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Além do Atlântico Negro, suas artes visuais 288

Edição Especial Número dois março de 2023

Restituição dos bens culturais ao Benin:


quais os desafios para a produção
de conhecimento e a criação plástica?

Romuald Tchibozo

Introdução

Há alguns anos, investiguei a relação entre patrimônio e criação contemporânea na


África (Tchibozo, 2018a). O problema central desta pesquisa era compreender as fon-
tes a partir das quais os artistas iriam extrair suas inspirações para produzir, na ausência
de seu patrimônio espalhado pelo mundo, e se, apesar de tudo, se pudesse ler neles
sintomas de resiliência. Desde então, a situação mudou significativamente. A partir
de reivindicações de bens culturais, estamos agora concretamente no processo de
restituição às autoridades beninenses de certas obras, reconhecidamente ainda sim-
bólicas. Essa transformação das relações internacionais, tão abrupta quanto ainda
indecifrável em alguns de seus aspectos, está causando muita excitação à medida
que algumas pessoas descobrem os talentos de seus antepassados. A primeira grande
exposição, Arte do Benin de ontem até hoje, da restituição à revelação, organizada
pelo governo do Benin com o objetivo de integrar definitivamente essas obras ao pa-
trimônio nacional e evitar posteriores excessos comunitários, é o campo de expres-
são dessas emoções. Ela também ajuda a reavivar memórias de um passado colonial
pouco elogioso, e contribui muito para a formalização de um destino comum, mas
devemos compreender que essa não será uma tarefa fácil.

Tendo sido preservado há muito tempo em um museu etnográfico, o lugar por ex-
celência para a apropriação de objetos do mundo inteiro de acordo com o prin-
cípio científico de fazer uma enciclopédia mundial das culturas, como essas obras
poderiam ser reintegradas sem danos em um espaço nacional? Diante dessa nova
situação, estaremos agora em condições de reverter o questionamento de alguns
anos atrás? Podemos postular que a presença permanente dessas obras diante de
seus olhos permitirá aos pesquisadores, mas também aos artistas, abrir novos cami-
nhos para a pesquisa e a criação? Em outras palavras, como reagimos à restituição
para produzir novos conhecimentos?

Neste artigo, vou primeiro lembrar o contexto da restituição. Em segundo lugar, vou
explorar um estudo de caso e, por último, vou mostrar as etapas da reapropriação.

I- Da angústia à alegria

A euforia da restituição das 26 obras do antigo reino de Daomé, que estavam


anteriormente nas coleções do Museu do Quai Branly-Jacques Chirac, fez muitas
pessoas esquecerem o contexto difícil de sua saída desse território. Seria uma que-
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bra da história não lembrar disso, mesmo que às vezes dê a impressão de ter sido
ouvida ou lida muitas vezes. É por isso que é sempre útil sublinhá-la sempre que pos-
sível, pois estamos lidando aqui com uma situação que é, no mínimo, complexa. Os
objetos devolvidos são testemunhas de uma dupla violência, tanto política quanto
psicológica, característica da extensão do que aconteceu desde o final do século
XIX até agora.

