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Transplantes de órgãos:avaliação psicológica

TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS: AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

Organ Transplantation: Psychological Evaluation


Claire Terezinha Lazzaretti1

Resumo
A decisão por um transplante de órgão é muito delicada e requer muitas discussões e esclarecimentos com
paciente e equipe. O transplante pode provocar inúmeras implicações psicológicas que afetam o doador e
o receptor do órgão. A atitude diante do transplante depende das características subjetivas de cada paciente.
A motivação tanto do doador como do receptor para o transplante atualiza conflitos psicológicos que devem
ser reconhecidos e abordados antes da cirurgia. Considerando as implicações psicológicas em todas as etapas
deste procedimento, faz-se necessária a inserção do psicólogo como participante da equipe multidisciplinar.
O objetivo deste trabalho é levantar algumas questões sobre a vivência pré e pós-transplante por parte dos
doadores e receptores. Com base nestes dados, elaborou-se um protocolo de avaliação psicológica aqui
apresentado.
Palavras-chave: Psicologia; Transplante; Doador vivo.

Abstract
Deciding for a transplantation is very delicate and requires multiples discussions with the patient and team.
Transplantation carries along numerous psychological implications affecting both, the donor and the
recipient. The attitude towards transplantation depends on the subjective characteristics of the patient. The
motivation of the donor and the recipient to transplantation actualizes psychological conflicts, which should
be studied and recognized in time. Considering the significant psycho-sociological implications in all its
stages, the method of transplantation soon indicates the need for a psychologist as a member of a
multidisciplinary team. The aim of the study is show the influence of some aspects in the life of the donor
and the recipient in pretansplantation and posttranplantadion. On this basis in these data, was elaborated a
protocol of psychological evaluation, here presented.
Keywords: Psychological; Transplantation; Living donor.

1
Serviço de Psicologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná.
Rua Coronel Dulcídio, 97 Cj. 01 80420-060 Curitiba-PR
clairetl@ufpr.br

