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A saúde na escola: da medicalização à perspectiva


da psicologia histórico-cultural
Spazziani, Maria de Lourdes

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Spazziani, M. d. L. (2001). A saúde na escola: da medicalização à perspectiva da psicologia histórico-cultural. ETD -
Educação Temática Digital, 3(1), 41-62. https://nbn-resolving.org/urn:nbn:de:0168-ssoar-105241

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ARTIGO

A SAÚDE NA ESCOLA: DA MEDICALIZAÇÃO À PERSPECTIVA


DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL1

Maria de Lourdes Spazziani

Resumo: Este trabalho analisa os fundamentos das práticas pedagógicas da saúde na es-
cola por meio do discurso do processo de medicalização da sociedade apresentado por
Foucault, a partir da instauração da medicina moderna. A análise dos programas curricu-
lares apresentados na literatura, no decorrer do século XX revelam que os pressupostos
medicalizantes ecoam nas inúmeras propostas curriculares, quer seja àquelas relacionadas
ao escolanovismo, à teoria da privação cultural, às propostas democráticas da década de
80, ou àquelas recentemente apresentadas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN).
O estudo conclui pela necessidade de rever os fundamentos das práticas pedagógicas da
saúde a partir dos pressupostos da psicologia histórico-cultural para o desenvolvimento
do aprendizado, que mais do que reorganizar os conteúdos do ensino, propõe os saberes
escolares como um processo que requer uma elaboração que envolva a transformação dos
modos de conceituar do aluno no sentido do conhecimento sistematizado, através das re-
lações interpessoais, das trocas dialógicas sobre objetos ou fenômenos em que o conhe-
cimento sistematizado está intimamente inter-relacionado ao conhecimento do cotidiano.

Palavras-chaves: Medicalização; Práticas pedagógicas; Propostas curriculares; Psicolo-


gia histórico-cultural; Conceitos científicos e cotidianos.

Abstract: This work analyzes the practical beddings of the pedagogical ones of the health
in the school by means of the speech of the process of medicalização of the society pre-
sented for Foucault, from the instauration of the modern medicine. The analysis of the
presented curricular programs in literature, in elapsing of century X discloses that the
medicalizantes estimated ones echo in the innumerable curricular proposals, wants either
to those related to the escolanovismo, to the theory of the cultural privation, to the demo-
cratic proposals of the decade of 80, or to those recently presented in Parâmetros Curri-
culares Nacionais (PCN). The study it concludes for the necessity to review the practical
beddings of the pedagogical ones of the health from the estimated ones of the description-
cultural perspective, that more of the one than to reorganize the contents of education,
considers to know pertaining to school to them as a process that requires an elaboration
that involves the hashing in the modes to appraise of the pupil in the direction of the
knowledge systemize, through the interpersonal relations, of the dialógicas swaps on ob-
jects or phenomena where the systemize knowledge intimamente is interrelated the
knowledge of the daily one.

Key-words: Medicalization; Practical pedagogical; Proposals curricular; Description-


cultural psychology; Scientific and daily concepts

1
Este trabalho faz parte da pesquisa de doutoramento defendida na Faculdade de Educação da UNICAMP com o
apoio do CNPq

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INTRODUÇÃO tões, a permanência de altos índices de


violência, a que se submetem crianças e
As reflexões desse trabalho estão situa- jovens e uma alta taxa de mortalidade
das no final do século XX, num período infantil, intuando o país entre os primei-
contraditório em relação as mais varia- ros do mundo nessa categoria. Dentre
das questões. O avanço da ciência e da tantas outras situações emergenciais que
tecnologia, até então não registrado em cercam a realidade brasileira, a evasão,
períodos anteriores, tem possibilitado a a repetência e a baixa qualidade do en-
robótica, a informática, a inteligência sino escolar constituem um grave pro-
artificial, a clonagem, o código genéti- blema, ainda, sem solução.
co, que configuram e alteram nossos
modos de compreender e de vivenciar a Esse movimento dos tempos atuais re-
realidade. Por outro lado, contrastam flete e refrata, passo a passo, as áreas da
com o avanço da miséria humana e da saúde e da educação. Naquela, destaca-
guerrilha urbana, a permanência de tra- se a Medicina, que contribuiu para nor-
balho escravo, a presença cada vez mai- matizar as relações entre os homens
or da violência entre os jovens e crian- nesses últimos dois séculos.
ças. Ou seja, no século da invenção da
adolescência (Áries, 1986), vemos os No dizer de Moysés (1980), a medicina
exageros por excesso de consumo de atravessa todo o espaço social ocupan-
que são vítimas crianças e jovens, assim do-o plenamente. A presença dos médi-
como o exagero pela falta de acesso às cos na sociedade, é considerada funda-
mínimas condições de vida por crian- mental, a partir de então, em qualquer
ças, jovens e adultos pobres e miserá- meio ou grupo social, formando uma
veis que estão excluídos dos benefícios rede e exercendo uma vigilância cons-
tecnológicos e sociais. Aprofundou-se o tante sobre os modos e costumes do
simulacro, alguns usufruem de sofisti- homem comum.
cadas condições materiais e culturais ao
lado da impossibilidade de melhoria das Essa atuação da medicina no interior da
condições concretas de vida de grande sociedade é denominado de “medicali-
parte da população humana atual e, pro- zação”. É um fenômeno produzido na
vavelmente, de uma parcela considerá- construção do saber médico moderno,
vel no futuro. que substitui a origem do saber sobre a
doença das mãos de Deus para a consci-
Recentemente, no Tribunal Permanente ência médica. Foucault (1994) descreve
dos Povos (OAB, 1999), o governo bra- assim o surgimento da medicalização:
sileiro foi condenado pelo júri consti-
tuído na 27ª sessão, que analisou “A “Os anos interiores e imediata-
violação dos direitos fundamentais da mente posteriores à Revolução
criança e do adolescente no Brasil: o viram nascer dois grande mitos,
distanciamento entre a lei e a realidade cujos temas e polaridades são
vivida”. Ou seja, os programas e leis opostos: mito de uma profissão
médica nacionalizada, organiza-
destinados às crianças e aos adolescen-
da à maneira do clero e investi-
tes considerados bastante avançados da, ao nível da saúde e do corpo,
apregoam direitos mínimos justos, de de poderes semelhantes aos que
acordo com a vida moderna. Mas as este exercia sobre as almas; mito
práticas presentes no seio da sociedade de um desaparecimento total da
brasileira revelam, entre outras ques- doença em uma sociedade sem
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distúrbios e sem paixões, resti- pecialmente, em questões relacionadas à


