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BASES PARA A INTERPRETACAO y

DE DURKHEIM*

Steven Lukes

O modo de pensamento de Durkheim e seu estilo de expres-


sao possuem certos tracos peculiares, cujo reconhecimento sé pode
esclarecer a interpretagao de suas idéias. Primeiro, existem certos
conceitos cruciais 4 compreensio de seu pensamento que precisam
ser elucidados, seja porque sao ambiguos, seja porque sao pouco
’ familiares para um leitor™). Segundo, subjacente a esses conceitos,
existe certo niimero de dicotomias acentuadas, ou “oposig6es bi-
narias”, sobre as quais repousa seu pensamento, que precisam
ser explicitadas e relacionadas umas as outras. Em terceiro lu-
gar, existem certos argumentos caracteristicos, freqiientemente
Tuins, que também precisam ser trazidos a primeiro plano
e identificados. E, finalmente, o estilo de Durkheim tende fre-
qiientemente a caricaturar seu préprio pensamento. Ele muitas
vezes expressava suas idéias de maneira extremada ou figurativa,
© que distorcia seu significado e obscurecia a importancia — donde

(*) Steven Lukes, “Prolegomena to the Interpretation of Durkheim”.


Reproduzido com a permissio dos Archives Européennes de Sociologie,
XII (1971), pp. 183-209. Traducio de José Augusto Guilhon Albuquerque.
(1) As principais obras de Durkheim aqui citadas sio indicadas na
forma abreviada seguinte: S — O suicidio, Alcan, Paris, 1897; R — As
regras do método sociolégico, Alcan, Paris, 1901; D — A divisdo do trabalho
social, Alcan, Paris, 1902; F — As formas elementares da vida religiosa,
Alcan,Paris, 1912.
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resulta que a relac&o entre seu estilo e seu pensamento deve ser gue ele encaraya a consciéncia coletiva como “o tipo psiquico de
levada em considerac&o. Este artigo dedica-se a essa questao. sociedade, com suas propriedades, condigdes de existéncia e modo
de desenvolvimentoespecificos”. Ele também define o termo como
CONCEITOS “a totalidade das semelhancas sociais”. O crime seria uma ofensa
a “estados fortes e definidos da consciéncia coletiva”, restaurados
Consciéncia coletiva e reforcados pela punigao (D 46-47).
Em A diviséo do trabalho, Durkheim define “a_consciéncia Durkheim empregou amplamente o conceito de consciéncia
coletiva ou comum” como “o conjunto de crengas e sentimentos coletiva na Diviséo do trabalho. Empregou-o muito pouco dai por
comuns ao comum dos membros deumadi ninada_sociedade diante, embora viesse a encarar o Estado como “o 6rgao do pen-
(que) formasistemadeterminado com vida propria” (D 46). samento social”, concentrado, deliberado e reflexivo, distinto da
A palavra francesa “conscience” é ambigua, compreendendo sig- “obscura consciéncia coletiva”®difundida em toda a sociedade;
nificado de insténcia moral e de percepgéo de alguma coisa. e veio a encarar a democracia como umalto grau de comunicacio
Assim, as “crencas e sentimentos” compreendidos na consciéncia entre os dois, que tornaria a Ultima mais deliberada, reflexiva e
coletiva séo, por um lado morais religiosos e, por outro lado, critica. Suas razées para abandonar o conceito eram provavel-
cognitivos, mente de duas ordens.