Psicol. Argum., Curitiba, v. 24, n. 45 p. 35-43, abr./jun. 2006. 35


Claire Terezinha Lazzaretti

Doenças crônicas e transplantes de órgãos pera pelo órgão antes de ser transplantado. Po-
exemplificam paradoxalmente situações de perdas rém, a sucessão geral dos eventos e períodos de
e ganhos que muitos de nós experimentamos em tempo, pode-se dizer, é semelhante entre todos os
formas diferentes durante o curso da vida. Surgem tipos de candidatos de transplante de órgão sóli-
múltiplas questões relativas à habilidade de adap- dos e receptores, é o que mostra nossa experiên-
tação a mudanças de saúde e à capacidade funci- cia com os transplantes renais, hepáticos, pâncre-
onal, alteração das relações sociais, novas percep- as-rim e fígado-rim.
ções de si mesmo, revisão de metas e planos de
vida são preocupações que transcendem o campo
do transplante. Escolha pelo transplante de órgão
Este trabalho tem por objetivo a exposi-
ção e discussão de algumas questões da experiên- Para muitos pacientes, a avaliação para
cia de 10 anos de trabalho em Unidades de Trans- transplante de órgão marca o fim de uma longa
plante de Órgãos do Hospital de Clínicas da Uni- estrada de convivência com a deterioração da saú-
versidade Federal do Paraná, mais precisamente de e o início de uma outra modalidade de trata-
no Serviço de Transplante Renal e no Serviço de mento. Alguns chegam à avaliação com sentimen-
Transplante Hepático. to de alívio, resignação ou otimismo. Um peque-
É importante ressaltar que este artigo não no número de pacientes, quando a doença ainda
tem a pretensão de estabelecer argumento teórico se mostra sobre controle ou é assintomática, acre-
ou filosófico a respeito dos transplantes de órgãos, dita que seu estado não é severo o bastante para
ou mesmo da relação receptor-doador, mas sim se submeterem ao transplante. Na grande maioria,
levantar algumas questões acerca da situação pré embora estes possam ter preocupações e inquie-
e pós-transplante por parte dos doadores e recep- tações justificáveis, apresentam pouca ou nenhu-
tores. Mesmo porque dificilmente conseguiríamos ma ambivalência sobre a necessidade da realiza-
traçar um perfil psicológico dos indivíduos sub- ção do transplante. No entanto, ao se submeterem
metidos ao transplante, uma vez que o percurso e à avaliação, observa-se uma mistura de sentimen-
o significado da doença para o indivíduo são úni- tos contraditórios e angústia, tais como:
cos e singulares. • Esperança de ter um futuro saudável e
Enfocar a problemática do transplante é estilo de vida normal, combinado com inquieta-
uma tarefa bastante complexa para ser tratada de ção e temor sobre os riscos de cirurgia, de como
forma parcial e isolada, pois o percurso, desde o será viver com o órgão de outra pessoa e da pos-
diagnóstico da doença até a indicação desta tera- sibilidade do transplante falhar;
pêutica, pode ser longo ou curto, mas quase sem- • Ânsia de prosseguir a avaliação, com
pre árduo. São pacientes que trazem consigo uma ansiedade sobre a incerteza de ser aceito como
história de doença crônica, marcada pela relação um candidato satisfatório;
instigante existente entre esta e o psiquismo. • Preocupações que o órgão não che-
O trabalho da psicologia se insere em todo gue a tempo, com a esperança de que neste tem-
o processo do transplante. Desde o contato inicial po terá que esperar a medicina descobrir outras
para avaliação pela equipe responsável, os paci- opções de tratamento, o que tardaria ou até mes-
entes passam por uma série, relativamente padro- mo eliminaria a necessidade do transplante.
nizados de etapas do processo de transplante: ava- Além da tensão com seus problemas à
liação para ser aceito como um potencial receptor saúde, os pacientes também podem ter preocu-
de transplante; a espera de um órgão satisfatório pações acerca de como a equipe de transplante
de doador; a cirurgia e o período de recuperação os avaliará psicologicamente e psicossocialmen-
pós-cirúrgica e os ajustes a longo prazo do pós- te. Podem se preocupar sobre revelar ou discutir
transplante. a fundo indiscrições do passado e comportamen-
As etapas podem variar consideravelmen- tos de seu estilo de vida, como fumar, beber e/ou
te em sua duração, dependerão de fatores como a uso de substância ilícita. Também podem consi-
severidade da doença do paciente, a disponibili- derar que história passada de depressão ou outra
dade local e regional de doadores de órgão e o doença mental serão vistas como desfavoráveis
tempo de inscrição dos candidatos na lista de es- pela equipe de transplante. Na realidade, estas

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Transplantes de órgãos:avaliação psicológica

