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Criaturas Da Noite 05 - Quando A Lua Surgir - Lori Handeland
Criaturas Da Noite 05 - Quando A Lua Surgir - Lori Handeland
DESEJOS A MEIA-NOITE
Depois de passar pela pior dor que um ser humano pode passar, Cassandra decide
viajar para o Haiti, onde, segundo rumores, vive um sinistro mestre do vodu que
pode ressuscitar os mortos. O ambicioso Devon Murphy aceita guiar Cassandra até
lá em segurança, porém o apelo sensual de Devon promete um outro tipo de perigo...
Enquanto Cassandra e Devon seguem para o misterioso vilarejo no coração da selva,
a atração entre eles explode num desejo inebriante, e Cassandra começa a questionar
sua resolução de nunca mais se apaixonar.
É impossível resistir ao charme de Devon, mas a descoberta do segredo do macabro
ritual pode implicar num alto preço a pagar... Atormentada por sonhos assombrosos
que se tornam mais vívidos à medida que a lua cheia se a próxima, Cassandra terá de
descobrir a chocante verdade sobre uma antiga maldição antes que esta a leve a
destruir a si mesma e a todos que ela ama...
Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou
mortas terá sido mera coincidência.
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Série Criaturas da Noite Livro 5 Quando a Lua Surgir Lori Handland
Prólogo
Na noite passada, sonhei com uma praia no Haiti. A areia morna e as ondas
brancas refletiam a luz da lua cheia. O sonho ainda me persegue, porque naquela
praia disse adeus a tudo que fui e en¬contrei a mulher que seria.
Já fui mãe e dona-de-casa na Califórnia. Dirigia uma van grande demais para
transportar uma menina de cinco anos para as aulas de bale e era casada com um
homem que pensei ser minha alma gêmea.
Então, tudo desmoronou. Passei do paraíso ao inferno e me tornei uma
sacerdotisa do vodu.
Sim, tive uma certa ajuda do programa de proteção à testemunha. Não foram
eles, porém, que sugeriram que eu passasse anos estudando a antiga religião
africana, viajasse ao Haiti e fosse iniciada, depois adotasse o nome de Sacerdotisa
Cassandra e abrisse um centro de vodu no Quarteirão Francês. Não. Todas essas
idêias foram minhas.
Escolhi o nome Cassandra porque significa "profeta". Sacerdotisas do vodu
são sempre convocadas para prever o futuro, mas eu nunca fui sensitiva. Apesar do
nome, ainda não sou.
O vodu é uma religião fluida, adaptável e inclusiva. Os praticantes acreditam
em magia, zumbis e encantamentos de amor. Gosto muito de tudo nela, exceto de
uma coisa: a teimosia com que a religião afirma que não existem acidentes.
Não consigo acreditar nisso, porque se não existissem acidentes, eu teria de
aceitar que minha filha de cinco anos morreu por uma razão, e não consigo imaginar
qual seria. E eu procurei.
Não sou a primeira pessoa a ter problemas com alguns dogmas dessa religião.
Mas isso não significa que não acredito nela. ' No Haiti, naquela praia, eu me
comprometi inteiramente com o vodu. E tive uma boa razão para isso.
Planejava levantar minha filha dos mortos.
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Capítulo I
Desci do avião em Porto Príncipe pela segunda vez em minha vida. Era uma
ensolarada tarde de outubro e nada parecia ter mudado naquele lugar escaldante.
— Princesa Cassandra?
Eu me assustei. O que havia parecido um bom nome em Nova Orleans, agora
soava pretensioso aos pés da montanha onde o vodu ganhara adeptos e força.
— Só Cassandra, por favor.
Tentei adivinhar como aquele homem me reconhecera. Por eu ser a única
mulher branca a desembarcar, talvez? Ou teriam sido meus olhos azuis e meus
cabelos escuros, também incomuns por ali? Não. O que me destacava em um grupo
era a mecha branca na têmpora.
Ela havia surgido logo depois da morte de minha filha. Sei que devia ter
coberto a mecha com tinta, porque era uma testemunha sob proteção, mas os cabelos
brancos serviam para lembrar minha filha e minha missão. Como se eu precisasse de
ajuda para isso.
A mecha também era meu castigo. Eu não havia cumprido meu sa¬grado
dever de mãe em sua forma mais pura e direta; não havia pro¬tegido minha filha
contra tudo e todos. Até mesmo contra o pai dela.
O homem na minha frente inclinou a cabeça.
— Sou Mareei, Cassandra.
Apenas isso. Cassandra. Eu nem tinha mais um sobrenome. Depois de depor
contra o maldito traficante que havia sido meu marido, eu me tornei a Sacerdotisa
Cassandra. Apenas um nome, como Cher ou Madonna.
O pessoal do programa de proteção à testemunha acrescentara um Smith ao
meu nome, mas o sobrenome só servia mesmo para eles. Para mim não tinha
nenhum significado.
— Monsieur Mandenauer reservou um quarto no Hotel Oloffson — Mareei
avisou, pegando a valise que eu carregava.
Recentemente, passei a fazer parte de um grupo governamental conhecido
como os Jáger-Suchers. Para quem tem um alemão tão nulo quanto o meu, o nome
significa Caçadores-Investigadores.
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Criptozoóloga, ela fora enviada a Nova Orleans para investigar relatos sobre a
existência de um lobo, e acabara tendo a grande sur¬presa de sua vida ao se deparar
com algo muito maior do que isso, Diana fora ao meu centro vodu para investigar
uma maldição e teve uma imediata empatia entre nós.
Acendi a luz do quarto e olhei para a mulher que passava pela porta da
varanda. Ela era alta, voluptuosa, bela e muito velha. A pele era de um tom café com
leite, os olhos eram azuis como os meus. Ela vestia um robe longo e amplo, e havia
em sua cabeça um turbante na mesma estampa floral. Essa era a aparência que devia
ter uma sacer¬dotisa vodu. Pena eu nunca ter conseguido me transformar tanto.
— Meu nome é Renee. Quer saber sobre a maldição da lua cres¬cente?
Não sei por que, mas esperava que o amigo de Mandenauer fosse um homem.
— Ah, sim... A lua crescente — respondi. — É verdade que uma maldição
vodu só pode ser removida por aquele que a lançou?
— Sim, é verdade.
— E se essa pessoa estiver morta?
— Ah, entendo. Veio para saber sobre os zumbis.
— Exatamente.
Renee franziu a testa. Não havia uma só ruga em seu rosto. Então, por que eu
havia deduzido que ela era velha? Devia ser alguma coisa em seus olhos. -— Erguer
os mortos é um objetivo sério e perigoso.
— Mas é possível?
— É claro que sim.
— Já fez isso?
— É contra as leis dos homens e de Deus.
Eu não me preocupava mais com nenhuma delas. A lei não podia fazer contra
mim nada que fosse pior do que Deus já havia feito.
Depois de perder minha filha, passei a duvidar da existência de Deus, e essa
descrença me acompanhara por algum tempo. Comecei a estudar o vodu por uma
única razão, Sarah, mas acabei me encan¬tando com o que descobri.
O vodu é uma religião complexa. Adaptável, tolerante, monoteísta. Muito do
que eu aprendia fazia sentido. Por exemplo, não pode haver mal, a menos que haja o
bem.
E eu acredito no mal. Muito mais do que acredito em qualquer outra coisa.
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— Não, você não precisa. Para trazer de volta a rainha vodu, só precisa
conhecer a cerimônia. Traga-a para fora da sepultura por um instante; ela fará tudo
que pedir; depois, ponha-a de volta no lugar a que ela pertence.
— E o homem nas montanhas? Ele faz algo... diferente?
— Já ouviu falar do Egbo?
— Não.
— Nos maus tempos, quando o povo da África era raptado e ven¬dido em
grilhões, havia uma tribo conhecida como os Efik do Velho Calabar. Eles assumiram
o controle de todo o tráfego de escravos.
— Uma tribo que vendia a própria gente? Nunca ouvi falar nisso.
— Não vendiam o próprio povo. Na África há divisões, guerras, ódio... Um
grupo lutava contra o outro, e o vencedor vendia seus prisioneiros para os Efik, que
vendiam esses prisioneiros para mer¬cadores brancos.
Eu balancei a cabeça. As pessoas, independentemente de sua cor, não eram
mesmo muito boas umas com as outras.
—Os Efik tinham uma sociedade secreta conhecida como os Egbo. Eles
começaram como um grupo de juízes, mas, em um determinado período, mantinham
tantos escravos que precisaram encontrar uma forma de mantê-los sob controle. Os
Egbo se tornaram um clã temido que distribuía severas e cruéis punições pelos
menores erros. Sussur¬rar o nome deles era suficiente para acovardar os cativos e
mantê-los submissos.
Compreendi como essa tática seria útil. Escravos revoltos causa¬vam medo,
especialmente quando a população oprimida era duas ve¬zes maior do que a
opressora. E o Haiti havia sido berço da única revolta escrava bem-sucedida da
história.
— Isso tudo é muito interessante, Renee, mas não sei o que eu tenho a ver...
— O homem nas montanhas... Dizem que ele é um Egbo.
— Por que ainda haveria um Egbo? Não há mais escravos.
— Tem certeza disso, Sacerdotisa?
— A escravidão é ilegal. Não é?
— Só quando os infratores são pegos.
— Não. Ela é ilegal. Sempre! Renee sorriu.
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— Tão jovem e inocente, apesar da dor em seus olhos. Eu não queria discutir a
dor nos meus olhos.
— Está tentando dizer que o bokor é um mercador de escravos?
— É claro que não. Isso é definitivamente ilegal.
— Então...?
— Não vou falar sobre o bokor. Não vou levá-la até ele. Deve ficar longe desse
homem. Ele é perverso e, pelo que ouvi, é insano.
Exatamente o tipo de homem que eu precisava encontrar.
— Certo. Quando vou aprender a levantar a rainha vodu de sua sepultura?
— Mandarei um hougan ao seu encontro.
— Pensei que só um bokor pudesse levantar os mortos.
— Só um bokor concordaria com isso. Mas qualquer sacerdote ou sacerdotisa
pode saber como fazer.
Pena eu nunca ter conhecido um deles.
— Levantar os mortos vale o risco de perder-se, Cassandra?
— Sim.
Renee assentiu. Eu abaixei a cabeça. Quando levantei o olhar, ela havia
desaparecido.
Sozinha, decidi que tinha de encontrar o bokor. E precisava sair de Porto
Príncipe antes de Renee descobrir o que eu pretendia, se é que ela já não sabia.
Ela contaria a Edward. Ele iria me buscar, ou enviaria alguém. Haveria uma
discussão, acusações feitas aos berros, e ele me levaria de volta.
Não conhecia Edward muito bem, mas conhecia o suficiente para ter certeza
de algumas coisas. Uma delas é que ele não gosta de ser desobedecido. E eu não
havia sido enviada ao Haiti para procurar um homem violento e louco. Não tinha
treinamento para isso.
Se Edward mandasse um de seus subordinados ir me buscar, eu perderia a
única esperança que tinha de trazer minha filha de volta. Ela explodiria numa
flamejante bola de fogo... o método normalmente utilizado pelo Jãger-Sucher para
lidar com problemas.
Por outro lado, apenas os lobisomens explodiam quando eram atin¬gidos por
objetos pontiagudos de prata. Eu não sabia o que acontecia com sacerdotisas do vodu
que se desviavam do caminho ordenado.
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Não podia permitir que isso acontecesse antes de descobrir o que eu precisava
saber, por isso tranquei minha porta e saí do hotel pela varanda.
Dizem que o dinheiro fala. E verdade. E graças a Edward, eu tinha muito
dinheiro. Menos de duas horas e várias centenas de dólares mais tarde, entrei em um
bar num bairro miserável de Porto Príncipe.
Eu levava na cintura a faca com que conseguira entrar no país, cortesia da
influência de Edward. Não era muito boa com armas, mas a faca era outra história.
Depois de meu mundo ter desmoronado, tornei-me compreensivel¬mente
assustada. Fiz aulas de caratê e aprendi a manejar a faca. Podia até arremessá-la e
acertar um alvo com precisão impressionante.
Nas últimas horas, eu descobrira que não existia um único haitiano vivo que
se atrevesse a chegar perto do bokor. Mas Devon Murphy iria. Pela quantia
adequada, ele venderia a própria alma. E eu preci¬sava desse homem para me guiar
pelas montanhas.
O Chwal Lanme, ou Cavalo Marinho, a julgar pela placa, cheirava a cerveja e
suor. A taverna lembrava um lugar frequentado por velhos marinheiros, com um
balcão de madeira escura e um leme de navio no lugar do lustre. Um homem branco
estava sentado sozinho em uma mesa manchada, os olhos semicerrados e uma
caneca de cerveja entre as mãos.
— Murphy? — indaguei. Ele parecia velho com aquela barba cin¬zenta e
desgrenhada e olhar perdido, vazio. — Posso? — Fui logo puxando uma cadeira.
Ele esvaziou a caneca em um gole, deixou-a sobre a mesa e apontou para ela
num gesto significativo.
Chamei o garçom e pedi mais uma bebida para o sujeito. Depois de pagar por
ela, fui direto ao assunto:
— Soube que você é o homem com quem devo falar, caso queira ir às
montanhas.
Murphy grunhiu.
— Quanto tenho de pagar para me levar ao bokor"?
O homem bebeu sua cerveja em silêncio, a testa franzida e o olhar vagando
pela sala. Ele abriu a boca, mas não disse nada. Seus olhos giraram nas órbitas e ele
caiu para frente com a cabeça sobre a mesa. Desacordado.
— Filho de uma...
— Isso é jeito de uma dama falar?
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— Eu tenho.
Ele balançou a cabeça.
— Tenho uma ideia melhor.
Os olhos dele passearam pelo meu corpo.
Eu forcei um suspiro aborrecido, como se o olhar não me afetasse.
— É melhor ter outra ideia, porque essa é péssima.
— Que pena... Ela parece estar enraizada nos meus pensamentos.
— Nos seus e nos da maioria dos homens. Há mais alguém que eu possa
contratar?
Ele riu.
— O que você acha? t
Eu sabia que não. Já havia percorrido toda a cidade em vão, porque todos
sentiam verdadeiro pavor do bokor. A única pessoa que parecia não sentir medo era
Murphy. E ele era o único que ousava pronunciar o nome do bokor e parecia saber
onde encontrá-lo.