coletve, 6 “por definicao, Em primeiro lugar, a tese central da Divisdo do trabalho era
possui tragos
difundida em toda a sociedade mas, nao obstante, que a divisao do trabalho est4 “cada vez mais preenchendo o pa-
especificos que fazem dela umarealidade propria”. “inde- pel que anteriormente cabia 4 consciéncia comum; € 0 que congre-
pendente das condig6es particulares emque os individuosse_en- ga, mais do que qualquer outra coisa, os conjuntos sociais de tipo
contramsituados; estes passam, ela permanece”. E comum ao mais avancgado” (D 148). Nesselivro ele afirmava que a conscién-
Norte € ao Sul, a grandes e pequenas cidades, a diferentes profis- cia coletiva é “apenas umaparte bastanterestrita’” da vida psiquica
sdes, e liga, umas as outras, geracdes sucessivas. E bem distinta de sociedades avangadas (D 46): torna-se mais fraca e mais vaga e
da_consciéncia_ individual, “embora_s6_possa_trealizar-se_atra- deixa de vincular os homensa fins transcendentes ou até a propria
vés de individuos” (D 46). Durkheim nega-se sempre a hipos- sociedade. Durkheim logo abandonou essa tese, em sua forma
tasiar a consciéncia coletiva: seu carater distintivo consiste sim- simples, e passou a salientar o que ele encarava comoo papel cru-
plesmente em que“os estados que a constituem diferem especifica- cial das crengas e sentimentos coletivos, e especialmente da mo-
mente dos que constituem a consciéncia particular”. Essa especifi- ralidade e dareligiao, em todas as sociedades. Dai ter abandonado
cidade provém do fato de que elas ndo sao formadas dos mesmos um conceito que estaya ligado ao que ele vira como um modo
elementos. iiltimaresulta da natureza do ser_organico_psiquico proprio de coestio de sociedades menos avancadas (solidariedade
tomado isoladamente e, o primeiro, da combinacgao de uma_plu- mec4nica), caracterizado por “semelhangassociais” e por uma lei
ralidade de seres dessa natureza (R 127-128). repressiva, centrada na punicao.
Discutiremos adiante a maneira como Durkheim traca a di-
Em segundo lugar, como corolario disso, era insuficientemen-
ferenca entre fenédmenos sociais e individuais. Aqui, deve-se notar te analitico para seus propésitos subseqiientes 4 Divisdéo do tra-
(2) © Larousse apresenta dois sentidos principais para “conscience”: balho. Ele_desejava estudar_ como osindividuos se vinculam a, ¢
1) Sentiment qu’on a de son existence et de celle du monde extérieur; repré- sio_controlados pelas sociedades, como.as crengas ¢ sentimentos
sentation qu’on se fait de quelque chose; ¢ 2) Sentiment qui fait qu’on porte coletivos soinculcados, como mudam, como afetam, e como sao
un jugement moral sur ses actes, sens du bien et du mal; respect du devoir. afetados por outros aspectos da vida social, e como sao mantidos
N. do T.: “Sentimento que se tem a respeito da prépria existéncia e da exis-
téncia do mundo exterior; representagio que se tem a respeito de algo”;
“Sentimento que faz com que se formule um juizo moral sobre seus préprios (3) Durkheim, Leconsde sociologie. Physique des moeurs et dudroit,
atos, sentido do bem e do mal; respeito aos deveres”. PUF,Paris, 1950, pp. 95, 97.
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e reforcados. O conceito de consciéncia coletiva era demasiado
abrangente e estatico. Nao permitia distinguir entre crengas cogni- da mesma, quanto em suareferéncia ou objeto (também € cole-
tivas e crencas morais e religiosas, entre diferentes cren¢as ¢ senti- tiva, evidentemente, por ser comum aos membros de umasocie-
mentos € entre crengas ¢ sentimentos associadosa estagios diferente. dade ou grupo). Com isso, Durkheim queria dizer, por um lado,
do desenvolvimento de uma sociedade. Para fazer tais distingdes, representacdes
coletivas séo_geradas socialmenteque
Durkheim empregou o conceito de “representagdes coletivas”). edesmade-si0- asociedade, (Essa dua-
lidade € mais clara em sua sociologia da religiao e da moral.)
Representac6es coletivas Durkheim fez muito caso do que chamou de realidade inde-
pendente das representagdes coletivas®). Ele usava a analogia
Durkheim comegou empregando esse conceito por volta de dos estados mentais individuais, ou representacGes individuais que,
1897, quando escreveu que “avida social é feita essenci nite embora intimamente ligadas ao seu “substrato”, as células cere-
de _representacdes” (S 352). As representagdes coletivas sao “es- brais, de cuja atividade comum elas resultam, nao podem ser
tados da consciénciacoletiva”, “diferentesnatureza dos estados reduzidas nem inteiramente explicadas pelas mesmas, mas pos-
da consciéncia individual”. Elas exprimem “o modo pelo qual o suem suas préprias caracteristicas, sao relativamente aut6nomas,
SfUupo se concebe a si mesmoemsilas relacbes CoM OS Objetos que_ e podem se influenciar diretamente umas as outras ¢ combinar-se
afefam” (R XVI). Grande parte da obra posterior de Dur- de acordo com suas préprias leis. Analogamente, afirmou ele,
kheim pode ser encarada como o estudo sistematico de repre- as representacées coletivas resultam do substrato de individuos
sentagdes coletivas. Assim, sua sociologia do conhecimento exa- associados (o que “varia de acordo com sua disposi¢ao geografica
mina a origem social e a referéncia social e as fungGes sociais das e anatureza e niimero de seus canais de comunicacéo”) © mas
formas de pensamento cognitivo; sua sociologia da religiao faz nao podem ser reduzidas nem inteiramente explicadas pelas ca-
© mesmo no que diz respeito as crengas religiosas; sua projetada racteristicas de individuos: possuem caracteristicas sui generis.
sociologia da moral teria feito o mesmo quanto as crencgas e Pretendia que suas formas originais e “fundamentais” “levavam
ideais morais. A esse respeito, é importante notar duas ambigiii- as marcas de sua origem”, de modo que “o objeto primeiro de
dades incluidas no conceito de representagao coletiva que tém toda consciéncia social relaciona-se estreitamente com o mimero
conseqiiéncias significativas para a teoria de Durkheim. Em pri- de elementossociais, a maneira como s4o agrupados e distribuidos,
meiro lugar, 0 conceito de representagao _refere-se tanto etc., isto €é, com a natureza do substrato”. Mas, “uma vez assim for-
de pensar, conceberou perceber™) quanto ao que é pensado, con- mada uma primeira base de representagdes”, tornam-se “realida-
cebido ou percebido®). Essa ambigiiidadesignificativa para des parcialmente auténomas que vivem sua prépria vida”, com
Sua sociologia do conhecimento. Segundo, a representacdéo é “o poder de atrair-se e repelir-se mutuamente e formar sintese de
coletiva tanto em sua origem, que determina o modo ou forma todos os tipos” e engendrar novas representagdes“. Dai, por
exemplo, o “luxuriante crescimento de mitos e lendas, sistemas
(4) Durkheim, “La sociologie en France au XIXesiécle”, Revue Bleue, teogénicos e cosmolégicos, etc.” (1) e dai “a maneira como asidéias
XII, 1900, p. 648, escreveu que Espinas mostrara que “o objeto essencial
da sociologia é investigar como se formam e se combinam as representacdes religiosas (...) se combinam e separam e se transformam umas
coletivas”. nas outras, dando origem a complexos contraditérios” (R XIX).
(8) Assim, por exemplo, F 631: “Os conceitos sio representagdes co- Deveria existir, afirmava Durkheim, um ramoespecial de sociolo-
letivas (...) correspondem A maneira especial como esse ser especial, a gia (ele o chamava “psicologia social”) dedicado a estudar “as
sociedade, concebe coisas que siio parte de sua experiéncia”.
(6) Assim, R XVII: “Mitos, lendas populares, concepg6esreligiosas de
todos os tipos, crengas morais, etc.” sfio todos representacées coletivas. (8) Verespecialmente Durkheim, “Représentations individuelles et re-
(1) Cf. a confuséo de Durkheim entre as categorias ou formas fun- présentations collectives” (1898), reproduzido in Sociologie et philosophic,
damentais de pensamento (por exemplo, de espago e tempo) e divisdes PUF,Paris, 1951.
espaciais e temporais especificas, isto é a crenca sobre como 0 espaco € 0 @) Tbid., p. 34.
tempose dividem. 0) Tbid., p. 43.
aa) [bid
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Durkheim encarava os fatos sociais como algo ao longo de
leis da producao coletiva de idéias” (que, ha toda razao para
um continuo. Em um pélo, estariam os fenémenossociais estru-
crer, seriam amplamente distintas das da psicologia individual),
turais, “anatémicos ou morfoldgicos”, construindo a “base
investigando “através da comparagio de temas miticos, lendas e
(substrat) da vida coletiya’’: consistem no “niimero e na natureza
tradigdes populares ¢ linguas, os modos pelos quais as represen-
tacdes sociais se atraem e se excluem, como se fundem ou se das partes elementares de que se compoe a sociedade, a maneira
tornam distintas, etc.” (R XVIII). como sao arranjadas, o grau de coalescéncia que atingiram, a
distribuicao da populacao sobre a superficie do territério, o nt-
De que modo Durkheim relaciona as representagoes coletivas mero e a natureza dos canais de comunicacao, a forma de habitagao,
com outros tragos da vida social? Para responder, é necessario eee
voltar-nos para sua concepgaio dos fendmenos sociais em geral,
: Existem ainda o que se poderia chamar normasinstitucio-
isto é, ao seu conceito de fatos sociais(!).
nalizadas, que podem ser mais ou menos formais — “regras legais
e morais, dogmas religiosos, sistemas financeiros, etc.” — crenga
Fatos sociais © praticas estabelecidas que tém origem ou substrato seja na
“sociedade politica como um todo, ou em um dos grupos so-
Durkheim afirmava que toda a sociologia se baseava em ciais que a compdem” (R 9, 8). Finalmente, ocupando o resto
“nosso principio fundamental, a realidade objetiva dos fatos so- do continuo, estio fatos sociais nao-institucionalizados, mas que,
ciais’ (R XXIII). Para que a sociologia seja“deve, “sem apresentarem essas formas cristalizadas, tém a mesma obje-
ma de tudo, ter um objeto proprio”, uma “realidade que nao tividade e a mesma ascendéncia sobre o individuo”. Sao as “cor-
esteja no dominio das outras ciéncias” IX). O que Durkheim tentes sociais”; e podem ser “correntes de opinido” relativamente
ce‘de que modoosclassificava? estaveis ou, no extremo, “erupcGes passageiras” como as que ocor-
E que caracteristicas acreditava marca-los, diferengando-os de tem quando “em uma assembléia geram-se grandes movimentos
outros fenémenosou tipos de “fato”, dos objetos de outras cién- de entusiasmo, de indignacao ou de piedade” (R 9-10). Dur-
cias? Antes de considerar essas questdes, deve-se notar a estra- kheim afirmava que “toda umasérie de graus sem descontinui-
nheza, para osleitores modernos, do emprego de Durkheim de
dadeosda mais clara natureza estrutural com aslivres
correntes da vida social qué ainda nao foram amolda
“fato”, definido exclusivamente pela regra de que os fatos devem
ser estudados como “coisas” (R cap. II). Por “fatos_sociais” neira ida. As diferencas entre as mesmas sao, portanto, dife-
ren¢as apenas no grau de consolidagao que apresentam” (R 19).
ele pretenderia significar fendmenos ou fatores ou forgas e, com