preocupações não são infundadas. As equipes de informação adicional de familiares e/ou dos pa-
transplante consideram seriamente fatores como cientes, visando a encaminhamento para outros
estes, para tomar decisões sobre quem é ou não, procedimentos, tal como psicoterapia. Em nosso
o candidato de transplante, embora a importân- serviço, as avaliações psicológicas são realizadas
cia dada a estes fatores varie consideravelmente por meio de entrevistas com algumas perguntas
de centro para centro, e de acordo com o tipo de preestabelecidas, mas com uma metodologia vol-
transplante. tada para a escuta, ou seja, o entrevistado pode
A equipe de transplante, além dos da- falar livremente. Após esta entrevista com finali-
dos médicos, geralmente tem preocupações so- dade também terapêutica, o preenchimento da
bre algumas questões psicossociais e psicológi- folha do protocolo da psicologia possibilita que
cas que devem ser focalizadas adequadamente os dados também possam ser utilizados com pro-
na avaliação. pósito para pesquisas.
Embora cada equipe de transplante de- A questão deve-se excluir pacientes do
termine quais informações psicossociais são con- transplante com base nos fatores psicológicos e
sideradas importantes, dentro de seus critérios, psicossociais sempre foi e continua sendo contro-
colocando graus diferentes de ênfase em certas vérsia dentro da comunidade mundial de trans-
áreas da avaliação, as informações que precisam plante de órgão e da ética médica. Questões mo-
ser obtidas para conhecer o paciente e sua relação rais e éticas surgem quando é possibilitado ou
com o transplante permanecem relativamente cons- negado o transplante baseado na história de com-
tantes. No protocolo utilizado em nosso serviço portamento e/ou estado atual psicossocial. (Sur-
(anexo I), os componentes básicos da avaliação man & Cosimi, 1996)
psicológica pré-transplante podem ser resumidos Estes critérios, a princípio, foram adota-
na história pregressa e atual: de saúde mental, de dos devido à escassez da provisão de órgãos doa-
enfrentamento da doença, de uso de drogas, do dos e sua difícil distribuição, porém, apesar de
estado mental, de apoio social e de compreensão muitas vezes serem considerados subjetivos, po-
da doença e procedimento do transplante. Julga- dem visar ao risco e beneficio do transplante para
mentos sobre os riscos de o paciente aderir a com- o paciente e sua família. A avaliação psicológica
portamentos prejudiciais para saúde depois do pré-transplante, de acordo com o protocolo apre-
transplante devem ser feitos levando em conta a sentado, pode ser um importante instrumento para
história de vida e estado atual do paciente. Por identificar pacientes que necessitam de interven-
exemplo, se abstinência de bebida alcoólica é ne- ções psicoterapêuticas, isto é, em lugar de apenas
cessária, a equipe de transplante precisa ter claro identificar os que deveriam ser excluídos como
os critérios de pré-requisitos que determinem a candidatos, esta abordagem visa também ao enca-
probabilidade que um paciente poderá permane- minhamento de pacientes a serviços ou interven-
cer abstinente e especificar para o paciente o pa- ções que os ajudarão a atingir melhor qualidade
drão esperado que o qualifica para continuar sen- de vida antes e depois do transplante (Skotzko et
do um candidato de transplante. O Serviço de al., 2001)
Transplante Hepático do Hospital de Clínicas ado- Semelhante a outras populações que vi-
ta como critério para listar um paciente o mínimo vem com doença crônica, os candidatos de trans-
de 6 meses de abstinência de álcool e em alguns plante apresentam significativamente maior risco
casos de cirrose alcoólica requer a participação de angústia e/ou distúrbios depressivos quando
dele em programa de reabilitação ou de apoio para comparados com a população geral (Dew et al.,
abstinência. (Parolin et al., 2002) 1998). O tempo de espera para transplante, apesar
Cada um destes fatores do referido pro- de ter como seu elemento central a incerteza, pode
tocolo pode ser avaliado com uma entrevista aber- ser importante para aceitação da idéia de que eles
ta, não estruturada. Alternativamente, pode ser precisam do transplante e ao mesmo tempo pen-
criado um questionário estruturado ou semi-es- sar que vida podem buscar no pós-cirúrgico. Esta
truturado, se a equipe de transplante assim o de- espera pode possibilitar uma escolha, desejar o
sejar. Entretanto, o mais importante é que os da- transplante.
dos coletados possam ser úteis para identificar Na realidade, há alguma evidência de que
áreas de particular preocupação e que requerem quando esta espera é extremamente curta, no pós-

