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DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; PASSOS, Mauro.

“Catolicismo: direitos sociais e


direitos humanos (1960-1970)” IN: FERREIRA, Jorge. DELGADO, Lucilia de Almeida
Neves (orgs). O Brasil Repúblicano: O tempo da ditadura: regime militar e movimentos
sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. (O Brasil
Republicano; v.4)

Considerar, analisar e pesquisar os sujeitos históricos que moldaram a crise dos anos 1960
pois foram anos de efervescência e mobilização popular. Mas, paradoxalmente, como
apontam os autores, foi também um tempo de autoritarismo e desrespeito aos direitos
humanos.

Período complexo, caracterizado pelo cultivo de diferentes utopias, como também pela
frustração de projetos que animaram inúmeros segmentos da sociedade civil.

A década de 1960 pode ser dividida em duas fases: a primeira antes do regime autoritário e
corresponde aos quatro primeiros anos e a segunda teve sua marca inicial em 1964 e
corresponde à implantação desse regime.

O texto pretende analisar o movimento do catolicismo brasileiro, especialmente sua


integração na luta pelos direitos humanos e sociais.

O binômio direitos sociais e direitos humanos determina, nesse texto, um mesmo ponto de
partida - o conceito, a perspectiva histórica e um projeto a ser encarnado. O objetivo dos
autores é evidenciar a atuação dos militantes católicos progressistas.

Os autores buscar interpretar o novo lugar que o catolicismo foi ocupando na sociedade
brasileira, neste período, modificou seu perfil tanto interno quanto externamente. Segundo
eles, foi ocorrendo, uma metamorfose na compreensão de si mesmo. O seu perfil institucional
foi sendo alterado. Com isso, a imagem tradicional da Igreja, sua linguagem e sua projeção na
sociedade apresentavam uma nova direção. A instituição eclesiástica começava a abrir novos
horizontes em sua práxis.

Três aspectos centrais analisados: o lugar e a função do catolicismo na sociedade brasileira,


os condicionamentos históricos e religiosos que possibilitaram sua mudança interna e externa,
o novo modo de ser da Igreja. (p. 96)

AS IMAGENS PRIMEIRAS: AUSÊNCIAS E PROPOSTAS (p. 97)

O catolicismo brasileiro comporta uma diversidade de atos e atores.

Possível limite cronológico: pode-se estabelecer o final de 1950 e de 1960. Um marco que
sinaliza um novo rumo histórico na trajetória do catolicismo.
As relações entre catolicismo e sociedade possibilitam diálogo, maior união e diversos pontos
de convergência.
De acordo com a autora, nesse período, percebe-se um movimento no quadro religioso, no
sentido de maior aproximação das camadas populares e dos grupos que se empenhavam
por transformações sociais. O envolvimento e a militância de alguns membros do
catolicismo em diversas áreas da sociedade contribuíram grandemente para essa mudança em
nível institucional e da realidade social.

“As propostas e as novas formas proclamadas não se situam em nível de toda a Igreja.
São próprias de alguns setores mais avançados de grupos de leigos, padres e bispos que
procuravam outros passos, favorecendo um diálogo maior com a história, buscando
uma maior participação de seus membros, em vista da construção do que entendiam ser
uma comunidade livre, justa, solidária e fraterna. A Igreja Católica não é um bloco
homogêneo. Nela estão presentes práticas diferentes e mesmo contraditórias.
Existem diferentes comportamentos religiosos e políticos, influenciados pela forma
como seus membros se ligam às várias classes sociais.” (p. 98)

Do ponto de vista político, a primeira Constituição da República marca o fim do padroado.


Embora esse padroado régio estivesse extinto, a mentalidade de cristandade ainda
predominava em quase toda a Igreja Católica. Nos três primeiros-séculos da colonização, a
religião católica estava vinculada ao projeto português. Fé católica e cultura lusitana
identificavam-se e formavam uma unidade. Com o advento da República, o catolicismo deixa
de ser a religião oficial do Estado. No entanto, em nível prático, ambos continuavam a manter
um clima de união e cooperação. O catolicismo oficial procura se afirmar como poder e, em
várias situações, alia-se ao poder político para combater o liberalismo, o comunismo e
assegurar a ordem na nação brasileira. (p. 98)

Com isso, a Igreja distancia-se do povo e do catolicismo popular. Essa neocristandade tem
um caráter conservador e desenvolvimentista. Ela se mantém ancorada em torno das
oligarquias conservadoras e dos proprietários rurais. (p. 98)

A linguagem (o discurso) é instrumento como as coisas, com capacidade de induzir os


indivíduos, determinando valores e concretizando propostas. Há um fortalecimento do
conceito de Igreja-docente e a Igreja discente é formada pelos leigos que devem aprender as
hierarquias.

