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53557-Texto do Artigo-210865-1-10-20230325
53557-Texto do Artigo-210865-1-10-20230325
Romuald Tchibozo
Introdução
Tendo sido preservado há muito tempo em um museu etnográfico, o lugar por ex-
celência para a apropriação de objetos do mundo inteiro de acordo com o prin-
cípio científico de fazer uma enciclopédia mundial das culturas, como essas obras
poderiam ser reintegradas sem danos em um espaço nacional? Diante dessa nova
situação, estaremos agora em condições de reverter o questionamento de alguns
anos atrás? Podemos postular que a presença permanente dessas obras diante de
seus olhos permitirá aos pesquisadores, mas também aos artistas, abrir novos cami-
nhos para a pesquisa e a criação? Em outras palavras, como reagimos à restituição
para produzir novos conhecimentos?
Neste artigo, vou primeiro lembrar o contexto da restituição. Em segundo lugar, vou
explorar um estudo de caso e, por último, vou mostrar as etapas da reapropriação.
I- Da angústia à alegria
bra da história não lembrar disso, mesmo que às vezes dê a impressão de ter sido
ouvida ou lida muitas vezes. É por isso que é sempre útil sublinhá-la sempre que pos-
sível, pois estamos lidando aqui com uma situação que é, no mínimo, complexa. Os
objetos devolvidos são testemunhas de uma dupla violência, tanto política quanto
psicológica, característica da extensão do que aconteceu desde o final do século
XIX até agora.
Em 1892, a coluna francesa, liderada pelo Coronel e depois General Dodds, en-
trou em Abomey após sangrentos e massivamente mortais combates. As tropas em
Abomey não se renderam imediatamente, a história é conhecida e eu não vou me
deter sobre ela. Diz-se que o palácio dos reis estava em chamas e foi para salvar
o que ainda podia ser salvo que houve o saque que tirou as peças, os objetos da
restituição.1 Em 1894, na pacificação e rendição de Dada Gbehanzin, Abomey já
era um território sob o domínio francês e, por extensão, tudo nele contido. O rei foi
então exilado de sua terra natal e terminou sua vida em Blida, na Argélia, depois
de passar alguns anos na Martinica. Abomey e o resto do território do antigo reino
de Daomé são o cenário de desolação, gemidos, ruínas e, sobretudo, da perda de
referências, como alguns músicos da região ainda hoje cantam e os atores o ence-
nam. Internacionalmente, o argumento aos olhos das populações europeias para
saquear esse reino é a prática da antropofagia. De fato, entre 1890 e 1895, Daomé
foi saqueada na imprensa europeia e estigmatizada como um estado despótico
com uma história de sacrifícios humanos. Sua imagem, completamente desfocada
na imprensa francesa e europeia, justificava a guerra apresentada como a luta da
civilização contra a barbárie, para pôr um fim a um reino de outro tempo. Véroni-
que Campion-Vincent (1967, 27) tentou elucidar essa situação. Ela escreve: « Defor-
mada e muito pobre em elementos, a imagem de Daomé na imprensa durante a
conquista colonial é uma verdadeira construção mítica que se desenvolve em tor-
no do conceito de 'selvageria' ». Ela demonstra como essa imagem foi construída
do zero para acompanhar a conquista colonial de novos territórios em um contex-
to de rivalidade entre as antigas potências europeias. Hoje, a imagem persiste na
memória coletiva desses povos europeus. De fato, em 2008, quando fui membro de
uma delegação do Ministério da Cultura do Benin para participar da feira de turis-
mo de Madri, testemunhei uma anedota que revela a complexidade de nossas re-
lações. Em nosso estande, uma senhora espanhola, enquanto caminhava, tomou
algumas informações sobre o Benin e, para ter certeza de que estávamos falando
sobre o mesmo território, perguntou se era de fato o antigo reino de Daomé, onde
se praticava a antropofagia. Ela demonstra esperar que isso tenha mudado desde
então. Os estereótipos são, decididamente, difíceis de serem quebrados. Como
podemos conseguir apagar essa imagem sinistra que continua a circular?
para proteger o que restava ou o que seria coletado e, em 1968, foi adotada a
Portaria n°35/PR/MENJS com vistas a proteger os bens culturais. Essa portaria tinha
limitações que não foram superadas até 2007. De fato, foi votada a lei n° 2007-20,
de 23 de agosto de 2007, sobre a proteção do patrimônio cultural e do patrimônio
natural de natureza cultural na República do Benin. Dessa vez, a lei propõe espe-
cificamente uma estrutura encarregada da proteção do patrimônio e prescreve
o estabelecimento de um inventário nacional do patrimônio cultural e, sobretudo,
um plano de salvaguarda deste. Também insiste na proteção dos bens em caso de
conflito armado e estabelece as condições para a exportação de bens classifica-
dos. Essas disposições são acompanhadas de sanções penais. Essa lei também tem
suas limitações devido à ausência de decretos regulamentares.