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transplante, o ajuste psicológico é mais difícil do para um TIV atualiza ocasionalmente conflitos in-
que para pacientes que esperam por períodos mais trapsíquicos que deveriam ser reconhecidos e tra-
longos (Dew et al., 1996). A experiência nos mos- balhados em tempo, tendo em mente seus efeitos
tra que um certo nível de ajuste psicológico é ne- no pré e pós-transplante (Bonomini, 1991).
cessário também no pós-transplante. A equipe de transplante tem o dever de
Um elemento que pode reduzir a incerte- informar ao potencial doador sobre todos os fatos
za durante o tempo de espera, mas pode aumen- relacionados ao transplante, apontando objetiva-
tar mais adiante a tensão familiar, é o transplante mente possíveis problemas e complicações tanto
com doador vivo. Em transplante intervivos (TIV), para o doador quanto para o receptor. Neste con-
a doação de órgão por um membro familiar é o texto, é importante avaliar a existência de persua-
mais comum. Embora a doação de cadáver conti- são ou qualquer outro tipo de situação que carac-
nue sendo a preferência na maioria dos casos, a terize o desejo de doar como um ato forçado.
doação com doador vivo permanece uma opção Na entrevista de avaliação psicológica com
para muitos pacientes. Usualmente os transplantes o doador além dos componentes básicos da histó-
de rim e os de fígado e, mais recentemente, os ria pregressa e atual: de saúde mental, de uso de
transplantes de pâncreas e os de pulmão já utili- drogas, do estado mental e de compreensão do
zam o doador vivo, que freqüentemente são: os procedimento do transplante (anexo II), é de suma
irmãos, os pais e os filhos, mas, os não relaciona- importância, não só para estabelecer o parecer,
dos, sem parentesco se tornaram opções viáveis acolher a intenção da doação, do ato de se sub-
para alguns pacientes. meter a um risco cirúrgico em detrimento da in-
A decisão pelo TIV é muito delicada, re- tenção de ajudar a saúde de um outro, com todas
quer competência da equipe multidisciplinar para as implicações imaginárias e reais decorrentes. É
propiciar múltiplas discussões, orientações e in- condição prévia principal para o ato de sacrificar
formações com o paciente e a família. O paciente o órgão de uma pessoa com saúde que este seja
e a família devem estar cientes de que estão op- um ato completamente consciente e responsável
tando por um tratamento muito especializado, com por todos os envolvidos.
grande possibilidade de sucesso, mas que também A primeira tarefa, talvez a mais difícil, para
comporta risco de vida tanto para o doador quan- o psicólogo, é responder a pergunta sobre o cará-
to para o receptor. O nível de expectativa frente à ter da motivação para o transplante do potencial
cirurgia pode variar, principalmente dependendo doador, pois cria um espaço propício para diver-
do estado clínico do paciente. sas reações psicológicas do doador, do receptor e
Como já foi dito, geralmente os pacientes da família, devido à situação de falta de órgãos
são convidados a optarem pelo transplante, num cadavéricos ou à demora na lista de espera para o
momento de muita tensão emocional, quando re- transplante. Entretanto, para dar continuidade ao
ceberam o diagnóstico de uma doença, em alguns processo de transplante com a devida responsabi-
casos, sem outra alternativa de tratamento. É um lidade que o assunto merece, é mesmo necessário
momento de impasse: “situação difícil de que pa- investigar por que alguém sacrifica parte de seu
rece impossível uma saída favorável”, mas preci- órgão vital, expondo a si mesmo a um procedi-
sam autorizar a inscrição de seu nome na lista para mento diagnóstico complexo e a uma cirurgia ar-
um transplante. riscada. As respostas para esta inquietação reque-
rem a avaliação das características psicológicas do
doador e do receptor, os vínculos emocionais ou a
Sobre o doador existência de outro tipo de relação entre eles, a
posição deles na família e as características bási-
Depois da aceitação do TIV, como alter- cas da rede de relações familiares. Os costumes e
nativa de tratamento terapêutico, a escolha do sistemas de valores familiares estão incorporados
doador é crucial para o procedimento. nas características socioeconômicas e sociocultu-
O TIV é uma alternativa de tratamento rais do ambiente do qual a família pertence e, de-
médico que desencadeia inúmeras implicações pendendo das especificidades da cultura e tradi-
psicológicas tanto no doador quanto no receptor. ção, as atitudes para doar um órgão com o doador
A preparação psicológica do doador e do receptor ainda vivo será diferente (Jones et al., 1993).

