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CONTOS
AFRICANOS
1. A GAZELA E O CARACOL
Uma gazela encontrou um caracol e disse para ele:
– Caracol, você é incapaz de correr, só se arrasta pelo chão.
O caracol respondeu:
– Venha aqui no domingo e você verá!
O caracol arranjou cem folhas de papel e em cada uma delas escreveu: “Quando vier a gazela e disser:
“Caracol”, você responderá com estas palavras: “Eu sou o caracol“. Dividiu os papéis pelos seus amigos
caracóis dizendo a eles:
– Leiam estes papéis para que saibam o que fazer quando a gazela vier.
No domingo, a gazela chegou à povoação e encontrou o caracol. Entretanto, ele tinha pedido aos seus
amigos que se escondessem em todos os caminhos por onde ela passasse, e eles assim fizeram.
Quando a gazela chegou, disse:
– Vamos correr, você e eu, e você tu vai ficar para trás!
O caracol se meteu num arbusto, deixando a gazela correr. Enquanto ela corria, ia chamando:
– Caracol!
E havia sempre um caracol que respondia:
– Eu sou o caracol.
Mas nunca era o mesmo, por causa das folhas de papel que ti-
nham sido distribuídas para os amigos do caracol.
A gazela, por fim, acabou por se deitar, esgotada, morrendo
de falta de ar. O caracol venceu por causa da sua esperteza
de ter escrito nas cem folhas de papel.
2. TODOS DEPENDEM DA BOCA…
Certo dia, a boca, com ar vaidoso, perguntou:
– Embora o corpo seja um só, qual é o órgão mais importante?
Os olhos responderam:
– O órgão mais importante somos nós: observamos o que se passa e vemos as coisas.
– Somos nós, porque ouvimos — disseram os ouvidos.
– Estão enganados. Nós somos mais importantes, porque agarramos as coisas — disseram as mãos.
Mas o coração também tomou a palavra:
– Então, e eu? Eu sou importante: faço funcionar todo o corpo!
– E eu trago em mim os alimentos! — interveio a barriga.
– Olha! Importante é aguentar todo o corpo como nós, as pernas, fazemos.
Estavam nisto quando a mulher trouxe a macarronada, chamando todos eles para comer. Então, os
olhos viram a macarronada, o coração emocionou-se, a barriga esperou ficar farta, os ouvidos escuta-
vam, as mãos podiam tirar pedaços, as pernas andaram… mas a boca se recusou a comer. E continuou
a recusar.
Por isso, todos os outros órgãos começaram a ficar sem forças…
Então, a boca voltou a perguntar:
– Afinal, qual é o órgão mais importante no corpo?
– É você, boca — responderam todos em coro. Você é a nossa rainha!
3. CORAÇÃO-SOZINHO
O leão e a leoa tiveram três filhos; um deu a si próprio o nome de Coração-Sozinho; o outro escolheu
o de Coração-com-a-Mãe; e o terceiro, o de Coração-com-o-Pai.
Coração-Sozinho encontrou um porco e o capturou, mas não havia quem o ajudasse, porque o seu
nome era Coração-Sozinho.
Coração-com-a-Mãe encontrou um porco, capturou-o, e sua mãe veio logo para ajudá-lo a matar o bi-
cho. Os dois comeram ele.
Coração-com-o-Pai também pegou um porco. O pai veio logo para ajudá-lo. Mataram o porco e come-
ram ele juntos.
Coração-Sozinho encontrou outro porco, capturou ele mas não conseguia matá-lo. Ninguém foi em
seu auxílio. Coração-Sozinho continuou nas suas caçadas, sem ajuda de ninguém. Começou a emagrecer,
a emagrecer, até que, um dia, morreu.
Os outros continuaram cheios de saúde por não terem um coração sozinho.
4. O FIM DA AMIZADE ENTRE O
CORVO E O COELHO
O corvo era muito amigo do coelho. Combinaram, um dia, que um iria transportar o companheiro nas
costas alternadamente, indo de povoação em povoação para mostrar às pessoas a amizade que os unia.
O corvo começou a carregar o coelho. Andou com ele nas costas pelas aldeias e os moradores, quando
os via, perguntava:
– Corvo, o que você traz aí?
– Trago um amigo meu que acaba de chegar de Namandicha.
Passou, assim, com ele, por muitas terras.
Chegou, depois, a vez do Coelho a carregar o corvo. Ao passar por uma aldeia, os moradores pergunta-
ram para ele:
– Coelho, o que você traz nas costas?
– Ora, trago penas, penugem e um grande bico — respondeu, brincando, o coelho.
O corvo não gostou que o companheiro gozasse dele daquela maneira, saltou logo para o chão e deixa-
ram de ser amigos.
5. O
 ELEFANTE, ESCRAVO DO COELHO
Certa vez, o coelho estava passeando e encontrou um grande ajuntamento de animais sentados à
sombra de uma árvore. Cheio de curiosidade, quis logo saber do motivo daquela reunião e perguntou:
– O que está acontecendo? Que novidades há por aqui?
Um dos animais explicou:
– Trata-se de uma discussão e estamos à espera do elefante, o nosso chefe, para resolvê-lo.
– O quê? O quê? O elefante é o chefe de vocês? — perguntou o coelho, franzindo a testa.
E continuou:
– O elefante não é chefe nenhum! O elefante é meu escravo e me leva sempre nas costas para qual-
quer lugar que eu quiser!
Alguns do grupo ficaram admirados:
