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Resumo
A decisão por um transplante de órgão é muito delicada e requer muitas discussões e esclarecimentos com
paciente e equipe. O transplante pode provocar inúmeras implicações psicológicas que afetam o doador e
o receptor do órgão. A atitude diante do transplante depende das características subjetivas de cada paciente.
A motivação tanto do doador como do receptor para o transplante atualiza conflitos psicológicos que devem
ser reconhecidos e abordados antes da cirurgia. Considerando as implicações psicológicas em todas as etapas
deste procedimento, faz-se necessária a inserção do psicólogo como participante da equipe multidisciplinar.
O objetivo deste trabalho é levantar algumas questões sobre a vivência pré e pós-transplante por parte dos
doadores e receptores. Com base nestes dados, elaborou-se um protocolo de avaliação psicológica aqui
apresentado.
Palavras-chave: Psicologia; Transplante; Doador vivo.
Abstract
Deciding for a transplantation is very delicate and requires multiples discussions with the patient and team.
Transplantation carries along numerous psychological implications affecting both, the donor and the
recipient. The attitude towards transplantation depends on the subjective characteristics of the patient. The
motivation of the donor and the recipient to transplantation actualizes psychological conflicts, which should
be studied and recognized in time. Considering the significant psycho-sociological implications in all its
stages, the method of transplantation soon indicates the need for a psychologist as a member of a
multidisciplinary team. The aim of the study is show the influence of some aspects in the life of the donor
and the recipient in pretansplantation and posttranplantadion. On this basis in these data, was elaborated a
protocol of psychological evaluation, here presented.
Keywords: Psychological; Transplantation; Living donor.
1
Serviço de Psicologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná.
Rua Coronel Dulcídio, 97 Cj. 01 80420-060 Curitiba-PR
clairetl@ufpr.br
Doenças crônicas e transplantes de órgãos pera pelo órgão antes de ser transplantado. Po-
exemplificam paradoxalmente situações de perdas rém, a sucessão geral dos eventos e períodos de
e ganhos que muitos de nós experimentamos em tempo, pode-se dizer, é semelhante entre todos os
formas diferentes durante o curso da vida. Surgem tipos de candidatos de transplante de órgão sóli-
múltiplas questões relativas à habilidade de adap- dos e receptores, é o que mostra nossa experiên-
tação a mudanças de saúde e à capacidade funci- cia com os transplantes renais, hepáticos, pâncre-
onal, alteração das relações sociais, novas percep- as-rim e fígado-rim.
ções de si mesmo, revisão de metas e planos de
vida são preocupações que transcendem o campo
do transplante. Escolha pelo transplante de órgão
Este trabalho tem por objetivo a exposi-
ção e discussão de algumas questões da experiên- Para muitos pacientes, a avaliação para
cia de 10 anos de trabalho em Unidades de Trans- transplante de órgão marca o fim de uma longa
plante de Órgãos do Hospital de Clínicas da Uni- estrada de convivência com a deterioração da saú-
versidade Federal do Paraná, mais precisamente de e o início de uma outra modalidade de trata-
no Serviço de Transplante Renal e no Serviço de mento. Alguns chegam à avaliação com sentimen-
Transplante Hepático. to de alívio, resignação ou otimismo. Um peque-
É importante ressaltar que este artigo não no número de pacientes, quando a doença ainda
tem a pretensão de estabelecer argumento teórico se mostra sobre controle ou é assintomática, acre-
ou filosófico a respeito dos transplantes de órgãos, dita que seu estado não é severo o bastante para
ou mesmo da relação receptor-doador, mas sim se submeterem ao transplante. Na grande maioria,
levantar algumas questões acerca da situação pré embora estes possam ter preocupações e inquie-
e pós-transplante por parte dos doadores e recep- tações justificáveis, apresentam pouca ou nenhu-
tores. Mesmo porque dificilmente conseguiríamos ma ambivalência sobre a necessidade da realiza-
traçar um perfil psicológico dos indivíduos sub- ção do transplante. No entanto, ao se submeterem
metidos ao transplante, uma vez que o percurso e à avaliação, observa-se uma mistura de sentimen-
o significado da doença para o indivíduo são úni- tos contraditórios e angústia, tais como:
cos e singulares. • Esperança de ter um futuro saudável e
Enfocar a problemática do transplante é estilo de vida normal, combinado com inquieta-
uma tarefa bastante complexa para ser tratada de ção e temor sobre os riscos de cirurgia, de como
forma parcial e isolada, pois o percurso, desde o será viver com o órgão de outra pessoa e da pos-
diagnóstico da doença até a indicação desta tera- sibilidade do transplante falhar;
pêutica, pode ser longo ou curto, mas quase sem- • Ânsia de prosseguir a avaliação, com
pre árduo. São pacientes que trazem consigo uma ansiedade sobre a incerteza de ser aceito como
história de doença crônica, marcada pela relação um candidato satisfatório;
instigante existente entre esta e o psiquismo. • Preocupações que o órgão não che-
O trabalho da psicologia se insere em todo gue a tempo, com a esperança de que neste tem-
o processo do transplante. Desde o contato inicial po terá que esperar a medicina descobrir outras
para avaliação pela equipe responsável, os paci- opções de tratamento, o que tardaria ou até mes-
entes passam por uma série, relativamente padro- mo eliminaria a necessidade do transplante.