Nesse esquemaclassificatério, as representagGes coletivas seriam,
a regra de que deveriam ser estudados. comocoisas, significaria
portanto, fatos situados na superestrutura.
que devem ser encarados como “realidades exteriores ao individuo”
e independentes doaparelhoconceitualdo observador), Como veremos, 0 foco da atencao de Durkheim voltou-se, du-
rante sua vida, dos fenémenosestruturais, para os superestrutu-
(22) Cf. a excelente discussio em Roger Lacombe, La méthode socio- trais, 4 medida que o peso explicativo atribuido aos ultimos au-
Jogique de Durkheim, Alcan,Paris, 1926. mentou. Contudo, vale notar que, mesmo no tempo das Regras
(13) § IX: Durkheim emprega “coisas” (choses) aqui, pelo menos em do método socioldgico, ele as encarava como ao mesmo tempo
quatro sentidos, a saber: 1) fendmenos com caracteristicas independentes intimamente inter-relacionadas e do mesmo tipo genérico. As
do observador; 2) fendmenos cujas caracteristi s s6 podem ser determinadas divis6es politicas, afirmava, sido morais, ndo meramente materiais
através de investigagio empirica (por oposicio ao raciocinio ou intui io © geograficas e a organizacao social s6 pode ser estudada por
a priori); 3) fendmenos cuja existéncia € independente das vontades indiv
duais: e 4) fenémenos que s6 podem ser estudados através de observacao intermédio da legislacao, que a determina; enquanto que os mo-
externa, isto é, através de indicadores, tais como cédigos legais, estatisticas,
etc. (Cf. Benoit-Smullyan, “The Sociologism of Emile Durkheim and his __@8 R17, Esse pardgrafo esté inexplicavelmente faltando da tra-
School”, in H. E.Barnes (org.), AnIntroduction to the History of Sociology, ducio inglesa.
Chicago University Press, 1948, p. 501.)
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yimentos de populagao, por exemplo, do campo para as cidades, reificar ou hipostasiar a sociedade e escreveu que “nada existe
resultam de correntes de opiniao, e os tipos de habitagdo e canais na vida social que nao se encontre nas consciéncias individuais”
de comunicacio sao formados pelos costumes e pelas leis. Esses (D 342); por outro lado, empregou efetivamente termos tais como
modosde ser estruturais ou morfoldgicos “‘sao apenas modoscon- “consciéncia coletiva” e “alma coletiva” © escreveu sobre “esse
solidados de agir” (R 18). ser conscienteque ¢ a sociedade (...) um ser sui generis com
sua propria natureza especifica, distinta da de seus membros, ¢
O que, portanto, distingue os fatos sociais de outras espécies uma personalidade propria diferente das personalidades indivi-
de fato? Nas Regras, Durkheim definia_um_ fato social como duais”8), Como formulou Georges Sorel, Durkheim disse que
“todo meiodeagir,a0,desobreindivi- era desnecess4rio introduzir a nocéo de uma mente social, mas
luo uma coercao externa’ ocomo “(tododeagir) raciocinava como se a estivesse introduzindo[. Afirmando que
“queem dadasociedade,existindo porsi s6,inde- os fatos sociais (¢ particularmente as representagdes coletivas) sao
pendente de suas manifestacdes indiyiduais” (R 19). Ele preten-
exteriores aos individuos, Durkheim deveria ter dito que sao ao
dia fazer disso apenas uma “definic¢ao preliminar” — como mesmo tempointeriores (isto é, interiorizadas) e exteriores a qual-
protestou mais tarde, nao a encarava como uma definigéo intui- -quer individuo dado; e que s6 sao externos a todos os individuos
tiva, essencialista, resumindo todos os tragos do fato social, mas existentes no sentido de que foram transmitidas culturalmente do
simplesmente oferecendo um sinal através do qual se pudesse re- passado para o presente.
conhecer fenédmenos socioldgicos“>). Outras definicoes seriam
possiveis: ele pretendia que a sua era um guia util para a pesquisa. ‘A nocio de “coerg’o” € ainda mais ambigua, Ele a emprega
nos seguintes sentidos, sem parecer dar-se conta de que sao dis-
A definigéo de Durkheim compreende trés critérios distin- tintos: 1) a autoridade das regras legais, maximas morais e con-
tivos: cardter externo, coergéo e generalidade mais independén- vencdes ou costumes, tais como se manifestam através das sangdes
cia. Vejamo-los um de cada vez. que vém a baila quando se tenta violé-las; 2) a necessidade de
Osfatos sociais, escreveu Durkheim, existem “fora das cons- seguir certas regras, procedimentos ou métodos com o fim de de-
ciéncias individuais”. Assim, por exemplo, as obrigacdes domés- senvolver certas atividades com sucesso (por exemplo, um fran-
ticas ou civicas, ou contratuais, sao definidas externamente ao cés deve falar francés para ser compreendido; e o industrial deve
individuo, nas leis e costumes; as crencgas e praticas religiosas empregar métodos usuais sob pena de ter de encarar a possibili-
“existem anteriormente ao individuo, porque existem fora dele”; dade de ruina); 3) a influéncia causal de fatores ecolégicos ou
a lingua e a moeda, como as praticas profissionais, “funcionam “morfolégicos” (por exemplo, a influéncia de canais de comuni-
independentemente do meu uso das mesmas” (R 6). Durkheim, cacao na direcdo e intensidade da migracgao ¢ do comércio); 4)
neste ponto, cometeu uma ambigiiidade importante, de que s6 teve compulsio psicolégica em situagao de massa (como em moyimen-
parcialmente consciéncia, e é responsdvel por grande parte da tos coletivos de “entusiasmo, indignacdo e piedade (...) (que)
critica de que seu “realismo social” implica a existéncia de uma nos vém de fora e nos conduzem independentemente de nds mes-
“mente grupal”, distinta da de seus membros tomados conjun- mos” (R 9); e 5) determinacao cultural (quando certas idéias e
tamente. Os fatos sociais poderiam ser “externos” a qualquer indi- valores dados socialmente sao interiorizados por individuos que,
viduo determinado, ou mesmo a todos os individuos numa deter- com isso, adquirem certas crencas, desejos e sentimentos, e agem
minada sociedade ou grupo: falar deles como “externos as cons- de certas maneiras; assim, a educacéio é “um esforgo continuo
ciéncias individuais” deixa abertas ambasasinterpretagdes. Ele ob- para impor a crianca modos de ver, sentir ¢ agir aos quais nao
teria chegado espontaneamente”) (R 11).
viamente visava a primeira, mas freqiientemente empregava formas
de expresso que implicavam a wltima. Negou repetidamente
6) Id., L’éducation morale, Alcan, Paris, 1925, p. 69.
loc. 7) Georges Sorel, “Les théories de M. Durkheim”, Le devenirsocial,
(5) R XX. Cf. Durkheim, “Représentations individuelles...”, I, 1895, p. 19.
cit., p. 35, nota.
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Mais uma vez, como Sorel observou, Durkheim estendeu tivamente constituem, em grande parte, os individuos. No decur-
exageradamente o significado de “‘coergao”®). Os sentidos 1) so de sua carreira, ele se preocupou cada vez mais com ossentidos
a 5) sdo certamente diferentes entre si. Especialmente 1) re- 4) e 5) acima, que ele considerava estreitamente vinculados, 4)
fere-se a coerc4oaplicada a obrigacdo através do medo as sangoes; caracterizando os periodos de criagao e renovacao (“efervescén-
2) refere-se a uma relacio ‘meios-fins: (x é 0 tinico meio para cias coletivas”) de idéias e valores transmitidos através de 5). De
_atingir y); e 3) a 5) apontam diferentes modos de determinagao fato, apds As regras do método socioldgico, ele finalmente deixou
dos pensamentos e acdes humanas. Chaméa-los todos de “coer- de dar énfase ao critério de “coergao”. Ele o considerava, con-
cao” presta-se, no minimo, a confusao. Entende-se naturalmente forme escreveu, apenas parte de uma definicao preliminar, indica-
tiva, dos fatos sociais: estes Ultimos, admitiu ele, podem “tam-
“coercao” no sentido 1), isto é, referindo-se a casos em que um
bém apresentar a caracteristica oposta”, isto é, oposta a coergao
individuo deseja agir de um modoe é levado a agir de outro: dai
no sentido 1) — a saber 0 poder de atracao dos ideais (interiori-
a énfase de Durkheim sobre os lagos entre a coer¢do social e “o
zados) a que os homens se deixam prender e que, a partir dai,
prestigio de que certas representacGes sao investidas”, e o fato de influenciam seu comportamento, o pélo oposto ao “dever” da vida
falar em um “poder coercitivo”, através do qual “se impoem
moral, isto 6, “o bem” (R XX-XXI, nota). De modo geral, a coer-
modos de agir, de pensar e de sentir” aos individuos (R XXI, 8).
¢40 era uma nocgdo demasiado geral para identificar todos os mo-
Mesmo neste caso pareceria caber uma distingao (parcialmente dos pelos quais Durkheim encarava 0 individuo como sendo
percebida por Durkheim) entre casos de pura autoridade num afetado por fatores sociais.
extremo (onde o assentimento ocorre por aceitagao voluntaria da
legitimidade) e¢, do outro, o poder coercitivo (onde ocorre por- Finalmente, o critério de “generalidade mais’ independéncia?
que se teme sangdes negativas). Contudo, parece claro que o requer explicacao. Um fato social poderia também ser definido,
sentido paradigmatico de “coercio” para Durkheim é o exercicio escreveu Durkheim, “pelo fato de ser geral no interior do grupo”
de autoridade, sustentado por sangdes, com 0 objetivo de con- e, importante, de que “existe independentemente das formas que
formar os individuos a regras. E obviamente forgar um pouco o assume ao ser generalizado” (R 15-16). Por generalidade, Dur-
significado da palavra aplica-la ao sentido 2), segundo o qual eu kheim estava tentando identificar fatores especificos a sociedades
estaria sob “coercéo” para falar francés se desejasse ser compre- particulares, isto é, nem sao tracos estritamente pessoais de in-
endido por franceses (embora naturalmente se fale, por exemplo, dividuos, nem atributos universais da natureza humana. Fauconnet
de “coergdes do mercado”) "). Masaplica-la aos sentidos 3) a 5) e Maussisolaram esse aspecto dos fatos sociais quando os carac-
ainda seria mais enganoso, j4 que se referem ao que influencia os terizaram como “certos modos de sentir, pensar e agir” que os
desejos dos homens e nao ao que osfrustra, 4s determinacées individuos nado possuiriam “se tivessem vivido em outros grupos
de como os homens pensam, sentem e agem, e nao a modifica- humanos”(®),
cio do comportamento, levando os homens a conformar-se a re- Contudo, generalidade nesse sentido nao basta, afirmava
gras que, de outra forma, transgrediriam. (Deve-se acrescentar que Durkheim, para caracterizar os fatos sociais, j4 que nao os dis-
um tipo de “fato social” que Durkheim cedo estudaria, a saber, tingue de suas “encarnacées individuais”.. Sao “crengas, tendén-
as chamadas “correntes suicidogénicas” que levariam os homens cias, praticas do grupo tomadascoletivamente” por oposicéo as
a cometersuicidio, eram, de seu ponto devista, fatores causais que “formas que os estadoscoletivos assumem quando refratados atra-
lJevariam os homens a romper asregras.) vés dos individuos”. Exemplos disso so “as normas legais
De fato, o interesse central de Durkheim era quanto aos morais, os aforismos e ditados populares, artigos de fé em que as
modos pelos quais os fatores sociais e culturais influenciam, e efe- seitas religiosas ou politicas condensam suas crengas, padroes de