– Como pode o elefante ser seu escravo se você é tão pequeno?
– Ser pequeno nada tem a ver com o meu valor — replicou o coelho.
E, em tom autoritário, acrescentou:
– Já disse para vocês e volto a dizer que o elefante não é chefe, é meu escravo, e por isso, vocês podem
ir embora daqui, porque nesta coisa de resolver discussões ele não tem nada que se meter.
Dito isto, o coelho foi para a casa dele, e muitos animais também foram embora dali, por terem acre-
ditado nas suas palavras.
Algum tempo depois, chegou o elefante e perguntou:
– Então, onde estão os outros que estão faltando? Se atrasaram na viagem?
– Não! — explicaram os poucos animais que tinham ficado por lá. — Os que estão faltando foram em-
bora há pouco tempo, porque passou neste lugar o Coelho e disse que você, elefante, não é o chefe, mas,
sim, um escravo dele.
O elefante tremeu todo de indignação e, muito furioso, resmungou:
– Ah, coelho malandro! Coelho vigarista!... Deixe que, hoje mesmo, você vai responder por essas pala-
vras tão injuriosas e tão vis!...
Entretanto, o coelho chegou na casa dele e fingiu que estava doente. A companheira coelha, cheia de
pena, foi estender uma esteira e o coelho deitou-se nela.
Alguns momentos depois chegou a Impala, que era cunhada do coelho, avisando de que o elefante já
se aproximava para fazer mal a ele. E, transmitido o recado, retirou-se.
O coelho, manhoso, entrou, então, em grandes convulsões, soltando, ao mesmo tempo, gemidos tão
lastimosos que era mesmo de partir o coração.
Chegou o elefante, que se pôs a gritar, muito bravo:
– Coelho, seu malandro! Venha aqui pra fora, que você tem que me acompanhar.
O Coelho murmurou, gemendo e entrecortando as palavras:
– Por... fa... vor! Des... descul... pe... porque eu... não... es...tou... bom!... dói mui...to... o cor… po to...
do! Isto foi... um mal que me deu de re... pen... te...
– Não quero saber! Seja como for, você tem que vir comigo ao lugar onde estão reunidos os outros
animais, porque ouvi dizer que você teve o descaramento de ridicularizar o meu título de chefe e dizer que
eu sou seu escravo — replicou o elefante.
– Você tem to... da a ra... zão... mas o cer... to é que eu... não aguen... to ca... mi... nhar... para po...
der… acom... pa... nhar vo… cê!
– Já disse, você tem que vir comigo, custe o que custar, mesmo que eu tenha de levar você nass cos-
tas - ordenou o elefante.
– Então só se for desse jei...to, mas fi... ca... sa... ben... do que mes... mo assim a via... gem vai ser mui-
to... pe... no... sa.
E, logo a seguir, chamou a coelha e disse, chorosamente:
– Me dê a minha ca... mi... sa nova. Hi... Hi... Hi... Hi... Vá tam... bém bus... car as minhas cal... ças no... vas.
E, depois:
– Já traz tam... bém os meus sa... pa... tos no... vos! É que po... de a... con... te... cer que eu morra e, ao
me... nos, que... ro morrer com os meus tra... jes mais ricos.
Com o coelho vestido e calçado, o elefante abaixou-se e o Coelho saltou para as costas dele, onde se
instalou muito bem instalado.
Estava um calor de rachar. Antes de partir, o coelho gritou para a sua companheira:
– Passe minha sombrinha, porque está muito calor... e posso piorar a minha indisposição com alguma
insolação.
O elefante, em grandes e rápidas passadas, pôs-se a caminho da reunião. Quando se aproximavam
do lugar, o coelho, deixando de fingir que estava doente, ficou com uma atitude de pessoa importante e
esboçou um sorriso feliz.
Os outros animais ao verem o coelho assim, todo solene e importante nas costas do elefante, come-
çaram todos a exclamar:
– Olha! Olha!... É verdade o que o coelho dizia! O elefante é escravo dele, porque está trazendo ele
nas costas!
Quando o elefante parou, o coelho deu um salto muito ágil e elegante para o chão e, tomando a pala-
vra, dirigiu-se assim aos outros animais:
– Estão vendo?... Estão vendo?... Eu não disse que o elefante é meu escravo?
Todos os animais começaram a gritar:
– É verdade, sim senhor, é verdade. Você, elefante, não é chefe nenhum!... É escravo do coelho, pois
está carregando ele nas costas!
Só então o elefante percebeu a estupidez que tinha cometido e saiu correndo, envergonhado.
6. O PORCO E O MILHAFRE
O porco e o milhafre eram muito amigos, mas o porco invejava o fato do
milhafre poder voar. Assim, pediu que o amigo lhe arranjasse asas, para que ele
pudesse voar também.
O milhafre, então, tentou satisfazer o desejo do amigo. Arranjou penas e,
com cera, colou-as no ombro do amigo. Os dois começaram a voar lado a lado,
até que a cera começou a derreter e as penas foram caindo. Então, o porco de-
sabou, batendo o focinho no chão, que ficou com um aspecto achatado.
O porco deixou de ser amigo do milhafre, porque achou que o acidente ti-
nha acontecido por culpa dele.
7. O JABUTI E O LEOPARDO