nizados de etapas do processo de transplante: ava- Além da tensão com seus problemas à
liação para ser aceito como um potencial receptor saúde, os pacientes também podem ter preocu-
de transplante; a espera de um órgão satisfatório pações acerca de como a equipe de transplante
de doador; a cirurgia e o período de recuperação os avaliará psicologicamente e psicossocialmen-
pós-cirúrgica e os ajustes a longo prazo do pós- te. Podem se preocupar sobre revelar ou discutir
transplante. a fundo indiscrições do passado e comportamen-
As etapas podem variar consideravelmen- tos de seu estilo de vida, como fumar, beber e/ou
te em sua duração, dependerão de fatores como a uso de substância ilícita. Também podem consi-
severidade da doença do paciente, a disponibili- derar que história passada de depressão ou outra
dade local e regional de doadores de órgão e o doença mental serão vistas como desfavoráveis
tempo de inscrição dos candidatos na lista de es- pela equipe de transplante. Na realidade, estas
preocupações não são infundadas. As equipes de informação adicional de familiares e/ou dos pa-
transplante consideram seriamente fatores como cientes, visando a encaminhamento para outros
estes, para tomar decisões sobre quem é ou não, procedimentos, tal como psicoterapia. Em nosso
o candidato de transplante, embora a importân- serviço, as avaliações psicológicas são realizadas
cia dada a estes fatores varie consideravelmente por meio de entrevistas com algumas perguntas
de centro para centro, e de acordo com o tipo de preestabelecidas, mas com uma metodologia vol-
transplante. tada para a escuta, ou seja, o entrevistado pode
A equipe de transplante, além dos da- falar livremente. Após esta entrevista com finali-
dos médicos, geralmente tem preocupações so- dade também terapêutica, o preenchimento da
bre algumas questões psicossociais e psicológi- folha do protocolo da psicologia possibilita que
cas que devem ser focalizadas adequadamente os dados também possam ser utilizados com pro-
na avaliação. pósito para pesquisas.
Embora cada equipe de transplante de- A questão deve-se excluir pacientes do
termine quais informações psicossociais são con- transplante com base nos fatores psicológicos e
sideradas importantes, dentro de seus critérios, psicossociais sempre foi e continua sendo contro-
colocando graus diferentes de ênfase em certas vérsia dentro da comunidade mundial de trans-
áreas da avaliação, as informações que precisam plante de órgão e da ética médica. Questões mo-
ser obtidas para conhecer o paciente e sua relação rais e éticas surgem quando é possibilitado ou
com o transplante permanecem relativamente cons- negado o transplante baseado na história de com-
tantes. No protocolo utilizado em nosso serviço portamento e/ou estado atual psicossocial. (Sur-
(anexo I), os componentes básicos da avaliação man & Cosimi, 1996)
psicológica pré-transplante podem ser resumidos Estes critérios, a princípio, foram adota-
na história pregressa e atual: de saúde mental, de dos devido à escassez da provisão de órgãos doa-
enfrentamento da doença, de uso de drogas, do dos e sua difícil distribuição, porém, apesar de
estado mental, de apoio social e de compreensão muitas vezes serem considerados subjetivos, po-
da doença e procedimento do transplante. Julga- dem visar ao risco e beneficio do transplante para
mentos sobre os riscos de o paciente aderir a com- o paciente e sua família. A avaliação psicológica
portamentos prejudiciais para saúde depois do pré-transplante, de acordo com o protocolo apre-
transplante devem ser feitos levando em conta a sentado, pode ser um importante instrumento para
história de vida e estado atual do paciente. Por identificar pacientes que necessitam de interven-
exemplo, se abstinência de bebida alcoólica é ne- ções psicoterapêuticas, isto é, em lugar de apenas
cessária, a equipe de transplante precisa ter claro identificar os que deveriam ser excluídos como
os critérios de pré-requisitos que determinem a candidatos, esta abordagem visa também ao enca-
probabilidade que um paciente poderá permane- minhamento de pacientes a serviços ou interven-
cer abstinente e especificar para o paciente o pa- ções que os ajudarão a atingir melhor qualidade
drão esperado que o qualifica para continuar sen- de vida antes e depois do transplante (Skotzko et
do um candidato de transplante. O Serviço de al., 2001)
Transplante Hepático do Hospital de Clínicas ado- Semelhante a outras populações que vi-
ta como critério para listar um paciente o mínimo vem com doença crônica, os candidatos de trans-
de 6 meses de abstinência de álcool e em alguns plante apresentam significativamente maior risco
casos de cirrose alcoólica requer a participação de angústia e/ou distúrbios depressivos quando
dele em programa de reabilitação ou de apoio para comparados com a população geral (Dew et al.,
abstinência. (Parolin et al., 2002) 1998). O tempo de espera para transplante, apesar
Cada um destes fatores do referido pro- de ter como seu elemento central a incerteza, pode
tocolo pode ser avaliado com uma entrevista aber- ser importante para aceitação da idéia de que eles
ta, não estruturada. Alternativamente, pode ser precisam do transplante e ao mesmo tempo pen-
criado um questionário estruturado ou semi-es- sar que vida podem buscar no pós-cirúrgico. Esta
truturado, se a equipe de transplante assim o de- espera pode possibilitar uma escolha, desejar o
sejar. Entretanto, o mais importante é que os da- transplante.