O que eram cem mil dólares comparados à vida de minha filha e ao fim da
maldição da lua crescente? Edward concordaria comigo.
— Escute, você me diz por que quer conhecer Mezareau e eu a levo até ele por
um valor razoável.
— Por quê?
Murphy encolheu os ombros e desviou o olhar.
— Você parece estar desesperada.
Ele não parecia ser o tipo de homem que se importa com isso.
— O que é uma quantia razoável?
— Dez mil mais as despesas.
Isso era razoável. Se não tivesse de incluir a alma na barganha...
— Tudo bem — concordei estendendo a mão.
Os dedos envolveram os meus, longos e suaves, e eu pensei num pianista. Os
calos das palmas destruíram essa ideia. Notei que nume¬rosos cortes e cicatrizes
marcavam-lhe a pele.
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— Nas montanhas, mas contratei um guia que sabe tudo sobre a região. Ele
pode me levar até lá. Estarei de volta antes que sinta minha falta.
— Pronta, benzinho? — Murphy perguntou ao me ver no corredor do
segundo andar da taverna, para onde o garçom me havia enca¬minhado.
— Pode apostar nisso. E não me chame de benzinho.
— Eu a chamaria de sra. Qualquer Coisa, se soubesse qual é seu nome.
— Como sabe que sou senhora?
— Você tem aquele olhar de quem já foi magoada por alguém. Aposto que é
divorciada. Ele a traiu. E isso. Quer ir procurar o bokor para matá-lo?
Eu sorri. Se quisesse Karl morto já poderia tê-lo matado muitas vezes. Mas a
morte seria uma saída fácil demais para ele.
— Você vai saber porque preciso ver o bokor quando me levar até ele.
— Bem, eu tentei...
O quê? Tentara seduzir-me, tentara descobrir meus segredos...? Não tinha
importância. Ele não havia conseguido, e não conseguiria enquanto eu não quisesse.
E não ia querer. Podia até revelar alguns segredos, mas se deixar seduzir?
Nunca! Já havia dormido com um mentiroso trapaceiro e oportunista, e não
pretendia repetir a dose.
Murphy entrou no quarto para pegar dois grandes fardos. Ele me entregou
um deles e apoiou o outro nas costas. Tirei da valise as coisas de que precisava e as
guardei na minha nova mochila.
— Aluguei um jipe — Murphy contou. — Hoje vamos viajar de carro, mas
amanhã... amanhã estaremos a pé. Já fez trilhas antes?
Eu encolhi os ombros, apesar do peso da mochila.
— Cassandra, já fez trilhas antes?
— Eu vou conseguir. Não se preocupe comigo.
— Nunca esteve nas montanhas, não é?
— Não.
— Uma floresta? Uma colina? Qualquer lugar menos plano que um shopping?
— Estive em lugares que você não pode nem imaginar. Havia conhecido o
inferno na terra.
— As montanhas são perigosas. Precisa saber o que vai encontrar lá em cima.
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Capítulo II
Naquela noite eu não dormi. Como poderia? O sol ainda estava nascendo
quando Murphy acordou e anun¬ciou que era hora de partir.
— Quanto mais cedo nos embrenharmos na floresta, mais fácil vai ser nos
afastarmos de quem estiver nos seguindo.
— Pensei que os houvéssemos despistados.
— Talvez não. Melhor sair daqui antes de descobrirmos. Recolhemos nossas
coisas e dividimos barras de granola e água.
— Vai deixar isso aí? — eu perguntei apontando para o jipe.
— Não consigo pensar num jeito de levá-lo.
Na minha opinião, abandonar o carro ali era como desenhar uma grande seta
apontando para nós.
— Isso é uma encruzilhada — Murphy comentou com tom sério. — Deve
saber o que isso significa.
Eu assenti.
Encruzilhadas e cemitérios eram as moradas da magia negra. Ne¬nhum
haitiano com um mínimo de auto-respeito chegaria perto desses lugares, a menos
que fosse absolutamente necessário.
Murphy e eu viajamos num ritmo constante, vencendo a subida moderada
que fazia minhas pernas reclamarem. O calor tropical me fazia suar muito, desde a
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cabeça coberta por meu novo boné do New Orleans Saints até os pés dentro das
botas de caminhada.
Na medida em que subíamos, a vegetação ia se tornando mais exuberante e
densa. Ali não se via sinal do desmatamento que des¬truíra as reservas verdes do
país.
Por volta do meio da tarde, eu percebi que havia perdido o senso de
orientação.
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recebendo como prêmio por seu alo heróico uma nuvem de poeira reveladora de
zumbis.
— Opa!
Ele tossiu. Partículas caíam de seus cílios.
— Para o chão!
Eu me joguei. Um punho passou por cima de minha cabeça. Murphy agarrou
o braço da criatura e a jogou no chão novamente.
— A arma! — ele gritou.
Dei um passo na direção do lago, mas parei ao perceber que a criatura
conseguira se colocar sobre Murphy e mordia o ar na frente de seu rosto. Arranquei
do pescoço a corrente com o crucifixo e bati com uma das extremidades na nuca do
estranho ser.
Ele grunhiu. Mas não era um lobisomem, porque não explodiu. Rápido, girou
o braço para trás e me atingiu com o dorso da mão, no chão com um tranco doloroso.
— A arma! — Murphy repetiu.
Corri até a mochila e peguei a pistola. Por precaução, peguei também minha
faca no chão, na margem do lago.
A criatura estava quase mordendo o nariz de Murphy.
Sem pensar, arremessei a faca e acertei a região central das costas da criatura,
entre os ombros. Mais uma vez, não houve explosão, chamas ou faíscas. Aquilo não
era um lobisomem.
A coisa emitiu um som horrível e levou as mãos às costas, tentando arrancar a
faca. Ele conseguiu o que queria, e eu percebi meu erro. Agora ele tinha a faca e
Murphy!
— Cassandra!
O estampido da pistola foi ensurdecedor na quietude da selva. O atacante
estremeceu. A faca caiu; ele também caiu. Bem e cima de Murphy.
— Ufa... — Murphy conseguiu sair de baixo do corpo inerte ensangüentado.
O atacante não se movia; não respirava. As balas funcionava com os zumbis
ou então ele não era um zumbi.
E se não estava morto antes...
Olhei para a primeira pessoa cuja vida eu tirava e não me senti nada bem.
Havia sido necessário, mas nem por isso eu deixava de tremer e me sentir enjoada.
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— Mas o quê...? Se ele não estava morto, por que não tentou nos matar? —
Murphy perguntou, olhando em volta com evidente ner¬vosismo.
— Acho que nosso amigo já estava morto. Por isso foi tão difícil matá-lo. De
novo.
— Já estava... O que significa isso?
— A prata não causou uma explosão de fogo, por isso ele não era um
lobisomem. E o crucifixo...
— Não pode estar falando sério.
— É claro que estou. Acha que o homem que nos atacou era só isso? Um
homem?
Murphy não respondeu. Não sabia o que dizer.
— Não acredita em magia? — tentei novamente.
— Benzinho, essas coisas não existem. Acredito no que posso locar. Bebida,
mulheres, dinheiro...
A resposta me incomodou, mas eu não sabia por quê. Eu acreditava cm magia.
Sabia que o sobrenatural fazia parte do nosso dia-a-dia. Se Murphy não tinha
esperança, fé ou alma, em que isso poderia me afetar?
Bem, ele me beijara. E eu quase o deixara preencher aquele grande vazio
dentro de mim. Saber que ele era ainda mais vazio que eu... Bem, por que isso não
me perturbaria?
— Acredita em monstros? — ele quis saber. — Bestas do mal que atacam na
calada da noite?
— Sim.
— Isso explica por que estava preocupada com as árvores. Pelo menos agora
eu sabia que o atacante não era um animal, mas
uma pessoa. Se é que um zumbi podia ser chamado assim.
Mas meu alívio durou pouco. O homem que nos atacara não havia falado,
apenas grunhido, o que não combinava muito com um zumbi completamente
humano. Por outro lado, ele se movia bem demais para um morto, sem a lentidão e o
desequilíbrio característicos, e parecera tão vivo quanto qualquer outro homem.
— Vamos voltar para Porto Príncipe assim que amanhecer — Murphy
anunciou.
— Não!
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— Cassandra, não há nenhum zumbi. Se eu soubesse que era isso que estava
procurando, nem teria... não teria concordado com esse trabalho se soubesse que é...
— O quê? Maluca? Você disse que faria qualquer coisa por di¬nheiro.
— Não me deitaria com você por dinheiro.
— Eu não faço parte da negociação.
— Não foi a impressão que tive há alguns minutos.
— Não parecia estar muito preocupado com dilemas de consciên¬cia.
— Não, mas... Ah, não importa. Vamos preparar o acampamento — ele
sugeriu com tom gentil.
Tive a sensação de que Murphy planejava alguma coisa. Como, por exemplo,
encontrar um meio de me levar de volta a Porto Príncipe e entregar-me aos cuidados
de um psiquiatra.
Ajudei a montar acampamento e preparar o jantar, mas não parei de pensar
nem por um segundo. Não podia mais confiar nele, se é que havia confiado em
algum momento.
Devíamos estar perto do povoado de Mezareau, ou não teríamos sido
atacados por um zumbi. Seria melhor prosseguir sozinha, em vez de seguir
cegamente o sujeito que acabaria me internando em um hospício. Mas como eu
poderia escapar sem que ele me visse?
Simples.
Pó de vodu para dormir.
O pó era, na verdade, um medicamento herbal que eu vinha utilizando desde
a morte de Sarah. E se ele me fazia dormir, apesar de indo, Murphy não teria a
menor chance de resistir ao sono.
E quando ele apagasse, eu escaparia. Quando acordasse, ele não se daria ao
trabalho de me seguir, pois teria a seu lado o dinheiro do pagamento pelo serviço.
Foi fácil misturar o pó para dormir em sua comida. Ele comeu o puré de maçã
da embalagem descartável sem notar o que consumia, ou sem se incomodar com isso.
A noite havia caído por completo. Um crescente um pouco maior do que da
noite anterior flutuava no céu sobre a selva à nossa volta. Murphy mantinha o rifle
sobre suas pernas.
— Vou ficar vigiando.
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Ele jamais conseguiria se manter acordado para isso. Além do mais, a arma
não teria nenhuma utilidade se a estranha criatura deci¬disse voltar.
Quinze minutos mais tarde, Murphy cochilou pela primeira vez. A cabeça caiu
sobre o peito e ele acordou assustado, olhando em volta. Mais alguns minutos, e ele
adormeceu novamente com a cabeça caída sobre o peito. Esperei uns quinze ou vinte
minutos, só para ter certeza, depois peguei minhas coisas.
Desenhei um círculo de sal em torno de Murphy para protegê-lo durante o
sono. Nenhum zumbi podia passar pelo sal.
Antes de ir, joguei o dinheiro no chão na frente de Murphy. Ele não teria
motivo algum para me seguir. Estávamos quites.
Enquanto caminhava para as árvores, eu me recusei a sentir tristeza por isso.
Tinha muitas outras coisas pelas quais me entristecer. Como
0 inferno para o qual me dirigia. Como subíamos a montanha em direção ao
norte, decidi manter esse curso. Senti um certo desconforto por pensar que esse era o
caminho mais fácil, quase como uma estrada <le tijolos amarelos ao contrário, um
caminho que me levaria para 1onge do mago, em vez de me levar até ele. Mas... eu
não tinha escolha.
Era seguir em frente ou desistir. E eu nunca desistiria.
Viajei durante toda noite, certa de que a trilha me levaria a algum lugar. Ouvia
apenas os insetos, e tudo permaneceu quieto e tranquilo a hora mais escura da noite,
pouco antes do amanhecer, quando a lua e as estrelas desaparecem e o céu fica negro
como o poço do inferno. Odiava essa hora. Era quando os sonhos chegavam. Sonhos
com Sarah.
— Hoje não vai haver nenhum sonho — murmurei. — Porque não vou
dormir.
Parei, porque não conseguia mais enxergar a trilha, e peguei meu cantil.
Apoiada ao tronco de uma árvore, bebi devagar observando o céu, esperando pela
luz que anunciaria o fim da noite e assinalaria a chegada do sol. Mas nada acontecia.
— Talvez aqui o processo seja um pouco mais demorado — sussurrei.
Mas o som de minha voz não me acalmava.
De repente um barulho. O som no meio da vegetação era tão aba¬fado que eu
nem o teria ouvido, se estivesse caminhando. Devia ser um animal pequeno, talvez
peludo.
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Minha mão direita buscou a faca, mas não chegou a sacá-la. Antes disso, uma
figura surgiu do meio das árvores.
— Sarah...
Queria tocá-la, mas não ousava. Não podia ser real. Eu queria muito que fosse,
mas sabia que não era possível. Se a tocasse, ela desapareceria numa nuvem de
fumaça.
Sarah vestia a roupa com que havia morrido, o uniforme azul ma¬rinho e
branco da escola particular. Seu cabelo escuro, muito seme¬lhante ao meu, estava
escovado, e ela tinha as faces coradas e saudá¬veis, cheias de vida. Os olhos
castanhos como os de Karl brilhavam intensamente. A única coisa estranha era que
ela não usava meias ou sapatos.
Eu devia estar sonhando, mas continuava ali em pé, com as costas apoiadas ao
tronco da árvore.
Mudei de posição e minhas botas rasparam a terra, fazendo um ruído
característico. Bati a mão contra o tronco da árvore. A dor ex¬plodiu em meu braço.
Mamãe...
O som era um murmúrio do vento.
Lágrimas inundaram meus olhos. Eu devia mesmo estar perdendo a razão.
Está tudo bem.
Não. Não realmente. Nada,havia estado bem desde que ela morrera.
Mamãe, ela repetiu, correndo na minha direção.
Eu me ajoelhei e estendi os braços, e ela passou por mim como primeiro sopro
gelado de outono.
Fechei os olhos e pude sentir seu cheiro. Aquela fragrância particular que era
só dela, doce e marcante, uma mistura de branco leitoso fluorescente, sol, sombra e
terra. Não sentia aquele cheiro há muito tempo.
— Tudo bem?