tuída à sua saúde de origem. A saúde:
contradição manifesta dos dois
temas não deve iludir: tanto uma “...desde os hábitos alimentares e de
quanto a outra destas figuras higiene, até habitação e vestuário,
oníricas expressam como que em lazer e trabalho, a medicina lança
preto e branco o mesmo projeto seu olhar e sem dizer, definindo,
da experiência médica. Os dois avaliando, julgando, com o consen-
sonhos são isomorfos: um, nar- timento da sociedade, que lhe dele-
rando de maneira positiva a me- ga a tarefa de vigiar a vida. Toda a
dicalização rigorosa, militante e vida, de todos os homens “ (Silva,
dogmática da sociedade, por 1999, p.76).
uma conversão quase religiosa e
a implantação de um clero da te- A TRAJETÓRIA DA SAÚDE NA
rapêutica; o outro, relatando
ESCOLA
esta mesma medicalização, mas
de modo triunfante e negativo, A discussão da saúde na escola remonta
isto é, a volatilização da doença
à própria institucionalização da escola
em um meio corrigido, organiza-
do e incessantemente vigiado, em pública e democrática, que no Brasil
que, finalmente, a própria medi- data do início do século. As evidências
cina desapareceria com seu ob- que configuram a estreita relação entre
jeto e sua razão de ser” (p.35). educação e saúde podem ser buscadas
nos discursos dos intelectuais brasilei-
Desse modo, o saber médico, conforme ros, que defendiam o aumento quantita-
Foucault, consiste em entrelaçar o visí- tivo e qualitativo das instituições de
vel e o enunciável e tem como pressu- ensino em todo o país. No início do
posto o poder. “O poder implica o saber século, esse movimento propagava a
enquanto bifurcação, diferenciação sem a “...crença de que a melhoria das condições
qual ele não passaria a acto”(Deleuze, sociais dependia da alteração das técnicas
s.d, p.64). Então, o poder da medicina pedagógicas” (Ghiraldelli, 1985, p.5).
para normatizar a vida social advém da
construção desse saber médico moder-
no, que apresenta soluções da clínica Paralelamente, havia a constatação de
médica para problemas que tem como um contigente da população que vivia
principal causa as condições sociais e nos ‘bolsões’ de pobreza e miséria nos
econômicas de vida. centros urbanos, como Rio de Janeiro e
São Paulo. Para esses indivíduos, a es-
A medicalização tem sido estudada por cola, quando acessível, não promovia os
diversos pesquisadores pelas influências resultados esperados. No entanto, uma
que se observam nas diversas áreas do boa parte desses indivíduos pobres era
saber da vida moderna. Nesse trabalho, necessário ao mercado de trabalho in-
o discurso da medicalização ganha ex- dustrializado, perfil que se esboçava,
pressão, na medida em que a natureza para o Brasil, no projeto político e eco-
do conhecimento dos temas de saúde e nômico. Esse contexto propicia o dis-
o processo pedagógico escolar absorve curso sobre a reconstrução individual,
como princípio básico uma sociedade promovida pela escola, que pode levar à
medicalizada. Uma das conseqüências reconstrução da sociedade.
do pensamento medicalizante é a pre-
sença de um discurso hegemônico, es- O discurso organizado nos movimentos
iluministas revolucionários europeus do
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século XVIII encontra nas ações da dominadas, cuja função é dar uma ex-
Medicina uma sustentação metodológi- plicação racional (científica) às diferen-
ca e científica eficientes e suficientes ças presentes na sociedade (Chauí,
para colocar em marcha o projeto bur- 1980). Nesse sentido, a Medicina in-
guês de uma sociedade capitalista in- vestida nos conhecimentos e métodos
dustrializada. científicos valorizados, propõe-se poli-
ticamente a lutar contra a doença, as
É a utilização da Medicina que, através epidemias e, do mesmo modo, reestru-
da emergência do pensamento e do turar a sociedade, eximi-la de todos os
método clínico, se coloca como meio maus hábitos higiênicos físicos e mo-
de ligação para que os avanços meto- rais.
dológicos das Ciências Naturais sejam
propostos para as Ciências Humanas. “Modificando a função social do
Nesse sentido, a prática médica, pro- médico, garantindo sua competên-
posta pela clínica, torna-se fundamental cia, atribuindo-se a tarefa de li-
para que a compreensão, até então al- mitar as epidemias, controlar o
cançada, da natureza biológica e física contágio, preservar regiões intei-
ras, a burguesia lhe atribui um
se desdobrasse e se incorporasse às áre-
território e um modo de exercícios
as das humanidades, ainda, naquele novos” (Polack, 1971:p.13).
momento, bastante tímidas. Como relata
Foucault (1994:p.40), A Medicina passa a organizar e a defi-
nir os papéis que deveriam desempe-
“as ciências do homem incor- nhar os indivíduos das diferentes ca-
poram e no prolongamento o
madas sociais, colaborando, assim, para
modelo das prestigiadas ciên-
cias da vida (natureza), e a es- a estruturação do capitalismo e a ma-
trutura que estas propunham nutenção da hegemonia política e eco-
tinha como marca a oposição nômica da burguesia.
entre sadio e o mórbido”.
“A medicina deve abrir-se para
A utilização do modo de conhecimento o espaço social e assumir, ao fi-
das Ciências Naturais pelas Ciências nal a tarefa de suprimir a doen-
Humanas, nada mais é, no dizer de ça. Mas deve fazê-lo no interior
de um projeto que implica tam-
CANGUILHEM (1995) do que anima-
bém a reestruturação da socie-
lização das sociedades humanas e a dade, com a depuração de todos
consideração do homem sem o seu os seus males – princípio conti-
componente humano, que é social, nuamente retomado na explica-
construído culturalmente. ção dos ideais que orientam a
revolução”. (Donnangelo e Pe-
Foucault(1994), Canguilhem (1995), reira,1979, p.19).
Novaes (1979), Donnangelo e Perei-
ra(1979), destacam que essa ocupação Como conseqüência, medicaliza-se a
da Medicina proposta no projeto revo- sociedade, isto é, os problemas sociais
lucionário moderno faz parte do projeto passam a ser um problema médico.
político e ideológico necessário para o
êxito da sociedade capitalista. A ideo- Uma das características desse discurso é
logia é entendida numa sociedade divi- o estabelecimento de um conhecimento
dida em classes como um processo ló- em que predomina uma “relação de sen-
gico, elaborado pelos grupos dominan- tido único, de um saber para o que não
tes para ocultar a realidade das classes sabe, ou de um saber científico para um
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saber desqualificado”(Rivorêdo, 1996, Este ‘fazer pedagógico’ nas questões do


p.3). ensino da saúde na escola tem sido ob-
No campo da educação, os programas jeto de minha preocupação há algum
endereçados aos problemas de saúde do tempo. As incessantes buscas para
escolar são muitos e, quase sempre, compreender esse fenômeno saúde no
relacionam distúrbios na saúde do aluno processo educativo indicam que a natu-
com as dificuldades apresentadas no reza dos conhecimentos que circunscre-
processo de aprendizagem. Dessa for- ve a temática da Saúde influencia o pro-
ma, entrelaçam-se saúde e educação, de cesso de aprendizado como um todo e,
tal modo que aquela conhecida relação mais especificamente, os modos de tra-
“para se ter educação é preciso ter saúde tar essas questões (Spazziani,1990).
e para se ter saúde é preciso educação”
encontra-se, de certo modo, presente no A natureza do conhecimento das ques-
interior das práticas escolares. Os pro- tões de Saúde (como Higiene, Nutrição,
gramas curriculares dirigidos às práticas Crescimento e Desenvolvimento, Pri-
do ensino da Saúde, organizados nesses meiros Socorros, Doenças Infecto-
moldes, têm-se evidenciado insuficien- contagiosas, Parasitárias e Respiratóri-
tes, no sentido de propiciar às crianças, as), ao absorverem as idéias da medica-
principalmente àquelas das classes mais lização, trazem a influência direta das
pobres, mudanças de atitude frente às concepções de saúde e da doença como
dificuldades das condições de vida. fenômeno fisio-patológico. A doença
surge da vida, nutre-se dela, deixando
Esses programas de saúde, construídos de ter uma origem externa ao corpo
desde a criação da Puericultura, no final saudável (Foucault, 1994).
do século passado, absorvem o discurso
da medicalização e têm como premissa Essas questões de saúde têm sido cons-
a ignorância e a falta de informação das tituídas na interface de várias discipli-
crianças e de seus familiares sobre con- nas, como a Fisiologia, a Patologia, a
ceitos e práticas de saúde saudáveis e, Bioquímica, a Genética e a Pediatria,
portanto, suas propostas têm se orienta- que são disciplinas organizadas pelas
do no sentido de oferecer esses conhe- Ciências da Saúde ou Biológicas, que
cimentos e as mudanças de atitudes ne- impõem o olhar normatizador da Medi-
cessários para transformar o quadro da cina, definindo seus conteúdos e o
saúde e da aprendizagem das crianças modo de focalizar tais questões na es-
com dificuldades. Como conseqüência cola. Os conteúdos priorizam os aspec-
dessa visão, suas ações têm como único tos fundamentalmente biológicos das
sentido o saber científico - como o co- questões da saúde, deixando de conside-
nhecimento verdadeiro e saudável - para rar a contribuição de outras disciplinas,
aqueles que nada sabem, portanto, nada desenvolvidas pelas Ciências Humanas
têm a dizer, devem ouvir e reproduzir ou Sociais (Sociologia, Antropologia,
para aprender. O discurso pedagógico História, Ética, Lingüística, entre ou-
que se impõe, é o autoritário, que no tras). Assim, o processo pedagógico
dizer de Orlandi (1996) é o modo de centraliza-se na utilização do método
(re)produzir conhecimento que favorece científico e na transmissão quantitativa
a voz dos que são considerados os de- de conhecimentos, que são insuficientes
tentores do saber contra a daqueles que para responder às demandas da realida-
“nada sabem” e nada têm a dizer. de social.