(18) [bid., p. 17. G9) M. Mauss e P. Fauconnet, “Sociologie” in Grande Encyclopédie,


(®_N. do T.: Em inglés: “constraints of the market”; a tradugdo mais S.A. Grande Encyclopédie, Paris, 1901, t. XXX, pp. 165-76, especialmen-
corrente seria “limitagGes inerentes ao mercado”. te p. 166.
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gosto estabelecido porescolasliterarias, etc.” (R 12) por oposigao DICOTOMIAS


a suas aplicagGes individuais. Aqui, Durkheim apontava as normas
enquanto distintas e orientadoras do comportamento individual.
No prefacio 4 segunda edic&o das Regras ele estendeu essa idéia
Sociologia/ psicologia
e, seguindo Fauconnet e Mauss, falou das “instituigdes” (“todas endente, Dur-
Proclamando a sociologia como ciéncia indep
as crencas e modos de conduta instituidos pela coletividade”) enden da Pee
te
como o préprio objeto da sociologia (R XXII-XXIII). kheim pensava ser necessario declara-la indep
“a mesma ruptura le
gia?). Havia entre elas, afirmaya ele,
gia ¢ as ciénc ias oa
Mas as normas e instituigdes nado eram as tinicas formas em continuidade que entre a biolo € explicado
vez que um fené meno social
que Durkheim reconhecia os fatos sociais como identificdveis in- Por conseguinte, cada
ar certos de
dependentemente de suas encarnagGes individuais. As estatisticas diretamente por um fendmenopsicoldgico, podemosest
mente ele tragou
de casamento, suicidio ou taxas de natalidade registram “correntes que a explicacdo é falsa” (R 128). Como exata
?
de opiniao” (cuja intensidade varia de acordo com a época e o essa linhaestrita entre a sociologia e a psicologia
e com isso,
pais), j4 que ele acreditava que nos dadosestatisticos, as circuns- De fato, ele a tracou de numerosas maneiras
ntes. Isso pode
tancias individuais se anulavam mutuamente. Durkheim apon- sem perceber, confundiu jmiimeras distingdes difere
modos pelos
tava, com isso, as causas sociais (inferidas a partir de estatisticas) ser visto melhor realgando-se os quatro diferentes
.
que, segundo afirmava, influenciam o comportamento individual. quais, em varios pontos, Durkheim concebia a “psicologia”
O critério de generalidade, portanto, combina-se, em Dur- 1. Em primeiro lugar, ele a definia pelo seu objeto, ou
kheim, com a idéia de que a forma geral é independente de e explananda. Desse ponto de vista, a psicologia é “a ciéncia da
s
orienta 0 comportamento individual: 0 fato social nado é social mente do individuo (de Vindividu mental)”, relativa aos “estado
‘porque é geral, mas “porque é coletivo (isto é, mais ou menos daconsciéncia individual”por oposicao aos da “consciéncia coleti-
tivas
ascole
obrigatério) (...) é um estado do grupo que se repete entre in- ya’, com as as representagdes individuais por oposigéo
de sua carreira ele passoua insistir cada
dividuos porque Ihes é imposto” (R 14). E Durkheim nos da no- (R XVI). No decurso
vez mais em que as realida des estudad as pela sociolo gia e a psi-
vos exemplos de crencas e praticas transmitidas do passado pela as diferent es
cologia eram igualme nte mentais , embora de naturez
educacao, e de sentimentos coletivos em situagdes de massa. Tudo e ter colocad o a
e governadas por leis diferentes. Nao obstant
isso para reproduzir a ambigiiidade que ja detectamos na nogdo de “formal ” nao compre ende-
questo sobre se uma tnica psicolo gia
coergao: as normas podem ser “impostas”, aos individuos que coleti-
desejam desviar-se das mesmas, por meio de sangGes; correntes de ria, afinal de contas, o comportamento das representagoes
se
opiniao, crengas e praticas, sentimentos coletivos, sao “‘impostos” vas e individuais, ele duvidava muito de que isso ocorres
sobre a tese
aos individuos quando, uma vez interiorizados, influenciam-nos (R XVI-XIX). A distingao repousa inteiramente
considerada
de Durkheim sobre diferentes niveis de realidade,
a pensar, sentir e agir de certas maneiras2°). sociolo gia deve possuir seu
adiante, e seu pressuposto de que a
proprio nivel (para que a sociolo gia exista, “deve tomar conhe-
Os conceitos que vimos examinando pressupéem claramente
de que nao seja do domini o de outras
certo nimero de dicotomias centrais, sendo as principais entre so- | cimento de uma realida
IX). Abando nando- se essa tese © esse pressup osto,
ciologia e psicologia e entre social e individual. Neste ponto seria | ciéncias” (S
Util examinar o papel dessas e de outras dicotomias no pensa- que baniraa psicologia
mento de Durkheim, ¢ suas relacées entre si. (21) Nisso ele era um bom discipulo de Comte Comte, que submeteraa
da hicrar quia das ciéncia s; mas ao contrar io de
psicologia (ou idéolog ie) de seu tempo a exame detalh ado, sob a alegacio
tentou uma critica da psico-
(20) Numa passagem Durkheim escreve (R 124-125) que a “caracte- de que “mutilava” o homem, Durkh eim nunca
ristica essencial dos ‘fendmenos sociolégicos’ é 0 seu poder de exercerpressao logia contempordnea. Para umaboa discussio, v. D. Essertier, Psychologie et
externa sobre consciéncias individuais”. Isso repete a mesma ambigiiidade. sociologie, Alcan, Paris, 1927.
28 — Sociologia: para ler os cldssicos Steven Lukes — 29

a plausibilidade, coeréncia e valor dessa rigida dicotomia desa- pontos de suas teorias — como, por exemplo, em uma linha im-
parecem. Embora se possa distinguir diferentes niveis do que ha portante de sua explicagao da anomia, a saber, a nogdo de dese-
a explicar, do nivel puramente pessoal ao macronivel da sociedade jos (organico-psiquicos) irrestritos e sem limites, e também em
como um todo, nao sera o caso de vincular um nivel a psicologia sua concepcéo de uma distribuigao natural dos talentos e sua
€ 0 outro a sociologia. doutrina sobre as caracteristicas biologicamente determinadas da
feminilidade.
Em segundo lugar, Durkheim também considerava que a
psicologia consiste num tipo particular de explicagéo, na formu- 3. Emseguida, ele as vezes encarava as explicag6es psico-
lacaéo. de um tipo distinto de explanans. De fato, ele apresentava Iégicas como explicagdes em termos de condigées particulares ou
inameros exemplos de explicagdo especificamente psicolégica, sem “individuais” por oposigao a condiges gerais ou “sociais”: assim,
se dar conta de que eram distintas e, portanto, supunha ter mos- ele afirmava que as condicoes que levam “esse ou aquele individuo
trado que todas eram igualmente inaplicdveis a fendmenos sociais. a matar-se (...) dizem respeito ao psicdlogo, nao ao socidlogo”,
por oposic¢ao as “causas capazes de afetar, nao individuos separa-
2. Por um lado, encarava a explicagdo psicolégica como dos, mas ao grupo” (S$ 15). A justificacao para essa distingdo é
explicacdo em termos do que chamava fatores “organicos-psiqui- ou circular, ou entao arbitraria. Circular, se “particular” for defi-
cos”, isto é, caracteristicas (pré-sociais) do organismo individual, nido como o que nao entra em explicacdes socioldgicas; arbitraria,
dadas ao nascer e independentes de influéncias sociais. Assim, j4 que é dificil ver onde se deve situar a linha de demarcagao entre
escreveu que, se “os fendmenos sociais (...) derivassem direta- geral e particular e, em todo caso, como Halbwachs afirmou com
mente da constituicao organica ou fisica do homem sem que qual- relagio ao Suicidio, circunstancias particulares podem certamente
quer outro fator interviesse em seu desenvolvimento, a sociologia ser relacionadas com a organizacao da sociedade),
se dissolveria na psicologia”@2). Os exemplos que dava desse tipo
de explanans eram as disposicGes psicopatolégicas, a raga e a he- 4. Finalmente, e o mais freqiiente, ele encarava a explica-
reditariedade. Sua argumentacaopara distinguir, da sociologia, esse cao psicolégica como explicacao em termos de estados ou disposi-
tipo de explicacao era ao mesmo tempo empirica e conceitual. Do cdes mentais — como quando os tedricos do contrato social
ponto de vista empirico, ele sustentava que os fatores organico- explicam a sociedade “como um sistema de meios instituido pelos
psiquicos, por exemplo, nado podiam explicar diferentes taxas de homens paraatingir certos fins” (R 120), ou quando Comte apela
suicidio, e que as diferencas raciais nfo poderiam explicar as para a tendéncia inata do homem para o progresso, ou Spencer
diferencas na organizacao social e na cultura (R 123ss.). Con- para o medo de viver e de morrer e 0 desejo de felicidade, ou
ceitualmente, ele sustentava que explicagdes desse tipo tendem a quando os socidlogos explicam a organizacéo da familia pelos
empregar conceitos ambiguos e nao-operacionais (tais como raca) sentimentos paternos oufiliais, ou o tabu do incesto pela aversao
€ nao conseguem identificar varidveis independentes, e com isso instintiva, ou a vida econdmica pelo desejo de riqueza, ou a reli-
tornam-se facilmente circulares (por exemplo, explicando-se o giao pelos sentimentos religiosos. Sua argumentagdo em favor de
carater artistico da civilizagéo ateniense em termos de faculdades excluir os estados e disposicdes mentais individuais como expli-
estéticas congénitas). Por outro lado, Durkheim sempre se equi- cacao de fenémenossociais, era de que se trataya de fendmenos
vocou quanto ao papel dos fatores “organico-psiquicos”. Ele gerais demais para dar contas das diferencas entre instituigoes e
escreveu sobre as “naturezas individuais” como sendo “meramen- sociedades, ou, entio, que ja séo conseqiiéncia do que pretendem
te o material indeterminado que o fator social determina e trans- explicar; como Durkheim formulou, “a historia mostra que essas
forma” (R 130); nao obstante, fatores pré-sociais e condicionados inclinagdes, Ionge de serem inerentes 4 natureza humana, ou estéo
organicamente desempenham um papel preponderante em varios inteiramente ausentes em certas condigdes sociais, ou entdo apre-
sentamtais variagées de uma sociedade para outra que 0 residuo
(22) Durkheim, “La sociologia ed il suo dominio scientifico” (1900), que permanece apés eliminagao de todas essas diferengas — o
traduzido em A. Cuvillier, O& va la sociologie francaise?, Riviere, Paris,
1953, p. 192. (23) M. Halbwachs, Les causes du suicide, Alcan, Paris, 130, p. 13.
30 — Sociologia: para ler os cldssicos Steven Lukes — 31

tinico que pode ser considerado de origem psicolégica — reduz-se plicita ou implicita, a fatores sociais. Além disso, € muito impor-
a algo vago e esquematico que esta infinitamente longe dos fatos tante perceber que, tragandoessa linha extremamente nitida entre
que exigem explicagio. Assim, esses sentimentos resultam de 0 social e o individual, Durkheim estava, mais uma vez, confun-
organizacado coletiva, longe de serem sua base” (R 131-132). dindo certo numero de distingdes (muito) diferentes. Essa dico-
tomia aparentemente inocente compreende, pelo menos, as se-
E, de fato, algumas das melhores passagenscriticas em Dur- guintes distingdes: 1) entre o socialmente determinado e 0 que ¢
kheim sao aquelas em que ele ataca explicagdes desse tipo, que dado organica ou biologicamente; 2) entre fatores especificos a
ele encarava comoiniiteis ¢ faceis, no ensaio sobre o Incesto, por sociedades particulares, e tragos abstraidos de, ou postulados sobre
exemplo, e nas Formas elementares da vidareligiosa. a “natureza humana”; 3) entre fatores gerais dentro de uma dada
Esses, portanto, eram os modos pelos quais Durkheim dis- sociedade ou grupo, e os que sao particulares a um ou varios in-
tinguia a sociologia da psicologia. Ele efetivamente concedia que dividuos; 4) entre a experiéncia e 0 comportamento deindividuos
os fatores individuais e coletivos séo “intimamente interligados” ¢ associados por oposicao aos de indiyiduos isolados; 5) entre obri-
até que os primeiros “facilitam a explicagéo” dos tiltimos. Mas gacdes socialmente prescritas e desejos e comportamentos espon-
sempre insistiu em que as “duas ciéncias sio (...) tao clara- taneos; 6) entre fatores provindos de “fora” do individuo, e os
mente distintas como podem ser duas ciéncias, quaisquer que se- que sao gerados em sua consciéncia; 7) entre pensamentos ¢
jam as relacdes que possam existir entre elas” (R 136, XVI). acdes dirigidas para objetos sociais ou ptiblicos e os que sao
puramente pessoais ou privados; 8) entre comportamento altruis-
Social/individual tico e egocéntrico.