Em 1892, a coluna francesa, liderada pelo Coronel e depois General Dodds, en-
trou em Abomey após sangrentos e massivamente mortais combates. As tropas em
Abomey não se renderam imediatamente, a história é conhecida e eu não vou me
deter sobre ela. Diz-se que o palácio dos reis estava em chamas e foi para salvar
o que ainda podia ser salvo que houve o saque que tirou as peças, os objetos da
restituição.1 Em 1894, na pacificação e rendição de Dada Gbehanzin, Abomey já
era um território sob o domínio francês e, por extensão, tudo nele contido. O rei foi
então exilado de sua terra natal e terminou sua vida em Blida, na Argélia, depois
de passar alguns anos na Martinica. Abomey e o resto do território do antigo reino
de Daomé são o cenário de desolação, gemidos, ruínas e, sobretudo, da perda de
referências, como alguns músicos da região ainda hoje cantam e os atores o ence-
nam. Internacionalmente, o argumento aos olhos das populações europeias para
saquear esse reino é a prática da antropofagia. De fato, entre 1890 e 1895, Daomé
foi saqueada na imprensa europeia e estigmatizada como um estado despótico
com uma história de sacrifícios humanos. Sua imagem, completamente desfocada
na imprensa francesa e europeia, justificava a guerra apresentada como a luta da
civilização contra a barbárie, para pôr um fim a um reino de outro tempo. Véroni-
que Campion-Vincent (1967, 27) tentou elucidar essa situação. Ela escreve: « Defor-
mada e muito pobre em elementos, a imagem de Daomé na imprensa durante a
conquista colonial é uma verdadeira construção mítica que se desenvolve em tor-
no do conceito de 'selvageria' ». Ela demonstra como essa imagem foi construída
do zero para acompanhar a conquista colonial de novos territórios em um contex-
to de rivalidade entre as antigas potências europeias. Hoje, a imagem persiste na
memória coletiva desses povos europeus. De fato, em 2008, quando fui membro de
uma delegação do Ministério da Cultura do Benin para participar da feira de turis-
mo de Madri, testemunhei uma anedota que revela a complexidade de nossas re-
lações. Em nosso estande, uma senhora espanhola, enquanto caminhava, tomou
algumas informações sobre o Benin e, para ter certeza de que estávamos falando
sobre o mesmo território, perguntou se era de fato o antigo reino de Daomé, onde
se praticava a antropofagia. Ela demonstra esperar que isso tenha mudado desde
então. Os estereótipos são, decididamente, difíceis de serem quebrados. Como
podemos conseguir apagar essa imagem sinistra que continua a circular?

Apesar da independência do país em 1960, o contexto angustiante no qual os ob-


jetos deixaram Abomey para Paris não foi realmente digerido. Foram feitas inúme-
ras tentativas para negociar o retorno das obras. Ao mesmo tempo, as autoridades
estavam trabalhando para criar uma rede de museus públicos para se encarregar
do patrimônio nacional. Esse foi o caso dos museus de Ouidah em 1964, Porto-Novo
em 1965 e Parakou em 1973. Eles também desenvolveram instrumentos legislativos
1 No estado atual de nosso conhecimento e pesquisa, ainda é difícil saber quem realmente ateou fogo ao palá-
cio e por quais razões. Se o orgulho dos governantes de Daomé, que já foi afirmado muitas vezes, pode levá-los
a não deixar a memória de seus antepassados nas mãos do inimigo, devemos expressar algumas reservas sobre
a narrativa deste episódio. A quantidade de peças tiradas durante o incêndio milita para esta posição.
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para proteger o que restava ou o que seria coletado e, em 1968, foi adotada a
Portaria n°35/PR/MENJS com vistas a proteger os bens culturais. Essa portaria tinha
limitações que não foram superadas até 2007. De fato, foi votada a lei n° 2007-20,
de 23 de agosto de 2007, sobre a proteção do patrimônio cultural e do patrimônio
natural de natureza cultural na República do Benin. Dessa vez, a lei propõe espe-
cificamente uma estrutura encarregada da proteção do patrimônio e prescreve
o estabelecimento de um inventário nacional do patrimônio cultural e, sobretudo,
um plano de salvaguarda deste. Também insiste na proteção dos bens em caso de
conflito armado e estabelece as condições para a exportação de bens classifica-
dos. Essas disposições são acompanhadas de sanções penais. Essa lei também tem
suas limitações devido à ausência de decretos regulamentares.