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A especificidade científica dos progra- Bruzzo (1989), em seu estudo histórico


mas de Saúde, a proposição de uma sobre o discurso e prática dos médicos
abordagem científica fundamentada na do serviço sanitário paulista, destaca
quantidade de informações, a falta de que o discurso sobre a higiene, que in-
formação especializada nessa temática, fluenciará posteriormente os programas
entre outros fatores, têm propiciado do ensino da saúde no interior da esco-
uma situação bastante problemática no la, se origina de um caráter moral e es-
desenvolvimento das práticas pedagógi- tético e apregoa bons modos e costumes
cas da Saúde na escola. para o controle das crianças e das clas-
ses pobres no meio urbano, dele nunca
O estudo de Nicácio (1983) sobre as se dissociando. A autora aponta a atua-
representações dos professores sobre a ção dos médicos e o conhecimento da
saúde evidenciou que o conhecimento medicina como fundamentais para com-
apresentado é baseado no senso comum por esse discurso, pois ao combater as
e não está relacionado ao contexto soci- epidemias, os médicos conseguiram a
al mais amplo. Ele é circunstancial- aceitação da população urbana quanto
mente relacionado ou a fatores metafísi- às recomendações higiênicas e o reco-
cos ou a fatores individuais. Esse estudo nhecimento das idéias científicas para
também destaca que o professor não fortalecer o Estado e impor sua tutela
está comprometido com os programas aos cidadãos.
curriculares em Saúde e ainda menos
com os aspectos políticos das práticas A esses problemas relacionados aos
sanitárias dos alunos ou da escola. Sua programas de saúde na escola aliam-se
principal fonte de conhecimento são os evidências observadas durante a prática
noticiários, em geral, televisivos, difi- docente exercida no Ensino Funda-
cilmente integrados aos programas de mental e Médio e aquelas levantadas
ensino. em pesquisa sobre essa temática (Spazzia-
ni,1990), as quais permitem destacar as
Bagnato (1987) afirma que a contribui- seguintes características:
ção dos programas de saúde são reduzi- a) o professor, ao enfocar
dos em relação ao que propõe o pro- questões sobre saúde, apresenta
grama curricular, predominando o mé- uma série de dificuldades e inse-
todo científico, informações fragmenta- guranças para lidar com essa te-
das sobre doenças, aulas expositivas mática, tanto em nível dos conte-
com objetivos direcionados pelo profes- údos como nos modos de trazer a
sor, informações descontextualizadas e discussão para a aula, acreditando
ações pedagógicas que não influenciam que essa temática precisa de for-
hábitos e atitudes. mação específica ou da presença
de especialistas (psicólogos, mé-
Silveira (1994), em sua análise sobre as dicos, sexólogos, nutricionistas,
concepções de saúde e de ensino da etc);
saúde no período de 1931 a 1993 no b) o professor dificilmente in-
estado de São Paulo, concluiu que há voca os conhecimentos e as
uma discrepância significativa entre o práticas da criança construí-
que é proposto nos documentos legais e dos no contexto social mais
currículos oficiais com a prática exerci- amplo, ou seja, o trabalho
da pelo docente. pedagógico sobre saúde se
realiza numa total ‘escuri-
dão’, não há olhares para a
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criança concreta, para a sua todo o País”, conforme documento ela-


realidade cultural, para a po- borado pela Secretaria de Educação
sitividade do seus saberes, Fundamental do MEC (BRASIL/SEF,
para as suas vivências com- 1997a, p.13). Esse documento contém
plexas; proposições para as áreas ou disciplinas
c) o conhecimento produzido convencionais como Língua Portugue-
deve corresponder à repro- sa, Matemática, Ciências, História, Ge-
dução fiel do conhecimento ografia, Arte e Educação Física; além
sistematizado apresentado na dos denominados Temas Transversais,
aula, através da fala do pro- que incluem: Ética, Meio Ambiente,
fessor e do texto do livro di- Pluralidade Cultural, Orientação Sexual
dático utilizado; são conhe- e Saúde.
cimentos tidos como verda-
des absolutas e, portanto, A proposição curricular da saúde nos
não cabendo nenhuma dis- Temas Transversais realoca sua discus-
cussão prévia nem posterior. são numa tendência de se constituir uma
área temática, cujo principal objetivo é
A situação da prática pedagógica sobre adequar o processo ensino-
saúde encontrada nas escolas do Ensino aprendizagem das disciplinas convenci-
Fundamental, nas últimas décadas, tem onais ao contexto cotidiano do aluno.
revelado a sua inoperância frente às
perspectivas, algumas até promissoras, Essa proposição está fundamentada na
de programas ou projetos que veicula- crítica que tem sido dirigida às discipli-
ram nesse período. Destaco os progra- nas escolares, que ao serem substancia-
mas “Saúde como expressão de vida” das quase com exclusividade no conhe-
do MEC/PREMEN; “Saúde como com- cimento científico ao longo dos últimos
preensão de vida”, também, do séculos, não acompanham as transfor-
MEC/PREMEN, ambos da década de mações vivenciadas na vida moderna,
80; e “Atividades de Programas de Saú- deixando, inclusive, de conferir sentido
de para o 1º grau” da SEE/SP/CENP, à aprendizagem (Busquets et.al, 1993).
1985.
Os temas transversalmente colocados
Atualmente, na nova lei da educação de no currículo escolar, segundo Busquets
N.º9394, promulgada em 30/12/96 et al (ob.cit.), evitam a incoveniência de
(contrariamente a lei que a antecedeu, a aumentar a carga curricular e, por outro
5692/71, que destinou um artigo para lado, facilitam a necessária transforma-
incluir os Programas de Saúde no currí- ção das disciplinas convencionais em
culo escolar) não há qualquer menção relação às expectativas atuais e a sua
sobre a questão da saúde na escola (Sa- adequação às possibilidades de compre-
viani,1997). Esse tema perde, então, a ensão dos alunos. Ainda, para esses
força de lei e passa a integrar os Temas autores (ob.cit), os temas transversais
Transversais propostos nos Parâmetros devem ser situados no centro das preo-
Curriculares Nacionais - PCN. cupações sociais e educacionais, por
onde é possível transitar os conteúdos
Os PCN, em que pesem as críticas que das disciplinas formais. Eles darão sen-
lhes são dirigidas tais como em Geraldi tido à aprendizagem das matérias esco-
(s.d.), Moreira (1996) e Kramer (1997) lares, que aparecem como instrumentos
“constituem um referencial de qualidade culturais de grande significação para
para a educação no ensino fundamental em
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aproximar o conhecimento científico da veitamento escolar devido aos modos de