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Transplantes de órgãos:avaliação psicológica

As transformações das relações emocio- desenvolvimento e manutenção existe um investi-


nais que permeiam todo o procedimento de trans- mento psicológico mútuo (Simmons & Andeson,
plante são causadas pela imprevisibilidade da di- 1982).
nâmica das relações existentes e dificilmente po-
dem ser diagnosticados por meio de protocolos
clássicos. Considera-se como meio de alcançar este Alguns efeitos pós-transplante no
objetivo as entrevistas psicológicas, por meio da receptor
escuta clínica voltada para as determinações in-
conscientes deste querer de doação.
O receptor, geralmente, sente-se como um
Para entender a relação atual estabeleci-
devedor, carregado de sentimentos de culpa e é
da no ambiente familiar é necessário saber sua di-
difícil para ele não atender a qualquer demanda
nâmica interna, suas características e modelos de
do doador. Para ele, às vezes, é muito difícil dis-
funcionamento. Os membros da família do paci-
tinguir o órgão doado do membro familiar que
ente estão em um estado ansioso específico, car-
doou. Fantasias de alterações físicas e de caracte-
regado com dilemas e frustrações que são consti-
rísticas de personalidade provocadas pelo novo
tuídas em ambos os níveis, consciente e inconsci-
órgão não são raras (Lazzaretti, 2004). Sentimen-
ente, e são manifestados por vários comportamen-
tos de rejuvenescimento por ter tido um doador
tos. No entanto, neste momento, muito pouco
jovem até medo de interferência na identidade
podem ser elaborados, pois a grande preocupa-
sexual, nos casos de receber o órgão de uma pes-
ção e motivação estão em salvar a vida do parente
soa do sexo oposto.
adoecendo. Sentimento de culpa, pretensão em
A evolução da relação é determinada pelo
responsabilidade moral e agressividade são cons-
destino do enxerto e as capacidades psicológicas
tantes seguindo uma a outra. Dentro da família, os
de ambos os participantes para perceber a dinâmi-
conflitos são muito freqüentes, que enfatizam o
ca da relação deles realisticamente, reconhecer suas
desequilíbrio entre a voluntariedade e o acordo
expectativas e frustrações e expressar verbalmen-
racional que, por meio de critérios de vida geral,
te em uma discussão tolerante. Neste contexto, há
escolhe o candidato à doação. O altruísmo do
também hipóteses sobre a existência de uma co-
potencial doador é um a priori levado em conta
nexão direta entre a qualidade da emoção que
para outorgar, sem uma análise mais profunda dos
evolui na ligação do receptor e do doador e as
impulsos inconscientes que o estimulam ou o de-
manifestações somáticas de aceitação ou rejeição
sestimulam a doar o órgão voluntariamente.
do transplante (Walter et al., 2002). Um senso exa-
É muito raro que todos os membros da
gerado de responsabilidade e obrigação por parte
família tenham a “motivação para doação”, assim
do receptor e a necessidade emocional de um di-
a participação nas discussões familiares sobre o
reito de propriedade sobre o presente doado do
assunto são grandes e acompanhadas com inquie-
doador pode mudar a qualidade da relação e pode
tude. Raramente podemos falar sobre uma “pura
criar um vínculo hostil entre eles.
motivação” para a doação voluntária de um órgão,
Em casos de transplante cadavérico, sen-
na maioria dos casos há uma combinação de mo-
timento de culpa no receptor muitas vezes se faz
tivos e impulsos (Spital et al., 1986).
presente e alguns referem terem adquiridos algu-
Os doadores muito raramente estão pron-
mas características do doador por informação efe-
tos para expressar suas dúvidas e sentimentos ínti-
tiva ou fantasias fabricadas. Em geral, quando o
mos. A maioria dos doadores tende a tomar a de-
órgão é de um cadáver, a identidade do doador
cisão sobre doação de um órgão impulsivamente,
não é revelada. Este é um procedimento que vale
sem consideração racional, sob influência de um
para os dois lados, nem o receptor fica sabendo
forte afeto, freqüentemente até mesmo sem ad-
quem é o doador e nem a família do doador fica
quirir algum conhecimento preliminar sobre as
sabendo quem foi o receptor, esta é a condição
sutilezas do procedimento.
para a doação, preservar a intimidade de ambos.
O ato do transplante estabelece uma
Entretanto, se o receptor quiser saber e a família
relação muito íntima e delicada entre o doador e o
do doador tiver consentido a divulgação da identi-
receptor nos quais o órgão transplantado se torna
dade do doador, as informações poderão ser for-
o símbolo de um laço íntimo e específico. Em seu
necidas.

