal ou a preguiça humana. A especialização de funções foi
uma etapa necessária da montagem da máquina humana: graças à intensa
especialização de cada fase do processo, a precisão e a perfeição sobre-humanas do
resultado puderam ser atingidas. A divisão do trabalho que caracteriza a sociedade
industrial começa nesse preciso momento.

O provérbio romano que diz que a lei não se interessa pelas coisas fúteis
aplica-se igualmente à máquina humana. As grandes forças postas em marcha pelo
rei necessitavam de empresas coletivas proporcionais a sua dimensão. Por
natureza própria, as máquinas humanas eram impessoais, senão deliberadamente te
desumanizadas, considerando que, se não funcionassem em vasta escala, não
poderiam funcionar no todo. Nenhuma burocracia, por mais organizada que fosse,
teria podido, com efeito, dirigir centenas de pequenos ateliês, cada um com suas
tradições e técnicas artesanais próprias, sua teimosia, seu amor-próprio particular
e seu sentido pessoal das responsabilidades. Destarte, a forma de controle imposta
pelas necessidades da monarquia não podia ser outra do que as grandes empresas
coletivas.

Nunca se ressaltará o bastante a importância dessa ligação burocrática entre a


fonte do poder— o rei divino— e as máquinas humanas que executavam na prática
os trabalhos de construção ou de demolição, em especial porque era essa mesma
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burocracia que coletava a cada ano os impostos e os tributos destinados à nova
pirâmide social e que reunia, pela força, a mão-de-obra constituinte do novo
edifício mecânico. De fato, a burocracia era a terceira "máquina invisível", ao lado
da máquina militar e da máquina do trabalho, e fazia parte integrante do conjunto
do edifício.

Mas o importante no funcionamento de uma burocracia clássica é que ela não


produz nada: sua função consiste em transmitir sem modificações ou desvios as
ordens provenientes do alto. Nenhuma informação exclusivamente local e
nenhuma consideração humana devem - salvo no caso de corrupção - alterar esse
inflexível sistema de transmissão. O ideal, nesse método administrativo, exige a
repressão meticulosa de toda manifestação autônoma da personalidade e que cada
um esteja disposto a executar a tarefa quotidiana com uma precisão ritual. Uma
precisão ritual dessa índole não se adquire da noite para o dia: de fato é pouco
provável que a submissão a essa repetição monótona tivesse sido possível se não
fosse preparada pela disciplina de um ritual religioso milenar.

O alistamento burocrático inscrevia-se, em realidade, cm um alistamento


ainda maior da vida imposta por essa cultura fortemente centralizadora. Os
próprios textos da Pirâmide - com suas enfadonhas repetições de fórmulas -
evidenciam uma faculdade colossal de suportar a monotonia, faculdade que
antecipa o estado universal de tédio que alcançou nossa época. Inclusive a poesia
do Egito e da Babilônia primitivos deixa transparecer essa hipnose da repetição:
sempre as mesmas palavras, na mesma ordem, repetidas dezenas ou centenas de
vezes, sem que a inteligência do texto faça a mínima progressão. Esse cons-
trangimento verbal constitui o aspecto psíquico da submissão sistemática que
originou a máquina manual. Apenas aqueles que, em qualquer nível do cornando
ou da execução, eram suficientemente dóceis para suportar esse regime podiam
tornar-se as engrenagens eficientes da máquina humana.

4. A Exaltação do Poder

Se a máquina humana era poderosa, também era frágil: quando a fonte do


poder real secou, ela parou de funcionar. A máquina real atingiu sem dúvida o
limite da sua capacidade na construção das grandes pirâmides. Pouco tempo
depois dessa obra ocorreu uma revolta tão violenta e profunda que se passaram
vários séculos antes que as regiões do Egito que tinham sido separadas umas das
outras pudessem de novo ser reunidas sob a égide de uma soberania única e de
essência divina. Nunca mais, até a atualidade, o poder conheceria um tal grau de
autoridade absoluta. Mas a força das instituições iniciada por essa primeira
tentativa continuou a operar. Todas as vezes em que o exército, a burocracia e o
clero trabalharam juntos sob um comando real unificado, o sistema de poder
absoluto retomou a direção das operações.
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Os sinais dessa nova ordem mecânica são fáceis de detectar. De início,
aconteceu urna mudança de escala, o costume de "ver grande" foi introduzido
com a primeira máquina humana: uma construção em escala sobre-humana
magnifica a autoridade suprema do seu autor, e — excetuando a personagem
central, o próprio rei— a dimensão e a importância de todos os elementos humanos
indispensáveis a sua realização viram-se reduzidos. Na prática, e, ainda mais, na
imaginação, esse engrandecimento aplica-se ao tempo e ao espaço. Kramer
observa que no decurso das primeiras dinastias atribuíram-se, aos reis lendários,
reinados de incrível duração: quase um quarto de milhão de anos para o conjunto
dos oito reis de antes do dilúvio e vinte e cinco mil anos para as duas dinastias que
se seguiram: essas crenças coincidem com os períodos similares que os sacerdotes
egípcios atribuíam ainda à história antiga quando da chegada de Heródoto e
Platão.