Durkheim afirmou que essa istingao metodolégica seguia-se Durkheim confundiu essas distingdes; além do mais, reificou-
de umadistingao ontolégica subjacente © is de realidade: as nas abstracdes de “sociedade” ¢ “individuo”. De fato, como
“a sociedade nao é uma mera soma de individuos; ao contrario, observou com justeza Morris Ginsberg, “em geral ‘la société’ tinha
© sistema formado por sua associacao representa uma realidade um efeito intoxicante sobre sua mente”, impedindo qualquer ana-
especifica que tem suas préprias caracteristicas” e era “na natu- lise complementar®). Por “sociedade” ele as vezes entendia a
reza dessa individualidade, nao na de suas unidades componentes, transmissdo social ou cultural, ou a inculeacao de crencas e pra-
que se deveria buscar as causas imediatas e determinantes dos fatos ticas (“uma realidade da qual flui tudo o que conta”(®), as vezes
que 14 aparecem” (R 127-128). E ele empregou intmerasanalo- a existéncia de associacio (por exemplo, “a sociedade ... nada
gias de “sintese criadora” para apoiar essa tese ontolégica — as mais é do que individuos reunidos e organizados”)("), as vezes a
propriedades da célula viva nao estéo em suas particulas minerais imposigéio de obrigagdes socialmente prescritas (“A sociedade
constitutivas, a dureza do bronze nao se encontra no cobre e no ... 6 um grande poder moral”) 8), as vezes 0 objeto de pensa-
estanho, nem as propriedades da agua no hidrogénio e no oxigénio. mento, sentimento e acao (“a sociedade constitui um fim que
nos ultrapassa e ao mesmo tempo nos aparece como boa e
Durkheim estava equivocado em acreditar que seu ataque ao
desejéyel”) 9) e As vezes simplesmente como uma sociedade real,
individualismo metodologico e sua defesa da explicagao sociolé- concreta — embora ainda aqui ele fosse ambiguo, empregando o
gica exigiam que defendesse essa forma extrema derealismosocial
e sustentasse que os fatos sociais eram sui generis, com substrato
(25) Morris Ginsberg, “Durkheim’s Ethical Theory” (1951), in Onthe
proprio); bastaria afirmar que poucasatividades humanas podem Diversity of Morals, Heinemann (Mercury Books), Londres, 1962, p. 51.
ser identificadas ou satisfatoriamente explicadas sem referéncia, ex- (26) Durkheim, “Détermination du fait moral” (1906), reproduzido
in Sociologie et philosophic, op. cit., p. 78.
(@4) Cf. S, Lukes, “Methodological Individualism Reconsidered”, @7) Id., “Le problémereligieux et 1a dualité de la nature humaine”,
British Journ. Sociology, XIX, 1968, pp. 119-29; reproduzido in D, Emmet Bulletin de la Societé Francaise de Philosophie, XU, 1913, p. 74.
e A. MacIntyre (orgs.), Sociological Theory and Philosophical Analysis, (28) Id. “Détermination...”, loc. cit., p. 77.
Macmillan, Londres, 1970. (29) Ibid., p. 80.
32 — Sociologia: para ler os cléssicos Steven Lukes — 33

termo as vezes para designar a sociedade (por exemplo, a Franga) regras morais sAo sociais na origem (“as regras de moralidade
como um todo,e as vezes grupose instituigSes particulares dentro sao normas elaboradas pela sociedade”) G*), sao gerais dentro de
dela (por exemplo, o Estado, a familia, etc.)@. Por “indivi- uma dada sociedade (“existe uma moral comum a todos osindi-
duo”, Durkheim as vezes entendia o individuo (pré-social) visto yiduos pertencentes a uma coletividade”)), pressupdem a asso-
como unidade orgfnica biologicamente determinada, as vezes 0 ciacao humana (“se toda yida social desaparecer, a vida moral
indiyiduo (abstrato) visto como possuidor de certas propriedades desapareceré com ela” — D 394-395), impoem obrigagoes sociais
invariantes (por exemplo, o homem utilitério ou econémico), as ao individuo (“‘o cardter obrigatério de que estao recobertas nada
vezes como © individuo (extra-social) isolado da associacaéo hu- mais € do que a autoridade da sociedade”)®, proporcionam
mana, € as vezes a pessoa individual real, concreta, vivendo em um quadro de referéncia externo para o individuo (“... como
sociedade — sem mencionar um sentido suplementar em que o tantas formas em que deyemos moldar nosso comportamento”) “7,
“individuo” se refere a uma concepcdo socialmente determinada vinculam-no a fins sociais (“o homem (...) age moralmente
da pessoa humana em geral (como na “religido do individuo”’, apenas quando toma uma coletividade como fim de sua condu-
que é “o produto da prépria sociedade”, em que o “individuo” se ta’) 68) e envolvem altruismo (“A base da vida moral é 0 senti-
torna um objeto sagrado®)), mento de que o homem nao pertence apenas a si mesmo...”).
‘Em contraste, Durkheim apresenta os “‘apetites sensuais” do indi-
Pois bem, essa dicotomia central mas, como vimos, miiltipla,
viduo, “enraizados em nossos organismos”9), como pessoais, es-
entre o social e o individual, num certo sentido, é a pedra de
pontaneos, privados e egoistas — e nossas “sensibilidades (...) nos
toque de todo o sistema de pensamento de Durkheim. Particular-
inclinam para fins individuais, egoistas, irracionais e imorais”(4)
mente, pode ser encarada como crucial para sua sociologia da
moral, do conhecimento, e da religiao, j4 que é subjacente as dis- Contudo, Durkheim foi incapaz de sustentar coerentemente
tingdes que fez entre regras morais e apetites sensuais, entre con- essa série de contrastes. Especialmente, ele dava grande impor-
ceitos e sensagGes e entre o sagrado e o profano(®). tAncia 4 autonomia pessoal do homem moderno, queele via como
um traco central da moral contemporanea‘#). Encarava essa
Regras morais ¢ apetites sensuais autonomia como sendo ela mesma gerada socialmente, e correla-
tiva do desenvolvimento da personalidade individual, da diferen-
Durkheim via na “sociedade” o “fim e a fonte da moral”), ciag&o social e¢ da moral do individualismo ou o “‘culto da indivi-
Ele encaraya a moral como “social” em intmeros sentidos. As dualidade”.. Mas isso, dado seu extremo determinismo social,
Jevou-o 4 posigao de que os desejos e atividades pessoais, espon-
(30). De fato, Durkheim tinha umaforte tendéncia para sempre enca- taneos, privados ou egoistas do individuo sao gerados socialmente
tar a sociedade como um todo, e nao em termos, digamos, de uma pluralida- e nao “enraizados no organismo”, Esta questéo aparece com es-
de oude conflito entre diferentes grupos e forcas sociais. Isso aparece clara- pecial clareza na discussdo da anomia no Suicidio, onde Durkheim
mente num comentario que fez sobre Les classes sociales, de A. Bauer, para
Sciences Sociales, Il, 1902, pp. 257-58. Bauer afirmara que as classes sio sustenta que as paixGes andrquicas irrestritas do individuo se
© tnico objeto préprio as ciéncias sociais. Durkheim escreveu: “Além da enraizam no organismo, mas também praticamente vé que sao
vida de cada 6rgao, existe a vida geral da sociedade. Ha fenémenos que nao
se localizam em nenhum grupo ocupacional, que estdo presentes em todos
(34) Durkheim, “Le dualisme de la nature humaine et ses conditions
© que sao precisamente os mais essenciais dentre todos os fatos sociais: como
a moral, a religiao, todas as idéias comuns, etc.”.
sociales” (1914), reproduzido em La science sociale et Vaction, introdugo
de J. C. Filloux, PUF, Paris, 1970, pp. 330-31.
(1) Durkheim, “Détermination...”, loc. cit., p. 84. (5) Id., “Détermination. .”, loc. cit., 56.
(32) Como escreveu 0 préprio Durkheim, in “Le probléme reli- (88) Id., “Le dualisme. ..”, loc. c
gieux...”, loc. cit., pp. 72-3: “A alma e o corpo, as sensagdes ¢ a raziio, os (3) Id., L’éducation morale, op. cit
apetites egoistas e a vontade moral sio opostos e, ao mesmo tempo, mutua- (88) Ibid., p. 294.
mente relacionados, da mesma forma que 0 profano e o sagrado, que sio (39) Id., “Le dualisme...”, loc. cit., p. 330.
proibidos um ao outro, mas so mesclados para sempre”. (4) Id., L’éducation morale, op.cit, p. 128.
(33) Ibid., p. 84. (41) Ibid., Lecons 7-8.
34 — Sociologia: para ler os classicos Steven Lukes — 35