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Claire Terezinha Lazzaretti

A mistura de sintomas de natureza or- Considerações finais


gânica e psicológica é característica de mudan-
ças psicológicas em pacientes transplantados no O transplante como um método terapêu-
período imediato e posterior do pós-cirúrgico. tico não tradicional traz uma série de problemas
Livre do tratamento e do contato intensivo com psicológicos, sociais, legais e filosóficos. Conside-
a equipe médica, o paciente em sua “nova liber- rando as implicações psicossociais significantes em
dade” sente-se inseguro e desprotegido, inun- todas as suas fases, este método mostrou a neces-
dado pela relação ambivalente frente as suas sidade de um psicólogo como membro da equipe
novas habilidades e seus velhos desejos. No multidisciplinar (Cortesini, 1993). A contribuição do
período pós-cirúrgico imediato, o medo da re- psicólogo clínico é introduzir e respeitar a dimen-
jeição do órgão paira sobre toda ação que ele são subjetiva do paciente durante todo o processo
faz e determina o seu comportamento, seu hu- de transplante.
mor e restringe suas atividades. Com o tempo, o O protocolo de avaliação psicológica pré-
medo é diluído gradualmente e deixa de estar transplante de órgãos sólidos utilizado no Hospi-
focalizado na possibilidade da morte. tal de Clínicas da UFPR foi elaborado a partir dos
O funcionamento do órgão transplanta- critérios considerados importantes para o restabe-
do traz uma melhoria global em qualidade de lecimento psicossocial no pós-transplante, visan-
vida a nível físico e psicológico. A vida pode do a uma compreensão dos recursos disponíveis
voltar a ser organizada com maior liberdade e do receptor e o doador para a elaboração e aceita-
autonomia, os pacientes podem readquirir a li- ção das circunstâncias psicossociais do percurso
berdade de fazer planos futuros. do transplante.
Em alguns pacientes, a doença pode Em conclusão, o papel do psicólogo é
ferir o seu narcisismo profundamente, assim o muito delicado, especialmente nos casos de TIV,
transplante é imaginariamente visto como a res- onde um doador compatível sacrifica um órgão
tauração de saúde total e a perda definitiva do saudável seu para contribuir com a saúde do paci-
estado de paciente. A demonstração exagerada ente. O psicólogo clínico oferece uma escuta e
de “saúde restabelecida” pode conduzir os paci- trata as condições psicopatológicas com a idéia
entes em promiscuidade, abuso de várias subs- básica de possibilitar ao paciente um lugar para
tâncias, principalmente o álcool, e a evitação do falar e se possível elaborar a situação que a doen-
acompanhamento terapêutico, médico, psicote- ça lhe submeteu, dando significado à existência
rápico e outros. dele apesar de significantes limitações. Para que
isto seja feito, o psicólogo clínico tem que restrin-
gir qualquer intenção de oferecer esperanças irre-
ais e opções ao paciente, mas que ele possa saber
o que deseja e espera de um transplante.