Em 1990, o país organiza as condições gerais da cultura e do desporto, de onde


uma das resoluções foi a adoção de uma política cultural. Em seu ponto três (3), in-
titulado Inventário, conservação e desenvolvimento do patrimônio cultural, afirma
o seguinte princípio: “A política cultural do Benin dará ênfase especial à salvaguar-
da e restauração do patrimônio ameaçado [...] É por isso que o Estado beninense
[...] negociará os acordos necessários para a repatriação de nosso patrimônio cul-
tural detido pelas antigas potências coloniais”. Esse texto inspirou a Lei 91-006 de
25 de fevereiro de 1991, sobre a Carta Cultural na República de Benin, em seu ca-
pítulo 3, artigo 13 (parágrafo 3º). Ela dispõe que “o Estado também deve trabalhar
para a restituição de bens culturais expatriados”. Benin está começando a sair do
torpor e do luto em que a ausência das obras o mergulhou, para iniciar o processo
de reivindicação de seu retorno. Em 2016, o Presidente da República, Patrice Ta-
lon, fez um primeiro pedido por escrito à França, para reivindicar a devolução dos
bens culturais do Benin. O pedido foi rejeitado pelo governo de François Hollande,
tendo em vista as leis francesas e europeias, para as quais essas obras gozam da
inalienabilidade característica de todo o patrimônio do país.

Entretanto, na opinião de Amadou-Mahtar M'Bow, ex-diretor geral da Unesco entre


1974 e 1987, é legítimo que os países desprovidos de uma parte importante de sua
história a recuperem. Em 7 de junho de 1978, ele lançou um apelo solene às antigas
potências colonizadoras nos seguintes termos:

Os povos que foram vítimas desse saque, talvez secular, não só foram privados
de obras-primas insubstituíveis, foram despojados de uma memória que sem
dúvida os teria ajudado a se conhecerem melhor, e certamente a se fazerem
entender melhor pelos outros. [...] Esses bens culturais, que fazem parte de seu
ser, os homens e mulheres desses países têm o direito de recuperá-los [...] Esses
homens e mulheres desfavorecidos pedem, portanto, a devolução de pelo me-
nos os tesouros artísticos mais representativos de sua cultura, aqueles aos quais
atribuem maior importância, aqueles cuja ausência é psicologicamente mais
intolerável para eles [...] Essa reivindicação é legítima... (Mahtar M'Bow 1978)

Em abril de 2017, Emmanuel Macron foi eleito Presidente da República Francesa.


Em 28 de novembro do mesmo ano, ele fez um discurso histórico para cerca de
800 estudantes em Ouagadougou, Burkina Faso. Esse discurso, por si só, é uma mu-
dança de paradigma nas relações internacionais. Paul Ricoeur ainda temia esse
evento quando, ao final de uma interessante manifestação, escreveu: “Ninguém
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pode dizer o que acontecerá com nossa civilização quando ela tiver realmente
encontrado outras civilizações, a não ser através do choque da conquista e da
dominação” (Ricoeur 2001). Aqui estamos nesta reunião, a não ser pelo choque da
força e, acredito, de minha parte, em virtude desse ato do Presidente E. Macron,
que esse ceticismo irá gradualmente desaparecer e dar lugar à compreensão in-
tercultural que os trabalhos científicos vão procurar estabelecer.

Entretanto, surgiu uma controvérsia sobre a realidade ou não de suas intenções.


Colóquios, artigos, entrevistas à imprensa e livros sobre a questão da restituição
têm seguido.2 Controvérsias de todo tipo, inclusive as relativas aos destinatários fi-
nais das obras a serem devolvidas, estão começando a crescer. Entretanto, nem
todos que falam sobre isso parecem estar em sintonia com a temporalidade dos
eventos. É mais do que importante lembrar, de uma vez por todas, que ao mesmo
tempo em que esses saques estavam sendo organizados, a guerra de conquista do
território que se tornou a República do Benin estava ocorrendo. Não havia mais um
Estado ligado ao rei, que havia sido expulso e exilado. O antigo reino de Daomé
já era história. Seu último pseudorrei, Agoli-Agbo, é agora apenas mais um chefe,
nomeado pela administração colonial no território recém-conquistado.

