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Lewis Mumford
2. A Máquina Arquétipo
Era possível criar uma estrutura dessa magnitude sem a ajuda da máquina?
Certamente que não. Mais uma vez repito que o próprio resultado da empresa
mostrou que ela não se realizou pelo único trabalho de uma máquina, e sim pelo
de um instrumento de precisão. Apesar de que, do ponto de vista técnico, o
equipamento do Egito dinástico fosse ainda bem primitivo, uma execução
paciente e um método disciplinado superaram essas imperfeições. A organização
social tinha dado um passo à frente de cinco mil anos para criar a primeira
máquina mecânica de grande porte: uma máquina com uma força de cem mil
pares de braços, ou seja, de aproximadamente dez mil cavalos-vapor; uma
máquina constituída por uma infinidade de peças uniformes, especializadas,
permutáveis, mas com funções diferenciadas, todas rigorosamente montadas e
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coordenadas conforme um método centralizador de organização e de direção;
cada peça comportando-se como a engrenagem mecânica de um todo mecanizado
insensível aos impulsos internos que teriam se imiscuído no funcionamento da
máquina.
A máquina humana coletiva foi construída em menos de três séculos. Uma vez
organizada e posta em marcha pelo faraó— por intermédio do seu arquiteto-chefe—, a
competência e a imaginação técnicas que haviam concebido o conjunto do projeto
foram transmitidas pelo meio de instruções orais e escritas, às diferentes
engrenagens: operários qualificados, vigilantes e contramestres, trabalhadores
silenciosos. O cérebro humano que imaginou a pirâmide era de um gênero novo,
capaz de um alto nível de abstração, sabendo aplicar as observações astronômicas
para a implantação do edifício, de tal maneira que cada uma de suas faces esteja
exatamente no prolongamento dos pontos cardeais reais: como no período das
inundações a localização das Pirâmides encontra-se apenas a 400 metros do rio,
fez-se necessário fazer as fundações na roca — o que implicou na retirada da areia.
Na Grande Pirâmide, o perímetro desta base desvia-se da horizontal em apenas
125 milímetros.
3. O Mecanismo de Transmissão
Rei algum podia agir em segurança ou com eficácia sem o apoio de um saber
de organização tão elevada, da mesma forma que hoje o Pentágono não pode
prescindir da ajuda dos cientistas, dos "teóricos dos jogos" e dos computadores;
nova hierarquia que se pretende menos falível que os adivinhos que liam o futuro
nas entranhas das vítimas, mas que em realidade não fica muito distante deles a
julgar pelos erros de cálculo freqüentes que comete. Para ser eficiente, esse gênero
de conhecimento deve continuar sendo o monopólio dos sacerdotes considerando
que, se todo mundo tivesse por igual acesso às fontes do saber e a seu sistema de
interpretação, ninguém mais acreditaria na sua infalibilidade já que os erros não
mais poderiam ser dissimulados. De onde concluímos que os indignados
protestos de Ipu-wer contra os revolucionários que tinham derrubado o Antigo
Reino eram devidos a que os "segredos do templo deveriam continuar sendo
confidenciais"; ou seja, que tinham sido tornado públicos os "relatórios" e as
"fichas". O segredo do saber é exclusivo de qualquer sistema de controle absoluto
e permaneceu como monopólio de classe até a invenção da imprensa.
O fato do rei, como o sol, exercer seu poder a distância, não era a única
semelhança existente entre a monarquia e o culto do sol. Pela primeira vez na
história, o poder tornou-se eficaz além dos limites imediatos da audição, da visão e
da mão. Nenhuma arma militar bastaria, por si só, para conceder um tal poder;
para isso era necessário um sistema de transmissão especial: um exército de
escribas, de mensageiros, de contadores, de vigilantes, de chefes de equipe e de
executantes mais ou menos importantes cuja própria existência dependia da
exatidão com que executassem as ordens do rei ou de seus poderosos ministros e
generais. Em outras palavras, uma burocracia: um grupo de homens capazes de
transmitir e de executar um comando com o ritual meticuloso do sacerdote e a
obediência passiva do soldado.
Esse texto prova não apenas a existência de uma burocracia: mostra também
que a divisão do trabalho e a especialização de funções necessárias para uma
operação mecânica eficaz estavam já presentes no seio de um organismo que,
como executante da vontade real, desde então controlava o conjunto dos trabalhos
da máquina militar e da máquina do trabalho. Esse fenômeno tinha se originado
há pelo menos três dinastias: não por mero acidente, mas por ocasião da
construção da grande pirâmide de pedra de Zoser em Saquarah. Na sua obra City
invencible, Wilson observa: "Atribui-se a Zoser não apenas o início da arquitetura
monumental de pedra no Egito, mas também a criação de um novo monstro: a
burocracia". Não se tratava de uma simples coincidência eW. F. Albright observa a
esse respeito que: "a maioria dos títulos encontrados nos esconderijos da Primeira
Dinastia.... pressupõem, com certeza, uma forma de administração avançada".