De repente… caiu numa armadilha!
Um buraco profundo coberto por folhas de palmeiras, que havia sido cavado na trilha, no meio da flo-
resta, pelos caçadores da aldeia para aprisionar os animais.
O jabuti, graças ao seu casco grosso, não se machucou na queda, mas… como escapulir dali? Tinha que
encontrar uma solução antes do amanhecer se não quisesse virar sopa para os aldeões…
Estava ainda perdido em seus pensamentos quando um leopardo caiu também na mesma armadilha!
O jabuti deu um pulo, fingindo ter sido incomodado em seu refúgio, e berrou para o leopardo:
– Que é isto? O que você está fazendo aqui? Isto são modos de entrar na minha casa? Não sabe pedir
licença?!
E continuou gritando…
– Você não vê por onde anda? Não sabe que não gosto de receber visitas a essa hora da noite? Saia
já daqui! Sua onça mal-educada!
O leopardo, bufando de raiva com tal atrevimento, agarrou o
jabuti… e, com toda a força, jogou ele para fora do buraco!
O jabuti, feliz da vida, foi andando para sua casa tranquilamente!
Espantado ficou o leopardo…

(Conto de Ernesto Rodríguez Abad, com tradução de


Raquel Parrine)
8. LENDA AFRICANA DA GALINHA
D’ANGOLA
Antigamente, as aves viviam felizes nos campos e florestas africanas, até que a inveja se instalou
entre elas, tornando insuportável a convivência.
Nessa ocasião, quase todos os pássaros passaram a invejar a família do melro, que era muito bonito.
O macho, com sua plumagem negra e seu bico amarelo alaranjado, despertava em todos a vontade
de serem iguais a ele. As fêmeas tinham o dorso preto, o peito pardo-escuro malhado de pardo-claro, e a
garganta com manchas esbranquiçadas. Elas causavam inveja maior ainda.
O melro, vaidoso, certo de sua beleza, prometeu que se todas as aves o obedecessem usaria seus po-
deres mágicos e os tornaria negros, com plumagem brilhante. Entretanto, os pássaros logo começaram a
desobedecê-lo. Então, ele, furioso, jurou vingança, rogou uma praga neles e deu para eles cores e aspec-
tos diferentes.
Para a galinha-d’angola, disse que seria magra e sentiria fraqueza constante. Fez com que seu corpo se
tornasse pintado, como o dos leopardos. Dessa forma, seria devorada por esses felinos, que não supor-
tariam ver outro animal que tivesse o corpo tão belo, pintado de uma maneira semelhante ao deles. Ela
pagaria, assim, por sua inveja. E foi isso que aconteceu.
Desde esse dia, a galinha-d’angola, embora seja muito esperta e voe para fugir dos caçadores, vive re-
clamando que tá fraca, tá fraca. Com suas perninhas magras, foge com seu bando assim que surge algum
perigo e é muito difícil alcançá-la. Suas penas, cinzas, brancas ou azuladas, são sempre manchadinhas de
escuro tornando as galinhas-d’angola belas e cobiçadas.
9. A TROMBA DO ELEFANTE
Antigamente, Ajanaku, o elefante, tinha focinho curto como todos os animais. Não possuía a grande
tromba que tem agora e que é muito útil para ele, servindo de braço e mão, além de nariz. Quando não
tinha tromba, o elefante era muito curioso e gostava de saber tudo o que acontecia na floresta.
Certo dia, encontrou um buraco entre as raízes de uma grande árvore e, curioso como era, enfiou o
nariz nele para saber do que se tratava. Acontece que aquele buraco era a entrada da casa de uma cobra
muito grande que, vendo aquele nariz fuçando sua casa, abocanhou-o, tentando engolir nosso pobre Aja-
naku. Lamentando a sua curiosidade, Ajanaku andava para trás, para não ser engolido pela cobra, que o
puxava para dentro do buraco.
– Socorro! — gritava Ajanaku, desesperado, sentindo que não ia conseguir se livrar da grande cobra.
Ouvindo seus gritos, muitos animais vieram em seu socorro. Primeiro, veio o rinoceronte, que, se-
gurando no rabo do elefante puxou e puxou, e não conseguiu. Depois, veio a zebra para ajudar o rino-
ceronte, e os dois puxaram e puxaram, e não conseguiram. Depois, veio a girafa para ajudar a zebra e o
rinoceronte, e os três puxaram e puxaram, e não conseguiram. Por último, veio o leão para ajudar a girafa,
a zebra e o rinoceronte, e todos puxaram, puxaram e puxaram com força. Não foi fácil mas, finalmente,
conseguiram salvar nosso amigo, que, de tanto puxar, teve seu nariz esticado e transformado na
tromba que agora possui.
No início, Ajanaku, envergonhado de sua nova e estranha aparência, ficou
escondido dentro da floresta. Com o tempo, aprendeu a usar a tromba com
muita habilidade, da forma como fazem todos os elefantes atualmente.
Satisfeito, voltou ao convívio dos outros bichos.
Um dia, o macaco, que gosta de imitar todo mundo, foi enfiar o nariz
no buraco, para ver se criava uma tromba igual à do elefante. A cobra,
que ainda morava no mesmo lugar, engoliu o macaco inteirinho, com
muita facilidade.
É por isso que, mesmo sentindo inveja, nenhum bicho nunca mais ten-
tou imitar o elefante para ficar com uma tromba igual à dele.
10. O LEÃO COM SEDE
Um leão que vivia na savana africana, durante o período de seca, ficou perambulando à procura de
água. Estava com muita sede, até que finalmente encontrou um lago.
Correu imediatamente para matar toda aquela sede que o devorava, mas, chegando lá, ao olhar a água
viu a imagem de um enorme leão. Era sua imagem, mas ele julgou que fosse de um inimigo. Então,
afastou-se imediatamente, sem beber nada.
Por várias vezes visitou o lago, mas sempre via a imagem de um leão e fugia.
Os dias se passaram e ele não bebia nada. A sede aumentava muito e ele corria
o risco de morrer.
Finalmente, tomou a decisão: iria enfrentar aquele leão a qualquer preço,
pois, caso contrário, morreria mesmo. Ele aproximou-se do lago e, quando
tocou a água, aquela imagem de leão desapareceu.
11. O HOMEM CHAMADO
NAMARASOTHA
HHavia um homem que se chamava Namarasotha. Era pobre e andava sempre vestido com farrapos.