A situação em 2017 é, portanto, tensa. Poucas pessoas esperavam uma inversão


da história em suas vidas, a começar pelo chefe de estado do Benin,3 que, no en-
tanto, insistiu em reformular seu pedido. Em resposta, e para diminuir a controvérsia,
o Presidente francês encomendou um relatório a dois acadêmicos, Felwine Sarr
e Bénédicte Savoy. As propostas resultantes desse relatório o levaram a tomar a
memorável decisão de devolver 26 obras à República do Benin. Em 10 de novem-
bro de 2021, elas chegaram a Cotonou em uma festa popular que ficará gravada
na memória de todos. Após sua partida, acompanhada de batalhas assassinas e
violência psicológica, algumas das obras foram devolvidas com grande alegria,
acolhidas como vestígios dos reis e do imaginário que caracterizaram seus respec-
tivos reinados. Deve-se ficar feliz ou chateado em tais circunstâncias? Essa é uma
questão ontológica importante, mas não é a principal preocupação deste docu-
mento. O importante é perguntar o que aconteceu com elas nesse novo contexto.
Elas não voltaram incólumes de sua estadia no país de adoção, e é esse aspecto
que me ocupará nas linhas a seguir.

II- Diagnóstico do contexto científico da restituição

O contexto da restituição é caracterizado por fatos distantes e recentes. Não será


útil rever todos esses fatos, mas alguns deles ajudarão minha reflexão. Escolhi três
muito significativos, dada a durabilidade do efeito induzido, mas também seu sim-
bolismo para as relações entre as duas partes.

O primeiro está relativamente bem documentado. Desde a chegada das obras


nos museus públicos franceses, elas passaram por diferentes cenários, típicos da
evolução do conhecimento sobre os territórios de onde provêm, mas também, e

2 Para isso, Dr. Kwame Opoku, - Gana Moderna, https://www.modernghana.com/author/KwameOpoku.


3 Isso foi o que ele mesmo disse durante seu discurso na recepção das obras no Palácio da República, em 10 de
novembro de 2021.
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sobretudo, dependentes das conjunturas do cenário artístico em Paris e no mundo


(Beaujean, 2007; Murphy, 2009; Tchibozo, 2018b). Do Museu Trocadero, inaugurado
em 1876, ao Museu do Quai Branly-Jacques Chirac, aberto ao público em 2006,
passando pelo Museu do Homem, inaugurado em 1936, essas obras passaram por
diversas mudanças museográficas, às vezes na companhia da mais famosa, a es-
cultura do deus Gu. Desde 1894, depois de serem apresentadas como troféus de
guerra em uma lógica de acumulação, no final dos anos 1920 elas haviam retor-
nado à lógica do objeto de arte único, sendo o equilíbrio de poder muito mais
sutil sob o regime estético. Em 1931, elas foram novamente reunidas para satisfazer
a grandeza imperial da República durante a exposição etnográfica das colônias
francesas. De objetos que ilustram a influência do poder real em Abomey, rodea-
dos de grande respeito porque eram considerados como arquivos dos diferentes
reinados e, portanto, limítrofes do sagrado, tornaram-se a expressão da domina-
ção tecnológica, a imposição de uma visão particular do mundo e a influência
imperialista da França. Sua exibição foi organizada em momentos diferentes e di-
tada por circunstâncias diversas, de acordo com a necessidade de lembrar essa
superioridade política e psicológica.