Mas essa multiplicação dos anos era apenas o aspecto secular de um novo
conceito da imortalidade: de início ela era, no Egito, atributo exclusivo do rei
divino, apesar de — como podemos constatar em Sumer onde toda a corte foi
massacrada no interior do túmulo real da cidade de Ur para acompanhar o
soberano no outro mundo — os servidores e os ministros do rei terem podido
participar dessa esperança de prolongamento da vida. No mito sumério do dilúvio
de Ziusudra, o rei (equivalente a Noé) recebe como recompensa dos deuses Anh e
Enlil não um arco-íris simbólico, mas o dom "da vida como um deus". O desejo de
uma vida eterna participava também do retrocesso geral de todos os limites que a
primeira grande concentração de poder havia iniciado pelo meio da máquina.

Mas se a morte ridiculariza os fantasmas infantis do poder absoluto do qual a


máquina humana poderia legar as realizações, a vida burla-se ainda mais deles. A
noção de vida eterna, sem começo, sem desenvolvimento, sem madurez nem
declínio — existência tão rígida, esterilizada e definitiva quanto a da múmia real —
nada mais é do que a morte sob uma outra forma: um retorno ao estado de
paralisia e fixação apresentado pelos corpos químicos estáveis que ainda não se
Combinaram em moléculas suficientemente complexas para, em um movimento
criativo, engendrar corpos novos. Os antigos deuses da fertilidade não recuavam
diante da realidade da morte: não tentavam uma inútil evasão infantil, mas
prometiam o retorno à vida e a renovação da existência pelo prolongamento do
poder. Se os deuses do poder não tivessem triunfado, se a monarquia não tivesse
encontrado um meio negativo de estender o campo de ação da máquina humana e
ampliado ao mesmo tempo sua exigência de absoluta obediência, o curso de toda a
civilização teria podido ser radicalmente diferente do que foi.

Mas, ao lado do desejo de vida eterna, os reis e seus deuses nutriam outras
ambições que doravante fazem já parte integrante da mitologia de nossa época. Na
fábula suméria Etana sobe numa águia para procurar uma erva medicinal
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destinada a curar os animais da esterilidade, nascendo assim — ou pelo menos
sugerindo — o velho sonho do homem de voar — bem que esse sonho tenha
parecido então tão presunçoso que, como Ícaro, Etana caiu da águia ao aproximar-
se do seu objetivo. Porém, logo os reis foram representados sob a forma de touros
alados; tinham a sua disposição mensageiros celestes que ultrapassavam o espaço e
o tempo para levar as suas ordens aos súditos terrestres. Podemos vislumbrar os
foguetes e as telas de televisão perfilar-se atrás desse mito real; os gênios das Mil e
Uma Noites são apenas os prolongamentos populares dessas formas de poder
mágico.

Durante o curto período da longínqua civilização que se estende de 3000 a


1000 a. C., o impulso gerador para exercer, ao mesmo tempo, o controle absoluto
sobre a natureza e sobre o homem, passou consecutivamente dos deuses aos reis e
depois dos reis aos deuses. Josué ordenou ao sol que ficasse imóvel e destruiu os
muros deJericó ao som de um trompete marcial; mas o próprio Javé, pouco tempo
antes, tinha se adiantado à era atômica ao destruir Sodoma e Gomorra com um
único jato de enxofre e fogo, e Ele ainda recorreu, um pouco mais tarde, à guerra
bacteriológica para desmoralizar os egípcios e ajudar a fuga dos judeus. Em
resumo, nenhuma das fantasias destrutivas que germinaram nos cérebros dos
senhores de nossa época, de Hitler a Stalin, dos Cãs do Kremlin aos Cãs do
Pentágono, eram desconhecidas pelos fundadores — designados pelos deuses — da
primeira civilização da máquina. A cada novo acréscimo efetivo do poder
corresponderam acessos de loucura sádica e mortífera, provenientes do incons-
ciente: não eram radicalmente diferentes daqueles que tiveram como con-
seqüência não apenas o extermínio por Hitler de seis milhões de judeus e de um
número incalculável de milhões de outras pessoas, mas também a destruição, pela
aviação americana, de 200.000 civis queimados vivos em Tóquio em uma única
noite. Quando um ilustre erudito mesopotâmico proclamava: "a civilização
começa em Sumer", perdia inocentemente de vista tudo o que convém esquecer
para que esse feito pudesse ser considerado digno de elogio. Do ponto de vista
histórico, a produção em massa e a destruição em massa são os dois pólos—
negativo e positivo — do mito da megamáquina.

A segunda grande prerrogativa da tecnologia real foi a rapidez; dado que, em


qualquer empreendimento, a própria rapidez de execução é uma função do poder
e torna-se, por sua vez, um dos principais meios de o manifestar. Essa parte do
mito da máquina tornou-se um dos postulados de base sacrossantos de nossa
própria tecnologia, de forma tal que a maioria de nós perdemos de vista a sua
origem primitiva; mas as ordens reais, assim como as ordens urgentes no exército,
devem ser executadas "a passo acelerado".