Um dia, foi caçar. Ao chegar ao mato, encontrou uma impala morta. Quando se preparava para assar
a carne do animal, apareceu um passarinho, que lhe disse:
— Namarasotha, não se deve comer essa carne. Continue até mais adiante, e o que é bom estará lá.
O homem deixou a carne e continuou a caminhar. Um pouco mais adiante encontrou uma gazela mor-
ta. Tentava, novamente, assar a carne, quando surgiu um outro passarinho, que lhe disse:
— Namarasotha, não se deve comer essa carne. Vá sempre andando, que você encontrará coisa me-
lhor do que isso.
Ele obedeceu e continuou a andar, até que viu uma casa junto ao caminho. Parou, e uma mulher que
estava junto da casa chamou-o, mas ele teve medo de se aproximar, pois estava muito esfarrapado.
— Chega aqui! — insistiu a mulher.
Namarasotha, então, aproximou-se.
— Entre — ela disse.
Ele não queria entrar, porque era pobre. Mas a mulher insistiu e Namarasotha entrou, finalmente.
— Vá se lavar e vista estas roupas — disse a mulher.
Ele lavou-se e vestiu as roupas novas. Em seguida, a mulher declarou:
— A partir deste momento, esta casa é sua. Você é o meu marido e passará a viver comigo.
E Namarasotha ficou, deixando de ser pobre.
Um certo dia havia uma festa em que tinham de ir. Antes de partirem para a festa, a mulher disse a
Namarasotha:
— Na festa em que vamos, quando você dançar, não deverá virar para trás.
Namarasotha concordou e lá foram os dois. Na festa, bebeu muita cerveja de farinha de mandioca e
embriagou-se. Começou a dançar ao ritmo do batuque. Em certo momento, a música tornou-se tão ani-
mada que ele acabou se virando.
E quando se virou, ficou como estava antes de chegar à casa da mulher: pobre e esfarrapado.
12. OS DOIS REIS DE GONDAR
Era um dia como os de antigamente… e um pobre camponês, tão pobre que tinha apenas a pele
sobre os ossos e três galinhas que ciscavam alguns grãos de tefe que encontravam na terra poeirenta, es-
tava sentado na entrada da sua velha cabana, como todo fim de tarde. De repente, viu chegar um caçador
montado a cavalo. O caçador se aproximou, desmontou, cumprimentou-o e disse:
– Eu me perdi pela montanha e estou procurando o caminho que leva à cidade de Gondar.
– Gondar? Fica a dois dias daqui — respondeu o camponês.
– O Sol já está se pondo e seria mais sensato se você passasse a noite aqui e partisse de manhã cedo.
O camponês pegou uma das suas três galinhas, matou-a, cozinhou-a no fogão a lenha e preparou um
bom jantar, que ofereceu ao caçador. Depois dos dois comerem sem falar muito, o camponês ofereceu
sua cama ao caçador e foi dormir no chão, ao lado do fogo.
No dia seguinte bem cedo, quando o caçador acordou, o camponês explicou-lhe como teria que fazer
para chegar a Gondar:
– Você tem que entrar no bosque até encontrar um rio, e deve atravessá-lo com seu cavalo com muito
cuidado para não passar pela parte mais funda. Depois, tem que seguir por um caminho à beira de um
precipício até chegar a uma estrada mais larga…
O caçador, que ouvia com atenção, disse:
– Acho que vou me perder de novo. Não conheço esta região… Você me acompanharia até Gondar?
Poderia montar no cavalo, na garupa.
– Está certo — disse o camponês — mas com uma condição. Quando a gente chegar, gostaria de
conhecer o rei, porque eu nunca o vi.
– Você irá vê-lo, prometo.
O camponês fechou a porta da sua cabana, montou na garupa do caçador e começaram o trajeto.
Passaram horas e horas atravessando montanhas e bosques, e mais uma noite inteira. Quando iam por
caminhos sem sombra, o camponês abria seu grande guarda-chuva preto, e os dois se protegiam do Sol.
E quando, por fim, viram a cidade de Gondar no horizonte, o camponês perguntou ao caçador:
– E como é que se reconhece um rei?
– Não se preocupe, é muito fácil: quando todo mundo faz a mesma coisa, o rei é aquele que faz outra,
diferente. Observe bem as pessoas à sua volta e você o reconhecerá.
Pouco depois, os dois homens chegaram à cidade e o caçador tomou o caminho do palácio.
Havia um monte de gente diante da porta, falando e contando histórias, até que, ao verem os dois ho-
mens a cavalo, se afastaram da porta e se ajoelharam à sua passagem. O camponês não entendia nada. Todos
estavam ajoelhados, exceto ele e o caçador, que iam a cavalo.
– Onde será que está o rei? — perguntou o camponês.
– Não o estou vendo! Agora, vamos entrar no palácio e você o verá, garanto!
E os dois homens entraram a cavalo dentro do palácio. O camponês estava inquieto. De longe, via uma fila
de pessoas e de guardas também a cavalo que os esperavam na entrada.
Quando passaram na frente deles, os guardas desmontaram e somente os dois continuaram em cima do
cavalo. O camponês começou a ficar nervoso:
– Você me falou que quando todo mundo faz a mesma coisa… Mas onde está o rei?
– Paciência! Você já vai reconhecê-lo! É só lembrar que, quando todos fazem a mesma coisa, o rei faz outra.
Os dois homens desmontaram do cavalo e entraram numa sala imensa do palácio. Todos os nobres, os
cortesãos e os conselheiros reais tiraram o chapéu ao vê-los. Todos estavam sem chapéu, exceto o caçador e
o camponês, que tampouco entendia para que servia andar de chapéu dentro de um palácio.
O camponês chegou perto do caçador e murmurou:
– Não estou vendo ele!
– Não seja impaciente, você vai acabar reconhecendo-o! Venha sentar comigo.
E os dois homens se instalaram num grande sofá muito confortável. Todo mundo ficou em pé à sua volta.
O camponês estava cada vez mais inquieto. Observou bem tudo o que via, aproximou-se do caçador e
perguntou:
– Quem é o rei? Você ou eu?
O caçador começou a rir e disse:
– Eu sou o rei, mas você também é um rei, porque sabe acolher um estrangeiro!
E o caçador e o camponês ficaram amigos por muitos e muitos anos…
13. LENDA UBUNTU
Essa é uma belíssima lenda africana que aborda valores sobre cooperação, igualdade e respeito.