Em vários momentos de crise e conflito, o Estado e a Igreja estiveram juntos, a favor da


ordem e da segurança da nação. Dessa forma, um bom caminho seria a execução de um
programa comum, como ocorreu, por exemplo, no período de 1922-1930. A busca de
alternativas para as graves questões sociais deixou de ser prioridade, e as metas do poder
econômico, político e religioso eram mascaradas pela defesa dos princípios harmoniosos de
paz, união e ordem. Isso contribuiu para destruir as reais bases dos direitos do povo e dos
indivíduos. (p. 99) (Estado novo)
Ao embalo dessa cooperação e de uma organização como sociedade hierarquizada, a
Igreja foi, se distanciando de uma proposta mais condizente com a cultura e as
necessidades da grande maioria da população brasileira.

O projeto de dom Leme distanciou o catolicismo das expressões religiosas populares. Sua
Carta Pastoral de 1916 traçará, em linhas gerais, seu plano de ação para os anos
subsequentes.. O grande ternário desse documento é a ignorância religiosa do povo brasileiro.
Sua preocupação será o ensino da doutrina e dos princípios católicos. Enquanto a Igreja
enfatizava a necessidade de diminuir a ignorância religiosa - "causa de todos os males
sociais", o Estado afirmava que a causa da crise social do país estava no analfabetismo da
maioria da população brasileira. Os dois discursos se encontram na mesma forma de
argumentação. Os desequilíbrios da sociedade passam a ser citados com bastante veemência,
no entanto, sem considerar a formação histórica, cultural, política e religiosa do povo. (p.
100)

O padre Júlio Maria articulava um projeto mais ousado, nos primeiros anos do regime
republicano, seu pensamento era mais fecundo, sua originalidade está na capacidade de
compreender a realidade brasileira e poder dialogar mais abertamente com a cultura, os
desafios sociais, sua posição foi um ponto fora da curva tanto no aspecto histórico quanto no
aspecto religioso.

O período de 1950 é marcado pela insistência no conhecimento da realidade e maior


compromisso social. Vão ocorrendo, assim, os sinais de mudança. Um novo olhar começa a
despontar no horizonte do catolicismo. Evidentemente que outros grupos, outras influências,
vários acontecimentos de ordem social e política, como as questões trabalhistas no período de
Getúlio Vargas (1950-1954), contribuíram para a configuração dessa nova imagem. (p. 101 -
102.)

Com sua reflexão sobre consciência histórica dos tempos modernos e cristianismo. De outra
parte, essas novas formulações do catolicismo resultaram do seu contato e entrosamento com
um contexto histórico efervescente.

O tecido histórico da década de 1960 convida-nos a um movimento no olhar que vislumbre a


pluralidade do período. O pensamento religioso não evolui sozinho no espaço simbólico.
Ele interage com outras formas de pensamento e outras esferas de organização social, política
e cultural.

1960, polarização política, duas vozes dissonantes de projetos para o futuro do país

“De um lado reuniam-se, em uma ampla frente que lutava por transformações, os
movimentos populares, os sindicatos; os estudantes articulados pela União Nacional dos
Estudantes (UNE), as ligas camponesas, os militares nacionalistas, as frentes parlamentares
reformistas, os socialistas, os comunistas, o clero e os leigos dos movimentos católicos
progressistas. As posições desses grupos, de modo geral, coincidiam com a idéia de se
proceder a uma ampla reforma econômica e social no Brasil. Reforma de cunho socialista
popular, cujo objetivo era, sobretudo, alcançar um desenvolvimento pleno, através da
superação das condições de subdesenvolvimento (Delgado, 2001). Momento de desafio em
face dos problemas de ordem política, econômica, educacional, religiosa. Nesse período,
alguns leigos e membros da hierarquia católica começaram a se interessar por problemas
fundamentais: família, educação, reforma agrária, desenvolvimento econômico, educação.
Era um período que antecedia as eleições no país. Essa era uma atitude nova do catolicismo
brasileiro, procurando balizar a pastoral com referências na realidade histórica.” (p. 103)

“Em outra posição, diametralmente oposta, situavam-se diversos setores da sociedade


brasileira que, através de uma postura ao mesmo tempo modernizante e conservadora,
apostavam em um programa de desenvolvimento econômico arrojado, internacionalizado,
menos voltado para a produção de artigos destinados ao consumo popular e mais
direcionados, por um lado, para a implantação de indústrias de ponta; por outro, para a
preservação da estrutura agrária do país. Nele se agregam militares vinculados à Escola
Superior de Guerra, proprietários rurais, setores do empresariado nacional, parlamentares
ligados, principalmente, à UDN, investidores internacionais, segmentos expressivos da classe
média e setores conservadores da Igreja Católica.” (p. 108)

A influência da política norte-americana se faz sentir sobremaneira. A Aliança para o


Progresso, lançada pelo presidente John Kennedy, propunha um programa para atender às
necessidades do Nordeste. Através do "Acordo do Nordeste'', dava provimento à alocação de
US$ 131 milhões de ajuda americana para a região, num período de dois anos. Na realidade,
tratava-se de um plano com o objetivo de combater a política de Miguel Arraes e fazer frente
ao movimento das Ligas Camponesas.