produtos sociais ou culturais de um tipo particular de sociedade. coisas sagradas € as relacdes que mantém,seja entre si, seja com
E, na mesmaobra, resultaria o “egoismo” da auséncia ou da pre- as coisas profanas. Finalmente, os ritos sio as regras de conduta
senca de causas sociais? que prescrevem de que modo os homens devem comportar-se em
relagao as coisas sagradas” (F 56).
Conceitos e€ sensacdes
Ele emprestou grande énfase a nitidez dessa divisdo, que
Na “ordem do conhecimento”, afirmou Durkheim, haveria afirma ser mutuamente excludente e conjuntamente exaustiva.
uma dicotomia paralela: “existem os sentidos e 0 pensamento sen- Ela marca um. “‘hiato légico”, um. “‘abismo” entre ‘dois mundos
sivel, por um lado, e, por outro lado, a compreensiio e o pensa- heterogéneos e incompardveis”: “Em toda a hist6ria do pensa-
mento conceitual’’(#), Como as regras morais, “o pensamento mento humano, nao existe exemplo de outras duas categorias de
conceitual” seria, segundo afirmou, “social e nada mais do que coisas tao profundamente diferenciadas, tao radicalmente opostas
uma extensio da sociedade”. Assim, os conceitos, inclusive as entre si (...) o sagrado e o profano sempre foram, e em toda
categorias fundamentais, seriam “originalmente representagdes co- parte, concebidos pela mente humana comoclasses separadas, como
letivas”(#3) — sendo causadas socialmente (“resultado de uma dois mundos entre os quais nada h4 em comum” (F 55, 454, 58,
elaboracao coletiva”), “moldados” na sociedade (“formados se- 53, 54).
gundo o modelo dos fenémenossociais”), “impessoais” e “comuns Os seres podem passar de uma para a outra, mas somente
a umapluralidade de homens”. Contrastam com eles as “sensa- através de_rituais (tais como osritos de iniciacio) que significam
gGes”, que tém base orgénica (“uma sensacdo de cor ou som “uma verdadeira metamorfose”; os “dois mundos nado sido somen-
depende estreitamente de meu organismoindividual”), como tam- te concebidos como sendo separados, mas comorivais hostis ¢
bém pessoais (“as percepcdes de uma pessoa sao obra sua e lhe invejosos um dooutro”, e “as duas classes nao podem se aproxi-
séo proprias”) e privadas. Assim, a vida intelectual, como a mar e manter suas proprias naturezas ao mesmo tempo”. Con-
moral, contém “dois pélos” que sido “nao somente distintos entre sideremos, primeiro, a tentativa de Durkheim de explicar a dico-
si, mas opostos”, e Durkheim chega a encarar essa “dualidade da tomia, e em seguida as varias dificuldades empiricas e conceituais
nossa natureza” como um simples caso particular dessa divisao das que levanta.
coisas em sagradas e profanas que € o fundamento de todas as
religides, e deve ser explicado na base dos mesmosprincipios”(*). Os exemplos de coisas sagradas nao sao apenas “esses seres
pessoais chamados deuses e espirito”, mas também “uma pedra,
Sagrado/profano uma arvore, uma fonte, um pedaco de madeira, uma casa, numa
palayra, qualquer coisa pode ser sagrada” — inclusive ritos ¢
O queé, portanto, essa divisdo que teve tao grande influéncia “palavras, expressdes e formulas que s6 podem ser pronunciadas
e foi tao discutida dentro da antropologia social e da sociologia da por pessoas consagradas”: a extensdéo do “circulo dos objetos sa-
religiao? , como escreveu Durkheim, “uma divisdo bipartida de gtados (...) varia infinitamente, segundo as diferentes religides”
todo o universo, conhecido e conhecivel, em duas classes que (F 51). O que € sagrado é “colocado A parte” e “nao pode,
abarcam tudo o que existe, mas que radicalmente se excluem. sem perder sua natureza, ser misturado com o profano”; inspira-
Ascoisas sagradas sao aquelas protegidas e isoladas pelas interdi- nos “respeito que nos mantém a distancia; e ao mesmo tempo é
Ges; as coisas profanas, aquelas a que se aplicam essas interdigdes um objeto de amor e de aspiragdo para o qual nos inclinamos”().
© que devem permanecer 4 distancia das primeiras. As crencas Pois bem, a tese de Durkheim nas Formas elementares é de que
religiosas sio as representacdes que expressam a natureza das “as coisas sagradas sao simplesmente ideais coletivos que se fixam
“)’sobre objetos materiais’4®)/e ele tenta explicar esse carater sa-
(42) Durkheim, “Le probléme religieux...”, loc. cit, p. 64.
(43) [d., “Le dualisme...”, loc. cit, pp. 330-31. (45) Durkheim, “Détermination...”, Joc. cit., pp. 68, 103.
(44) Ibid., pp. 316, 327. (48) Id. “Le dualism...”, loc. cit., ‘pp. 68, 103.
36 — Sociologia: para ler os cldssicos Steven Lukes — 37

grado da seguinte maneira: “sao apenas forcas coletivas hipostasia- admite flexibilidade situacional, de modo que o que é sagrado
das, ou seja, forgas morais; sao feitas de idéias e sentimentos en- em alguns contextos nao o seja em outros. Do ponto de vista
fraquecidos em nés pelo espetdculo da sociedade, e nao de sensa- conceitual, € problematica em diversos aspectos. Por exemplo,
gdes provenientes do mundofisico” (F 461). “o profano” é uma categoria residual que de fato inclui grande
Durkheim dava contas do profano de intimeras maneiras sig- niamero de classificagdes muito dispares: a saber, “o cardter cole-
nificativamente diferentes. E feito de “sensagGes provenientes do tivo (o trabalho é “uma forma eminente de atividade profana”);
mundo fisico” e de “coisas vulgares que sé interessam nossas sacralidade de menor importancia (o menos sagrado é “profano”
individualidadesfisicas”(@; e situa-se ao nivel da vida ordindria, com relagdo ao mais sagrado); o nao-sacral (as duasclasses nao
e de nossas relacées com coisas ordindrias, em que nos relacio- tém “nada em comum”); e o anti-sacral (as coisas profanas
podem “destruir” o sacral)”, Como observou muito justamente
namos com “nés mesmos € com nossos interesses sensiveis, nossa
vida privada e nosso egoismo” (F 453). Stanner, “coisas tao dispares nao podem formar umaclasse, a
menos que umaclasse possa ser determinada por uma propriedade,
Assim, por um lado,existe o sagrado — “elaborado por uma sua auséncia e seu contraério”®), De novo, é dificil ver como
coletividade”, que hipostasia forgas coletivas, fusiona consciéncias a dicotomia entre sagrado e profano pode ser conciliada com a
individuais “em uma comunhao”, impée respeito e amor, transfere ‘tese de Durkheim (segundo Robertson Smith) de que o préprio
a “sociedade para dentro de nés”e nos vincula “com algo que nos sacral é ambiguo entre o puro e o impuro, o sagrado propicio e
ultrapassa”. Por outro lado existe o profano — que expressa © impropicio, de tal modo que existe um “estreito parentesco”
“nossos organismos e os objetos com que se relacionam mais entre os dois, mas também um contraste que é “tao completo
diretamente”, refere-se 4 vida ordindria dos homens, que é enca- quanto possivel e chega até ao antagonismo mais radical”, de tal
rada como algo que compreende “as preocupagdes pessoais quo- forma que “o_contato entre eles € considerado a pior das profa-
tidianas”, a “vida privada” e as “paixOes egoistas’’(48), nagoes” (F 586, 585). (Como, por exemplo,distinguir o im-
puramente sagrado do profano, uma profanacéo sagrada de uma
J4 deve estar claro que a dicotomia de Durkheim entre o profanacdo profana?) Parte desse problema todo é que a dico-
sagradoe o profano éisomérfica com relagdo as outras dicotomias tomia entre sagrado e profano é, por um lado, umadistingdo ra-
consideradas acima; e que deriva de, e é explicada pela dicotomia, dical (supostamente feita pelos crentes religiosos) entre classes
basica e miiltipla, entre o social e o individual. Esta tem sido subme- de “coisas” (inclusive pessoas, situagées, etc.) das quais algumas
tida a ampla critica empirica e conceitual. Do ponto de vista
sao “colocadas a parte” do resto; e, por outro lado, uma distincao
empirico, tem-se observado que é “nao utilizdvel, a nao ser
entre o modo como os homens sentem e agem em relacao a, e
custa de interferéncia indevida com os fatos observaveis”(#) — avaliam essas coisas (por exemplo, se sentem ou nao um respeito
nao da contas da existéncia de objetos comuns do mundo que
intenso, ou horror religioso, ou veneragéo, ou amor em relacdo
nem sao afetados nem afetam o sagrado; interpreta erradamente o
as mesmas). Pois bem, claramente, a segunda distincio admite
dualismo encontrado no pensamento aborigine (que nao é exclu-
graus de flexibilidade situacional; e, além disso, nem pressupde
sivo mas interdependente) e cuja aplicacdo etnografica geral é nem compreende a primeira.
duvidosa; confunde as diferentes razGes pelas quais as pessoas e
as coisas sao isoladas dos objetos e ocasides sagrados; e nao As formas elementares sao um estudo das crencas e praticas
religiosas aborigines que Durkheim classificou e¢ interpretou em
(4D Ibid., p. 328. termos dessa rigida e estatica dicotomia, que ele tentou explicar,
(48) Ibid., pp. 327-30. vinculando 0 sagrado a “sociedade” e o profano a vida “indivi-
(49) W. E. H.Stanner, “Reflection on Durkheim and Aboriginal Re-
ligion”, in M. Freedman (org.), Social Organisation: Essays Presented to dual”, em todos os sentidos especificados acima. De fato, em-
Raymond Firth, Frank Cass, Londres, 1967, p. 229. Devo muito a discussio
de Stanner. Cf. também E. E. Evans-Pritchard, Theories of Primitive Reli- (0) Stanner, “Reflection...”, op. cit. p. 323.
gion, Clarendon Press, Oxford, 1965, pp. 64-5. 1) Ibid,
38 — Sociologia: para ler os eldssicos Steven Lukes — 39