Conta-se que um antropólogo, ao visitar uma tribo africana, quis saber quais eram os valores huma-
nos básicos daquele povo. Para isso, ele propôs uma brincadeira às crianças.
Ele, então, colocou uma cesta cheia de frutas embaixo de uma árvore e disse para as crianças que a
primeira que chegasse até a árvore poderia ficar com a cesta.
Quando o sinal foi dado, algo inusitado ocorreu. As crianças correram em direção à árvore todas de
mãos dadas. Assim, todas chegaram juntas ao prêmio e puderam desfrutar dele igualmente.
O homem ficou bastante intrigado e perguntou:
– Por que vocês correram juntos, se apenas um poderia ganhar todas as frutas?
Ao que uma das crianças prontamente respondeu:
– Ubuntu! Como um de nós poderia ficar feliz enquanto os outros estivessem tristes?
O antropólogo ficou, então, emocionado com a resposta.
Ubuntu é um termo da cultura Zulu e Xhosa que quer dizer “Sou quem sou porque somos todos nós”.
Eles acreditam que com a cooperação se alcança a felicidade, pois todos em harmonia são muito
mais plenos.
14. LENDA DA RAPOSA
E O CAMELO
A lenda da raposa e o camelo é originária do Sudão do Sul, um
país que fica no Nordeste da África.
Conta a lenda que havia uma raposa, de nome Awan, que adorava
comer lagartixas. Ela já tinha devorado todas de um lado do rio, mas
queria atravessar para a outra margem, para comer mais.
Acontece que Awan não sabia nadar e teve uma ideia para solucio-
nar o problema. Ela procurou seu amigo Zorol, um camelo, e disse:
– Olá, amigo! Eu sei que você gosta muito de cevada, e se você me
levar nas suas costas eu te mostro um caminho!
Zorol prontamente aceitou:
– Suba! Vamos!
Awan, então, subiu na corcunda de seu amigo e logo indi-
cou para que ele cruzasse o rio. Quando chegaram lá, Zorol foi
até o campo de cevada para comer, enquanto Awan se deliciava
com as lagartixas.
A raposa logo ficou satisfeita, mas o camelo ainda comia. Awan,
então, foi até o campo de cevada e começou a gritar e correr. A
gritaria da raposa chamou a atenção dos donos do campo de ceva-
da, que foram até lá e deram uma pedrada fortíssima na cabeça do
camelo, que caiu machucado.
Quando Awan encontrou Zorol caído no chão, disse:
– Vamos embora, já está anoitecendo.
Zorol, então, questionou:
– Por que você gritou e começou a correr? Por sua culpa eles me
machucaram e eu quase morri!
– Eu tenho a mania de correr e gritar depois que como lagartixas!
— disse Awan.
– Vamos para casa, então! — falou Zorol.
Awan subiu nas costas de Zorol e o camelo começou a dançar quan-
do estavam cruzando o rio. A Awan ficou desesperada e perguntou:
– Por que você está fazendo isso?
– É que eu tenho a mania de dançar depois que como cevada — res-
pondeu Zorol.
Nesse momento, a raposa caiu das costas do camelo e foi levada pelo
rio. O camelo, por sua vez, chegou à outra margem sem problemas.
Awan então recebeu uma lição por sua imprudência.
15. Lenda da Girafa e Rinoceronte
A lenda da girafa é uma dessas histórias que explicam a Natureza. Nela, conta-se o motivo desse
animal ter o pescoço tão longo.
Segundo a lenda, a girafa era um animal com um pescoço normal, assim como o de outros bichos. Até
que houve um período de seca terrível, em que os animais já haviam comido todas as ervas rasteiras e
precisavam andar muito para conseguir beber água.
Um dia, em uma dessas andanças em busca de água, a girafa encontrou um rinoceronte, e os dois co-
meçaram a se lamentar. A girafa disse, então:
– Veja só, amigo... Muitos animais escavando o chão em busca de alimento, tudo está tão seco, mas as
acácias continuam verdes.
O rinoceronte concordou. E a girafa prosseguiu:
– Seria maravilhoso poder comer essas folhagens que se encontram no alto das copas. É uma pena
que não possamos subir nas árvores.
O rinoceronte, então, teve uma ideia:
– E se fôssemos falar com o feiticeiro? Ele é muito poderoso e pode ajudar.
A girafa adorou a ideia e eles foram até a casa do feiticeiro explicar o que gostariam.
O feiticeiro disse que isso seria muito fácil, e pediu para que ambos voltassem no dia seguinte para
que ele lhes desse uma poção, a fim de que seus pescoços e pernas crescessem e pudessem alcançar as
folhas macias das acácias.
No outro dia, a girafa foi até a casa do feiticeiro, mas o rinoceronte não compareceu, pois estava muito
feliz comendo algumas ervas que tinha encontrado pelo caminho.
O feiticeiro ofereceu o feitiço apenas à girafa e sumiu.
A girafa comeu a poção mágica e logo começou a sentir suas pernas e pescoço se alongando. Ela ficou
tonta, mas, quando abriu os olhos, percebeu como tudo estava diferente.
Logo avistou uma acácia e pôde se deliciar com as folhas verdinhas.
O rinoceronte, de repente, se lembrou do compromisso e correu até a casa do feiticeiro, mas já era
tarde e não havia mais poção. Ele ficou furioso, pois imaginou que tivesse sido enganado.
Desde então, passou a perseguir o feiticeiro pela floresta e corre atrás também de todas as pessoas
que cruzam seu caminho.
16. CONTO OLUKWÊ
Olukwê vivia a labutar,
Trabalhando incansável, não importava o lugar.
Dia, noite, madrugada, com Sol ou tempestade,
Olukwê não parava, seguia com vontade.

Nascido na roça, na hora da colheita da mandioca,


Sua vida era trabalho, com disposição heroica.
Quando chovia, amassava o barro com destreza,
E quando ventava, batia arroz, com firmeza.