vida cotidiana. escolha e tratamento dos conteúdos do
ensino. No entanto, essa ação pedagógi-
Essa nova proposição curricular, apre- ca deve estar integrada ao sistema edu-
sentada nos PCN, já foi divulgada nas cativo dos Estados e Municípios apro-
escolas públicas do Ensino Fundamen- ximando as ações políticas e adminis-
tal, sendo que estes últimos foram dis- trativas das pedagógicas.
tribuídos às escolas do 1º Ciclo do Ensi-
no Fundamental, no início de 1998, Consciente da necessidade dessa ação
sendo recomendado que os planeja- integrada no campo da educação, para
mentos curriculares se adequassem às que mudanças importantes aconteçam
sugestões contidas nos PCN. no sentido de consolidar práticas edu-
Desse modo, a dimensão curricular dos cativas realmente democráticas, que
programas de saúde na escola não é contemplem uma melhoria nos mais
mais contemplado no texto da nova lei diferentes aspectos (quantitativos e
da educação. Essa questão, juntamente qualitativos) do processo ensino-
com outros temas considerados sociais, aprendizagem das escolas públicas bra-
passam a veicular da transversalidade sileiras, é que retomo a discussão sobre
apresentada nos PCN e enquadra-se em as práticas pedagógicas em saúde.
outros pressupostos políticos, adminis- A temática de saúde, apesar de sua tra-
trativos e pedagógicos que devem ori- jetória bastante problemática e, de certo
entar as ações na escola pública brasilei- modo, até inexpressiva no contexto do
ra. Ensino Fundamental e Médio, tem sido
destacada ao lado de outras temáticas
Entretanto, Krawczyk (1999), ao anali- sociais no novo cenário da reforma edu-
sar a gestão escolar, afirma que a diver- cacional vigente.
sidade nas propostas educacionais, em
andamento, de 11 municípios brasilei- CONSEQÜÊNCIAS DA MEDI-
ros, nos CALIZAÇÃO NO PROCESSO
PEDAGÓGICO
“alerta para a necessidade de
uma política de gestão escolar
voltada para a consolidação de A saúde na escola ou a saúde escolar
um sistema educativo articulado tem sido historicamente construída sob
entre as proposições da política um discurso que explicita “garantir con-
educativa e sua concretização na dições de saúde adequadas para a aprendi-
atividade escolar. Só assim será zagem, reduzindo as taxas de evasão e re-
possível aproximar as intenções petência”(Collares E Moysés, 1992,
democratizantes enunciadas das p.24). Ou seja, desde a criação dos ser-
práticas político-educativas”. viços de saúde na escola, no início deste
(p.145) século, a sua marca tem sido combater o
chamado fracasso escolar.
Ou seja, para uma escola atender aos
ideais de uma sociedade democrática, A forma como os programas de saúde
com princípios de igualdade e de possi- desenvolveram-se, tanto na escola como
bilidade e liberdade de expressão, deve nas secretarias de saúde e de educação,
apresentar outros métodos de trabalho consubstanciaram-se na chamada Medi-
que reflitam na melhoria da qualidade calização, que tem como conseqüência,
do ensino e da aprendizagem para supe- segundo Collares E Moysés (1994), a
rar as evidências do insucesso no apro- “medicalização da educação”, ou seja, o
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deslocamento dos problemas do proces- profissionais e especialistas da área da


so ensino-aprendizagem do âmbito da saúde (como médicos, psicólogos, fo-
educação para o da saúde. As autoras noaudiólogos, enfermeiros, nutricionis-
destacam que a medicalização da tas) e fortaleceram a criação da área da
aprendizagem, que envolve a atuação psicopedagogia na esfera da educação.
dos diferentes profissionais da área da Assim, a criação desse espaço de atua-
saúde como médicos, psicólogos, fono- ção, na instituição de ensino, para esses
audiólogos, entre outros, rotula crianças novos serviços profissionais vem, jus-
e desvaloriza a ação do professor, pois tamente, tornar mais nebulosa as refle-
xões e as práticas pedagógicas realiza-
“... os professores, que deveriam das pelos professores e outros profissio-
ser também os responsáveis por nais da educação sobre o processo edu-
analisar problemas educacionais, cacional.
assumem uma postura acrítica e
permeável a tudo, transformando- O processo de ensino e de aprendiza-
se em mediadores, apenas triando
gem, as interações professor-aluno no
e encaminhando as crianças para
os especialistas da saúde. Essa espaço das aulas, os saberes disciplina-
prática acalma as angústias dos res, as metodologias e estratégias de
professores, não só por transferir ensino são relegadas a segundo plano.
responsabilidades, mas principal- Uma série de outras questões, como a
mente porque desloca o eixo de pobreza, a carência cultural, as doenças
preocupações do coletivo para o das crianças são colocadas no centro
particular “.(p.30) dessa discussão e têm orientado teori-
camente a permanência de certas práti-
As diversas práticas que envolvem os cas escolares.
programas de saúde na escola, como a
prestação de serviços de saúde aos es- Não é recente a evocação de inúmeras
colares, a prática pedagógica da saúde tentativas de inovação educacional
nas aulas, bem como os aspectos do como salvadoras, como as famosas es-
ambiente físico e emocional da escola e truturações arquitetônicas dos prédios
a relação escola-comunidade, não têm escolares, as reformulações curriculares,
contribuído para o objetivo apresentado a introdução de novos componentes no
nesses programas, que em geral se pro- ensino ou propostas pedagógicas basea-
põem garantir que a maioria das crian- das nas teorias psicológicas mais mo-
ças obtenha êxito na escola. De certa dernas sobre o ensino e a aprendizagem.
forma, essas práticas têm repercutido no Enfim, uma série de modificações que
sentido de justificar e perpetuar ações têm objetivado resolver o problema do
pedagógicas comprometidas com o insucesso escolar está presente na histó-
projeto da escola tradicional, endereça- ria da educação brasileira.
da para a elite da sociedade, e inaltera-
das ao longo deste século. No entanto, temos assistido a essa série
de inovações, muitas vezes apostado em
O estudo de Collares e Moysés (1992) algumas delas, mas os resultados dessas
revela justamente que os modos domi- implementações em quase nada alterou
nantes de incorporação das questões de o quadro educacional já estabelecido.
saúde no processo pedagógico da esco- Continuam a evasão, a repetência e a
la, relacionados à visão da medicaliza- baixa qualidade do ensino.
ção, favoreceram a ampliação do mer-
cado de trabalho para a atuação dos
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O que justifica essa situação? Por quê vocarem certas disfunções em seu sis-
tudo que se investe em educação, não só tema nervoso central.
em dinheiro, mas em recursos pedagó-
gicos e humanos, nada modifica a No entanto, exames como o eletroence-
substância do quadro já apontado? São falograma, a que são submetidas muitas
inúmeras as justificativas dos profissio- das crianças que apresentam dificulda-
nais, das instituições, dos políticos, mas des no processo escolar, além de não
a culpa, na maioria das vezes, é atribuí- acusarem alterações no funcionamento
da à própria vítima, ou seja, ao aluno. do cérebro, não conseguem confirmar
prejuízos que justifiquem o discurso
Os problemas de saúde do aluno, nor- sobre o fracasso escolar. Os profissio-
malmente apontados como as principais nais da educação têm assumido esse
causas do fracasso na escola, como a falso discurso de conteúdo médico e -
desnutrição e as disfunções cerebrais apesar de serem os detentores do pro-
mínimas (dislexia, dislalia, hiperativi- cesso de ensino, conhecerem suas mi-
dade), constituem na verdade um falso núcias e, até, em diversas ocasiões te-
discurso científico para encobrir uma rem experimentado sucesso nas práticas
determinada pretensão ideológica, ou desenvolvidas - rendem-se ao seu efeito
seja, a biologização de aspectos emi- devastador, colaborando para aprofun-
nentemente sociais, com isso isentando dar os danos à tarefa pedagógica da
a estrutura social, política e econômica escola e, conseqüentemente, às capaci-
de suas responsabilidades, bem como as dades cognitivas e afetivas das crianças.
instituições, seus dirigentes e executo-
res. Assim, vários estudos e teses des-
envolvidos, inclusive, nas academias e O interessante na reflexão sobre a medi-
que se dizem baseados no método cien- calização no espaço escolar é que as
tífico, parecem compromissados em questões que envolvem seu enfoque,
justificar a atuação dos profissionais da como a desnutrição, as disfunções neu-
saúde na escola para resolverem pro- rológicas, as dificuldades de aprendiza-
blemas de comportamento e aprendiza- gem, a dislexia, a hiperatividade, têm-se
gem dos alunos. reconstruído através dos contra-
discursos, das críticas que lhe são diri-
As críticas apresentadas por Collares e gidas e ressurgem com mais força, com
Moysés (1992) a trabalhos que relacio- mais adeptos, ampliando interesses em
nam “nutrição, desenvolvimento cere- outros espaços institucionais. Novas
bral e aprendizagem” como em Esposito evidências pseudo-científicas são cria-
(1975) destacam irregularidades na uti- das a fim de sustentar as práticas medi-
lização dos procedimentos metodológi- calizantes no contexto escolar, amplian-
cos que comprometem a pretensão ci- do a atuação dos profissionais da saúde;
entífica de suas análises e resultados. novos medicamentos são introduzidos
Desse modo, tais trabalhos, elaborados pela indústria farmacêutica; novas pu-
por profissionais principalmente da área blicações na área são lançadas pelo
da psicologia ou da psicopedagogia, mercado editorial; produção de artigos e
constituem o discurso hegemônico so- teses que reforçam tais preconceitos; e
bre o fracasso escolar: é o aluno que finalmente, notícias sobre a categoria
fracassa porque possui determinados surgem na imprensa escrita e falada.
problemas causados pela desnutrição ou
por outras doenças que se presume pro- Nesse sentido, o que se busca encontrar
na escola, em especial, nos alunos que
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apresentam comportamento cognitivo Propôs-se um projeto pedagógico diri-