Abri os olhos. Estava sentada no chão, cem as costas apoiadas na árvore. O sol
já havia nascido, criando um halo em torno da cabeça de Murphy.
Eu pisquei confusa.
— Que horas são?
— É só isso que tem para dizer? Você me dopou!
— Eu não!
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— Ele não terá paciência para os seus contos de fada. Não quero que
desapareça como todos os outros desapareceram.
— O homem é um bokor — eu disse. — A palavra em si é a prova cie que meu
pedido não vai espantá-lo.
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— Ele já enviou um homem para nos matar. E quanto mais eu penso naqueles
sujeitos em Porto Príncipe, mais acredito que podem ter sido enviados por ele,
também.
— Ele não sabe o que eu quero — argumentei. — Por que estaria (ão agitado?
— De acordo com você mesma, pronunciar o nome dele já confere poder ao
sujeito. Ele sabe quem somos, onde estamos e o que quere¬mos. Não foi isso que
disse?
— Sim, foi isso.
— Muito bem, Porém, se tentar adotar o ponto de vista mais equi-li brado, o
homem tem gente em todos os lugares e todos querem cair nas graças do bokor.
Farão qualquer coisa para agradá-lo.
Isso ainda não explicava por que alguém havia tentado me matar.
Olhei em volta, examinando a pequena clareira. Talvez tenham tentado me
enlouquecer duas vezes.
Mezareau enviara Sarah? Como ele podia saber sobre ela? Seria capaz de ler
mentes?
Se o bokor era tão poderoso, não havia como prever o que ele podia fazer. As
perspectivas me assustavam e enchiam de entusiasmo.
— Ele não quer ser encontrado — eu disse.
— Ah, você acha? — Murphy resmungou sarcástico.
— Só preciso de um pouco de conhecimento. Seria pedir demais?
— Talvez ele não queira dividir o que sabe.
Eu não havia considerado essa possibilidade. A religião vodu era inclusiva,
cheia de gentileza, amor e generosidade. Mas um feiticeiro vodu não devia seguir as
mesmas regras.
Eu me levantei. Murphy estendeu a mão e, sem pensar, eu a segurei.
— Quem é Sarah?
De repente eu perdi o ar. Pensava nela o tempo todo. Chamava por ela à noite.
Mas ninguém jamais havia pronunciado o nome de Sarah em minha presença nos
últimos tempos. A palavra parecia ras¬car meu coração.
— Onde ouviu esse nome? ,
Minha voz era rouca. Murphy franziu o cenho.
— Você o balbuciava quando cheguei aqui. Quem é ela?
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— Minha filha.
Os dedos dele apertavam os meus.
— Onde ela está?
— Califórnia.
Cemitério Bellehaven. Califórnia.
Ele virou minha mão è deslizou um dedo pela marca deixada por minha
aliança.
— Marido?
— Não tenho mais.
— Bem, já é um alívio.
— Alívio?
— Prefiro não beijar mulheres casadas.
— Não tem jeito de quem se importa com isso.
— Você não me conhece.
Ele estava certo. Estava zangada comigo, não com Murphy. Não queria desejá-
lo, mas era impossível controlar o que eu sentia.
Retirei minha mão da dele, virei-me para pegar a mochila e notei uma marca
no solo, um sinal meio escondido pela vegetação. Incli-nei-me para afastar as folhas
do arbusto, e nesse momento ouvi um estrondo vindo dò céu.
— A tempestade se aproxima — Murphy comentou. E melhor fi¬carmos aqui
e esperar que ela passe. Não vai demorar. Nunca demora.
O sol havia desaparecido. Havia sombras estranhas, móveis. Eu não conseguia
desviar os olhos da pegada que em princípio parecera mais próxima, mas afastava-se
na medida em que eu continuava olhando para ela. Pequenina. Perfeita. Dedos
roliços, calcanhar redondo...
Devagar, comecei a caminhar na direção das árvores. Havia outra pegada. E
outra.
Murphy foi atrás de mim. Quando ele me alcançou, eu já havia contado dez
pegadas, todas levando na mesma direção.
— Cassandra!
Eu não parei. Não podia. Nem mesmo quando o céu se abriu e a chuva caiu
devastadora, ensopando-nos em poucos minutos.
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— Ah... — Ele estreitou os olhos. — Não me contou que sua filha estava
morta.
Eu devia saber que um homem como Murphy era adepto da leitura inicial.
Duas ou três informações, uma expressão mais eloqüente, e deduzia toda a história.
Não teria sobrevivido por tantos anos se mio fosse assim.
I iu me virei. A chuva continuava caindo com força impressionante, i nino se
quisesse competir com a cachoeira.
— Por que pensa assim? — perguntei.
— Seria melhor perguntar por que não pensei nisso antes.
Ele me segurou pelos ombros. Foi um grande esforço não me dei¬xar cair
sobre seu peito, buscar o calor de seu corpo másculo. Mas Murphy ainda era um
estranho, e agora ele conhecia meu mais pro¬fundo e sombrio segredo.
— Não vai dar certo, Cassandra.
— Vai — respondi com firmeza, cerrando os punhos até sentir as unhas na
palma da mão.
— A morte é o fim; não há caminho de volta. ,
— Está enganado. A morte é o começo.
— Talvez seja, mas é o começo de outra coisa. Alguma coisa de qual ela não
vai querer voltar.
Ouvi o eco das palavras de Renee, mas ignorei-as como as havia ignorado
antes.
— Ela vai voltar.
— Mesmo que fosse possível levantar os mortos, a quem você desejaria uma
existência de zumbi?
Eu me virei para encará-lo.
— Escute — ele continuou —, imagino que perder uma filha seja terrível, mas
o que você está fazendo não vai consertar as coisas.
— Está enganado. Ressuscitar Sarah vai consertar tudo.
— O bokor é um homem perigoso. Ele está tramando alguma coisa em seu
esconderijo.
— Exatamente.
— Refiro-me a drogas. Armas. Talvez até escravidão, o que explicaria os
visitantes desaparecidos. ,
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O riso morreu; seus olhos estavam cinzentos, agora que não havia mais tanta
luminosidade.
— Não precisa inventar histórias. Não vou matar você e jogar seu ri H po do
alto de um precipício, nem mantê-la viva para vendê-la pela melhor oferta.
Eu não convenceria Murphy da existência do Jãger-Sucher, a me¬nos que o
convencesse da existência de monstros. Tinha a sensação que isso não seria tão difícil,
uma vez que chegássemos ao outro lado da cachoeira. Comecei a caminhar para o
lago.
Aonde vai?
O que você acha? Osu vi um suspiro longo e aborrecido seguido pelo som de
um corpo cilando na água. Murphy me seguia.
As mochilas são à prova d'água? — perguntei.
E um pouco tarde para perguntar, mas, felizmente, a resposta f sim.
Alguns metros depois, nós nos deparamos com a cachoeira. Preparei-me para
mergulhar e atravessá-la.
— Espere — Murphy pediu. — Vamos fazer isso juntos. Senti-me tocada por
seu gesto. Devia insistir que ele ficasse ali,
porque podíamos estar mergulhando para a morte, mas deixei que ele
segurasse minha mão, e entramos juntos na cachoeira.
Era de se esperar que fôssemos empurrados para o fundo pela força da água,
mas emergi do outro lado apenas com um pequeno lapso de respiração.
Ainda segurava a mão de Murphy, mas ele parecia estar paralisado. Nada
acontecia. A cortina de água me impedia de vê-lo, e a pele molhada era difícil de
segurar. Se eu o perdesse, o que aconteceria? Não queria nem pensar nisso.
Não conseguia encostar os pés no fundo, por isso estava desequi¬librada.
Murphy continuava do outro lado da queda d'água, ou ficara preso nela. Neste
último caso, eu não tinha muito tempo para salvá-lo do afogamento.
Estendi os braços e segurei as mãos dele com força.
— Por favor — murmurei, puxando-o com meu corpo e minha mente.
Murphy emergiu da cachoeira e caiu em cima de mim, empurrando-me para o
fundo. Minha boca se encheu de água e eu me debati, chutando e esperneando até
voltar à superfície tossindo e enchendo os pulmões de ar.
— Tudo bem? — perguntou Murphy.
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coisa correu e transpareceu além da curva mais próxima e, sem pensar, eu também
corri. Cheguei à curva no exato momento em que o fósforo se apagou. Eu esperei por
um momento. Um movimento, um ataque... O que você viu? — Murphy riscou outro
fósforo. A luminosidade dourada apenas revelou pedra, terra e nada mais. Meu olhar
encontrou o dele.
Uma cauda preta — murmurei. — Só vi a ponta. Talvez não tenha sido nada.
— Eu queria que não fosse nada. Nós dois ouvimos o grunhido. Você ouviu? Ouvi.
senti os pêlos.
Item, o sujeito podia estar usando uma pele para cobrir-se... ou usa parecida.
li ele também usava um rabo?
— Você disse que não tinha certeza sobre cauda e... Ah, quem sabe?
— Certo. Então, estamos falando aqui de um louco, zumbi, ou de uma enorme
coisa peluda que grunhe e anda por aí em lugares onde não devia estar.
— Por que sinto dor de cabeça sempre que você fala?
— Causo esse efeito em muita gente.
— Ah... Viu alguma coisa estranha naqueles olhos? , — Sim, mas... Não sei
bem o que era.
— Áreas brancas. Sim. Era isso.
Só seres humanos têm áreas brancas em torno da íris; nenhum outro animal
possui essa característica. A menos que se trate de um lobisomem.
Inferno.
— Que significado tem isso para você?
— Isso... o quê ? — perguntei.
— Olhos humanos.
O homem era rápido. Mesmo sem ver meu rosto, ele sabia que eu escondia
alguma coisa.
— Bem... na forma animal, os lobisomens mantêm seus olhos hu-' manos —
respondi. — Vamos.
— Vamos? Quer ir atrás daquela coisa assustadora?
— Sim. Vamos segui-lo. Além do mais, temos de seguir em frente. Atrás de
nós não há nada!
— A menos que a cachoeira tenha voltado.
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Como eu não pretendia ir embora sem falar com Mezareau, por que não?
Além do mais, estava cansada.
— Certo, vamos nos recolher — eu concordei. — Mas ficaremos juntos.
Pierre balançou a cabeça.
— Sacerdotisa, não pode ficar na mesma casa com um homem com quem não
é casada.
— O quê? Em que século estamos?
— Vinte e um. Mesmo assim, temos nosso estilo de vida aqui. A pureza do
corpo leva à pureza da mente e à realização de todos os desejos.
A idéia era promissora, mas eu ainda não estava certa de que queria me
separar de Murphy. Porém, como casamento estava fora de cogi¬tação, decidi aceitar
o alojamento separado.
Fui levada para uma casa em uma das extremidades do povoado e Murphy foi
acomodado no extremo oposto.
A cabana era pequena e mobiliada com simplicidade. Havia apenas uma
mesa, uma vela, uma esteira e um cobertor. Era o suficiente. Despi minhas roupas
molhadas e sujas e me enfiei sob o cobertor. O mundo escureceu assim que fechei os
olhos.
Na profunda escuridão da noite, o grunhido furioso de um animal selvagem
retumbava. Eu me mexi na esteira. Havia algo de estranho naquele som; alguma
coisa não fazia sentido. Mas, na manhã seguinte, eu nem conseguia lembrar o que
havia escutado. Nem sabia se o som havia mesmo sido real.
Além do mais, tinha outras coisas com que me preocupar naquela manhã. Por
exemplo... Onde estavam minhas roupas? E minha mo¬chila, minha faca...
— Ei!
Eu estava nua sob o cobertor, mas esperava que alguém me ouvisse do lado de
fora. Caso contrário, teria de sair enrolada no cobertor, e a ideia não me agradava.
A cortina que servia de porta foi afastada, e as mulheres que me haviam
acompanhado na noite anterior apareceram. Uma delas car¬regava uma blusa branca
e uma saia colorida, o traje mais comum no Haiti, e a outra trazia uma bacia com
água e roupas secas. Elas dei¬xaram tudo sobre a mesa, sorriram, fizeram mesuras e
partiram sem dizer nada.
Rápida, lavei o rosto e me vesti.
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mas chá? E mesmo que oferecessem a bebida aos loas, isso não im¬pedia que
os vivos também a consumissem. Não em outros lugares,
pelo menos.
Mas eu não podia reclamar; a comunidade não me pertencia e não havia uma
autoridade suprema na religião vodu, alguém que deter¬minasse o que era certo ou
errado. Cada hougan criava e aplicava regras e rituais próprios.
Considerando todas as regras ali, Mezareau mantinha controle de ferro sobre
sua gente, e esse era um problema dele, não meu. Precisava cumprir minha missão
ali, depois iria embora. Voltaria para a terra do café, do chá e dos preservativos.
Precisava parar de pensar nisso.
— Mezareau volta hoje?
A mulher mais perto de mim olhou-me assustada.
— Ele é o mestre.
Eu me negava a chamar o homem de mestre.
— Certo. Posso vê-lo?
— Ele mandará chamá-la quando estiver pronto.
Respirei fundo e decidi que perder a cabeça agora seria improdutivo.
Alimentada, atravessei o vilarejo na direção da cabana de Murphy. As
mulheres correram atrás de mim. Eu não conseguia entender se elas eram ajudantes
ou guardas. De qualquer maneira, estavam me
irritando.
— Levante-se! — Eu disse ao afastar a cortina.
Mas o lugar estava vazio. E parecia ter estado assim nos últimos meses. Ou a
cama não havia sido usada, ou alguém a arrumara bem cedo e cobrira com uma fina
camada de poeira.
— Onde ele está?
As mulheres trocaram um olhar confuso.
— Quem? ,
— Murphy. O homem que veio comigo.
— Mas, Sacerdotisa... — respondeu aquela que parecia ser a única a falar. —
Chegou aqui sozinha!
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Passei o dia todo procurando por Murphy, e à noite eu não conseguia mais
disfarçar minha preocupação. Com ele, comigo e com minha sanidade mental. Helen,
a mais falante das duas irmãs, serviu-me um jantar sem gosto de nada que eu não
consegui engolir, e pouco depois eu pretextei cansaço para me retirar antes mesmo
do pôr-do-sol.