À noite, vigiava os bois, vacas e cordeiros,


Cuidava dos cachorros, galinhas e gados inteiros.
Até dormindo, os milhos ele ralava,
Com Olukwê, o descanso era algo que não chegava.

Certo dia, um temporal assustador se formou,


Parentes e vizinhos pediram, preocupados, que ele se abrigasse, imploraram.
Mas Olukwê seguia firme, cortando a lenha com fervor,
Até que um relâmpago o levou, sem pudor.

Para a Lua ele foi transportado num instante,


E, desde então, nas noites de Lua cheia, é o que se conta emocionante.
Olukwê, com seu machado erguido, lá na Lua está,
Uma estátua de trabalho incansável, um exemplo a brilhar.
17. COMO A ZEBRA FICOU
LISTRADA
Há muito tempo, havia um babuíno arrogante que se autodenominava “O Senhor das Águas”.
Ela vigiava uma das únicas fontes que não secava durante a seca, um pequeno poço, na verdade. Ele
impedia que os outros animais bebessem lá.
Mas, um dia, a zebra e seu filho foram até a fonte. O tempo estava seco e quente demais, e não havia
água em canto nenhum. Eles já iam beber, quando uma voz gritou: “Caiam fora! Eu sou o Senhor das
Águas e esse é o meu poço!”. As zebras olharam, pararam e viram o babuíno zangado, sentado ao lado
do fogo.
“As águas pertencem a todos, não apenas a você, cara de macaco!”, gritou a jovem zebra. “Então,
você deve lutar comigo pela água se quiser beber” desafiou, e atacou. Os dois lutaram pelo que parecia
ser uma eternidade, até que um coice selvagem da jovem zebra arremessou o babuíno pelo ar, até que
ele caiu de traseiro, sentado entre as rochas. Até hoje, o babuíno tem um inchaço vermelho nesse lugar.
A zebra estancou e caiu sobre a fogueira, chamuscando seu pelo branco e deixando listras negras nela.
As zebras, assustadas, correram de volta para as planícies, onde elas permanecem até hoje.
O arrogante babuíno e sua família ficaram morando entre as rochas e passam seus dias desafiando
os intrusos, erguendo suas caudas o quanto podem para aliviar a dor na parte pelada de pele onde eles
aterrissaram.
Assim, essa é a lenda de como a zebra ficou listrada.
18. O GATO E O RATO
O gato e o rato tornaram-se amigos. Um dia, combinaram fazer uma viagem a uma terra distante.
Pelo caminho, tinham de atravessar um rio.
– Por onde passaremos? — perguntou o gato — O rio está cheio.
O Rato respondeu:
– Não faz mal. Faremos um barco.
O Gato concordou e os dois colheram uma grande raiz de mandioca, fazendo um barco com ela. Me-
teram o barco na água, entraram nele e começaram a atravessar o rio. Pelo caminho, começaram a ter
fome, e repararam que não tinham levado comida. O gato, então, perguntou:
– O que nós vamos comer?
– Não se preocupe, amigo gato, porque podemos comer o nosso próprio barco.
E os dois começaram a comer o barco. O gato pouco comeu, porque a mandioca não era apetitosa
para ele, mas o rato comeu, comeu, comeu, até que acabou por furar o barco, que afundou. O gato
e o rato tiveram que nadar até a margem, mas, enquanto o rato nadava bem e depressa, o gato,
que mal sabia nadar, só com muita dificuldade e muito envergonhado conseguiu chegar à
margem. O gato, então, olhou para o rato e viu que ele estava com a barriga bem cheia por
causa da mandioca, enquanto ele continuava com muita fome. Por isso, lembrou-se de
comer o rato.
– Sinto muita fome, rato. Vou ter que comer você.
– Está bem — disse o rato espertalhão. Mas olha que eu estou muito sujo. É
melhor ir me lavar primeiro. Espere aí.
O rato afastou-se e desapareceu. O gato até hoje está esperando.
19. OS SEGREDOS DA
NOSSA CASA
Certo dia, uma mulher estava na cozinha e, ao atiçar a fogueira, deixou cair
cinza em cima do seu cão. O cão queixou-se:
– A senhora, por favor, não me queime!
Ela ficou muito espantada: um cão que falava! Até parecia mentira...
Assustada, resolveu bater nele com o pau com que mexia a comida. Mas o
pau também falou:
– O cão não me fez mal. Não quero bater nele!
A senhora já não sabia o que fazer e resolveu contar às vizinhas o que tinha
acontecido com o cão e o pau. Mas, quando ia sair de casa, a porta, com um ar
zangado, avisou:
– Não saia daqui e pense no que aconteceu. Os segredos da nossa casa não
devem ser espalhados pelos vizinhos.
A senhora aceitou o conselho da porta. Pensou que tudo tinha começado
porque tinha tratado mal o seu cão. Então, pediu desculpas para o cachorro e
repartiu o almoço com ele.
20. POR QUE O SOL E A LUA
FORAM MORAR NO CÉU
Há muito tempo, o Sol e a água eram grandes amigos e viviam juntos na Terra.
Habitualmente, o Sol visitava a água, mas esta jamais lhe retribuía a gentileza. Por fim,
o Sol quis saber qual o motivo do seu desinteresse, e a água respondeu que a casa do
Sol não era grande o bastante para que nela coubessem todos com quem ela vivia e, se
aparecesse por lá, acabaria por despejá-lo de sua própria casa.
– Caso você queira que eu realmente visite você, terá que construir uma casa bem
maior do que a que tem no momento, mas desde já fique avisado de que terá que ser
algo realmente muito grande, pois o meu povo é bem numeroso e ocupa bastante
espaço.
O Sol garantiu que ela poderia visitá-lo sem susto, pois trataria de tomar todas as
providências necessárias para tornar o encontro agradável para ela e para todos que a
acompanhassem. Chegando em casa, o Sol contou à Lua, sua esposa, tudo o que a água
tinha pedido, e ambos se dedicaram com muito esforço à construção de uma casa enor-
me, que comportasse sua visita.
Quando tudo estava pronto, convidaram a água para visitá-los.
Chegando, a água ainda foi amável e perguntou:
– Vocês têm certeza de que realmente podemos entrar?
– Claro, amiga água — respondeu o Sol.
A água foi entrando, entrando e entrando, acompanhada de todos os peixes e mais
uma quantidade absurda e indescritivelmente grande, incalculável mesmo, de criaturas
aquáticas. Em pouco tempo, a água já estava pelos joelhos.
– Vocês estão certos de que todos podem entrar? — insistiu a água, preocupada.
– Por favor, amiga água — insistiu a Lua.
Diante da insistência de seus anfitriões, a água continuou a despejar sua gente para
dentro da casa do Sol. A preocupação voltou quando o nível atingiu a altura de um homem.
– Ainda posso entrar? — insistiu. Olha que está ficando cheio demais...
– Vá entrando, minha amiga, vai entrando.
O Sol realmente estava muito feliz com a sua visita.
A água continuou entrando e jorrando em todas as direções e, quando deram pela
coisa, o Sol e a Lua viram-se forçados a subir para o alto do telhado.
– Acho que vou parar... — disse a água, receosa.
– O que é isso, minha amiga água? — espantou-se o Sol, mais do que educado, sem
esconder uma certa preocupação.
A água continuou jorrando, empurrando seu povo para dentro, ocupando todos os
cômodos da ampla casa, inundando tudo e, por fim, fazendo com que o Sol e a Lua, sem
ter mais para onde ir, subissem para o céu, onde estão até hoje.
21. O MONSTRO ABÓBORA
E A SEDE
Em todos os cantos da selva, se ouvia a canção que entoavam na tribo para pedir
ao furioso monstro abóbora que lhes devolvesse um pouco de água:

Ma-jo-lo me ma-bo-yi-nka, di-si-mi se-lu-ku a-mba.


Bong pa i-mi-sha-lo Bong pa si-i a-mba.

Nada crescia na terra.


A água sumiu do povoado.
A terra morria de sede.
Por todas as partes, se ouviam esses lamentos. Todos os habitantes daquelas terras
sedentas se queixavam de que o deserto calcinado os comeria. Muitos foram os dias em
que tiveram que suportar a sede na selva.
Ouviam-se os lamentos dos elefantes, como choros intermináveis:

Aiiiiiiiiiiiiiuuuuuuu. Aiiiiiiiiiiiiiuuuuuuu.

As hienas se retorciam entre os arbustos com queixumes que pareciam risos:

Riiiiiiiiiiiiuuuuu. Riiiiiiiiiiiiuuuuu.

Das tocas, dos ninhos dos pássaros, dos lugares mais profundos, emanava um la-
mento infinito. As árvores rangiam de sede e a terra se partia de dor.
Um dia, um jovem corajoso chegou correndo ao povoado. Tinha descoberto algo
que poderia salvar sua tribo e a selva. Ele sabia que, se as árvores morressem, tudo na
terra morreria.
– Eu já vi isso. O monstro abóbora.
– Ahn? Ahn?
– O monstro abóbora.
– O quê? O quê?
– O monstro abóbora é quem traga a água.
– Oh! Oh!
– Eu vi com meus próprios olhos. Ele mora no sopé da grande montanha. Cobre-se
com as folhas enormes que crescem de seus ramos e, quando a chuva vai cair, abre
sua boca grande. Parece que se parte em dois e traga a chuva toda. Quando os rios
vão passar do seu lado, também os engole.
As pessoas da tribo começaram a entoar uma canção. Pouco a pouco, os animais
e os insetos de toda a selva se uniram a eles. Durante toda a noite, se ouviu esta
melodia:

Ma-jo-lo me ma-bo-yi-nka, di-si-mi se-lu-ku a-mba.


Bong pa i-mi-sha-lo Bong pa si-i a-mba.