bora a sociologia da religido de Durkheim comece a partir dessa “tipo mediano” era um modelo abstrato construido a partir dos
dicotomia, nao termina nela; ¢ muitas das idéias que contém elementos da primeira classe, a qualquer momento da evolugao
podem ser consideradas independentemente da mesma. Nao da espécie. Os fenédmenos patoldgicos seriam aqueles que diver-
existe, entretanto, nenhuma duivida de que vicia sua andlise de gem do tipo geral: “cada divergéncia desse padrao de satide é
modo importante. E dificil discordar do juizo de Stanner de um fendmeno mérbido” (R 69, 70). Um problema com esse
que essa dicotomia é “empiricamente inadequada” e “presa de critério — longe dos problemas tedricos da construcdo de uma
dificuldades conceituais e légicas”, que resulta “demais em difi- tipologia satisfatéria e da especificacao de estagios dentro da mes-
culdades de classificagao e andlise, e seu valor heuristico € ilus6- ma, € da dificuldade l6gica de inferir satide de uma generalidade —
rio”; € que se deveu a falsas pistas etnograficas2) — mas talvez era que nao podia ser aplicada a sociedades existentes ¢ em fun-
acima de tudo, ao “gosto de Durkheim pelo dualismo’(°?). cionamento, sujeitas a mudangas imprevistas e imprevisiveis.
Como o proprio Durkheim afirmou, era inaplicdvel a sociedades
Normal/patolégico passando por “periodos de transigao em que toda a espécie esta
em processo de evolugdo, sem ainda se ter estabilizado numa nova
O Ultimo exemplo desse dualismo que vamos considerar é a forma”, sociedades que “ainda nado completaram todo o seu per-
distingiio de Durkheim entre normal e patoldgico nos fendmenos curso” (R 75, 76). Isso, alias, revela uma nova dicotomia rigida
sociais, que ele afirmou constituir “duas variedades diferentes que operando no pensamento de Durkheim, derivada de Saint-Simon:
€ importante distinguir”. Subjacente a essa distingio — © a entre sociedades “estabilizadas” ou “organicas” ¢ “transitorias” ou
disting¢do correlativa entre fisiologia e patologia social — esta o “criticas”.
desejo de Durkheim de dar uma base cientifica a esse juizo de
valor — ou, comoele preferia formular, dar “efetividade pratica” Na pratica, Durkheim aplicava um critério diferente (que
a ciéncia — encontrando “um critério objetivo, inerente aos pré- ele encarava como explicativo do primeira), tanto para sociedades
prios fatos, que nos permita distinguir cientificamente saide ¢ atuais como passadas. Tratava-se de que um fendmenosocial ¢
doenga nas varias ordens de fendmenos sociais” (R 59, 60, 61). normal quando € vinculado “ds condigées gerais da vida coletiva
notipo social considerado” (R 80). Ele usava esse vago prin-
Na realidade, Durkheim avancou dois desses critérios —
cipio na tentativa de mostrar, por exemplo, que no tipo de socie-
um dos quais ele enunciou em teoria, aplicando 0 outro na pratica.
De acordo com o primeiro, procura-se “decidir sobre 0 carater dade “organizado” ou industrial moderno, a “solidariedade orga-
nica”, o planejamento e a organizacdo, a regulagao normativa e a
normal ou anormal dos fatos sociais segundo seu grau de genera-
lidade” (R 91). Assim, um “fato social é normal com relagdo a justica social sao normais, enquanto que a anarquia econdmica, a
um tipo social dado, numa fase dada do seu desenvolvimento, anomia, a exploracao, a “crescente onda de suicidios”, etc., sao
quando esta presente na maioria das sociedades desse tipo na fase anormais. Mas evidentemente, esses Ultimos tracgos eram todos
correspondente de sua evolucao” (R 80). Durkheim pressupés gerais em todas as sociedades efetivamente existentes desse tipo;
que se poderia distinguir uma classe de fenémenos sociais “gerais sua anormalidade era postulada antes com relagéo a uma futura
em toda a espécie”, encontrados, senao em todos, certamente na sociedade integrada considerada latente no presente, ¢ era atribui-
maioria dos casos, e variando dentro de limites estreitos, por da ao desaparecimento da velha estrutura social, ou “condigGes de
oposicao a uma classe de fendmenos “excepcionais”, encontrados existéncia”, e ao fracasso da sociedade em ajustar-se 4s novas.
em poucos casos e transitorios no tempo; e ele sustentava que o (“Nem todos os seus tragos ainda se formaram (...) desorde-
nados em certos pontos por uma crise de transicio, ele proprio
(2) Dotipo do tabu dos noas. esta em processo de desenvolvimento”). Durkheim também
— (83) Stanner, “Reflections...”, op. cit. Stanner escreve: “Os histo-
riadores das idéias desejarao sem divida dizer muita coisa sobre inclina- (4) Durkheim, De Ia division du travail social, introdugo & primeira
fo de Durkheim para a dicotomizacao e o dualismo. A divisio entre
sagrado e profano é uma das mais perceptiveis” (p. 229). edigo, Alcan, Paris, 1893, p. 36.
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aplicava esse critério a sociedades passadas — como quando es- Petic¢fo de principio
creveu sobre “erros cometidos no passado”, e afirmou que o
desenvolvimento humano “nem sempre foi normal”, como por Ja foi dito que “a petigao de principio pode ser considerada
exemplo, quando a Renascenca destruiu o que havia de valor um vicio intelectual constante em Durkheim’(*6) — embora seja
perene no sistema educacional escolastico'), um yicio mais prejudicial 4 apresentacao de suas idéias do que ao
valor de suas explicacdes. Assim, por exemplo, no Swicidio, ele
O problema com esse apelo para o fato de um fendmeno comeca apresentando umaclassificagao de suicidios segundo “as
estar ou nao vinculado as “condicdes de existéncia” de uma so- causas que os provocam” — de modo que sua “classificacao
ciedade nao ¢ apenas por ser extremamente vago. Supoe que, etiolégica” pressupde a verdade de suas explicagdes causais do
para qualquersociedade outipo social num dado estdgio de desen- suicidio, que o resto do livro se dedica a estabelecer. Novamen-
volyimento, existe um tnico conjunto de fenédmenossociais “vin- te, na mesma obra, ele afirma que a taxa habitualmente elevada
culado as suas condig6es de existéncia”, “fundamentado em sua de suicidio deve ser anormal porque as vastas e rapidas mudancas
natureza normal” (R 72). Para cada tipo social, as condicdes sociais subjacentes aos niimerosatuais de suicidio nao podem ser
de sanidade social eram determinadas, sendo a mesma “algo de- normais (S 423). No ensaio sobre Classificacdo primitiva ele
finido e dado na realidade”. Esse pressuposto fechou os olhos apresenta repetidamente tipos de classificagaéo como sendo basea-
de Durkheim para a possibilidade de alternativas histéricas reais dos, modelados ou “moldados” por formas de organizagao social —
em qualquer estigio de desenvolvimento e levou-o a encarar a © que € justamente a tese que ele esta procurando estabelecer.
politica como anéloga 4 medicina — uma questo de “trabalhar De novo, nas Formas elementares, a prépria definigao de religiao
com continua perseyeranga para manter o estado normal ou res- como unificadora de seus aderentes numa tinica comunidade moral
tabelecé-lo se for ameacado e redescobrir suas condicdes se pressupde uma das teses centrais da obra, enquanto que sua hips-
mudarem” (R 93). O pressuposto derivava em parte de seu tese de que as efervescéncias coletivas geram crencas e ritos
temperamento fundamentalmente dicotomizador. Qualquer socie- religiosos, pressupGe essas mesmas crengase ritos, ja que as efer-
dade real era subdividida em: 1) seu estado normal ou idealmente vescéncias sdo expressdo das mesmas.
integrado e 2) as condicoes patolégicas desviadas desse estado.
Como resultado, ele tendia a idealizar as sociedades que consi- Argumento por eliminacao
derava integradas, ignorando as tensdes e conflitos dentro das
mesmas, a0 mesmo tempo em que via as realidades de sua prépria Um segundo modo de argumentacao muito tipico em Durkheim
sociedade somente como desvios patolégicos de seu futuro estado € o que foi chamado de argumento por eliminacéo”); em que
normal, idealmente integrado. explicagGes alternativas de um dado fendmenosaosistematicamen-
te rejeitadas de uma maneira que visa claramente emprestar auto-
tidade 4 Gnica remanescente — a teoria do proprio Durkheim.
ARGUMENTOS Assim, na Divisdo do trabalho, Durkheim elimina explicacées al-
ternativas de seu desenvolvimento, no Suicidio ele elimina siste-
maticamente explicagdes em termos de “fatores extra-sociais”, no
Discutiremos agora brevemente trés formas caracteristicas de
argumento encontradas ao longo detodos os escritos de Durkheim. (96) Rodney Needham, introduedo A tradugio de Primitive classifica
Vamos nos contentar aqui em identificd-los mais do que analisd- tion, de £. Durkheim e M. Mauss, Choen and West, Londres, 1963, p. XV.
los que permitem a comunicagao e, com isso, a previsao das con- Cf. Cl, Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd'hui, PUF, Patis, 1962, p. 102,
e J. D. Douglas, The Social Meanings of Suicide, Princeton University Press,
vincentes. 1967, p. 30.
(51) Cf. H. Alpert, Emile Durkheim and his Sociology, Russell and
(55) Id., L’évolution pédagogique, op. cit., t. 1, pp. 22-3. Russell, Nova York, 1961, pp. 87-8.
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ensaio sobre o Incesto ele exclui as explicagdes conjecturais e seja considerada como uma personalidade qualitativamente dife-
baseadas no instinto de aversio, nas Formas elementares comeca vente das personalidades individuais que a compéem’\8),
eliminando as teorias animista e naturalista da religifo. A pri-
meira dificuldade com esse modo de argumentagao é que as expli- Tratamento das provas
cagées revistas podem nao ser conjuntamente exaustivas — as