Precisava pensar, planejar... Antes, enquanto Murphy estivera co¬migo, eu
tivera certeza de que sairia dali e voltaria à vida. Mas agora... Agora temia
desaparecer como as outras pessoas que ousaram subir a montanha.
Mais uma noite se passou, e eu começava a me desesperar. Mesmo à noite, as
pessoas trabalhavam incansáveis, quase obsessivas, e outra descoberta intrigante
mexia com meus nervos. As crianças que eu pen¬sara dormir na noite da minha
chegada não existiam. E também não havia idosos. Comecei a imaginar um vilarejo
habitado por adultos jovens e criado por um propósito específico... mas eu não sabia
qual.
Estava perdida. Teria de esperar Mezareau me receber e torcer pelo retorno de
Murphy.
— Socorro... — murmurei desesperada. A súplica soou aflita, solitária e inútil.
Devo ter cochilado, porque despertei sabendo que não estava so¬zinha. Um
som sibilante chamou minha atenção, e eu virei a cabeça e me vi cara a cara com uma
serpente.
Muitas mulheres teriam sofrido um colapso, mas as cobras nunca me
incomodaram, antes mesmo da adoção da jibóia. Pelo contrário, elas me fascinavam.
A cobra era o símbolo do loa Danballah, meu met tet, um termo cujo
significado era "mestre da cabeça". Como os anjos da guarda do Cristianismo, o met
tet cuidava de seu protegido por toda a vida.
Olhei para a cobra e lembrei que havia pedido ajuda.
Eu me sentei. O réptil rastejou até a porta e parou, como se espe¬rasse por
mim. Eu me levantei para segui-lo.
O vilarejo estava quieto, mais vazio do que antes, embora não estivesse
totalmente deserto. Onde estavam as mulheres que me se¬guiam por todos os
cantos? Ninguém parecia me ver seguindo a ser¬pente na direção das árvores.
Por um momento, pensei que ainda dormia, o que explicaria a falta de
interesse em minha partida e a facilidade com que eu atravessava a selva antes
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impenetrável. Então, pisei em uma pedra e a dor me fez ter certeza de que estava
acordada.
Seguimos em frente na noite escura. Talvez essa fosse a punição por minha
recente falta de cuidado com meu met tet. Estivera ocupada demais com lobisomens
para fazer as oferendas de comida, rum e coisas brilhantes. Esquecera de usar a cor
de Danballah, o branco, em seu dia, a quinta-feira.
Mas não era uma punição. E a prova disso estava ali, bem na minha frente,
além das árvores que pareciam se abrir como uma cortina. Uma cabana.
A cobra havia desaparecido.
Enquanto eu refletia sobre os meus pecados, minha guia se fora. E agora?
Aproximei-me da cabana que, percebi ao afastar suas cortinas, estava
ocupada. O corpo perto da parede não se movia. Mesmo sa¬bendo que corria perigo,
que podia ser atacada e até morta, eu me aproximei da forma humana e imóvel.
— Murphy! — gritei, caindo de joelhos ao lado dele.
Mas o corpo estava frio, rígido e...
Morto?
Capítulo III
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— Na verdade, eles me disseram que você não existia. Que eu havia chegado
sozinha ao vilarejo.
— Isso não faz sentido.
— E alguma coisa aqui faz? Quero dizer, como veio parar em uma cabana no
meio do nada, sozinho?
— Não sei. Acordei aqui na manhã seguinte à nossa chegada. Quero dizer,
acho que foi na manhã seguinte. Eu estava tonto, tinha calafrios... Pierre estava aqui.
Ele explicou que eu teria de ficar isolado porque contraíra uma febre. A mesma febre
que já havia matado você.
Ele me abraçou, e eu me senti emocionada com o gesto.
— Como me encontrou? -
Ignorei a pergunta. Havia coisas mais urgentes a serem discutidas.
— Vamos voltar ao vilarejo.
Murphy não discutiu, e sua reação me surpreendeu.
— Vamos — ele respondeu enquanto começava a se vestir. — Esteve com o
bokorl
— Não. Eles dizem que eu serei avisada quando ele chegar.
— Que coisa mais irritante. Eu ri.
Murphy se levantou, mas cambaleou e tive de ampará-lo.
Saímos da cabana e examinamos a área. Nenhuma cobra; estáva¬mos por
nossa conta. Eu comecei a andar na direção de onde viera.
Murphy me acompanhava. íamos devagar, porque ele estava pá¬lido demais.
Se desmaiasse, eu não conseguiria carregá-lo.
— Acho melhor voltar e buscar ajuda — sugeriu.
— Ah, é claro! Eles têm sido tão prestativos! Mais uma vez, ele tinha razão.
— Tudo bem. Mas me avise se sentir que vai desmaiar.
— Se pude levar uma mulher ao orgasmo, acho que posso cami¬nhar até o
vilarejo.
— Ah, inferno... — murmurei.
— Para mim foi o céu.
— Eu quis dizer que esquecemos do preservativo...
— Inferno! — ele exclamou assustado.
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— Tarde demais.
Ele assentiu e respirou fundo algumas vezes antes de voltar a andar.
— Perdi a capacidade de raciocínio. Sinto muito...
Eu não sentia, mas não ia dizer isso a ele. Tentávamos ser adultos ali. Não
podia simplesmente confessar que também havia perdido a razão quando ele tocara
meu corpo. Esse era o caminho mais curto para um coração partido, e o meu ainda
estava longe de se recuperar.
— Tudo bem — murmurei.
— Conte-me sobre seu marido — ele pediu. — O que aconteceu com ele?
Apressei o passo, tentando fugir da conversa. Foi inútil.
— Eu mereço saber, Cassandra.
Merecia. Mas nem por isso eu tinha de ser doce e simpática en¬quanto falava.
—- Karl me traiu, provocou a morte de nossa filha e está preso. Espero que
apodreça na prisão.
— O que foi que ele fez?
— Mentiu. Sobre quem era e o que fazia. Karl era empresário, mas, eu não
sabia em que ramo de negócios ele atuava. Sabia que era bem-sucedido. Tínhamos
dinheiro... muito dinheiro. Ele pagava as contas; eu cuidava da casa e da nossa Sarah.
Murphy segurou minha mão.
— Ele não era empresário?
— Era o maior traficante de drogas de toda Costa Oeste. E não sei por que
nunca percebi. Talvez por não querer ver...
— E Sarah?
—Karl entrou numa disputa com um fornecedor. Ele raptou Sarah e a matou.
Um silêncio prolongado me fez olhar para Murphy. Era impossível ler sua
expressão.
— Como se envolveu com o vodu?
— Eu estava sempre sonhando com uma cobra. A serpente sim¬boliza
Danballah, e sonhar com ela tantas vezes significa que o sujeito está destinado ao
sacerdócio.
— No Haiti!
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Eu havia desnudado minha alma, ou o que restava dela. Agora era a vez de
Murphy.
— Depois do que fizemos na cabana, pode pelo menos me dizer de onde veio.
Murphy respirou profundamente.
— Nasci no Tennessee. Nas montanhas. Sou tão americano quanto o carvão
que meu pai extraía das minas. Dez filhos. Não tínhamos nada. A mina foi fechada...
Minha mãe morreu...
— Quantos anos você tinha?
— Quinze. No dia seguinte ao enterro eu parti.
— Aos quinze anos?
— Por que não? Eu já vivia praticamente sozinho. Não ia me meter naquelas
minas, mesmo que não estivessem fechadas. Fui para Nova York com a cabeça cheia
de sonhos, mas a cidade grande não era como eu pensava. Havia milhões de rostos
bonitos. Acabei nas ruas, onde vivi por algum tempo e fiz coisas de que não me
orgulho.
— Como veio parar no Haiti?
— Arrumei um emprego na área de construção civil, e depois daquele último
furacão varrer o Caribe, fui convidado a me juntar ao grupo que participaria da
reconstrução do país. Depois que o trabalho terminou. Eu fiquei.
Para alguém que afirmava amar dinheiro, Murphy estava no lugar errado. De
qualquer maneira, ele tornava meu espírito mais leve. Era honesto sobre quem era e
o que queria. Para uma mulher cuja vida havia sido arruinada por segredos e vivia
escondida, um homem como ele era uma novidade irresistível.
Embora a cobra me houvesse levado à cabana, eu voltava sem nenhuma
dificuldade, trilhando um caminho que só eu podia ver. Esperava chegar ao vilarejo
em poucos minutos, mas, quando afastei a cortina formada pelas árvores, encontrei
uma clareira que jamais vira antes.
A luz da lua penetrava pelas folhas, tingindo de prata a relva que insistia em
crescer entre as pedras do calçamento. Em menos de uma hora o sol nasceria. Eu não
conseguia acreditar que havia passado a noite toda vagando.
— O que é aquilo? — Murphy perguntou.
Havia uma cabana do outro lado da clareira. Murphy correu para lá, e eu o
alcancei quando ele afastava as cortinas que serviam de porta.
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— Não. Monsieur Murphy está certo; tentei mesmo matá-lo. Por que quer
protegê-lo, Sacerdotisa? Ele a traiu.
Eu sabia que a acusação era tola, infundada e impossível. Eu mal conhecia o
homem! Como ele poderia ter me traído?
— Cassandra...—Murphy começou.
— Cale-se! — Mezareau trovejou.
Ele se adiantou sem pressa e segurou Murphy pelo pescoço, tirando-o do chão
sem nenhuma dificuldade.
— Pare com isso! — protestei.
Mezareau me ignorou, enfiando uma das mãos no bolso da calça de Murphy,
de onde tirou alguma coisa. Satisfeito, ele soltou a presa com um movimento brusco.
Murphy cambaleou, e eu o amparei antes que caísse.
— Esse homem é um ladrão e um mentiroso, Sacerdotisa. Ele merece a morte.
— Mezareau abriu a mão para exibir um enorme diamante. Uma pedra que ele havia
retirado do bolso de Murphy. — Ele veio por isto. Não foi por você, Sacerdotisa. Eleja
havia tentado passar pela cachoeira antes — continuou. — Mas só os dignos podem
passar, e ele não é digno.
— Então, como ele conseguiu passar?
— Segurando sua mão quando estava sob a água.
Eu me sentia uma idiota. Derreti-me toda pensando que Murphy era doce,
gentil e heróico, mas não era a primeira vez que me enganava a respeito de um
homem.
— Suponho que tenha deixado esse homem se fartar em seu corpo. Eu me
encolhi. Não só porque a suposição era verdadeira, mas
pela linguagem.
— Tola! Ele a está usando desde o início.
Mezareau estalou os dedos, e dois homens corpulentos apareceram na porta.
— Não! — eu gritei.
— Ainda o protege depois do que ele fez?
— Não quero que ele seja morto.
— Pensei que todas as mulheres traídas desejassem a morte do traidor.
— Não eu.
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— Para sorte de vocês dois, esse ritual só exige sangue. Não pre¬cisamos da
alma.
Os pontos negros se desfizeram no ar. Murphy não estava morto. Apenas
sangrava. Mezareau recolheu o sangue que pingava de seu braço em um recipiente
de madeira.
Murphy estava pálido; eu sentia náuseas. Mezareau sorria.
Um movimento de cabeça do mestre, e os guardas agarram Murphy e o
levaram dali.
— Imite meus movimentos. Repita tudo que eu disser. Exatamente. —
Mezareau pediu.
Ele deixou a vasilha com sangue no chão e pegou outra com água, depois
sacudiu seu chocalho.
Eu abri os braços e ele apontou para uma casca de abóbora ao lado da vasilha.
Eu nunca havia utilizado um ason que não fosse meu, mas segui as orientações de
Mezareau, brandindo o chocalho enquanto o seguia pela clareira.
Ele aspergia a água, nutrindo a terra. Na metade do círculo, entre-gou-me o
recipiente. Fiz como ele havia feito, seguindo-o até fechar¬mos o círculo, estando os
dois do lado de dentro.
Ele começou a cantar, emanando emoções nas palavras.
— Volte para nós agora. Volte. A morte não é o fim. Viva nova¬mente como já
viveu. Esqueça que morreu. Siga-me para o mundo. Volte para nós agora. Volte...
Eu repetia o cântico e ia caminhando atrás dele, descrevendo cír¬culos cada
vez menores em direção ao centro da clareira.
Não entendia como ele podia levantar mortos que nem estavam ali. E não
precisávamos de um nome? De que outra maneira o morto saberia quem estávamos
chamando de volta?
— Beba.
Mezareau segurava duas canecas, uma em cada mão, e oferecia-me uma delas.
De onde haviam surgido?
Eu hesitei, mas ele sorveu todo o conteúdo de sua caneca, deixando-me sem
alternativa. Reconheci o sabor: kleren, um tipo mais rús¬tico de rum branco
produzido no Haiti.
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Mezareau jogou sua cabeça por cima do ombro. Eu fiz o mesmo. O mundo
girou. A lua parecia maior, mais próxima, e ela falava comigo.
Logo. Em breve. Você vai fazer qualquer coisa.
Mezareau não parecia afetado. Ele se colocou na minha frente, e dessa vez
segurava o recipiente com sangue.
O robe se abriu, revelando o diamante pendurado em seu pescoço. Eu também
não teria deixado a pedra em qualquer lugar.
O ar tornou-se mais denso. O tempo passava mais devagar. O sangue caiu
sobre a terra num fio vermelho. A lua fazia brilhar a jóia no centro de seu peito.
Eu sabia que não devia falar, mas não conseguia me conter.
— Onde está o corpo?
Minha língua estava mais grossa, pesada; a voz que ouvi não era a minha.
Mezareau não respondeu. Não foi necessário.
O sangue caiu sobre a terra, tornando-se negro sob a luz prateada da lua
pouco antes da meia-noite.
Meu olhar foi atraído pelas pequenas plantas que eram como dedos brotando
da terra sob os pedregulhos; e de repente compreendi que não pareciam dedos.
Eram dedos.
A terra tremeu e se abriu como na história do Mar Vermelho. Corpos
brotavam do chão.
Eu caí ao lado de uma das mãos que buscavam o céu. Havia naquele braço
uma pulseira vermelha.
O rosto de Helen surgiu na minha frente. A seu lado estava a irmã. Elas
haviam sido punidas mais duramente do que eu imaginara. Le¬vantei-me com
dificuldade e olhei em volta procurando por Mezareau, mas ele havia desaparecido.