Os povos que foram vítimas desse saque, talvez secular, não só foram privados
de obras-primas insubstituíveis, foram despojados de uma memória que sem
dúvida os teria ajudado a se conhecerem melhor, e certamente a se fazerem
entender melhor pelos outros. [...] Esses bens culturais, que fazem parte de seu
ser, os homens e mulheres desses países têm o direito de recuperá-los [...] Esses
homens e mulheres desfavorecidos pedem, portanto, a devolução de pelo me-
nos os tesouros artísticos mais representativos de sua cultura, aqueles aos quais
atribuem maior importância, aqueles cuja ausência é psicologicamente mais
intolerável para eles [...] Essa reivindicação é legítima... (Mahtar M'Bow 1978)
pode dizer o que acontecerá com nossa civilização quando ela tiver realmente
encontrado outras civilizações, a não ser através do choque da conquista e da
dominação” (Ricoeur 2001). Aqui estamos nesta reunião, a não ser pelo choque da
força e, acredito, de minha parte, em virtude desse ato do Presidente E. Macron,
que esse ceticismo irá gradualmente desaparecer e dar lugar à compreensão in-
tercultural que os trabalhos científicos vão procurar estabelecer.
4 Murphy apontou que uma das evidências ilustrativas dessa evolução epistemológica é a Revue Documents,
dedicada à arqueologia, artes plásticas, etnografia e variedades, que surgiu entre 1929 e 1930.
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de arte ocidental (Tchibozo, 2018a & 2019b). Estão sendo organizados workshops em
todos os lugares, notadamente na Nigéria, nos dois Congos, Senegal, Uganda, Etiópia
etc., e estão nascendo movimentos. Os movimentos estão surgindo. Poderíamos men-
cionar a Escola Oshogbo na Nigéria, a Escola Poto-poto no Congo Brazzaville, o Han-
gar na República Democrática do Congo etc. Entretanto, a partir da década de 1910,
os cânones que regem as práticas artísticas na França e, por extensão, na Europa, co-
meçaram a ser colocados em perspectiva. Esses fatos geraram dois fenômenos com
consequências inestimáveis para a criação artística no continente. Toda a produção
dessa geração de artistas foi designada como “Art Naïf”, um sinônimo de “déjà vu”,
ironia sobre essa produção. Joëlle Busca (2000) faz uma boa descrição, insistindo, por
um lado, na falta de domínio das regras adotadas por esses artistas e, por outro, em
sua obsolescência na Europa. E da “arte ingênua” chegamos à “arte para turistas ou
arte do aeroporto”, qualificações retiradas da literatura ocidental, para designar uma
produção que já havia começado sob o regime colonial. Essa é uma nova virada que
se deu no momento, já que levou os artistas a outras margens que não aquelas que
deveriam continuar a dar vida. Eles simplesmente se desviaram - tenho o cuidado de
não generalizar - do caminho real traçado por seus antecessores e abandonaram
assim, para muitos deles, suas raízes artísticas. Como podemos, com a nova situação,
conseguir nos reconectar com essas raízes?
A primeira reflexão deve ser sobre os discursos já construídos sobre essas obras. O
que vai acontecer? Será que os mesmos discursos continuarão a alimentar a exibi-
ção dessas obras nesse novo contexto? O que acontecerá com seu status se não
desenvolvermos uma visão diferente da que existiu até agora? Há uma atmosfera
de fatalismo em torno das reflexões a serem construídas, mas isso certamente se
deve ao caos gerado pelas emoções. É também o caso de muitas pessoas não es-
tarem preparadas para aceitar essa mudança que está ocorrendo diante de nos-
sos olhos. Apesar delas, que arriscam resistir - já podemos sentir no ar - sem realmen-
te saber por quê. Haverá, portanto, uma espécie de exercício pedagógico a ser
realizado antes de se engajar nos novos empreendimentos intelectuais e criativos.
Nas semanas que antecederam o retorno das obras, as duas partes concordaram
em organizar uma semana do Benin no Museu do Quai Branly-Jacques Chirac. Inú-
meras atividades foram planejadas para essa ocasião, incluindo um dia de reflexão,
que na realidade foi reduzido a uma manhã, porque as cerimônias oficiais na pre-
sença de dois chefes de Estado deveriam ocorrer no mesmo recinto do museu. Tive
a honra de encerrar essa manhã com um discurso sobre A migração de objetos de
arte em uma história global. Embora não falte interesse nessa configuração, esse as-
sunto merecia ser reorientado, especialmente em tais circunstâncias. Por isso, escolhi
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a palavra “viagem”, o que permite propor uma perspectiva diferente daquela pro-
porcionada pelo tema original. Isso poderia dar origem a novas perguntas?
De fato, tomado pelo valor de face, o ato de migração é um processo ativo e não
um processo passivo. É um ato voluntário e eu devo insistir nesse aspecto. Aquele
que se compromete a migrar está consciente dos riscos do choque cultural, pois
encontra o “outro”. Existe, portanto, sem dúvida, um problema de adaptação a
um novo contexto e, acima de tudo, a pessoa deve estar preparada para enfren-
tar uma possível crise de identidade.