explicagdes rejeitadas podem nfo incluir todas as possiveis alter- Finalmente podemos aludir aos modos um tanto sobranceiros
nativas, exceto a de Durkheim. A segunda, mais séria, é que de Durkheim para com as provas — o que esté ligado aos tipos
podem nao ser mutuamente excludentes — as causas que postulam mencionados de argumento a partir de uma notdvel confianca em
separadamente podem de fato ser interdependentes, por exemplo, suas proprias teorias. Na Escola Normal Superior, quando Ihe
as causas ambientais ou psicopatolégicas do suicidio podem inter- diziam osfatos contradiziamsuas teorias, ele costumava re-
agir com as causas sociais. De fato, Durkheim praticamente plicar: “Os fatos estao errados”(59),
reconhece esta tiltima possibilidade, quando escreve que a tendén- Esse estilo de abordagem manifesta-se tanto na ignorancia
cia ao suicidio pode ser vista (pelo menos em parte) como sendo de exemplos negativos quanto no que Evans-Pritchard chamou
causada socialmente, de tal maneira que os fatores sociais “pre- “a manobrairritante de Durkheim quando um fato, contradiz sua
dispd6em (os individuos) a submeter-se 4 influéncia coletiva”, tese, de asseverar que seu cardter e significacao foi alterado, que
ajudando, por exemplo, a tornar “os sistemas nervosos das pessoas € um desenvolvimento secundario e¢ atipico, embora nao haja
sensiveis e excessivamente delicados” (S$ 365-366). Talvez a tampouco proyas de que tais mudancas tenham ocorrido’(®),
principal razao para a insensibilidade de Durkheim a essa segunda Existem muitos exemplos de ambas as atitudes em Classificacao
dificuldade esteja sua doutrina de que um “dado efeito tem Primitiva (que ignora casos em que a organizacao social ea clas-
sempre uma tinica causa correspondente” (R 157). Essa doutri- sificacio simbélica nado correspondem, e explica a classificacao
na (juntamente com sua concepgio de que ambos devem ter a Arunta e Zufi em termos de desenyolvyimentos posteriores hipo-
mesma natureza) certamente o levou a sentir uma segurangainjus- téticos na estrutura social) e em As formas elementares (que
ignora as sociedades clanicas sem totens e as sociedades totémicas
tificdvel de que, em cada caso, encontrara a tinica causa (social)
sem clas, e que menciona as formas totémicas diferentes das da
do que buscara explicar. Australia Central como sendo mais avancadas). Novamente,
Outra forma tomada por esse modo de argumentacéo por Durkheim freqiientemente se baseou em provas bastante inade-
eliminagéo em Durkheim é buscar 0 apoio para suas definigdes quadas — por exemplo, na discussao no Suicidio sobre os suicidios
na apresentagdo das alternatiyas inaceitéveis como as tnicas dis- altruisticos nas sociedades pré-industriais, na tese central de Clas-
poniveis. Um bom exemplo é 0 argumento seguinte, a respeito sificagao primitiva de que a organizacao social corresponde a for-
da definigao de moral mas 0 mesmo‘se aplica as suas definigoes ma de classificagao, nos desenvolvimentos conjecturais das cren-
de socialismo religiao: Gas nos ensaios sobre o Incesto e as Duasleis da evolucdo penal,
€, nas Formas elementares, na teoria sobre as origens do totemismo
“(I) A qualificagdo ‘moral’ nunca foi atribuida a um ato e da génese dos deuses como sinteses de totens. Em suma, Dur-
cujo objeto seriam interesses individuais, ou a perfeigéo do indi- kheim foi um construtor de teorias corajoso e aventureiro que;
viduo de um ponto de vista puramente egoistico; (II) se eu, como se ja nado pretendia que “os fatos estao errados”, apesar de suas
individuo, nao constituo, como individuo, um fim que possua um aspirag6es a umaciéncia empirica objetiva, era surpreendentemente
caréter moral em si, isso também se aplica a outros individuos,
que sao 0 mesmo queeu, diferindo apenas em grau; (III) do que (58) Durkheim, “Détermination...”, loc, cit., pp. 52-3.
concluimos que, se existe uma moral, sé pode ter como objetivo (9) J, Chevalier, Entretiens avec Bergson, Plon, Paris, 1959, p. 34.
© grupo formado por uma pluralidade de individuos associados — (60) EB. EB. Evans-Pritchard, introdugio a Death and the Right Hand,
de R. Hertz, traducio de Rodney e Claudia Needham, Cohen and West,
ou seja, a sociedade, mas com a condigéo de que a sociedade Londres, 1960, p. 12.
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insensivel ao papel dos fatos na falsificagio ou verificacdo de individuos, e as relacdes entre grupos subsocietais e instituicdes.
suas teorias (embora possa ser inteifamente racional para um Sobretudo, sua concentracdo exclusiva no ladosocietal do esquema,
cientista, evidentemente, confiar mais em suas teorias do que em no impacto das condigées sociais sobre os individuos mais de que
algumas das provas & sua disposicao). nos modos como osindividuos interpretam e respondem as condi-
des sociais, levaram-no a deixar inexplicitos e fora de exame os
Essas falhas metodoldgicas sio, efetivamente, muito sérias pressupostos sociopsicoldégicos sobre os quais repousavam suas
(sio menos evidentes no Suicidio e mais, talvez, nas Formas teorias. Esta Ultima tendéncia s6 foi reforgada pela linguagem
elementares); e colocam toda a questéo de como se deve abordar figurativa, metaforica, que ele empregava para caracterizar os fe-
sua obra — como um conjunto de explicacdes ou como um némenos sociais. Na Diviséo do trabalho era a analogia organica
corpo de idéias com possibilidades explicativas. Certamente, que predominava'®); subseqiientemente ele foi cada vez mais
muitas de suas proprias explicagdes sio inadequadas e freqiien- atraido — muito mais do que se deram conta seus intérpretes —
temente apenas erradas. Da mesma forma, certamente suas idéias pela linguagem das “forgas coletivas” e “correntes sociais” e, em
tiveram e continuam tendo um consideravel poder de organizar, geral, a analogia com a termodinamica e a cletricidade. O Sui-
iluminar e sugerir explicacdes de muitos aspectos da vida social, cidio esta cheio dessa linguagem: para cada povo haveria “uma
do suicidio ¢ da desvidncia ao ritual e as crengas religiosas. forca coletiva de determinada quantidade de energia, leyando os
homens a autodestruicao” e tais forgas “determinam nosso com-
O ESTILO DE DURKHEIM portamento do exterior, da mesma forma que as forgas fisico-
quimicas”, ¢ sua intensidade pode ser medida “como se mede a
Em conclusio, algumas palavras sobre o estilo de Durkheim. de correntes elétricas” (S 336, 348-349). Ele empregou essa
Fle é ao mesmotempo altamente polémico e altamente metaf6rico; linguagem de maneira bem ampla para descrever a génese ¢ a
e tanto a polémica quanto a metafora tenderam a trair Durkheim, operacao de idéias e sentimentos coletivos, e o fendmeno de sacra-
mal-interpretando suas idéias e enganando-o © a seus leitores lidade. Por exemplo, na discusséo das origens dos direitos de
quanto 4 sua significagao. propriedade, ele descreveu as ceriménias rituais de manutengdo
de limites como algo que limpa o terreno do “excesso dereligio-
A polémica derivava do desejo combativo de Durkheim de sidade de maneira a torné-lo profano ou pelo menos profanavel,
ayancar as pretensdes da sociologia como ciéncia com realidade sem incorrer em perigo. A religiosidade, contudo, € indestruti-
propria e distinta, Preso nos confins da dicotomia entre fend- vel: s6 pode, portanto, ser desviada de um ponto para outro.
menossociais ¢ individuais, ele se preocupou exclusivamente, qua- Essa forca temida dispersa no terreno sera retirada, mas tem que
se fanaticamente, em demonstrar a realidade dos primeiros. Daf ser transferida para outro lugar, e assim se acumula na periferia.
a sua m&xima de que deveriam ser tratados como coisas — ¢, Este € 0 propésito dos sacrificios descritos”().
ainda mais importante, a linguagem realista que empregava para
caracteriz-los. Dai, acima de tudo, falar de “la société” como 0 Hacontinuos apelos a\“forcas coletivas” e “morais” nos escri-
“substrato” dos mesmos, 0 gue o leyou a reificar, e mesmo
a tos de Durkheim sobre religido: assim, por exemplo, a “extrema
deificar a “sociedade”, a traté-la como deus ex machina, a atri- facilidade com que as forcas religiosas se espraiam e se difundem”
buir-lhe “poderes e qualidades tao misteriosos e desnorteantes é comparada 4 maneira como o “calor ou a eletricidade que um
quanto os atribuidos aos deuses pelas religides desse mundo’). corpo recebeu de alguma fonte externa pode ser transmitido para
Foi Jevado por essa via, mesmo negando todo o tempo qualquer .0 meio circunvizinho” (F 461) e a religiio em geral é encarada
como algo que consiste em “forgas religiosas (...) forgas huma-
desejo de hipostasiar a sociedade, e assim ficou inclinado a igno-
rar aspectos da vida social nao facilmente assimilaveis ao esquema “O que dé unidade as sociedades organi-
Por exemplo, D 351:
sociedade-individuo, tais como a interagio e as relagdes entre
(2)
zadas, entretanto, como a todos os organismos, € 0 consenso espontineo
daspartes”.
(61) Ginsberg, “Durkheim's Theory of Religion”, op. cit., p. 42. (6) “Durkheim, Lecons de sociologie . , op. cit, pp. 184-85.
46 — Sociologia: para ler os classicos

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pois 0 Suicidio nao é operacao de correntes sociais, mas
sobre as precondigées sociais da sanidade psicoldgica, e As for-
mas elementares no séo sobre o impacto das forcas coletivas,
mas sobre as origens sociais das crengas ¢ rituais, a interpretagdo
do seu significado e simbolismo, e suas conseqiiéncias para os in-
dividuos e asociedade como um todo.

(64) Id, Le probleme religieux..., p. 66.

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