O segundo elemento é, por um lado, a intensidade do debate científico gera-


do pela presença dessas obras em si mesmas na Europa e, por outro, a extensão
do impacto que elas tiveram tanto sobre a sociedade quanto sobre as práticas
artísticas. Quando Carl Einstein publicou seu livro Negerplastik em 1915, o mundo
científico da época estava, para dizer de forma suave, em tumulto. O livro gerou
o mais formidável confronto epistemológico conhecido até hoje entre etnólogos,
antropólogos e filósofos ou esteticistas. A determinação de afirmar que o “outro”,
o não-ocidental em particular, é diferente de “nós” não vacila há décadas. Os
objetos de outros lugares devem ser considerados como peças etnológicas ou
devem ser reconhecidos exclusivamente como formas de arte? Em 1930, quando
a escultura do deus Gu foi exibida na galeria do teatro Pigalle em Paris, acredi-
tava-se, como lembrou Maureen Murphy (2009), que estávamos testemunhando
uma “convergência epistemológica entre a história da arte e a antropologia.”4
Essa controvérsia ainda não terminou. Em 2015 Roberto Conduru abordou o as-
sunto em um livro coeditado com Elena O'Neill para que o Sul Global pudesse
finalmente retomar este debate (Conduru, O'Neill 2015). Finalmente, a dificulda-
de, para alguns, de compartimentar as artes não ocidentais, particularmente da
África, em uma experiência antropológica, e a recusa, para outros, de ler apenas
formas artísticas nelas, deu origem a tentativas de teorização de todos os tipos,
inclusive etnoestéticas. Ela é realmente capaz de prestar contas da experiência
artística na África, por exemplo? O que fazemos desse debate no novo contexto
em que as obras chegam à sua terra de criação?

Finalmente, o terceiro elemento deste diagnóstico é a marcha forçada da produção


africana em direção aos cânones da arte europeia. Durante a colonização, em mea-
dos dos anos 50, uma estratégia de reorientação das regras de produção artística foi
desenvolvida na maioria dos países africanos através, para alguns, da transmissão das
regras ultrapassadas das artes plásticas europeias, e para outros, na maioria das vezes
artistas jovens, do condicionamento para alcançar o que corresponderia ao mercado

4 Murphy apontou que uma das evidências ilustrativas dessa evolução epistemológica é a Revue Documents,
dedicada à arqueologia, artes plásticas, etnografia e variedades, que surgiu entre 1929 e 1930.
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de arte ocidental (Tchibozo, 2018a & 2019b). Estão sendo organizados workshops em
todos os lugares, notadamente na Nigéria, nos dois Congos, Senegal, Uganda, Etiópia
etc., e estão nascendo movimentos. Os movimentos estão surgindo. Poderíamos men-
cionar a Escola Oshogbo na Nigéria, a Escola Poto-poto no Congo Brazzaville, o Han-
gar na República Democrática do Congo etc. Entretanto, a partir da década de 1910,
os cânones que regem as práticas artísticas na França e, por extensão, na Europa, co-
meçaram a ser colocados em perspectiva. Esses fatos geraram dois fenômenos com
consequências inestimáveis para a criação artística no continente. Toda a produção
dessa geração de artistas foi designada como “Art Naïf”, um sinônimo de “déjà vu”,
ironia sobre essa produção. Joëlle Busca (2000) faz uma boa descrição, insistindo, por
um lado, na falta de domínio das regras adotadas por esses artistas e, por outro, em
sua obsolescência na Europa. E da “arte ingênua” chegamos à “arte para turistas ou
arte do aeroporto”, qualificações retiradas da literatura ocidental, para designar uma
produção que já havia começado sob o regime colonial. Essa é uma nova virada que
se deu no momento, já que levou os artistas a outras margens que não aquelas que
deveriam continuar a dar vida. Eles simplesmente se desviaram - tenho o cuidado de
não generalizar - do caminho real traçado por seus antecessores e abandonaram
assim, para muitos deles, suas raízes artísticas. Como podemos, com a nova situação,
conseguir nos reconectar com essas raízes?

III- As questões científicas

A magnitude da tarefa de encontrar novos rumos para a pesquisa e criação, agora


que as obras estão bem e verdadeiramente em solo beninense, é imensa. O desafio
desse empreendimento exige a mobilização de todos os atores, incluindo funcionários,
cujo envolvimento concreto será o barômetro de seu compromisso. O financiamento
de programas de pesquisa deve nos ajudar seriamente a traçar o caminho a seguir.