ou emocional diferente do padrão espe- gido para toda a sociedade, e a Pueri-
rado, é justamente a doença que se su- cultura, como um dos pilares da Medi-
põe estar localizada em algum lugar do cina nesse projeto, teve como principal
corpo biológico, para a qual, só o co- função “atribuir à educação a indução de
nhecimento e a atuação especializada do mudanças no modo de pensar e agir dos
médico, do psicólogo, do fonoaudiólogo indivíduos para superar as condições im-
é que terá possibilidade de reverter, se postas pela classe social que ocupam”
for o caso, o insucesso do aluno. (Novaes,1979,p.26). Ainda, segundo
essa autora (ob.cit), esse projeto peda-
Os profissionais da saúde e da educação gógico proporciona o aumento da de-
na instituição educacional apresentam manda pelo ensino elementar, bem
uma prática bastante comprometida com como do número de escolas e a rees-
o discurso da medicalização, em especi- truturação da família moderna, em es-
al quando se propõem a resolver difi- pecial, com o estabelecimento de novas
culdades de comportamento ou de atribuições para a mulher, como mãe e
aprendizagem das crianças. Em muitas esposa.
escolas, ou melhor dizendo, na maioria
das escolas públicas, não há a presença No interior da escola, esse projeto pe-
de profissionais da área da saúde, de dagógico iniciado pela Puericultura no
modo que o fracasso dos alunos é legi- final do século passado, na sociedade
timado pela ausência de especialistas e, brasileira, ganha expressão, no início do
portanto, ausência, igualmente, de qual- século XX, somente quando as necessi-
quer atitude que proponha a superação dades geradas pelo desenvolvimento
dos problemas apresentados pelos alu- industrial justificam a medicina positiva
nos. e progressista, que de acordo com No-
vaes (1979) é a medicina proposta no
projeto revolucionário burguês, que
A PRÁTICA PEDAGÓGICA DA institui a medicina classificatória. São
SAÚDE NA ESCOLA criadas práticas pedagógicas em saúde,
através da Puericultura, que visava pre-
A valorização do discurso médico na parar as adolescentes para ocupar os
construção da sociedade moderna, dá-se papéis sociais necessários para a cons-
pela necessidade de sua absorção no tituição da nova família. O foco de sua
interior das práticas instituídas, a fim de ação na escola eram as meninas, embora
normatizar as ações da classes popula- sua preocupação, no projeto pedagógico
res que cresciam nos centros urbanos. global, também “objetivava medidas que
Esse discurso se aplicava perfeitamente modificassem os hábitos e costumes da
à escola pública, já no final do século população operária, para que o apego à
ordem pública fizesse parte do projeto de
passado, uma vez que a pouca quanti-
vida da família”(Spazziani, 1990, p.14).
dade e a baixa qualidade das escolas
que atendiam as crianças das famílias
O movimento da Escola Nova, apre-
pobres era justificada pela falta de inte-
sentado no Manifesto dos Pioneiros da
resse desses novos grupamentos sociais
Educação, na década de 1920, absorve
que viviam sem regras e sem condições
as preocupações explicitadas no projeto
de corresponder ao que a sociedade es-
pedagógico e apresenta-se como contra-
perava deles.
proposta ao modelo tradicional de atua-
ção das escolas. Os educadores pro-

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põem, nesse documento, a escola como


viabilizadora do processo de transfor- “...o efeito de aprimorar a educa-
mação e adaptação progressiva do indi- ção das elites e esvaziar ainda
víduo ao meio e aos padrões de com- mais a educação das massas. Isto
portamento necessários ao desenvolvi- porque, realizando-se em algumas
mento do país. Ou seja, à escola se des- poucas escolas, exatamente aque-
las freqüentadas pelas elites, con-
tinou a responsabilidade de promover a
tribuíram para o seu aprimora-
melhoria das condições de vida da po- mento. Entretanto, ao estender sua
pulação pobre, através da introdução de influência em termos de ideário
métodos de ensino que retratassem, o pedagógico às escolas da rede ofi-
quanto possível, a vida, para a integra- cial, que continuaram funcionando
ção dos indivíduos às novas exigências de acordo com as condições tradi-
sociais. cionais, a Escola Nova contribuiu,
pelo afrouxamento da disciplina e
É a proposta de uma escola que prioriza, pela secundarização da transmis-
no processo ensino-aprendizagem as são de conhecimentos, para desor-
técnicas pedagógicas, os recursos e ins- ganizar o ensino nas referidas es-
colas. Daí, entre outros fatores, o
trumentos materiais, as salas-ambientes,
rebaixamento do nível da educa-
o ensino individualizado, os trabalhos ção destinadas às camadas popu-
em grupo, o professor como orientador lares” (p.31 e 32).
das atividades educativas; enfim, uma
série de modificações que se contra-
põem à concepção e às práticas da es- A situação do ensino da saúde em fins
cola tradicional. Práticas essas que prio- do século XIX e início do século XX
rizam a transmissão do conhecimento estava direcionada para a absorção das
para os filhos de uma elite dominante, a idéias do projeto higienista que se con-
fim de manter a cultura intelectual e solidava em nosso país, através da cria-
artística da humanidade. ção do Departamento Nacional de Saú-
de em 1923, por Paula Souza (Costa,
O escolanovismo, como foi chamado 1984). A puericultura, a higiene pessoal
esse movimento, conclama no seu dis- e o combate a doenças específicas (sífi-
curso a emergência de uma escola pú- lis, tuberculose, alcoolismo) eram as
blica e democrática que atenda, através tônicas da ação educativa. Ação essa
de nova proposta educativa, crianças de que se legitimava no desenvolvimento
todas as camadas sociais. Este de fato do conhecimento científico, mas com
consegue, por um lado, desmobilizar a forte apelo às regras morais e aos cos-
forma tradicional de realizar a educa- tumes do homem civilizado. Segundo
ção, mas, por outro, não consegue im- Bruzzo (1989), no final do século pas-
plantar a tão propalada renovação na sado, higiene era incluída na educação
maioria das escolas públicas do país, cívica, pois era “sinônimo de pessoa edu-
pois sua viabilização dependia de in- cada civilizada”(p.8).
vestimentos em recursos financeiros e
humanos, o que não aconteceu. No en- A inclusão da área científica (Física,
tanto, seu discurso é absorvido pelos Química e História Natural) na forma-
órgãos governamentais, que o utilizam, ção do magistério primário desloca a
em parte, nas reformas educacionais que higiene gradativamente para essa área,
acontecem daí em diante. mas tendo sempre como parâmetros os
O movimento da Escola Nova aspectos morais e atitudinais da raça
teve, segundo Saviani (1983),
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branca, européia, aliados à valorização Com relação a essas medidas preventi-