Bong, que era o nome daquele garoto, decidiu marchar para lutar contra a terrível
abóbora. Demorou dias para chegar ao sopé da grande montanha onde vivia o mons-
tro. Bong sentiu um pouco de medo quando o viu de longe. Era enorme. Parecia uma
boca grande, como um túnel, uma caverna interminável. Dava para escutar as águas
profundas e negras correndo pelo estômago descomunal.
Bong cantou com força o lamento de seu povo e atacou com toda a vontade seu ini-
migo, mas a abóbora enorme nem se alterou. Depois, tentou atirar pedras, feri-la com
a sua lança, cravar-lhe sua adaga afiada de sílex, mas foi inútil. Passou várias semanas
tentando vencê-la. Já havia perdido suas forças quando, em sua mente sedenta, uma
ideia se iluminou. Bong buscou um galho seco. Com muito trabalho, esvaziou-o por
dentro, encheu de pedrinhas e tapou os dois extremos. O instrumento soava como
água. Bong se aproximou cautelosamente do monstro, preparou grossos troncos de
madeira dura e resistente. Começou a fazer soar seu instrumento. A abóbora, quan-
do ouviu o som da água, abriu sua boca enorme e esperou. Bong, ajudado por alguns
macacos e elefantes, foi travando a caverna descomunal com os troncos grossos do
baobá. Logo depois, a água prisioneira quis se unir às gotas que soavam fora da prisão
e saíram para molhar a terra, as árvores, os animais e os seres humanos. Os rios volta-
ram a se encher de águas que corriam tempestuosas, os lagos transbordaram em suas
bacias; os meninos, as mulheres e os homens chapinharam nos charcos durante muitos
dias, cantando e dançando.
Bong é, hoje, o guardião da gruta da abóbora, pois não pode deixar que os troncos
de madeira se rompam e que o monstro feche a boca e volte a engolir a água.
22. O VELHO QUE
ASSUSTAVA O MEDO
O menino se aproximou, curioso, do ancião. Tinham dito ao garo-
to que era o velho mais sábio do continente africano. Passava os dias
sentado embaixo do grande baobá que dava sombra à savana. A árvo-
re era seu trono, e ele, o rei das terras quentes e secas.
O menino tinha os olhos grandes e brilhantes como bolas de cristal
preto, o cabelo cacheado e a pele escura como uma linda noite. Em seu
olhar, sempre transparecia uma pergunta. Queria conhecer o mundo,
queria saber como era a África.
O ancião tinha palavras incrustadas em suas rugas, suas mãos ti-
nham se acostumado a tecer histórias, sua voz sabia voar como os pás-
saros, brilhar como as estrelas, escorrer entre as sombras como os pei-
xes coloridos.
Contou ao garoto que queria saber tudo que a única forma de conhe-
cer a África e o mundo, era ouvir todos os contos e todas as lendas. As
palavras que viajam desde os tempos remotos dentro das histórias dizem
mais do que significam. Elas estão escritas como os fios da noite.
— E como vou descobrir os contos? Quem vai me contar as lendas?
Apressou-se a dizer o garoto de olhar ansioso. O velho sorriu. Naquele
sorriso, havia mistério, sabedorias que vinham do passado, magia de ou-
tros mundos.
Encheu a vasilha de barro negrusco que sempre o acompanhava com
um punhado de terra e pedrinhas. Depois, levantou o recipiente por cima
da cabeça e derramou a terra. Misturou-se no ar e caiu entre a grama e as
folhas secas. O menino o escutava em silêncio, estudava todos os movi-
mentos e ações do velho. Sabia que seu gesto, suas ações e suas palavras
tinham um significado mágico. Mais tarde, encheu a vasilha de água e
pediu ao garoto que o acompanhasse até o rio. Derramou o líquido sobre
o torvelino das águas correntes.
— Escute como a terra se mistura com o vento. Escute as palavras que
as águas dizem quando arrastam outras águas.
Estava muito sério. Sabia que tinha que fazer o garoto compreender a
importância de aprender o que a terra queria nos contar.
— Todo mundo na África sabe que só precisamos escutar a terra. Os
contos estão nela.
As palavras do velho pareciam ficar presas nos galhos de baobá. Nos
contos, se escondem segredos, cada palavra serve para algo além de
dizê-la e deixá-la voar ao vento. As palavras podem matar pessoas ou
podem acariciar os ouvidos nas noites frias. Se maltratarmos a natureza.
Os relatos se perderão, é a terra que conta, pois as histórias nasceram
nela. Por isso dizemos que na África se contam contos para o medo dormir.
23. KIRIKU E A FEITICEIRA
Logo após o nascimento de Kiriku, seu tio foi até Karabá, a feiticeira, para exigir o fim de suas malda-
des contra a aldeia. Kiriku insistiu em acompanhá-lo, mas ele não permitiu a presença do sobrinho, que
se escondeu em seu chapéu. Disfarçado, Kiriku conseguiu salvar o tio de uma morte certa. O pequeno
guerreiro foi movido pela curiosidade, pela energia e desejava saber o motivo de tanta maldade. Em uma
dessas tentativas, a bruxa tentou matá-lo, mas ele fugiu. Um dia, com a ajuda da mãe, ele armou um plano
para visitar o sábio da montanha e aprender mais sobre a feiticeira. Kiriku descobriu o motivo de tanta
maldade de Karabá e a libertou da maldição quebrando os feitiços que ela fizera contra a sua aldeia. No
filme, dirigido por Michel Ocelot (1998), é possível enxergar altruísmo, astúcia, perdão, a importância da
coletividade e do amor na aldeia de Kiriku. Mario Tenório, que elege o nascimento de Kiriku como um dos
momentos mais marcantes da história, utiliza o filme em seu curso de ensinamentos sobre lendas africa-
nas para que seus alunos abordem questões sobre a própria espiritualidade proibida.
24. POR QUE A COBRA MUDA
DE PELE
No princípio, a morte não existia. A morte vivia com Deus, e Deus não queria que a morte entrasse
no mundo. Mas a morte tanto pediu que Deus acabou concordando em deixá-la partir.
Ao mesmo tempo, fez Deus uma promessa ao Homem: apesar da morte ter recebido permissão para
entrar no mundo, o Homem não morreria. Além disso, Deus prometeu enviar ao Homem peles novas, que
ele e sua família poderiam vestir quando seus corpos envelhecessem.
Deus pôs as peles novas num cesto e pediu ao cachorro para levá-las ao Homem e sua família. No cami-
nho, o cachorro começou a sentir fome. Felizmente, encontrou outros animais que estavam dando uma
festa. Muito satisfeito com sua boa sorte, pôde matar a fome.
Depois de comer fartamente, deitou numa sombra para descansar. Então, a esperta cobra aproximou-
-se dele e perguntou o que é que havia no cesto. O cachorro lhe disse o que havia e porque estava levando
ele para o Homem. Minutos depois, o cachorro caiu no sono. Então, a cobra, que ficara por perto a esprei-
tá-lo, apanhou o cesto de peles novas e fugiu silenciosamente para o bosque.
Ao despertar, vendo que a cobra tinha roubado o cesto de peles, o cachorro correu até o Homem e
contou o que tinha acontecido. O Homem dirigiu-se a Deus e contou o ocorrido, exigindo que ele obrigas-
se a cobra a devolver as peles. Deus, porém, respondeu que não tomaria as peles da cobra, e, por isso, o
Homem passou a ter um ódio mortal da cobra, e sempre que a vê procura matá-la.
A cobra, por sua vez, sempre evitou o Homem e sempre viveu sozinha. E, como ainda possui o cesto
de peles fornecido por Deus, pode trocar a pele velha por outra nova.
Diagramação:
Wellington Souza

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