A primeira reflexão deve ser sobre os discursos já construídos sobre essas obras. O
que vai acontecer? Será que os mesmos discursos continuarão a alimentar a exibi-
ção dessas obras nesse novo contexto? O que acontecerá com seu status se não
desenvolvermos uma visão diferente da que existiu até agora? Há uma atmosfera
de fatalismo em torno das reflexões a serem construídas, mas isso certamente se
deve ao caos gerado pelas emoções. É também o caso de muitas pessoas não es-
tarem preparadas para aceitar essa mudança que está ocorrendo diante de nos-
sos olhos. Apesar delas, que arriscam resistir - já podemos sentir no ar - sem realmen-
te saber por quê. Haverá, portanto, uma espécie de exercício pedagógico a ser
realizado antes de se engajar nos novos empreendimentos intelectuais e criativos.

Nas semanas que antecederam o retorno das obras, as duas partes concordaram
em organizar uma semana do Benin no Museu do Quai Branly-Jacques Chirac. Inú-
meras atividades foram planejadas para essa ocasião, incluindo um dia de reflexão,
que na realidade foi reduzido a uma manhã, porque as cerimônias oficiais na pre-
sença de dois chefes de Estado deveriam ocorrer no mesmo recinto do museu. Tive
a honra de encerrar essa manhã com um discurso sobre A migração de objetos de
arte em uma história global. Embora não falte interesse nessa configuração, esse as-
sunto merecia ser reorientado, especialmente em tais circunstâncias. Por isso, escolhi
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a palavra “viagem”, o que permite propor uma perspectiva diferente daquela pro-
porcionada pelo tema original. Isso poderia dar origem a novas perguntas?

De fato, tomado pelo valor de face, o ato de migração é um processo ativo e não
um processo passivo. É um ato voluntário e eu devo insistir nesse aspecto. Aquele
que se compromete a migrar está consciente dos riscos do choque cultural, pois
encontra o “outro”. Existe, portanto, sem dúvida, um problema de adaptação a
um novo contexto e, acima de tudo, a pessoa deve estar preparada para enfren-
tar uma possível crise de identidade.

Deve ser enfatizado que a História da Arte, como disciplina, não tem permanecido
insensível à questão da migração. As diferentes etapas de sua prática acabam
por abordar o processo criativo no contexto dos movimentos migratórios. Isso levou
à formulação do conceito de “Centro e Periferia”, já aplicado na Europa desde o
Renascimento antes de sua extensão ao resto do mundo após as conquistas colo-
niais. A produção de grande parte da humanidade foi então marginalizada, e foi
somente em meados do século XX que elas começaram a ser percebidas como
capazes de entrar no complexo processo de migração, o que também lhes atribuiu
uma dimensão universal (Ricoeur, 2001). Mieke Bal (2002) mostrou que a história da
arte é apenas uma questão da cultura de uma determinada localização geográ-
fica. Na verdade, é um conjunto de histórias que não pode representá-la por si só.
Podemos então admitir que a disciplina, com relação a essas avaliações, se abre
a outras experiências metodológicas para se tornar o que atualmente é chamado
de “Histórias da Arte Mundial”, sinônimo da pluralidade de polos culturais. A análise
dos objetos de migração ou em migração está se tornando mais complexa e torna
obsoleto qualquer discurso dominante.