Estava sozinha em um cemitério do qual brotavam mortos!
Corri para a cabana, temendo que eles agarrassem meus tornozelos ou me
seguissem, mas nada se movia. Eles continuavam parados. Mortos.
Mezareau havia misturado alguma coisa ao rum. Eu via manchas coloridas,
colunas de fumaça, e ouvia vozes sussurrando à minha volta. Mas não havia
ninguém na cabana. Só eu.
Meu corpo estava coberto por uma fina camada de suor. Minha respiração era
ofegante, difícil. Eu só queria deitar e dormir até o pesadelo acabar.
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E teria dormido, não fossem o retumbar dos tambores. Corri até a porta, mas a
clareira estava vazia, exceto pelos corpos.
Corri para a selva tentando identificar a origem do som, mas era impossível.
Minha pele parecia pequena demais para meu corpo. As unhas coçavam. O
nariz ardia. Acho que estava com febre.
— Mezareau! — gritei abrindo os braços. — Venha me buscar! Eu girava,
batendo as mãos nos galhos e enviando folhas em todas
as direções. Comecei a rir, um riso ébrio, se não drogado, até tropeçar em
alguma coisa e cair de joelhos.
O grunhido reverberou do solo e vibrou por meu corpo, atingindo até os
dentes. Devagar, levantei a cabeça e me vi frente a frente com um leopardo. Ele
exibia os dentes, exatamente como a pele na cabana de Mezareau.
A coluna de fumaça girou diante de meus olhos; todas as cores se fundiram.
Eu desmaiei e cai com o rosto sobre a terra.
Quando acordei, o leopardo havia desaparecido. Mas Sarah estava ali, no
limite da floresta, chamando-me com os olhos. Eu me levantei e corri, mas ela
também correu. Sua risada enchia a noite; o perfume de sua pele pairava no ar; a dor
de tê-la perdido me fazia seguir em frente.
Eu estava perto o bastante para tocá-la, quando ela se virou, olhou para mim e
gritou. E correu ainda mais.
Olhei para baixo e descobri que eu era o leopardo. E meu pêlo estava coberto
de sangue.
Acordei novamente em uma cabana banhada pelo luar. Nua, meu corpo se
enroscava em outro. Eu conhecia aquele cheiro, aquela pele, o sabor da boca sobre a
minha.
— Murphy...
Duvidava de que ele fosse mais real que Sarah, mas precisava de um sonho
melhor. Agarrei-me a ele como se minha vida estivesse em fogo. Minha sanidade
certamente estava.
A cabana ficou escura quando a lua desceu no céu. Eu precisava <la escuridão;
queria fazer com ele coisas que não eram feitas à luz do sol. Entreguei-me a ele sem
reservas, deixando-o inundar meu ( oipo com sua semente. Quanto mais tempo
durasse aquele sonho, melhor...
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— Hum... É verdade.
— Pensei que trabalhasse na área de construção civil.
— Sim, eu trabalhei, mas fui um ladrão... na adolescência, quando saí de casa.
Às vezes não tinha escolha...
Jovem, sozinho, faminto... Roubar era até compreensível. Naquele tempo.
— Devo deduzir que não rouba mais?
—Já viu os calos nas minhas mãos? Eu trabalho duro para sobreviver. Só ouvi
rumores sobre o diamante quando cheguei aqui, no Haiti.
— Pensei que ninguém conseguisse sair desse lugar.
— Alguém deve ter saído, ou não haveria rumores.
— Tem razão. Então, em vez de ir embora quando o trabalho terminou, você
ficou.
— Sim, porque pensei... — Ele encolheu os ombros. — Só mais uma vez. A
última. Se conseguisse, nunca mais teria de me preocupar com dinheiro. Nunca mais
acordaria no meio da noite com medo de voltar para as ruas, de ser assassinado ou...
coisa pior. Nunca mais sentiria fome. E que mal havia em roubar um feiticeiro do
mal?
— Roubo é roubo, Murphy. Você sabe disso. Ele abaixou a cabeça.
Eu me aproximei da janela e olhei para fora. A agitação parecia ainda maior
entre os habitantes do vilarejo. Todos andavam de um lado para o outro e
conversavam. Ninguém prestava atenção em nós.
— Vamos — eu decidi.
Murphy e eu deixamos a cabana e ninguém protestou.
Caminhamos até a clareira. Eu pisei na terra revolvida recente¬mente. Os
cascalhos do calçamento haviam desaparecido, talvez mis¬turados à terra pelos
mortos. Não havia nenhuma planta ali, nenhum dedo brotando do chão. Eu me
ajoelhei no local de onde Helen brotara e, usando minha faca, comecei a cavar.
— Cassandra, o que está fazendo?
— Há corpos aqui.
Rápida, resumi tudo que vira na noite anterior, sem deixar de cavar. Abri um
grande buraco na terra, mas não encontrei nenhum sinal de ossos.
— Não há nada aí, Cassandra.
— Eles foram levantados. Por isso a população do vilarejo cresceu.
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Não sei o que eu esperava. Provavelmente, o mesmo nada que acontecera nas
outras vezes, sempre que eu usara o pó. Afinal, se ele tinha mesmo algum valor ou
alguma utilidade, por que Mezareau me deixara conservá-lo?
O que eu não esperava ver era duas dúzias de pessoas gritando em agonia
enquanto derretiam como a Bruxa Malvada do Oeste.
A carne se desprendia de seus ossos e os olhos perdiam todo e qualquer
vestígio de vida. Unhas e cabelos se alongavam. As feridas que os mataram
reapareciam. Nunca eu havia visto nada parecido, e nem queria repetir a experiência.
Capítulo IV
O que você fez? A voz poderosa de Mezareau me fez desviar os olhos da pilha
de came e ossos no chão.
Murphy colocou-se na minha frente. Mezareau o atingiu com um golpe tão
violento que ele foi arrancado do chão e arremessado do outro lado do terreno onde
nos encontrávamos.
Eu me apavorei. Essa força não podia ser humana.
Mezareau me agarrou pelo pescoço. Sem pensar, toquei seu rosto deixando o
restante do pó grudado em sua pele. Ele me apertou com mais força, e eu comecei a
ver estrelas.
Empunhei a faca, mas ele me sacudia como se eu fosse uma boneca de pano, e
a arma caiu da minha mão. Pelo jeito, prata também não poria fim à vida dele.
De repente, ele me soltou. Eu caí com um estrondo.
— O que você fez?
Levantei-me com dificuldade. Murphy parecia estar inconsciente.
— Pó revelador de zumbi... — respondi com voz rouca.
— Eu testei o seu pó. Não era eficiente.
— Diga isso aos seus amigos.
— Qual é a fórmula?
— Um pouco disso, um pouco daquilo...
— Usou sal?
— Não.
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Ele invocava o Senhor da Morte, o Barão Samedi, o guardião dos portões para
o outro mundo e protetor dos zumbis. Eu devia saber. Mas havia algo na revelação
que me aborrecia, e eu não conseguia identificar o que era.
- Ela só vai matar mais de seus zumbis — Murphy avisou. Mezareau riu.
- Ela não vai conseguir produzir mais pó enquanto estiver aqui.
- Como sabe?
Ah, minha querida, eu sei. Se tentar qualquer coisa contra mim, inalarei seu
amante e o embalsamarei com sal para que ele nunca ii ia is possa ser levantado.
— Ele não é meu amante — protestei. Não havia amor nessa his¬tória.
Murphy me olhou como se a declaração o magoasse. Qual era o
problema com ele?
— Mesmo assim, tenho certeza de que não vai querer o sangue de
Murphy em suas mãos.
Assim que ficamos sozinhos na cabana, eu olhei para Murphy e notei que ele
parecia ter envelhecido décadas em poucas horas. Depois de passar fome, ser
ameaçado e ter o sangue roubado para uma ceri-monia de criação de zumbis, o que
se podia esperar? A viagem até a montanha, aquele lugar, meus problemas... A culpa
era minha.
— Lamento ter envolvido você nisso, Murphy.
— Eu sabia o que estava fazendo.
— Acho que não.
— Você já tem o que veio buscar; agora é hora de sairmos daqui.
— Por que a pressa?
Ele virou as costas para a porta, onde dois guardas impediam nossa passagem
e pôs a mão no bolso da calça.
— Porque Mezareau vai me matar mesmo se descobrir que estou
com isto aqui.
Ele abriu a mão e eu vi o diamante.
Aflita, eu o peguei e joguei dentro da minha calça. Murphy tentou recuperá-lo,
mas eu bati na mão dele.
— Como conseguiu isso?
— Sou perito em abrir caixas e outros recipientes seguros.
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— Mais do que todo mundo ficou sabendo. Hitler era fascinado por lobos e
lobisomens. Talvez porque seu nome Adolf significasse "Lobo Nobre". Quem sabe?
Ele escolheu o título fuhrer porque se refere ao líder de uma matilha de lobos
caçadores. Hitler chegou a san-i ionar uma organização terrorista secreta
denominada os lobisomens.
— O que eles faziam?
— Perto do final da guerra, quando as coisas começaram a piorar para a
Alemanha, os recrutas eram encontrados entre os membros «la Juventude de Hitler,
da SS, do exército e na população civil. ( orno lobisomens, eles pareciam ser gente
comum à luz do dia, mas à noite levavam morte e destruição ao inimigo usando
todos tis meios disponíveis.
— E eram mesmo' lobisomens?
Eu nunca havia pensado nisso.
— Edward não disse. Talvez nem ele saiba.
— O que seu chefe descobriu sobre Hitler?
— Já ouviu falar em Josef Mengele? O médico que fazia expe¬riências com
judeus, ciganos e... bem, com quem quisesse.
— Que maluco!
— Multiplique a loucura por dez. Hitler ordenou que Mengele criasse um
exército de lobisomens, e foi o que ele fez.
— Como?
— Um pouco disso, muito daquilo... Ninguém sabe ao certo, já que Herr
Doktor destruiu todos os registros.
— Mas ele não destruiu os lobisomens.
— Não. Esses ele libertou. Desde então eles têm se multiplicado, como muitas
outras coisas que ele criou em sigilo no laboratório da Floresta Negra. Edward devia
eliminar os monstros, mas chegou lá tarde demais. Desde então, ele tem se dedicado
a essa árdua missão.
— Se Mandenauer foi espião na Segunda Guerra, ele deve ser muito velho.
— Sim, ele é. Mas ainda atira muito bem. E tem praticado com regularidade.
Ele administra todas as divisões dos Jãger-Suchers, em¬bora conte com a ajuda da
neta. Eles também têm um laboratório...
— Nesse laboratório também são criados monstros?
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— Não. — Pelo menos eu acreditava que não. — Eles tentam encontrar curas
para diversas mutações. Elise, a neta de Edward, é virologista. Atualmente, ela
trabalha pela cura do vírus da licantropia.
— Licantropia é como um resfriado? Ou como o resultado do uso de
esteróides?
— De certa forma, sim. A maldição é transmitida pela saliva quan¬do a vítima
é mordida, causando alterações no DNA.
— Os vírus não são difíceis de curar por estar sempre mudando e evoluindo?
O vírus da licantropia havia mudado. Principalmente porque os lobisomens
haviam começado a combinar seu poder com magia num esforço para dominar o
mundo.
Até agora, os Jãger-Suchers haviam conseguido frustrar todas as tentativas.
Porém, mais cedo ou mais tarde...
— Os vírus são difíceis de controlar. E a licantropia é ainda mais difícil. Mas
Elise é competente e dedicada.
— Como acabou se envolvendo com os Jãger-Suchersl
— Houve um lobisomem em Nova Orleans que foi criado por uma cainha
vodu na época da Guerra Civil.
— E essa coisa continua andando pela cidade e produzindo outros
lobisomens? Puxa, me lembre de nunca ir visitar Nova Orleans!
— Henri foi capturado; Elise o levou para o laboratório. Edward me mandou
aqui para descobrir tudo o que for possível sobre a maldição.
— Pensei que estivesse aqui para aprender como levantar sua filha.
— Por conveniência, meu desejo e o deles são convergentes. Pelo que pude
descobrir, temos que levantar a rainha vodu que lançou essa maldição e obrigá-la a
removê-la.
— Ah... Quanto tempo levou para se habituar a esse universo pa¬ralelo?
— Eu ainda não me acostumei.
— Que alívio... — ele murmurou. Depois me beijou.
Não sei o que havia nesse homem, mas cada vez que ele me tocava cu parava
de pensar. Mas a presença dos zumbis do outro lado da porta era inesquecível.
— Não estamos sozinhos... — Murphy gemeu.
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— Não, mas eu tenho uma ideia. O pó para dormir. Podemos dá-lo aos
guardas!
— Ah... E como vamos convencê-los a engolir o pó?
— Ainda não cheguei nesse ponto do plano, mas estou disposta a Indo para
sair daqui.
— Eu também. Mas e os outros? E Mezareau? Você nem .sabe se o pó funciona
com os zumbis!
— Temos outra possibilidade? — Eu o segurei pelos ombros e esfreguei os
seios em seu peito.
— Continue assim, e vou esquecer que não estamos sozinhos. Eu ignorei o
comentário. Só queria distrair os guardas, dar a im¬pressão de que estávamos muito
ocupados.
— Há um jeito de multiplicar um efeito para todos os seres seme¬lhantes.
— Não entendi.
- Imagine que uma mulher quer uma poção de amor, mas ela quer que todos
os homens a amem. Combinando esse encantamento IIIIII uma única poção de amor
utilizada em um só homem...
- Todos os homens a amariam. Ei, esse encantamento chegou em IHKI hora! O
que precisa fazer?
— Só preciso repetir um encantamento verbal enquanto a poção, ou o pó ou
outra coisa qualquer estiver sendo administrada.
— E... puf! Funciona com todo mundo?
— Teoricamente.
Aprendi o encantamento quando ainda era estudante, mas nunca tentara usá-
lo. De acordo com meu professor, só um praticante de incrível poder seria capaz de
fazê-lo funcionar.
— Nesse caso, nós também dormiremos, Cassandra.
— Não somos zumbis.
— Ah, é... Mesmo assim, o bokor continuaria acordado.
Ele havia lembrado! Não pronunciara o nome. Murphy estava co¬meçando a
compreender como as coisas funcionavam por ali.