dos coletados possam ser úteis para identificar Na realidade, há alguma evidência de que
áreas de particular preocupação e que requerem quando esta espera é extremamente curta, no pós-
transplante, o ajuste psicológico é mais difícil do para um TIV atualiza ocasionalmente conflitos in-
que para pacientes que esperam por períodos mais trapsíquicos que deveriam ser reconhecidos e tra-
longos (Dew et al., 1996). A experiência nos mos- balhados em tempo, tendo em mente seus efeitos
tra que um certo nível de ajuste psicológico é ne- no pré e pós-transplante (Bonomini, 1991).
cessário também no pós-transplante. A equipe de transplante tem o dever de
Um elemento que pode reduzir a incerte- informar ao potencial doador sobre todos os fatos
za durante o tempo de espera, mas pode aumen- relacionados ao transplante, apontando objetiva-
tar mais adiante a tensão familiar, é o transplante mente possíveis problemas e complicações tanto
com doador vivo. Em transplante intervivos (TIV), para o doador quanto para o receptor. Neste con-
a doação de órgão por um membro familiar é o texto, é importante avaliar a existência de persua-
mais comum. Embora a doação de cadáver conti- são ou qualquer outro tipo de situação que carac-
nue sendo a preferência na maioria dos casos, a terize o desejo de doar como um ato forçado.
doação com doador vivo permanece uma opção Na entrevista de avaliação psicológica com
para muitos pacientes. Usualmente os transplantes o doador além dos componentes básicos da histó-
de rim e os de fígado e, mais recentemente, os ria pregressa e atual: de saúde mental, de uso de
transplantes de pâncreas e os de pulmão já utili- drogas, do estado mental e de compreensão do
zam o doador vivo, que freqüentemente são: os procedimento do transplante (anexo II), é de suma
irmãos, os pais e os filhos, mas, os não relaciona- importância, não só para estabelecer o parecer,
dos, sem parentesco se tornaram opções viáveis acolher a intenção da doação, do ato de se sub-
para alguns pacientes. meter a um risco cirúrgico em detrimento da in-
A decisão pelo TIV é muito delicada, re- tenção de ajudar a saúde de um outro, com todas
quer competência da equipe multidisciplinar para as implicações imaginárias e reais decorrentes. É
propiciar múltiplas discussões, orientações e in- condição prévia principal para o ato de sacrificar
formações com o paciente e a família. O paciente o órgão de uma pessoa com saúde que este seja
e a família devem estar cientes de que estão op- um ato completamente consciente e responsável
tando por um tratamento muito especializado, com por todos os envolvidos.
grande possibilidade de sucesso, mas que também A primeira tarefa, talvez a mais difícil, para
comporta risco de vida tanto para o doador quan- o psicólogo, é responder a pergunta sobre o cará-
to para o receptor. O nível de expectativa frente à ter da motivação para o transplante do potencial
cirurgia pode variar, principalmente dependendo doador, pois cria um espaço propício para diver-
do estado clínico do paciente. sas reações psicológicas do doador, do receptor e
Como já foi dito, geralmente os pacientes da família, devido à situação de falta de órgãos
são convidados a optarem pelo transplante, num cadavéricos ou à demora na lista de espera para o
momento de muita tensão emocional, quando re- transplante. Entretanto, para dar continuidade ao
ceberam o diagnóstico de uma doença, em alguns processo de transplante com a devida responsabi-
casos, sem outra alternativa de tratamento. É um lidade que o assunto merece, é mesmo necessário
momento de impasse: “situação difícil de que pa- investigar por que alguém sacrifica parte de seu
rece impossível uma saída favorável”, mas preci- órgão vital, expondo a si mesmo a um procedi-
sam autorizar a inscrição de seu nome na lista para mento diagnóstico complexo e a uma cirurgia ar-
um transplante. riscada. As respostas para esta inquietação reque-
rem a avaliação das características psicológicas do
doador e do receptor, os vínculos emocionais ou a
Sobre o doador existência de outro tipo de relação entre eles, a
posição deles na família e as características bási-
Depois da aceitação do TIV, como alter- cas da rede de relações familiares. Os costumes e
nativa de tratamento terapêutico, a escolha do sistemas de valores familiares estão incorporados
doador é crucial para o procedimento. nas características socioeconômicas e sociocultu-
O TIV é uma alternativa de tratamento rais do ambiente do qual a família pertence e, de-
médico que desencadeia inúmeras implicações pendendo das especificidades da cultura e tradi-
psicológicas tanto no doador quanto no receptor. ção, as atitudes para doar um órgão com o doador
A preparação psicológica do doador e do receptor ainda vivo será diferente (Jones et al., 1993).
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Anexo I
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Anexo II