de características genéticas (biológicas). vas, o movimento da pré-escola agluti-
na a idéia da educação compensatória
Segundo Melo (1984), a inclusão de para as crianças oriundas dos ambientes
preceitos científicos e técnicos nas sociais desfavoráveis.
questões de higiene e saúde é influência
das idéias do movimento sanitarista “Tais programas têm como ob-
americano, que é introduzido no Brasil jetivo primeiro estimular a per-
juntamente com o movimento da Escola cepção da criança sobre si e o
Nova. mundo que a rodeia, desenvolver
o uso de uma linguagem adequa-
da que lhe permitirá fixar aque-
A proposta de renovação dos pioneiros
las percepções, possibilitar-lhe
da Escola Nova não promoveu modifi- condições para aumentar seu re-
cações significativas no processo ensi- pertório lingüístico e levá-la a
no-aprendizagem, em primeiro lugar adquirir disposições para uma
por não ter sido implantada de fato; em aprendizagem formal”. (CO-
segundo, porque atribuía à educação LLARES, 1982, p.15).
escolar um papel que extrapolava os
limites de sua atuação, isto é, o de ser a
principal responsável pelas transforma- Além da formalização, com relação às
ções da sociedade. competências básicas apresentadas nes-
ses programas educacionais, as crianças
A partir dos anos 50, até 1964, Patto eram atendidas nas áreas da saúde (nu-
(1993) destaca que a permanência dos trição, assistência médica e odontológi-
resultados negativos da atuação peda- ca).
gógica da escola no processo ensino-
aprendizagem, em especial, com as cri- No dizer de Carvalho(1989), a educa-
anças advindas das camadas mais po- ção
bres da população, promove a idéia de
que as causas do insucesso escolar estão “assume cada vez mais a função
localizadas nas características físicas, de assistência/controle constituin-
psicológicas e sociais do aluno. E, nesse do uma resposta adequada a esta
sentido, a atuação da escola se daria fase do antagonismo de classes,
promovendo, quantitativa e qualitati- caracterizada pela expansão do
proletariado urbano, entre outros
vamente, outras oportunidades de
fatores”(p.62).
aprendizagem que viessem suprir as
“deficiências culturais” das crianças A escola incorpora ações para atender
pobres. É a emergência da teoria da às freqüentes demandas da clientela
privação cultural. escolar emergente. Pode-se dizer que
nesse cenário, se estabelece outra rela-
A teoria da carência ou privação cultu- ção entre educação e saúde. As discus-
ral emerge na sociedade americana na sões sobre as condições de vida e, con-
década de 60 e, como medida preventi- seqüentemente, de saúde sobre o de-
va, é proposta a pré-escola associada a sempenho do escolar (índice de sucesso
projetos de assistência médica, dentária ou fracasso) ganham nova expressão.
e de serviços educacionais (Alvaren-
ga,1991). As condições de vida das crianças po-
bres são consideradas pela escola como
impedimento para o seu processo de
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aprendizagem. É a mãe que não partici- ambiente cultural, social, político e par-
pa da escola. O pai é alcoólatra. Falta ticular do indivíduo – predomina, nos
acompanhamento da criança nas tarefas discursos acadêmicos e escolares, assim
escolares em casa. Além do que, as cri- como nas explicações que norteiam o
anças, que apresentam dificuldades no senso comum, o conceito de que o insu-
processo escolar, são rotuladas por al- cesso do aluno pobre, na escola, é fruto
guma doença (física ou psicológica) ou dos problemas trazidos de seu ambiente
algum distúrbio de aprendizagem (dis- sócio-econômico-cultural. Aumenta a
lexia, dislalia, déficit de atenção, hipe- participação de diagnósticos especiali-
ratividade). zados em medicalizar o fracasso escolar
e assim crescem, também, as perspecti-
vas de atuação profissional de especia-
A porta de entrada da saúde na escola é listas da área da saúde (pediatras, psi-
a doença, seja ela física ou psicológica, cólogos, fonoaudiólogos, terapeutas) e
causada por fenômeno biológico ou da educação (psicopedagogos). Man-
cultural. É desse modo que a questão tém-se uma relação circular viciosa en-
curricular da saúde é organizada na es- tre os fatores que produzem o fracasso,
cola a partir da década de 70, quando, impedindo uma atuação pedagógica
através do artigo 7º da Lei de Diretrizes mais efetiva por parte da escola.
e Bases da Educação Nacional n.º
5692/71, é criada a disciplina “Progra- Contrapondo-se a essa situação,
mas de Saúde” (Brasil, 1971). Ela enfo- Patto(1993) destaca resultados de várias
ca as doenças, as drogas, a higiene, as pesquisas, demonstradas por estudiosos,
agressões ao corpo, os primeiros socor- como Gatti et al. (1981), Moysés e
ros, a desnutrição, os desvios no com- Lima (1982) apontam que crianças re-
portamento, entre outras questões, prio- almente portadoras de distúrbios físicos
rizando, quase sempre, o enfoque bioló- ou mentais são encontradas em número
gico e médico das questões, em detri- reduzido nas escolas e no contigente de
mento de outros enfoques. repetentes, muito aquém dos índices dos
efetivamente fracassados.
A abordagem, predominantemente, ci-
entífica das questões das práticas peda- “A inadequação da escola decorre
gógicas da saúde é conseqüência, de um muito mais de sua má qualidade,
lado, de sua estreita ligação com a área da suposição de que os alunos po-
das Ciências Físicas e Biológicas, da bres não têm habilidades que na
qual herdou a utilização do método ci- realidade muitas vezes possuem,
da expectativa de que a clientela
entífico; e de outro (talvez o mais de-
não aprenda ou que o faça em
terminante), do processo de medicaliza- condições em vários sentidos ad-
ção da sociedade, que impõe a supre- versas à aprendizagem, tudo isso a
macia do discurso médico-biológico nos partir da desvalorização social dos
discursos das disciplinas que organizam usuários mais empobrecidos da
o conhecimento em saúde. escola pública elementar”. (Patto,
1993, p.340)
Em suma, na década de 70, marcada
pelo movimento do tecnicismo – que
destina à educação escolar a transmis- A relação que se estabeleceu entre saú-
são cultural e comportamental, consti- de e educação, em última análise, for-
tuindo-se numa prática social de grande taleceu o discurso da medicalização na
poder controlador e manipulador do escola, tanto quando se referiu ao mo-
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vimento do escolanovismo (que enfati- tra, pois ambas têm como base de suas
zou mudanças nos métodos educacio- propostas soluções individuais para a
nais para promover melhoria nas condi- resolução de problemas que se originam
ções sociais), como nas propostas da de questões sociais. Tem sido comum a
teoria da privação cultural (que enfati- prática de encaminhar crianças às uni-
zou a educação compensatória para su- dades de saúde por apresentarem pro-
prir a falta de competências das crianças blemas no rendimento escolar e serem
oriundas das camadas pobres). Tais ‘diagnosticadas’ pela escola como pos-
movimentos educacionais colocaram síveis causas: desnutrição, distúrbios
em evidência questões de ordem psico- neurológicos ou de aprendizagem; as-
lógica, técnica ou biológica para soluci- sim como, omitir nos índices de fracas-
onar problemas que são determinados so escolar e nos índices de desnutrição
socialmente. E em fins da década de 90, infantil as questões sobre a classe soci-
os reflexos desses episódios significati- al, a situação econômica e as condições
vos da história da educação brasileira concretas de vida como principais de-
são visíveis nos discursos, nas propos- terminantes desses índices.
tas e nas práticas vigentes.
Propostas para diminuir esses índices,
A discussão da prática pedagógica da como a merenda, o reaproveitamento de
saúde no espaço escolar aponta possí- alimentos, a melhoria do conhecimento
veis desdobramentos, como a relação sobre os alimentos para o caso da des-
com o fracasso escolar, a emergência da nutrição, ou ainda, no caso do fracasso
psicopedagogia para solucionar proble- escolar, a criação de classes especiais e
mas ou distúrbios de aprendizagem, a de aceleração, a aprovação automática,
relação com a criação das classes espe- as novas propostas curriculares, não
ciais, ou a relação da aprendizagem atingem as principais causas e, portanto,
com os problemas de saúde das crianças não conseguem soluções definitivas.
pobres (desnutrição, doenças parasitári-
as). Muitos dos trabalhos desenvolvidos Essas características das práticas escola-
nas últimas décadas priorizam, em ge- res não constituem privilégio do ensino
ral, alguns desses aspectos e, desse da saúde, mas têm sido observadas em
modo, estabelecem de uma forma ou de estudos que focalizam outras áreas cur-
outra a relação saúde-educação. riculares e parecem estarem associadas
a um modo de intervenção pedagógica,
Entretanto, essa relação, originada des- que entre outras facetas, se apresenta
de a criação da Puericultura no final do respaldada numa construção de conhe-
século passado na Europa e, imediata- cimento que se caracteriza por ser as-
mente, trazida para o Brasil, parece não séptica, distanciada da experiência, dos
estar trazendo benefícios mútuos. Na interesses e das aptidões e capacidades
verdade, as críticas direcionadas a essas desenvolvidas pelas crianças no seu
áreas revelam que, apesar das afinidades ambiente cultural. A prática educacional
entre educação e saúde, tais como o dos docentes se realiza sob a idéia de
compartilhamento do mesmo objeto de currículo, construído nos últimos 150
estudo – o ser humano – e em tese a anos para escolas que atendam as mas-
difusão do mesmo propósito – propor- sas populares, “historicamente derivado
cionar pleno desenvolvimento e bem- das práticas educacionais de homens
estar, a cura das doenças pela saúde e a europeus de classe alta” (Connell, 1995,
eliminação da ignorância pela educação p.28). É um processo de aprendizagem
– uma tem justificado o fracasso da ou- escolar que impõe um saber, um modo
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de ser, de se comportar e de falar que gotsky e seus colaboradores, como Lu-