O provérbio romano que diz que a lei não se interessa pelas coisas fúteis
aplica-se igualmente à máquina humana. As grandes forças postas em marcha pelo
rei necessitavam de empresas coletivas proporcionais a sua dimensão. Por
natureza própria, as máquinas humanas eram impessoais, senão deliberadamente te
desumanizadas, considerando que, se não funcionassem em vasta escala, não
poderiam funcionar no todo. Nenhuma burocracia, por mais organizada que fosse,
teria podido, com efeito, dirigir centenas de pequenos ateliês, cada um com suas
tradições e técnicas artesanais próprias, sua teimosia, seu amor-próprio particular
e seu sentido pessoal das responsabilidades. Destarte, a forma de controle imposta
pelas necessidades da monarquia não podia ser outra do que as grandes empresas
coletivas.
4. A Exaltação do Poder
Mas essa multiplicação dos anos era apenas o aspecto secular de um novo
conceito da imortalidade: de início ela era, no Egito, atributo exclusivo do rei
divino, apesar de — como podemos constatar em Sumer onde toda a corte foi
massacrada no interior do túmulo real da cidade de Ur para acompanhar o
soberano no outro mundo — os servidores e os ministros do rei terem podido
participar dessa esperança de prolongamento da vida. No mito sumério do dilúvio
de Ziusudra, o rei (equivalente a Noé) recebe como recompensa dos deuses Anh e
Enlil não um arco-íris simbólico, mas o dom "da vida como um deus". O desejo de
uma vida eterna participava também do retrocesso geral de todos os limites que a
primeira grande concentração de poder havia iniciado pelo meio da máquina.
Mas, ao lado do desejo de vida eterna, os reis e seus deuses nutriam outras
ambições que doravante fazem já parte integrante da mitologia de nossa época. Na
fábula suméria Etana sobe numa águia para procurar uma erva medicinal
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destinada a curar os animais da esterilidade, nascendo assim — ou pelo menos
sugerindo — o velho sonho do homem de voar — bem que esse sonho tenha
parecido então tão presunçoso que, como Ícaro, Etana caiu da águia ao aproximar-
se do seu objetivo. Porém, logo os reis foram representados sob a forma de touros
alados; tinham a sua disposição mensageiros celestes que ultrapassavam o espaço e
o tempo para levar as suas ordens aos súditos terrestres. Podemos vislumbrar os
foguetes e as telas de televisão perfilar-se atrás desse mito real; os gênios das Mil e
Uma Noites são apenas os prolongamentos populares dessas formas de poder
mágico.
Nada ilustra melhor essa aceleração do passo que o fato de que no Egito
primeiro e logo na Pérsia, cada novo monarca na época das pirâmides construiu
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uma nova capital para o seu uso pessoal (devemos comparar esse ponto ao fato de
que, na ausência da faculdade real de concentrar o poder, foram necessários vários
séculos para construir as catedrais da Idade Média). No plano prático, a construção
de estradas e canais — que era o principal meio de acelerar os transportes — foi, ao
longo da história, a forma predileta dada às obras públicas da monarquia; forma
essa que atingiu sua perfeição técnica na idade do ferro, com a construção do canal
de Corinto através de quase dois quilômetros e meio de rocha pura.
Numa época em que havia, no máximo, quatro ou cinco milhões de
habitantes no vale do Nilo, apenas uma economia de abundância permitia a cada
ano a arregimentação de centenas de milhares de homens e fornecer a essa massa
alimentação suficiente para permitir-lhe desempenhar sua colossal tarefa; posto
que, na escala em que foram executados esses trabalhos, a utilização da mão-de-
obra foi a menos produtiva possível. Apesar das reticências de inúmeros
egiptólogos, a idéia de John Maynard Keynes— de que a construção das pirâmides
foi o meio indispensável para absorver o excedente de mão-de-obra em uma
sociedade de abundância, sem ter que recorrer ao nivelamento social —, está longe
de ser uma metáfora desprovida de sentido. Esse desperdício é o exemplo
arquétipo da falsa produtividade; o que equivale em nossa época à construção de
foguetes.
Mas a contribuição econômica mais durável do primeiro mito da máquina foi
o estabelecimento de uma separação entre aqueles que trabalham e aqueles que,
sem nada fazer, viviam da extorsão do excedente de uma mão-de-obra reduzida à
indigência. Conforme os textos acadianos e babilônicos, assim como os de Sumer,
os deuses tinham criado os homens para libertar-se da dura necessidade do
trabalho. Aqui, como em inúmeros outro lugares, os deuses prefiguram no
imaginário o que os reis fazem na realidade: em período de paz, os reis e os nobres
vivem como querem; comem, bebem, caçam, se divertem e copulam ao seu bel-
prazer. Assim, na mesma época em que o mito da máquina tomava forma, o
comportamento fantasioso das classes dirigentes fazia surgir, pela primeira vez, os
problemas colocados por uma economia de abundância.
Ao examinar as aberrações cometidas por elas no decorrer da história,
constataremos até que ponto essas classes estavam longe de entender, na sua
maioria, quais eram as limitações do seu poder e da sua existência centrada no
consumo de bens adquiridos sem esforço; como a do parasita que vive, em ritmo
lento, às expensas do hospedeiro que o tolera. O tédio proveniente da saciedade
espreitava desde o início essa economia baseada no excesso de poder e no
excedente alimentar; desembocou finalmente nas manifestações de luxo pessoal
mais insensatas e em atos de delinqüência e de destruição coletivas mais insensatos
ainda.
Lewis M um ford
(Universidade de Berkeley)
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