Mas aqui estamos tratando de peças que, no momento de sua viagem para outros
horizontes, ainda não foram classificadas como obras de arte e reconhecidas como
tal pela disciplina que acabo de mencionar. Elas viajaram sem a opinião de nin-
guém, exceto daqueles que decidiram levá-las e acabaram em museus públicos,
galerias e, às vezes, em coleções privadas. Portanto, atribuir-lhes uma capacidade
para entrar no complexo processo de migração poderia criar alguma confusão,
que deve ser evitada a todo custo. No máximo, em alguns aspectos, posso falar de
migração por transferência. No entanto, é esse tipo de novo olhar que devemos
trazer continuamente para a discussão em parceria com nossos colegas do Norte.
Uma melhor compreensão do que esses trabalhos foram, do que são e do que se
tornarão está em jogo. Não será uma tarefa fácil de se engajar, mas será mais do
que essencial dar-lhes um novo status. Elas eram objetos temidos, num contexto
de poder real sem concessões quanto ao seu lugar em termos de celebração dos
antepassados, de representação de uma forma de pensar, mas acima de tudo de
dominação do seu ambiente. Uma vez arrancadas de seu pedestal em Abomey,
elas perderam toda a pretensão quando chegaram em Paris e se tornaram obje-
tos de exibição do domínio francês e do declínio de uma civilização vista como
retrógrada. Elas retornam desse parêntese no contexto de um Estado-nação, a Re-
pública, que por um lado é governada por normas republicanas, e por outro não
visa reunir as obras-primas do resto do mundo ao seu redor. Consequentemente,
torna-se mais delicado atribuir-lhes o mesmo alcance de alguns séculos atrás, ape-
sar da nostalgia inferida pelas emoções.
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Conclusão

O Benin, através da perseverança das autoridades políticas, está abrindo um ca-


pítulo sobre a restituição de bens culturais que, na opinião de vários atores, é ape-
nas o início do processo. As 26 obras devolvidas ao país são testemunho de que a
questão da restituição parece estar no processo de recomposição das relações
internacionais e, sobretudo, de mudança na produção de conhecimento sobre
as diferentes culturas do mundo, mas também de consolidação das indústrias cria-
tivas. Elas não permitirão, nessa fase, que todos os problemas enfrentados pela
pesquisa sejam resolvidos, mas sua presença representa desafios para o mundo
científico como um todo, tanto no Benin quanto para nossos colegas na França e
em outras partes do mundo, que trabalham nesses objetos há muito tempo.

Em 2014, fiz experiências com colegas do Museu Etnográfico de Berlim, no con-


texto dos programas de exposição do Humboldt Lab. Publiquei um artigo sobre
Objetos desaparecidos e cooperação científica.5 Embora o termo “objetos desa-
parecidos” possa incluir aqueles que são saqueados e chamados de “despojos
de guerra”, ele também inclui objetos de tráfico de todos os tipos, especialmente
no período colonial. Portanto, o que é devolvido não será suficiente para satisfa-
zer nossas expectativas, pois existe outra situação igualmente preocupante. Hoje
não posso estudar certas produções artísticas sem recorrer a coleções particula-
res no exterior. Foi o que aconteceu em 2013 quando um estudante decidiu pes-
quisar a arte escultórica Agonlin: um ensaio sobre análise estilística (Contribuição
para uma melhor compreensão da história baseada no estudo do Bocio e da
máscara de Guèlèdè). Isso simplesmente não foi possível, porque estudar uma
tendência estilística requer um corpus de pelo menos 50 anos. Bocio está comple-
tamente ausente de nosso território, vítima do tráfico, mas também da conversão
ao cristianismo dos principais atores, os escultores, embora essa tenha sido uma
zona de produção massiva.

Portanto, é mais do que urgente estabelecer programas de pesquisa, incluindo


estudantes de mestrado e doutorado em todas as áreas de difusão das obras, in-
cluindo o Benin. Também será necessário criar instrumentos de diálogo e pesquisa
entre pesquisadores daqui e de outros lugares, cujos projetos envolverão, além de
universidades, museus e instituições dedicadas à pesquisa. Isso terá a vantagem de
reduzir os laços assimétricos que têm caracterizado essas relações até agora.

5 Esta posição, que pode ser lida em alemão no website do Humboldt Lab, mostra a necessidade de estudar a
origem dos objetos coletados nos museus europeus o mais próximo possível, e assim conhecer sua história. A
exposição produzida durante esta cooperação foi intitulada Objektbiographien e integrada à grande exposi-
ção do Museu Etnográfico de Berlim em 2015
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