privilegia a utilização de mediações ria e Leontiev. Esta abordagem, segun-
verbais, codificadas em contextos cultu- do Wertsch (1993:p.24), revela que:
rais estranhos à compreensão de crian-
ças que vivenciam códigos e perspecti- “em contraste com outras abor-
vas de outros contextos. dagens psicológicas que em ge-
ral buscam pelos universais do
Dessa forma, as práticas pedagógicas da funcionamento mental, e por-
saúde na escola, ao terem se constituído tanto, a-histórico, enfatiza o que
é especificamente sociocultural,
em mais um componente curricular a
em vista de acreditar que as tra-
ser incorporado aos conteúdos progra- dições culturais históricas e as
máticos do Ensino Fundamental, seguiu práticas sociais regulam, expres-
acompanhando a perspectiva educacio- sam, transformam e permutam o
nal hegemônica das escolas públicas, psiquismo humano”.
tendo, inclusive, se tornado mais pro-
blemática que outras disciplinas do nú-
cleo obrigatório, pois não conseguiu A prática pedagógica é entendida como
realizar minimamente as sugestões uma prática social que oportuniza, atra-
apresentadas no Parecer n.º 2264/74 vés da ação mediada entre professor e
(Brasil/CFE,1974) e, por outro lado, alunos, relacionar os processos sociais
ficou atrelada ao ensino de Ciências, coletivos e os processos psicológicos
perdendo assim, suas peculiaridades. individuais.

Essa problemática trajetória da prática No espaço pedagógico da aula, o pro-


do ensino da saúde pode ser visualizada cesso ensino-aprendizagem é entendido
em conjunto com outras possibilidades, como o centro gerador da construção do
a partir dos desdobramentos dos discur- conhecimento da criança na escola. Fo-
sos que cercam, no presente momento, a caliza-se o aluno e o professor, suas
reforma educacional em vários países. interações, seus saberes e não saberes,
Algumas propostas pedagógicas que suas expectativas e aspirações sobre o
estão circulando em alguns municípios aprendizado escolar presentes nas medi-
brasileiros trazem à discussão a renova- ações verbais de uma determinada prá-
ção da escola em especial no sentido de tica curricular.
transformações relacionadas ao campo
político, administrativo e pedagógico da O processo de desenvolvimento e
estrutura educacional. aprendizagem escolar, na perspectiva
histórico-cultural apresentada por Vi-
gotsky (1989a), propõe para o educador
uma função bastante diferente daquela
que vem predominando nas relações
escolares atuais, sendo sua principal
OS PRESSUPOSTOS DA PSICOLOGIA atitude promover as capacidades que o
HISTÓRICO-CULTURAL PARA AS educando poderá desenvolver. A educa-
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS EM SAÚDE ção escolar é apresentada como o mo-
mento privilegiado para se oferecer algo
Uma das perspectivas teóricas que têm completamente novo ao curso do des-
fundamentado algumas dessas propostas envolvimento das competências e habi-
pedagógicas é a abordagem da psicolo- lidades intelectuais da criança desen-
gia histórico-cultural, baseada em Vi- volvidas até aquele momento. Para en-
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tender melhor essa função da escola, interações concretas e factuais da crian-