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Transplantes de órgãos:avaliação psicológica

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Claire Terezinha Lazzaretti

Anexo I

HOSPITAL DE CLÍNICAS Serviço de Psicologia


UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

Breve Relatório da Avaliação Psicológica do R E C EP T O R

Psicóloga: Claire Terezinha Lazzaretti CRP 08/2440

N.o Prontuário: N.° ° Prontuário: Data: ____ / ____ / ______


__________________________________________________________________ Data: __________ /__________ /__________ /

_________________________
Nome: _______________________________________________________________________________________________________________________________________________

Possível Doador ( ) Cadáver ( ) pais


( ) cônjuge ( ) outro parente ( ) outros____
______________ ___________
( ) irmãos ( ) filhos
H istórico (Tratamentos psiquiátricos e/ou psicológicos anteriores); Condições atuais

Exame de estado mental (atenção e memória, compreensão, julgamento, confiabilidade):

Compreensão sobre a doença Compreensão sobre a doença


e procedimento do Tx (ato ( ) ótima ( ) boa ( ) adequada ( ) inadequada
cirúrgico e complicações
possíveis) Aderência ao tratamento atual
( ) ótima ( ) boa ( ) adequada ( ) inadequada
Compreensão sobre o transplante
( ) ótima ( ) boa ( ) adequada ( ) inadequada
Colaboração/ participação da família
( ) ótima ( ) boa ( ) adequada ( ) inadequada

Condições de se ( ) Sim ( ) Sim, com ajuda ( ) Não


responsabilizar pelo pós-Tx
Expectativas de vida no após Referências de saúde
o Tx
Referências de salvação
(s egundo critérios
predeterminados) Referências de renascimento
Referências idealizadas
Referências de submissão à doença
Não considera a possibilidade do transplante
CONCLUSÃO INDICAÇÃO FAVORÁVEL INDICAÇÃO FAVORÁVEL
CONDICIONADA À CONDUTA:

CONDUTA Reavaliação psicológica


Avaliação psiquiátrica
Revisão da orientação sobre procedimento cirúrgico
Avaliação pelo serviço social
Indicação de apoio psicológico pré-transplante
Apoio psicológico pós-transplante
INDICAÇÃO DESFAVORÁVEL

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Transplantes de órgãos:avaliação psicológica

Anexo II

HOSPITAL DE CLÍNICAS Serviço de Psicologia


UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

Breve Relatório da Avaliação Psicológica do D O A DO R

Psicóloga: Claire Terezinha Lazzaretti CRP 08/2440

N.° Prontuário: ____________________________ Data: ____ / ____ / ______


Nome: ___________________________________________________________________________
Nome do Receptor: ________________________________________________________________

Grau de parentesco ou ( ) pais ( ) cônjuge ( ) outro parente ( ) outros_______


relacionamento com o _____________ _______________
( ) irmãos ( ) filhos
receptor
Histórico (Tratamentos psiquiátricos e/ou psicológicos anteriores); Condições atuais

Exame de estado mental (atenção e memória, compreensão, julgamento, confiabilidade):

Compreensão sobre o Compreensão do procedimento


procedimento de doação
( ) ótima ( ) boa ( ) adequada ( ) inadequada
(ato cirúrgico e
complicações possíveis) Colaboração do doador
( ) ótima ( ) boa ( ) adequada ( ) inadequada
Colaboração/ participação da família do doador
( ) ótima ( ) boa ( ) adequada ( ) inadequada
Razões para doação Referências de altruísmo
(segundo critérios
predeterminados) Dever Moral
Retribuição
Outra razão:
Observações:

CONCLUSÃO INDICAÇÃO FAVORÁVE L INDICAÇÃO FAVORÁVEL


CONDICIONADA À CONDUTA:

CONDUTA Reavaliação psicológica


Avaliação psiquiátrica
Revisão da orientação sobre procedimento cirúrgico
Avaliação pelo serviço social

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