— Ele não parece vir muito ao vilarejo, especialmente à noite. Prefere ficar na
cabana confortável de senhor do feudo.
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— Então... talvez ele nem perceba nossa ausência. Não até a manhã seguinte...
— Quando já estaremos bem longe.
O plano era simples; tinha de funcionar.
Ou seria um fracasso absoluto.
Enquanto Murphy distraía um dos guardas, eu guardei todas as coisas dentro
da mochila, inclusive o diamante que tirei de dentro da calça, e a deixei perto da
porta, sempre contando. Quando cheguei ao noventa e oito, tinha a blusa ensopada
de suor. No cem eu pedi:
— Ouça-me, Simbi, Mestre da Magia...
Simbi, o senhor da magia branca, era invocado nos encantamentos benignos.
-
O guarda olhou para mim. Teria sido melhor se eu pudesse apenas pensar,
mas o encantamento tinha de ser dito em voz alta.
— Dê-me o poder!
Senti um formigamento nas mãos. A sensação se espalhou rapi¬damente como
uma corrente elétrica, uma onda de energia. Meu ca¬belo se moveu, apesar de não
haver nenhuma brisa, e a cabana ganhou uma luminosidade inexplicável.
Um trovão retumbou. A voz de Simbi. Ele me ouvia. E respondia.
O guarda começou a caminhar na minha direção, mas parou antes de
alcançar-me. E recuou. Ele também sentia. Agora a noite me per¬tencia, e não havia
nada que ele pudesse fazer. Dei um passo na direção dele, e o grandalhão correu.
Lá fora, o trovão ainda retumbava; o ar cheirava a enxofre, mas o céu era claro
como um lago azul. Nenhum sinal de chuva.
— Dê força à minha magia — eu continuei enquanto seguia o guarda. —
Espalhe-a para todos de uma mesma espécie.
Ele caiu de cara no chão como uma árvore atingida por um raio. Passei por
cima de seu corpo inerte.
Murphy também estava no chão, e por um instante temi que ele dormisse,
como o guarda, mas ele levantou a cabeça e tentou pôr-se em pé. Corri para ajudá-lo.
A estranha energia desapareceu assim que concluí o encantamento.
Peguei minha bolsa ao lado da porta e Murphy e eu corremos para a floresta.
Não havia ninguém no povoado. Mesmo assim, eu tinha a sensação de que alguém
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nos seguia. E pelo jeito como Murphy olhava para trás a cada quinze segundos, ele
sentia a mesma coisa.
— Quase... — ele murmurou.
Foi quando aconteceu o inesperado. Gritos cortaram o ar. Sombras surgiram
na noite. Formas animais pairavam sobre nossas cabeças. Um gato, um cachorro, um
porco e alguns pássaros. A vegetação se abriu e dela surgiram um duende
deformado e um troll retorcido, e eu entendi o que eram aquelas criaturas.
— Ele mandou os bakas
— Devo começar a gritar?
— Eles não são reais.
— Parecem bem verdadeiros para mim.
— Os bakas são espíritos maus que vagam pela noite; podem rou¬bar sua
vida, se você deixar, ou levá-lo à loucura.
— Como nos livramos deles?
— Olhe nos olhos deles, e desaparecerão.
— É claro. Isso sempre funciona.
— Pare de fazer piadas e faça o que estou dizendo.
Era difícil fitar aqueles olhos, mas eu me concentrei no troll à minha direita.
Pensei em Sarah e no que aconteceria, se eu não saísse dali. O medo evaporou. O
demônio também.
Os outros avançaram. Um dos pássaros se chocou contra minha cabeça. Olhei
para ele furiosa, sem nenhum medo, e todos desapare¬ceram. Quando baixei os
olhos, Murphy e eu estávamos sozinhos novamente.
Ele me beijou nos lábios.
— Fantástico! — exclamou entusiasmado, como se tudo fosse um jogo.
— Venha, vamos sair daqui.
Quando eu já imaginava que nunca mais sairíamos da floresta, nós vimos a
caverna. Infelizmente, o luar só penetrava na caverna em seus primeiros metros.
Depois tivemos de seguir tateando as paredes, ten¬tando nos orientar pelo som da
água corrente. Por mais que eu aguçasse a audição, eu só ouvia um ruído de
pedregulhos atrás de nós.
Tentei não entrar em pânico. Podia ser qualquer coisa. Muitas coisas.
— Ouviu isso?
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Água! Podia até sentir o cheiro de umidade no ar. Murphy riscou um fósforo e
nós vimos... Um lago. Nada de cachoeira.
— Estamos perdidos — Murphy murmurou.
Olhei na direção que ele apontava e vi... olhos brilhantes se apro¬ximando.
Olhos baixos, muito mais baixos do que estariam se fossem de um homem da altura
de Mezareau.
Ouvi um grunhido.
A faca estava em minha mão. O que era aquilo? Homem? Besta?
Eu não tinha ideia.
Um rugido ecoou na caverna. Eu me obriguei a encarar os olhos sem corpo.
A criatura saltou em minha direção. Eu arremessei a faca.
A arma atingiu o alvo com um baque surdo. Um grito sobre-humano ecoou na
caverna, e Jacques Mezareau caiu com minha faca cravada em seu peito.
Assim que Mezareau caiu, o barulho de água corrente encheu a caverna.
Fiquei olhando aturdida para a cachoeira que surgiu do nada na parede de pedra.
Mezareau devia ter usado algum tipo de encantamento de invisibilidade, mas a
magia se desfez quando ele perdeu a consciência... ou pior.
—Belo arremesso—Murphy resmungou enquanto se aproximava do corpo.
Ajoelhado, ele verificou o pulso de Mezareau, arrancou a faca de seu peito,
limpou-a na camisa da vítima e voltou para perto de mim, pegando minha mochila
ao passar.
— Vamos.
— Ele está...?
— Está. — Murphy guardou a faca na minha mochila e a pôs de volta em
meus ombros.
Depois de me empurrar para dentro do lago e me puxar pela mão até bem
perto da queda d' água, ele me pegou nos braços e atravessou a cachoeira.
Por um momento, pensei que me afogaria. Não enxergava nada e não
conseguia respirar. Mas, tão depressa quanto entráramos na ca¬choeira, saímos dela
do outro lado.
A lua brilhava no céu quando saímos da água e deitamos na mar¬gem do
lago.
— Acha que os zumbis virão atrás de nós?
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Não acha que vou deixar você sair da minha vida agora, acha?
Não. De jeito nenhum.
Não enquanto eu tivesse o diamante.
Quando Murphy apareceria?
E por que estava tão magoada, tão ferida?
Havia nutrido alguma esperança de que ele aparecesse por mim? Murphy era
um ladrão, um mentiroso! Não se incomodava com nin¬guém além de si mesmo.
Mas ele havia conseguido me convencer de que sentia alguma coisa por mim, então...
Não. Já havia derramado um oceano por Karl. Nunca mais choraria por outro
homem. Não permitiria que ele arruinasse minha primeira noite em casa.
Levando o terceiro copo de vinho, meti-me na banheira tentando relaxar, mas
era inútil. Quando sai dela, eu cambaleei. O calor, a longa viagem e três copos de
vinho no estômago vazio me haviam deixado (onta. Bem, eu não tinha nada melhor
para fazer, mesmo... Joguei-me na cama nua e adormeci imediatamente.
Foi um sono agitado, inquieto. Nua, eu me debatia na cama com muita sede,
mas água não saciaria essa urgência. Precisava de algo mais denso, mais forte, mais...
Vermelho. Mais vermelho até que o vinho.
Era atraída pelo som de água corrente. Estava na caverna, no lago... Sozinha.
Ou não? Ouvia um grunhido brotando da escuridão, mas não sentia medo.
Pelo contrário, o som me excitava.
A água fria lambia meus seios, enrijecendo-os de desejo. Eu ca¬minhei para as
pedras, para os olhos que.se materializaram na noite.
O grunhido ecoou nas paredes da caverna e eu continuava me aproximando,
saindo do lago, caminhando com a água escorrendo por meu corpo. Minha peleja
não estava em fogo. Eu sentia arrepios. Os som da minha respiração era um eco das
batidas de meu coração.
— Mostre-se — sussurrei.
A besta se colocou na luz.
Esperava um lobo, por isso não registrei de início aquilo que via.
Um pêlo brilhante, músculos evidentes, manchas negras sobre fun¬do âmbar,
dentes e olhos de um leopardo.
A besta caminhou em minha direção, emitindo sons abafados que já não
reverberavam. Eu não sentia medo. Afinal, era só um sonho.
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Eu me levantei e fui tomar banho. Não consegui suportar a água quente, por
isso a deixei mais morna, quase fria. Quando terminei, já me sentia quase humana
outra vez. Como teria de esperar até a pró¬xima lua cheia para poder levantar a
rainha vodu, decidi buscar um pouco de paz na confusa rotina da minha vida diária.
Escovei os dentes e os cabelos, e finalmente olhei para o espelho.
O que vi me deixou paralisada.
Quando meus olhos haviam ficado verdes?
Eu me aproximei, pisquei, virei a cabeça de um lado para o outro... o ri.
Não. Meus olhos eram azuis. Como sempre.
Estava só impressionada com o sonho. Devia ter um reflexo da luz do
banheiro, mais nada.
Decidida a superar o desconforto causado pelo sonho, eu me vesti, preparei
chá e fui examinar a papelada no escritório.
Duas horas mais tarde, eu estava pronta para abrir a loja. Quando intrei nela,
Lazaras enlouqueceu, atirando-se contra a tela da gaiola muitas vezes seguidas.
Havia mesmo algo de errado com ele.
— Você vai para o veterinário, rapaz.
O som da minha voz o deixou ainda mais furioso. Lazaras atacava »'«m mais
força e maior velocidade, até que, com o focinho sangrando, ele caiu inconsciente.
Aproveitei para transferi-lo para a gaiola portátil e, preocupada, i omecei a
ligar para todos os veterinários do catálogo telefônico, até encontrar um especialista
em cobras.
Quando cheguei em Gretna, no subúrbio, Lazaras havia acordado, H julgar
pelo sibilar ininterrupto e pelo som de seu corpo se chocando i outra a gaiola.
Felizmente, a jaula portátil era fechada, e nós não podíamos nos ver. Então, por que
ele estava tão zangado?
Entrei na sala de espera, e os três cães que já estavam ali começa-i iiiii a uivar.
O som era ensurdecedor e os donos não conseguiam acalmar os animais. Os três
cachorros olhavam para mim de soslaio entre um uivo e outro.
— É um gato? — perguntou um dos proprietários.
— Uma píton — expliquei. O homem franziu o cenho.
— Estranho... Ele nunca se incomodou com cobras.
A mulher ao lado dele tentou conter seu pastor alemão.
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Capítulo V
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— Talvez.
— O que aconteceu, detetive? Ele encolheu os ombros.
— Os jornais já qualificaram o ataque como incomum. Presumo que esteja
aqui por isso, não?
Nenhuma de nós respondeu.
— Os peritos contratados pelo departamento garantiram que só havia um
lobo raivoso na área. E ele foi morto. Apesar de ninguém ter conseguido explicar
como um lobo apareceu por aqui, não há um lobo há décadas!
Sempre que havia algum caso de ataque animal inexplicável, Edward era
notificado. Ele aparecia ou enviava alguém, dando as desculpas pa¬dronizadas da
Jãger-Sucher sobre animais raivosos e coisas do tipo.
Os lobisomens eram eliminados e a população recebia uma expli¬cação
plausível. Aparentemente, Edward não se preocupara muito com os detalhes em sua
última viagem.
— Tem certeza de que foi um lobo? — perguntou Diana.
-— Não. Estamos esperando um zoólogo de... Ei, você é uma zoó-loga!
— Criptozoóloga.
— É especialista em lobos.
— E daí?
— Bem, temos aqui algumas evidências. Gostaria que desse uma olhada nelas.
Nós o seguimos para o outro lado da rua.
— Pegadas de lobo lembram enormes pegadas de cachorro — Diana
comentou. — Mas não temos pegadas. Temos rastros.
— Rastros? — eu repeti.
— Em termos leigos, eles querem que eu examine fezes de ca¬chorro.
— E você conhece o assunto? — Sullivan perguntou.
— Mais do que gostaria.
— Ótimo! — Sullivan nos levou para perto do corpo coberto por um plástico
negro. Tentei ignorá-lo, mas não consegui. Havia sangue na calçada e um sapato de
salto alto perto do meio-fio. O mesmo salto que eu vira no sonho.
Uma tontura intensa se apoderou de mim. Como eu poderia ter sonhado com
tudo isso?
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— O que poderia ter? — Eu estava me tornando uma ótima atriz. Mas Diana
era esperta. Ela me segurou pelo braço.
— Foi ao Haiti para encontrar um feiticeiro do mal. Um homem que tinha o
poder de trazer os mortos de volta à vida, que podia fazer uma cachoeira aparecer e
desaparecer, um homem que vive em uma selva em um país onde não há mais selvas
há muitas décadas, e esse homem é membro de um grupo muito antigo e secreto
chamado... sociedade do leopardo.
— E daí?
— Chegou a vê-lo mudando de forma?
— Não. — O que não queria dizer que ele não se transformasse. Mesmo
assim... — Mezareau está morto.
— Tem certeza disso?
— Razoavelmente. — Murphy havia verificado o corpo. — Eu o acertei no
coração com uma faca de prata. Normalmente, isso leva à morte.
— Ele explodiu?
— Não. O que significa que não mudava de forma.
— E mesmo que ele esteja morto — Diana continuou — há algo mais a
considerar. A Egbo é uma sociedade secreta. Definição: mais de um elemento.
— Está dizendo que pode haver um bando de leopardos vagando por Nova
Orleans? — eu perguntei apavorada.
— Não seriam leopardomens?
— Nunca ouvi falar nisso, mas... Não. Não posso acreditar que estamos
discutindo leopardomens!
— Mas lobisomens não são tão absurdos?
— Acreditei neles antes de você. E Edward já disse que nunca ouviu falar em
outras espécies se transformando.
— Não. Ele disse que não tinha informações sobre licantropia sendo
transmitida entre espécies diferentes. Há mais coisas no mundo do que conhecemos.
Sabemos que o lobo cria o lobisomem. Outros animais criam outros monstros.