Vigotsky (1989a) apresentou o conceito ça com os objetos e situações. Nesse
da Zona de Desenvolvimento Proximal estágio, Vigotsky distingue vários sub-
(ZDP), que ele define como: estágios denominados por família, cole-
ções, em cadeia, difuso e pseudo-
“A distância entre o nível de des- conceitos. Esse segundo estágio fornece
envolvimento real, que se costuma o fundamento real para o desenvolvi-
determinar através da solução in- mento lingüístico, sendo que o “signifi-
dependente de problemas, e o nível cado das palavras se transforma durante o
de desenvolvimento potencial, de- processo do desenvolvimento da lingua-
terminado através da solução de gem” (p.58). O sub-estágio dos pseudo-
problemas sob a orientação de um conceitos é caracterizado pela transição
adulto ou em colaboração com
entre o estágio dos complexos para o
companheiros mais capazes”.
(p.97) pensamento por conceitos. No terceiro
estágio, denominado “conceitos verda-
Deve haver uma adequação do ensino deiros” ou “pensamento conceitual”, há
formal ao universo de conhecimentos da domínio da abstração e o pensamento
criança, que passa a ser fundamental, alcança níveis de conscientização até
dentro desse processo da aprendizagem, então ausentes. Esse momento é carac-
para o desenvolvimento dos conceitos, terístico do início da adolescência e
denominados por Vigotsky (1989b) persegue o desenvolvimento vindouro.
científicos ou verdadeiros (termos que
não utilizarei por razões expostas pos- Segundo a psicologia histórico-cultural,
teriormente), que preferi denominar o desenvolvimento do conceito é acom-
conceitos sistematizados. Esses con- panhado, intrinsecamente, pelo desen-
ceitos sistematizados induzem à consci- volvimento que ocorre no significado
entização dos próprios processos men- das palavras. Esse desenvolvimento
tais, ou seja, a consciência reflexiva pressupõe a participação em estágios
promove e aumenta a compreensão dos mais avançados de muitas “funções in-
conceitos espontâneos ou cotidianos, telectuais como: a atenção deliberada, a
memória lógica, a abstração, a capacidade
levando a uma reestruturação psicológi-
para comparar e diferenciar” (Vigotsky,
ca nos modos de compreensão do co-
l989b,p.72).
nhecimento.
As elaborações conceituais, promovidas
Vigotsky (l989b) discute sobre a forma-
no processo de interação ensino-
ção de conceitos, referindo-se à capaci-
aprendizagem, segundo essa perspectiva
dade das crianças para generalizar as
teórica, são consideradas formas de
propriedades dos objetos em conceitos.
apropriação e de produção da cultura.
Ele define três estágios principais para a
Ao conhecimento escolar pode ser atri-
formação de conceitos da infância à
buído um alto grau de originalidade em
adolescência. O primeiro estágio é ca-
relação aos saberes vivenciados nas
racterizado pelo agrupamento de obje-
experiências cotidianas, não só por
tos, de acordo com critérios essencial-
constituir-se como um saber sistemati-
mente subjetivos, ou seja, quando a cri-
zado, mas porque liberta o indivíduo do
ança confunde elos subjetivos com elos
pensamento único sobre o seu mundo
reais, também denominado de “sincre-
imediato, situacional e lança-o para as
tismo”. O estágio por “complexo” é
coisas abstratas, categorial, ou seja,
caracterizado por se basear em relações
mais coerentes e objetivas, a partir de
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parte dos conceitos predominantemente essa criança, olhar o que ela já sabe, o
empíricos para o pensamento teórico. que ela tem, o que ela pode, o que ela
O processo de aquisição do gosta. Buscar nas expressões que ela já
conceito, segundo Vigotsky (1989b), é adquiriu, o que subsidia e permite estas
o início do processo do desenvolvi- expressões. É o professor se adequando
mento. Na escola, esse processo se dá, às expressões, ao valores, aos gostos da
principalmente, através do uso da pala- criança.
vra. Uma criança, ao se apropriar de
uma palavra, nomeia, discretiza, organi- De acordo com essa perspectiva teórica,
za, relaciona, analisa o significado. Nes- a construção de conhecimentos, como
se sentido, a palavra tem função de nos afirma Freire (1987), se daria atra-
conceito e a noção de conceito deixa de vés de um processo pedagógico criati-
ser encarada com uma definição imobi- vo, que relaciona palavra e mundo, pos-
lizada e passa a ser produto de proces- sibilitando que repensemos as práticas
sos de mudanças, possuindo certa esta- dominantes no ensino em geral, e em
bilidade, mas tornando-se flexível para especial, o ensino da saúde, que tem se
novas significações. fundamentado em uma construção do
conhecimento fortemente arraigada em
A aquisição de conhecimentos pela cri- um saber que depende, preponderante-
ança depende de uma intensa atividade mente, dos conteúdos e do método ci-
mental, que ao buscar sentido para a entífico para dar conta de sua aborda-
internalização de novos conceitos, inter- gem. Ou seja, viabiliza que pensemos
relaciona-os aos significados dos co- numa prática pedagógica em saúde que,
nhecimentos já existentes. O significado a partir de suas peculiaridades, contri-
é um elemento indissociável da palavra bua para o processo de construção e
e se revela como um ato de pensamento, apropriação do conhecimento sistemati-
uma generalização. O significado ex- zado pela criança.
pressa duas funções básicas da lingua-
gem: a de comunicação social, pois a
palavra sem significado é um som va- CONCLUSÃO
zio; e a de pensamento generalizante,
pois cada palavra significada expressa As discussões acerca da construção do
uma generalização, ou melhor, um con- conhecimento em saúde evidencia que
ceito. Assim, a palavra mediatiza o pen- esse processo tem sido marcado histori-
samento verbal. Nós pensamos através camente por um conflito inerente à sua
das palavras, dos significados ou dos própria trajetória; originado inicial-
conceitos atribuídos às palavras que se mente para inserir as classes pobres no
encontram relacionados aos modos de projeto político econômico da burgue-
vida experienciados no processo de in- sia, tinha um componente moral e esté-
teração social, isto é, o significado ou tico predominante, mas que só foi sus-
conceito não é apenas unidade do pen- tentado pelo discurso científico que se
samento e da fala, mas segundo Vi- sucedeu.
gotsky (1989b), “unidade de generaliza-
ção e comunicação”. Na composição curricular dos temas
endereçados às práticas do ensino da
Desse modo, a intervenção pedagógica saúde, nota-se uma presença significati-
atua a partir do que já está consolidado va das disciplinas das áreas científicas
no processo de desenvolvimento da organizadas na modernidade sob a in-
criança, portanto, é necessário conhecer fluência de padrões morais e compor-
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tamentais do grupo dominante (no caso,


a burguesia). A heterogeneidade das áreas disciplina-
res que compõem os conteúdos dos
Desse modo, uma outra perspectiva para programas curriculares das práticas pe-
a construção do conhecimento em saú- dagógicas da saúde, bem como a flexi-
de, segundo os propósitos teóricos pre- bilidade permitida na organização des-
tendidos nesse estudo, há que conside- ses conteúdos evidenciam sua caracte-
rar outros conceitos na definição de rística multidisciplinar, que por sua vez
aspectos que circunscrevem essa área possibilita um transitar pelos diferentes
temática, ou seja, deve-se levar em enfoques. Como foi discutido anterior-
conta que: mente com nossos interlocutores, o en-
a) o conhecimento científi- foque biológico, o aspecto informacio-
co deve ser entendido como um nal, o conhecimento sistematizado é que
sistema socialmente construído de têm predominado em detrimento de
compreensões, suposições e pro- suas múltiplas possibilidades. Mais do
cedimentos compartilhados por que a composição curricular, é necessá-
uma comunidade; rio repensar um modo de articular esses
b) o saber escolar, para o saberes sobre saúde - que são construí-
processo de conceitualização no dos através da interrelação entre dife-
contexto pedagógico, deve ser rentes abordagens - com os saberes que
concebido como um processo que a criança já possui.
requer uma elaboração que envol-
va a transformação dos modos de Essa articulação pressupõe uma finali-
conceituar do aluno no sentido do dade diferente daquela que tem predo-
conhecimento sistematizado atra- minado na discussão da temática no
vés das relações interpessoais, das ambiente da escola, assim como destina
trocas dialógicas sobre objetos ou ao professor um outro papel nas rela-
fenômenos em que os saberes es- ções de ensino-aprendizagem, cujos
colares estão intimamente inter- reflexos são resultado de um novo olhar
relacionado aos saberes do cotidi- para a criança na escola.
ano;
c) o contexto escolar deve REFERÊNCIAS
ser entendido como o espaço em
que, além dos conhecimentos ALVARENGA, A T. Reflexões acerca
sistematizados que configuram o da abordagem sociológica do cresci-
saber escolar, circulam saberes mento e do desenvolvimento da criança
em diferentes níveis de elabora- no campo da saúde pública: aspectos
ção, inclusive em relação às teóricos-metodológicos In: CDH - Re-
práticas discursivas do contexto vista Brasileira de Crescimento e
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Maria de Lourdes Spazziani


Professora Doutora do Programa de
Mestrado em Educação
Centro Universitário Moura Lacerda /
Ribeirão Preto/ SP
e-mail: spazzian@ig.com.br
telefone: (0xx16 – 624-1679)

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