Deve ser enfatizado que a História da Arte, como disciplina, não tem permanecido
insensível à questão da migração. As diferentes etapas de sua prática acabam
por abordar o processo criativo no contexto dos movimentos migratórios. Isso levou
à formulação do conceito de “Centro e Periferia”, já aplicado na Europa desde o
Renascimento antes de sua extensão ao resto do mundo após as conquistas colo-
niais. A produção de grande parte da humanidade foi então marginalizada, e foi
somente em meados do século XX que elas começaram a ser percebidas como
capazes de entrar no complexo processo de migração, o que também lhes atribuiu
uma dimensão universal (Ricoeur, 2001). Mieke Bal (2002) mostrou que a história da
arte é apenas uma questão da cultura de uma determinada localização geográ-
fica. Na verdade, é um conjunto de histórias que não pode representá-la por si só.
Podemos então admitir que a disciplina, com relação a essas avaliações, se abre
a outras experiências metodológicas para se tornar o que atualmente é chamado
de “Histórias da Arte Mundial”, sinônimo da pluralidade de polos culturais. A análise
dos objetos de migração ou em migração está se tornando mais complexa e torna
obsoleto qualquer discurso dominante.
Mas aqui estamos tratando de peças que, no momento de sua viagem para outros
horizontes, ainda não foram classificadas como obras de arte e reconhecidas como
tal pela disciplina que acabo de mencionar. Elas viajaram sem a opinião de nin-
guém, exceto daqueles que decidiram levá-las e acabaram em museus públicos,
galerias e, às vezes, em coleções privadas. Portanto, atribuir-lhes uma capacidade
para entrar no complexo processo de migração poderia criar alguma confusão,
que deve ser evitada a todo custo. No máximo, em alguns aspectos, posso falar de
migração por transferência. No entanto, é esse tipo de novo olhar que devemos
trazer continuamente para a discussão em parceria com nossos colegas do Norte.
Uma melhor compreensão do que esses trabalhos foram, do que são e do que se
tornarão está em jogo. Não será uma tarefa fácil de se engajar, mas será mais do
que essencial dar-lhes um novo status. Elas eram objetos temidos, num contexto
de poder real sem concessões quanto ao seu lugar em termos de celebração dos
antepassados, de representação de uma forma de pensar, mas acima de tudo de
dominação do seu ambiente. Uma vez arrancadas de seu pedestal em Abomey,
elas perderam toda a pretensão quando chegaram em Paris e se tornaram obje-
tos de exibição do domínio francês e do declínio de uma civilização vista como
retrógrada. Elas retornam desse parêntese no contexto de um Estado-nação, a Re-
pública, que por um lado é governada por normas republicanas, e por outro não
visa reunir as obras-primas do resto do mundo ao seu redor. Consequentemente,
torna-se mais delicado atribuir-lhes o mesmo alcance de alguns séculos atrás, ape-
sar da nostalgia inferida pelas emoções.
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Conclusão
5 Esta posição, que pode ser lida em alemão no website do Humboldt Lab, mostra a necessidade de estudar a
origem dos objetos coletados nos museus europeus o mais próximo possível, e assim conhecer sua história. A
exposição produzida durante esta cooperação foi intitulada Objektbiographien e integrada à grande exposi-
ção do Museu Etnográfico de Berlim em 2015
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Referências
Bal, Mieke, Travelling Concepts in the Humanities: Rough Guide of Travelling. Toronto:
University of Toronto Press, 2002.
Conduru Roberto, O’Neill Elena, Carl Einstein e a arte da África. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2015.
Mahtar M'Bow Amadou, Pour le retour, à ceux qui l'ont créé, d'un patrimoine culturel irrem-
plaçable, Appel du Directeur général de l'UNESCO, 1978.
Murphy Maureen, “Du champ de bataille au musée : les tribulations d’une sculpture fon ”, in
Histoire de l'art et anthropologie. Paris : INHA / musée du quai Branly (“Les actes”), 2009.
http://actesbranly.revues.org/213 (acesso 25 de Fevereiro 2017).
Opoku Kwame, “Macron Promises to Return African Artefacts in French Museums: A New
Era in African-European Relationships or a Mirage?” Modern Ghana, 2017. https://www.
modernghana .com/author/KwameOpoku.
Ricœur Paul, Civilisation universelle et cultures nationales. Paris: Seuil, 2001 (1a ed. 1961).
Sarr Felwine, Savoy Bénédicte, Restituer le patrimoine africain. Paris: Philippe Rey/ Seuil, 2018.
Tchibozo Romuald, “Le Gou, une expression culturelle ou un mode de vie”, in Houenoudé
D. and Maureen Murphy (dir.), Création contemporaine et patrimoine royal au Bénin :
autour de la figure du Dieu Gou. Paris : HiCSA website 2018.