— Certo. Tudo bem, pode haver leopardomens, então, mas... Por que aqui?
— Boa pergunta. Nova Orleans pode ter alguma coisa que eles querem?
— Gente?
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— Lua cheia. Levantar os mortos. Acabar com a maldição. Isso tudo soa
familiar?
Levantei a cabeça e olhei para o espelho tomada pelo pavor. Meus olhos
estavam verdes.
Derrubei o telefone. O estrondo do aparelho se chocando contra o chão me fez
voltar à realidade. Abaixei para pegá-lo e, quando levantei, meus olhos estavam
azuis novamente. Que diabo era isso?
— Cassandra?
— Desculpe. Derrubei o fone.
— Devia tomar café.
— Não bebo café.
— Devia começar, então.
Olhei novamente para o espelho. Meus olhos continuavam azuis, embora
menos que antes.
— Diana, encontro vocês na mansão ao anoitecer. Depois do pôr-do-sol.
Vamos tentar o ritual.
— Certo. Até lá, então.
Voltei ao quarto, sentei-me na cama e massageei a testa. Estava cansada.
Segui o conselho de Diana e fui até o Café du Monde. O líquido quente e
aromático despertaria até os mortos! Talvez eu devesse der¬rubar café sobre o
túmulo da rainha vodu e esquecer aquela história sobre sangue.
Consegui abrir a loja por volta do meio-dia. Ninguém parecia notar ou se
incomodar com meu atraso. Meio de semana, novembro... O movimento de turistas
na cidade era muito pequeno.
Usei o tempo livre para telefonar para os hotéis na cidade e perguntar por um
certo Devon Murphy." Ele não estava registrado em nenhum lugar.
Não que eu esperasse encontrá-lo. Murphy devia estar em Oahu com os bolsos
cheios de dinheiro, resultado da venda do diamante. Passaria o resto da vida na
praia, sem pensar em mim.
Eu precisava esquecê-lo.
Uma hora antes do pôr-do-sol, fechei a loja sem ter atendido um só cliente o
dia todo, e preparei uma bolsa com todos os itens que poderiam ser necessários. Uma
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faca, duas tigelas, meu ason, uma xícara, rum, uma garrafa com água e bandagens.
Providenciaria o sangue no local.
Pouco tempo depois, chegávamos a um pequeno terreno cercado e afastado da
estrada. Diana parou o carro numa trilha secundária e nós seguimos a pé para o
interior do cemitério. O sol já desaparecera, mas ainda havia uma faixa vermelha
sobre o horizonte. Logo a lua estaria surgindo no céu. Cheia e brilhante.
A luz nebulosa do anoitecer, o velho cemitério escravo era uma foto
envelhecida de um tempo há muito encerrado, mas nunca esquecido.
Nos reunimos em torno da pedra que marcava a sepultura. Se algum dia
houvera um nome, chuva, vento e o tempo o apagaram. Mas Diana tinha certeza de
que estávamos no lugar certo, porque só alguém de grande importância teria uma
pedra marcando o local de sua sepultura.
— Tem certeza de que essa é a rainha vodu que procuramos? Não há outra?
— Por que não pergunta a ela? — Diana disparou irritada.
— Sabe o nome dela?
— Não realmente. Ela era chamada de mulher de grande magia.
— Isso pode ser um problema. O ritual exige que o nome do morto seja
repetido três vezes para que ele seja levantado do túmulo.
— Era o que Mezareau fazia?
Eu franzi a testa tentando lembrar.
— Acho que não.
— Acha que não? — Edward repetiu. — Não sabe?
— Conheço o ritual —t eu disse, evitando revelar detalhes que poderiam me
prejudicar. — Vamos tentar sem o nome. Se ela não atender, talvez alguém aqui
atenda...
Saia do caminho — Edward ordenou furioso. Ele tirou do bolso um pedaço de
papel que abriu sobre a pedra da sepultura. Com um lápis, ele começou a riscar o
papel, enquanto Diana e eu olhávamos para aquilo sem entender o que ele fazia.
— O que está fazendo? — perguntei.
— Extraindo as informações do túmulo. Eu costumava fazer isso quando era
adolescente e não tinha nada para fazer numa noite de sábado.
A informação não me surpreendia.
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Fiz como Mezareau me havia ensinado, enchendo uma segunda tigela com a
água da garrafa e espargindo-a num círculo em volta da sepultura. Fiquei dentro do
círculo. Diana e Edward ficaram fora dele. Sacudi meu ason e recitei o encantamento.
— Volte para nós agora. Volte. A morte não é o fim. Viva como já viveu.
Esqueça que morreu. Siga-me para o mundo. Volte para nós agora. Volte.
Bebi o rum, joguei a caneca por cima do ombro e ergui a vasilha com o sangue.
Esperei pela tontura que me havia acometido na última vez, mas ela não veio. Tudo
bem. Como precisava concluir o ritual sozinha, era melhor que estivesse consciente e
firme.
Inclinei o recipiente e vi o sangue cair sobre o solo da sepultura.
Nada aconteceu.
— O nome — Edward murmurou. Ah, sim.
— Mawu. Mawu. Mawu.
O encantamento se completou.
O solo tremeu. A terra escura se misturou ao que parecia ser areia branca. Eu
olhei para os outros dois.
Diana olhava horrorizada e fascinada para a cena. Edward estudava o chão
com calma impressionante. Segui a direção de seu olhar e fiquei boquiaberta.
O que eu pensava ser areia era osso! Nada disso acontecera no Haiti, mas lá os
mortos eram recentes, não poeira, como nesse caso.
Os ossos se moviam sozinhos numa marcha desajeitada para a reunião; e
quando se encontravam uniam-se como se tivessem ímãs. Um esqueleto emergiu da
sepultura. Sons estranhos ecoavam pelo local, e a carne se materializou do nada.
Devagar, a figura tomou a forma de uma mulher que se levantou.
Mas havia algo de errado nela*
Os cabelos haviam crescido em alguns pontos, deixando grandes áreas calvas
em sua cabeça. A carne retornara, mas não completamente, e havia buracos aqui e ali
por onde se viam os ossos. Os dentes estavam podres. Os olhos permaneciam
fechados. Teriam voltado?
— Ah, sim, parece mesmo um ser humano — Diana resmungou.
— Quieta — exigi nervosa. Onde eu havia errado?
Os olhos do zumbi se abriram e fitaram os meus. Eram escuros, poços
profundos de dor. O que eu havia feito?
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mordido, a cura não funcionara muito bem. Agora ele passava muito tempo
urrando como um louco atrás das grades de sua jaula.
— Ele sofre muito — respondi.
Mawu sorriu. Não foi uma visão muito bonita.
— Bom.
— Soubemos que só você pode encerrar a maldição.
— Não.
— Obrigue-a — disse Diana. — Ela é sua escrava.
— Mas...
— Cassandra, pense em Luc! Em Adam! Em mim! Ordene que ela liberte
Henri. Foi por isso que a levantamos do túmulo.
— Eu não queria forçar a pobre mulher a nada, mas Diana estava certa. Eu fiz
o que tinha de ser feito.
— Ordeno que remova a maldição da lua crescente lançada contra a família
Ruelle.
— Eu não disse que não o faria, senhora; disse que não podia fazer o que
espera de mim.
— Fui informada de que a rainha vodu que lançou a maldição poderia
removê-la.
— Não é verdade. Uma maldição só pode ser removida pela rea¬lização do
maior sacrifício. Só então Henri e seus descendentes serão libertos.
— E que sacrifício é esse?
— Só Henri pode decidir.
— Inferno!—Diana resmungou.
— Deseja mais alguma coisa, senhora?
— Sabe por que se levantou dessa maneira?
— Porque minha senhora me trouxe de volta.
— O bokor que me ensinou o ritual levantava os mortos e os trazia de volta à
vida completamente. Por inteiro.
— Para modificar a forma do morto, o bokor que o levanta deve poder
modificar sua natureza. E necessário um lougaro.
— Um o quê?
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Exibi meus dedos, que mantinha adornados com prata desde que havia
conhecido Henri. Depois ergui a faca e apontei para a ferida que abrira com ela.
Edward encolheu os ombros.
— Ninguém aqui disse que a prata funciona contra magia negra.
Capítulo VI
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Tentei lembrar como havia chegado ali, e a dor voltou. Baixei a cabeça e fechei
os olhos, e permaneci assim até a dor ceder.
Quando abri os olhos, notei as marcas de sangue deixadas no chão por patas
enormes. Ergui a cabeça esperando ver um leopardo, mas eu estava sozinha no beco.
As marcas... eram minhas.
Tentei rir, porque sabia que estava sonhando outra vez, mas o som que saiu de
minha boca foi o rugido furioso de um felino selvagem.
Eu me afastei do homem morto. Queria cheirá-lo, prová-lo, mas não podia.
Pelo que sabia, uma experiência, por menor que fosse, e o sonho passaria a ser real.
E não era isso que eu queria?
Aproximei-me do corpo. A ideia do que estava prestes a fazer me repugnava e
excitava.
Baixei a cabeça. Minha língua tocou o corpo. E o estampido de uma arma
rompeu o silêncio.
Olhei para cima; havia um homem na entrada do beco. Eu o co¬nhecia.
Edward não esperou por minhas explicações. Apenas atirou contra mim.
A bala acertou-me no ombro, porque eu me movi no instante em que o
reconheci. A dor me fez cambalear, mas continuei correndo sem explodir.
Acordei com o sol em meu rosto. Pássaros cantavam lá fora. Eu , tinha pés,
não patas. A vida era boa.
Movimentei o ombro. Tudo bem. Toquei-o tentando encontrar um ferimento
de bala. Nada. O braço que eu havia cortado com a faca de prata estava intacto, sem
cicatrizes.
Cocei a testa e senti algo estranho sobre a pele. Quando olhei para meus
dedos, vi sangue seco.
Corri para o banheiro, chutando alguma coisa pequena e dura sob a cama, mas
não tinha tempo para examinar o que era. Aliviada, tomei um banho, escovei os
dentes e olhei para o espelho sabendo o que veria. Meus olhos estavam verdes.
Definitivamente verdes.O telefone tocou. O som quase me fez gritar. Corri de volta
ao quarto para atendê-lo antes do segundo toque. A campainha estridente fazia
minha cabeça doer.
— Já sei o que aconteceu com seu píton. Eu havia esquecido Lazaras.
O veterinário prosseguiu:
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— Não... — Não revelaria que a pedra estava com Murphy, mesmo sabendo
que em breve ele perceberia a verdade. Precisava ganhar tempo. — Pode procurar, se
quiser.
Mezareau vasculhou a loja, e eu não fiz nada para detê-lo. Mesmo que
quisesse, não poderia.
— Tentei levantar um zumbi — contei.
— Ah... e seu zumbi não apareceu como você imaginava.
— Não.
— Sabe por quê?
— Imagino.
— Só sob a lua cheia e à meia-noite, durante uma cerimónia rea¬lizada por um
leopardomem, um morto pode ser trazido de volta à vida. Até a lua da meia-noite,
quando ocorreu sua primeira transformação completa, você não era uma de nós. Não
tinha o poder para levantar os mortos e trazê-los de volta à vida.
— Então, lua da meia noite, cerimónia realizada por um leopardomem... Mais
alguma coisa?
— O maldito diamante! Senti um arrepio.
— Precisamos do diamante?
— Onde está a pedra?
— Não sei.
Dessa vez eu estava preparada, e consegui segurar a mão dele antes do golpe.
E o empurrei para longe com uma força que nem imaginava ter.
— Por que fez isso comigo? — gritei.
— Por que está tão zangada? Você me procurou pedindo para conhecer meu
segredo.
Ele tinha razão. Por outro lado, ele podia ter me prevenido sobre a
transformação.
— O que você fez, exatamente?
— Só uma pequena maldição. Nada com que tenha de se zangar.
— Não me lembro de nenhuma maldição.
Lógico. Depois de beber o kleren, eu me lembrava de muito pouco.
— Foi mais uma poção, para ser honesto.
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Ah... Isso explicava por que eu havia ficado aturdida depois de beber seu rum,
mas não sentira nada depois de beber o meu.
— O que era aquilo?
— Um segredo transmitido por meus ancestrais. E ele não ia me dar a receita.
— Existem mais leopardomens andando por aí?
— Ainda não. Mas... — Ele se aproximou e farejou meu rosto. — Talvez
possamos criar alguns.
Eu o empurrei com força. Ele se manteve afastado.
— Vai mudar de ideia — Mezareau disse sorrindo e lambendo os lábios,
deixando os olhos passearem por meu corpo. — Logo será como eu. A excitação da
caçada, o prazer de matar... E melhor do que sexo.
Eu estremeci e lembrei sonhos que não haviam nem sido meus.
— Eu... me lembro de coisas que não aconteceram.
— Posso entrar nos seus sonhos, sacerdotisa. Se quiser, pode entrar nos meus.
— Não me sinto má.
— Mas vai se sentir...
— Eu matei um homem.
— Ontem à noite? Não. Fui eu. Mas, da próxima vez, talvez você i tenha
esse prazer.
— E se eu não quiser?
— Temos de partilhar do sangue humano na noite de lua cheia, ou
enlouquecemos.
— Mas eu não... não...
— Sim, você teve sangue. Só não consegue lembrar. Lembrei do sangue que
havia encontrado em meu rosto ao desper¬tar. Ele estava certo.
— Então, somos como lobisomens? — indaguei.
— Nada sei sobre eles. Nem me interessa saber.
— A prata não pode nos matar.
— Nada pode. Eu duvidava disso, mas voltaria ao assunto mais tarde.
— Por que uma poção, em vez de uma mordida?
— Porque não somos infectados.
— Apenas amaldiçoados.
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alguém em quem confio a mudará no instante em que alguém aparecer por lá. E essa
pessoa levará a pedra mesmo que alguém apareça comigo.
— Já fez isso antes. Tudo bem, traga-me a pedra em uma hora.
— Não é tão perto. — disse Murphy.
— Quando?
— Hoje à noite.
— Estarei esperando aqui.
— Preciso dela para...
— Esqueça! Acha que vou deixar a sacerdotisa sair de perto de mim? Acha
que me incomodo com suas necessidades? Não sou es¬túpido! Traga-me o diamante,
ou ela morre.