Nada ilustra melhor essa aceleração do passo que o fato de que no Egito
primeiro e logo na Pérsia, cada novo monarca na época das pirâmides construiu
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uma nova capital para o seu uso pessoal (devemos comparar esse ponto ao fato de
que, na ausência da faculdade real de concentrar o poder, foram necessários vários
séculos para construir as catedrais da Idade Média). No plano prático, a construção
de estradas e canais — que era o principal meio de acelerar os transportes — foi, ao
longo da história, a forma predileta dada às obras públicas da monarquia; forma
essa que atingiu sua perfeição técnica na idade do ferro, com a construção do canal
de Corinto através de quase dois quilômetros e meio de rocha pura.
Numa época em que havia, no máximo, quatro ou cinco milhões de
habitantes no vale do Nilo, apenas uma economia de abundância permitia a cada
ano a arregimentação de centenas de milhares de homens e fornecer a essa massa
alimentação suficiente para permitir-lhe desempenhar sua colossal tarefa; posto
que, na escala em que foram executados esses trabalhos, a utilização da mão-de-
obra foi a menos produtiva possível. Apesar das reticências de inúmeros
egiptólogos, a idéia de John Maynard Keynes— de que a construção das pirâmides
foi o meio indispensável para absorver o excedente de mão-de-obra em uma
sociedade de abundância, sem ter que recorrer ao nivelamento social —, está longe
de ser uma metáfora desprovida de sentido. Esse desperdício é o exemplo
arquétipo da falsa produtividade; o que equivale em nossa época à construção de
foguetes.
Mas a contribuição econômica mais durável do primeiro mito da máquina foi
o estabelecimento de uma separação entre aqueles que trabalham e aqueles que,
sem nada fazer, viviam da extorsão do excedente de uma mão-de-obra reduzida à
indigência. Conforme os textos acadianos e babilônicos, assim como os de Sumer,
os deuses tinham criado os homens para libertar-se da dura necessidade do
trabalho. Aqui, como em inúmeros outro lugares, os deuses prefiguram no
imaginário o que os reis fazem na realidade: em período de paz, os reis e os nobres
vivem como querem; comem, bebem, caçam, se divertem e copulam ao seu bel-
prazer. Assim, na mesma época em que o mito da máquina tomava forma, o
comportamento fantasioso das classes dirigentes fazia surgir, pela primeira vez, os
problemas colocados por uma economia de abundância.
Ao examinar as aberrações cometidas por elas no decorrer da história,
constataremos até que ponto essas classes estavam longe de entender, na sua
maioria, quais eram as limitações do seu poder e da sua existência centrada no
consumo de bens adquiridos sem esforço; como a do parasita que vive, em ritmo
lento, às expensas do hospedeiro que o tolera. O tédio proveniente da saciedade
espreitava desde o início essa economia baseada no excesso de poder e no
excedente alimentar; desembocou finalmente nas manifestações de luxo pessoal
mais insensatas e em atos de delinqüência e de destruição coletivas mais insensatos
ainda.

Um único exemplo desse longínquo dilema da afluência será suficiente. Um


conto egípcio, traduzido para o inglês por Flinders Petrie, revela o vazio da vida de
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um faraó, vida na qual cada desejo é atendido com excessiva facilidade e onde o peso
do tempo faz-se sentir de forma insuportável. Desesperado, o faraó do conto pede
aos seus conselheiros que encontrem algum remédio para o seu mal; um deles faz
então a sugestão que se tornou clássica: um barco cheio de lindas garotas seminuas
cobertas apenas por véus transparentes e que remarão enquanto cantam. O tédio
do faraó foi, para sua grande alegria, momentaneamente superado; corno Petrie
oportunamente observou, o vizir acabava de inventar a primeira comédia musical,
esse consolo de nossos homens de negócios por demais atarefados.

Em resumo, no primeiro estágio do desenvolvimento do poder ilimitado, sob


o mito da monarquia divina, a imoralidade e a inutilidade desse poder são
atestados tanto pelas lendas religiosas como pelas relações históricas. Apesar do
leque de invenções modernas ter superado as possibilidades da megamáquina -
que tinha apenas equivalentes parciais e incompletos -, a força fundamental que
anima essas invenções - tentativas de conquista do espaço e do tempo, acréscimo e
propagação da energia humana pela utilização das forças cósmicas, estabele-
cimento do controle absoluto do homem sobre o homem e a natureza simul-
taneamente-, tudo isso provinha e tirava sua substancia do campo da imaginação.

Algumas dessas invenções foram imediatamente implementadas; outras, que


necessitavam um grau muito mais elevado de qualificação técnica e uma maior
capacidade de abstração lógica e matemática, esperaram cinco mil anos para
nascer e, quando cada uma delas apareceu, o rei de direito divino estava lá, de
novo, sob urna forma ou outra.

Lewis M um ford
(Universidade de Berkeley)

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