Há uma confluência de movimentos no cenário brasileiro. Outro fato é a evolução da Igreja


no Brasil, em face dos problemas sociais. Sua participação tem várias etapas e diferentes
formas de atuação. A participação nas questões sociais é lenta. A proximação vai-se dando
nos discursos da hierarquia católica de formas diferentes e sob diversos aspectos. (p. 105)

O tema dos direitos sociais e dos direitos humanos no discurso e na prática do catolicismo
brasileiro. Podemos perceber seu envolvimento, sua limitação e inquietação. O discurso e a
realização dessa prática foram sendo tecidos lentamente.

Com a eleição de João XXIII, novas contribuições e motivações marcaram o rumo da Igreja
no Brasil. Suas encíclicas Mater et magistra (1961) e Pacem in terris (1963) contribuíram
para a renovação do catolicismo. Uma nova retórica estava acontecendo no mundo religioso
católico. O primeiro documento aborda de forma bastante ampla o problema dos países
subdesenvolvidos e a questão social: "O progresso social deve acompanhar e igualar o
desenvolvimento econômico, de modo que todas as categorias sociais tenham parte nos
produtos obtidos em maior quantidade" (João XXII, 1961, p. 19)
Mudança no discurso da Igreja - não constitui um fim em si mesmo, nem pretende, apenas,
veicular mensagens e valores religiosos, mas tem um objetivo maior: interagir socialmente.
Esse fragmento de texto analisado pela autora chama a atenção para questões virais - a fome
em muitas regiões e o excesso de lucro de vários grupos, a pobreza como conseqüência da má
distribuição de renda - e a condenação daqueles grupos que se sentiam incomodados com
a ação pastoral da Igreja, denominando-a comunista.

Apontou a necessidade de uma renovação eclesial e a formação dos cristãos para a ação
social, política, econômica e cultural.

“O catolicismo, para o qual nosso olhar se volta, é em primeiro lugar aquele


que molda novos espaços no horizonte dos direitos sociais e humanos. O processo de
mudança por que passava teve novo impulso e grande criatividade a partir da década de 1960.
Há, particularmente, uma mudança de dentro para fora. A memória do Concílio Vaticano II,
da Conferência de Medellín e as articulações da CNBB geraram um verdadeiro movimento
de renovação no catolicismo. Novas possibilidades foram sendo alicerçadas. A convergência
de novos temas, direcionados para as questões latino americanas e a justiça social, povoa as
declarações episcopais, como também a militância de muitos católicos. O espaço conquistado
pelas camadas populares e os desafios sociais, políticos e econômicos contribuíram de forma
diferenciada para sua dinâmica. Nessa direção, o apoio de líderes da hierarquia católica,
particularmente, alguns bispos, determinou nova política evangelizadora mais ativa e voltada
para as questões sociais.” (p. 116)

‘O distanciamento do poder estabelecido, a aproximação e a identificação do catolicismo


brasileiro com a causa das camadas populares fizeram com que o acolhimento dos desafios e
dilemas alargasse, sempre mais, seu horizonte. Os programas e as atividades de clérigos e
leigos ganharam corpo. Novas orientações arejaram o quadro da evangelização e da ação
social do catolicismo, tanto no campo quanto na cidade, em virtude do processo histórico
e da correlação de múltiplos movimentos sociais.” (p. 106)

“Assim, a Igreja se diferenciava daquela dos períodos anteriores. Uma série de fatos e
situações sociais favoreceram sua evolução política e religiosa e renovaram sua ação. Esse
sombrio clima provocou diversas respostas da hierarquia eclesiástica. De certa forma,
fortaleceu a posição do grupo mais progressista e engajado. Essa mudança afetou, ao mesmo
tempo, sua visibilidade histórica e sua própria autocompreensão. Os direitos humanos e
sociais assumiram conotações e interpretações diversas na história do catolicismo brasileiro.”

“Representantes da hierarquia católica foram se opondo ao regime militar, traduzindo em


denúncia as arbitrariedades praticadas e dando, ainda, amparo às pessoas perseguidas. Alguns
se tornaram também vítimas do autoritarismo, sofrendo prisões, expulsão do país, difamação,
atentados e assassinatos.” (p. 125)

Através desse estudo, foi possível perceber o movimento e o envolvimento do catolicismo


brasileiro, em vários níveis e sob diversas formas, pela causa dos direitos sociais e humanos.

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