Eu balancei a cabeça. A única esperança que tínhamos de deter Mezareau era
mantendo o diamante longe dele.
— Não faça isso — eu protestei. — Antes ele me matar do que criar um
exército do mal.
— Não posso deixar que ele a mate — Murphy sussurrou. Depois saiu sem
dizer mais nada.
— Ora, ora, é mais importante do que um diamante, sacerdotisa! Devia estar
feliz com isso.
— Você não vai me matar.
— Não?
— Escolheu-me para amaldiçoar. Teve uma razão para isso, ou teria escolhido
outra pessoa.
— Sim, você foi escolhida.
— Por quem?
— Por mim.
— Mas eu fui procurá-lo.
— Porque eu queria que fosse. Você tem o poder necessário para trazer os
mortos de volta à vida.
—Pensei que esse poder estivesse na transformação e no diamante.
— E em você. Não poderia ter transformado outra pessoa em leo-pardomem.
Você é a favorita dos loas.
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Quando olhei para cima, Mezareau tinha o rosto e as mãos voltados para a
lua. O brilho prateado contornava sua silhueta, criando uma impressão quase irreal.
Era como se a luz penetrasse em seu corpo, tornando-o brilhante. Tive de
piscar. Quando abri os olhos, havia um leopardo onde antes estivera o bokor.
Ele rugiu.
Murphy não parecia sentir medo. Estava ocupado demais olhando
boquiaberto para o animal. Agora ele acreditava em leopardomens.
— Entre! — eu gritei enquanto me levantava.
Ele não me ouviu. Devagar, ia caminhando em volta do leopardo, que também
o contornava.
Vi a faca no chão, mas nem tentei pegá-la. Eu com uma faca, Mezareau com
dentes e garras... Não seria muito bonito.
Olhei para a lua e soube o que tinha de fazer. Depressa, ergui o rosto é as
mãos, torcendo para que a magia fosse suficiente.
A luz que penetrava meu corpo era quente. Borbulhando sob a superfície, ela
me induzia à transformação.
Esperei pela dor, mas só havia centelhas de luz. Milhares delas. Eu cambaleei.
Fechei os olhos, e quando os abri novamente, estava mais baixa.
Devia ter alguma relação com as patas.
Mezareau preparou o bote, e eu me atirei sobre ele. Ele se esquivou. Eu passei
por cima dele e bati com a cabeça em uma fonte. Ainda não estava habituada a esse
corpo. Mas Mezareau estava.
Não podia ficar ali enquanto Mezareau matava Murphy. Não sa¬beria viver
sem ele.
Eu corri, mas um segundo antes de o leopardo atingir o pescoço de Murphy
com suas presas, Murphy estendeu um braço. Sua mão encontrou o peito do animal,
que explodiu numa bola de fogo.
A faca caiu no chão, enquanto Murphy protegia o rosto com os braços.
Como ele conseguira pegar a arma? Devia ter tirado proveito do momento de
distração que proporcionei com minha transformação.
— Cassandra, por favor, pode reverter a mudança agora? Está me assustando.
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Reverter... Oh, sim, eu esperava poder voltar. Olhando para o céu, imaginei-
me humana. Nada aconteceu. E agora? A única pessoa que conhecia as regras de ir e
voltar virava churrasco no meu quintal!
— Invocar a lua pode funcionar — Murphy sugeriu. — Uivar, talvez. Ouvi
muitos uivos recentemente.
Não custava nada tentar. Levantei o focinho e rugi... Em algum lugar, um lobo
respondeu ao chamado. Maldição!
Eu não tive tempo para me preocupar. Vi as fagulhas de luz, senti o calor... e
segundos depois estava abaixada no meio do quintal, nua.
— Gostei desse truque — Murphy riu, entregando-me as roupas. Enquanto eu
me vestia, Murphy se debruçou sobre a fonte e lavou
o rosto.
— E agora? O que faremos? Quero dizer, o que vamos fazer com você?
— Comigo?
— Temos de parar com essa coisa do leopardo! Olhei para as cinzas de
Mezareau.
— Talvez você já tenha acabado com a maldição. E, nesse caso, Sarah
continuaria morta.
Eu precisava saber.
Olhei para a lua, ergui os braços... e os abaixei depressa ao sentir o calor e ver
os pontos luminosos.
— Não — disse. — A maldição persiste. Como a da lua crescente.
— Não parece muito aborrecida.
— Não estou, porque agora sei que posso trazer Sarah.
— Quando vai desistir disso? Não pode trazer sua filha de volta!
— Eu posso, se me emprestar o diamante.
— Não quis dizer que não era capaz disso. Disse que não pode porque não é
certo. Não quero que faça isso.
— Não posso deixá-la lá.
— E por que não pode começar uma vida nova? ' — Como leopardomem?
—Tenho certeza de que alguém com seu poder e com suas ligações com o
Jãger-Sucher pode se livrar disso.
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— Eles quem? Por favor, sabe que há muito mais coisas por aí do que
lobisomens.
— Infelizmente, sim.
— Eu tinha tempo... Decidi fazer uma pesquisa. A propósito, já conversamos
sobre matar primeiro e fazer perguntas depois, vovô. Podia ter matado esse homem.
— Teria sido horrível, reconheço, mas não posso correr riscos.
Elise balançou a cabeça e olhou para Murphy.
— Edward tentou matá-lo. Ouvi a conversa de onde eu estava. Só não entendo
por que Cassandra está sangrando.
— Ela se colocou na frente da faca.
— Ah! O maior sacrifício! Eu levantei a cabeça
— O que disse?
— Li o relatório de Diana. Só um sacrifício grandioso pode pôr fim a uma
maldição vodu.
— E daí?
— Você foi amaldiçoada.
Por que não pensei nisso antes? Mas agora...
—Minha vida nada significa para mim. Não foi um grande sacrifício.
— Mas a vida de sua filha é importante.
Eu parei. Agora as palavras de Elise faziam sentido. Lágrimas queimavam
meus olhos, e eu escondi o rosto no peito de Murphy.
— Cassandra, o que é isso? — A voz dele tremia. Ele soava as¬sustado.
Eu balancei a cabeça, incapaz de falar.
— Ela não pode mais trazer a filha de volta do mundo dos mortos — Elise
explicou. — Mezareau está morto e a fórmula da maldição morreu com ele. Ela
salvou sua vida, mas... O preço foi a vida de Sarah.
Eu desmaiei. Não saberia dizer se,foi a perda de sangue ou a dor. Para uma
mulher que nunca havia desmaiado na vida, eu estava me especializando nisso.
Acordei no hospital com Diana ao meu lado.
— Desde quando um corte exige cama e internação? — perguntei.
— Não foi o corte. Foi o desmaio.
— Se continuar assim, vou perder minha credencial de Jàger-Sucher.
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— Duvido.
— Diana, eu... Espero que me desculpe por não ter contado tudo.
— O que foi que não me contou?
— Sobre Sarah.
— Se eu perdesse um filho, também não ia querer falar sobre o assunto.
— É muito compreensiva.
— Não. Estou preocupada com você. Só isso.
— Comigo? Por quê?
— E que... Murphy partiu. E levou o diamante.
Eu chorei. Chorei como não chorava desde a morte de Sarah.
— Eu sabia — solucei. — Sabia que ele não ia ficar.
— Elise queria muito estudar aquele diamante, mas... Bem, ela se contentou
com a faca de diamante negro.
Edward entrou no quarto, e eu enxuguei as lágrimas.
— Melhor?
— Sim, senhor.
— Ótimo. Renee foi ao vilarejo.
— Ela conseguiu encontrá-lo?
— De acordo com o relatório, a cachoeira era só uma cachoeira, a caverna era
só uma caverna, e além dela havia só mais montanha e nenhuma selva.
Fazia sentido. A cachoeira reaparecera quando derrubáramos Mezareau,
mesmo tendo sido apenas uma temporária inconsciên¬cia. A morte do feiticeiro
devia ter revertido todo o cenário ao seu estado original.
— E os zumbis? — eu indaguei.
— O vilarejo estava deserto. Havia apenas ossos.
— A magia morreu com Mezareau — deduzi.
O que significava que os zumbis não eram realmente vivos, afinal.
— Isso sempre acontece — Edward lembrou. — A magia desa¬parece quando
o feiticeiro perece.
— Mas não as maldições — Diana lamentou.
— Não as maldições — ele concordou. — Mandei meus homens atrás de
Murphy.
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Série Criaturas da Noite Livro 5 Quando a Lua Surgir Lori Handland
— Não se incomode por mim — murmurei, lutando contra uma horrível dor
de cabeça.
Se ele não me queria, eu também não o queria.
— Você o ama? — Edward me perguntou.
— Não.
— Melhor assim. Odeio quando meus agentes se apaixonam. É tão...
complicado!
— Não é complicado. Agora tem dois agentes em vez de um. E prático —
Diana protestou.
— Não importa. Eu não estou procurando Murphy por causa de Cassandra,
mas pelo diamante.
— Boa sorte — eu disse. Edward jamais o encontraria.
— Minha segunda preocupação é com você.
— Estou bem, obrigada.
— Não me refiro a sua saúde, mas a sua magia.
— Como assim?
— Foi transformada em leopardo homem por causa do seu poder. Mesmo que
tenha voltado ao normal, ainda é uma sacerdotisa vodu. E levantou uma mulher
morta, o que faz de você uma feiticeira supostamente do mal. Sei que estava
cumprindo minhas ordens, porém, não quero ser chamado aqui novamente para
cuidar de você, caso decida... entrar em parafuso.
— Entrar... em parafuso?
— Tem alguma vontade de dominar o mundo?
— Ah! Não consigo administrar minha própria vida!
— Não me obrigue a meter uma bala na sua cabeça, Cassandra.
— Farei o melhor que puder, senhor. Edward saiu sem se despedir.
— Vai ficar em Nova Orleans? — Diana perguntou quando fica¬mos sozinhas
novamente.
— Para onde mais eu iria?
— Para qualquer lugar.
— Mas você está aqui.
Ela sorriu; eu sorri. Tudo havia sido perdoado.
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Saí do hospital no mesmo dia, voltei à loja e, uma semana mais tarde, reabri o
centro.
Peguei Lazarus e soube que ele seria pai, de acordo com o veteri¬nário, e a
serpente se comportou como se não me visse há anos, enroscando-se em meu pulso e
oferecendo todo o amor de que um réptil era capaz.
Retomamos nossa rotina. Tudo voltou ao normal. Eu estava sozi¬nha outra
vez. Sempre estivera, mas agora era diferente. Não havia mais a promessa de Sarah
em meu futuro. Eu não sabia o que esperar. Por que continuar vivendo.
E então, uma noite, eu encontrei a resposta.
Estava dormindo, mas despertei com a brisa que entrava pela ja¬nela. E eu
nem havia deixado a janela aberta!
— Por que foi embora? — perguntei.
Murphy materializou-se das sombras. Estava mais magro, tornar abatido e
novas penas nos cabelos, agora ainda mais longos.
— Você me odeia por eu tê-la tirado de você.
— Ela me foi tirada há muito tempo, Devon. E não foi você. Senti que ele ficou
tenso ao se aproximar um pouco mais de mim.
Queria tocá-lo, mas temia estender a mão e fazê-lo fugir.
— Como pode dizer que sua vida não tem significado?
— Não tem.
— Você me salvou, Cassandra. Eu não ia a lugar nenhum, não tinha planos
nem sonhos... Até que a conheci.
— Eu também.
— Eu amo você.
Eu sorri ao compreender a verdade.
— Eu também.
Ele se sentou na cama, a meu lado.
— Vai passar o resto da vida tentando encontrar outro jeito de trazê-la de
volta?
— Não.
Eu não havia admitido. Não até aquele instante. Sarah estava morta e não
havia nada que eu pudesse fazer para modificar essa realidade. Porque levantar
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minha filha da sepultura era um ato tresloucado, um objetivo insano, e eu queria ser
normal. Com ele.
— Promete? — Murphy sussurrou.
— Sim, eu prometo.
As palavras, a promessa, eram mais do que pareceram naquele momento.
Eram votos que consagramos mais tarde. Passamos as ho¬ras seguintes consumando
nossa união. Éramos bons nisso.
Estávamos quase dormindo, quando uma pergunta final me des¬pertou.
— Onde está o diamante?
— Que diamante?
Olhei para ele e vi um sorriso.
— Edward vai adorar isso — eu disse.
Murphy adormeceu sorrindo a meu lado. Eu não conseguia dormir. A lua me
chamava.
Saí da cama e fui até o quintal, onde fiquei olhando para o disco perfeito e
prateado no céu. O relógio na sala marcava meia-noite com suas ruidosas badaladas.
Era o momento mais poderoso da lua mais poderosa. Deixei a luz prateada se
derramar sobre mim enquanto me despedia.
Jamais esqueceria Sarah, mas não precisava levantá-la dos mortos para tê-la
sempre comigo, em meu coração, em minha alma e em minhas lembranças. Ela era
minha filha, minha menininha, e ninguém jamais poderiam tirar isso de mim.
Mamãe?
Ela já não usava mais o odiado uniforme, mas uma longa camisola branca.
Agora você está bem?
— Acho que sim.
Que bom. Eu não podia seguir para aquele lugar melhor enquanto você não
me deixasse ir.
— Desculpe. Tudo vai ficar bem.
Ela me havia dito a mesma coisa na selva, mas eu não estava ouvindo.
O homem com aquelas contas lindas no cabelo... Gosto dele.
— Eu também.
Ele vai ser um bom pai.
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— O quê? Adeus.
Sarah começou a desaparecer. Não tentei retê-la. Era hora de dei¬xá-la ir.
Eu me virei e vi Murphy atrás de mim. Algo em seus olhos me fez perguntar:
— Você a viu?
— Sim. — Ele olhou para o céu e seu brinco brilhou à luz da lua. — O que ela
estava dizendo sobre eu ser um bom pai?
Considerei o que havíamos acabado de fazer no quarto. Na cama. E como
havíamos feito. Sem proteção.
— Acho que tivemos um pequeno acidente.
Ele se aproximou de mim e me abraçou. Murphy beijou meus cabelos onde
eram grisalhos, depois sussurrou:
— Não existem acidentes.
Eu sorri, porque sabia que ele estava certo.
Fim
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