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O Apocalipse Pode Esperar

Doomsday Can Wait

Lori Handeland

2º livro da série "APOCALIPSE"

Uma paixão perigosa


Foi preciso que o mundo quase acabasse para que Elizabeth Phoenix
compreendesse o verdadeiro significado de suas premonições. Liz é uma das poucas
pessoas no mundo que tem os poderes psíquicos necessários para combater as forças
malevolentes que tentam exterminar a raça humana desde o início dos tempos. Elizabeth
já lutou contra esses seres antes, evitando o Apocalipse, porém perdendo a maior parte
de seus soldados no massacre. Agora ela precisa repor suas tropas o quanto antes,
porque a guerra sobrenatural ainda não terminou...
Como a nova líder da luz, Elizabeth está condenada à morte por uma bruxa que
tem ligação com seu passado. Para sobreviver, ela só pode contar com os poucos aliados
que lhe restaram: seu mentor, um xamã com segredos demais, e seu ex-namorado,
Jimmy Sanducci. Envolver Jimmy na missão é um passo perigoso, pois a atração que Liz
sente por ele é explosiva, e o desejo é cada vez maior. Mas pode Liz se permitir render-se
à paixão com o fim do mundo ameaçando a humanidade?...

Digitalização e Revisão:
Crysty
Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)

Querida leitora,
Dando prosseguimento às aventuras de Liz Phoenix (Bianca 909 - Antes do
Apocalipse), você vai novamente ver o mundo pelos olhos dessa ex-policial determinada
a salvar a humanidade, enquanto tenta compreender os estranhos acontecimentos à sua
volta e decidir se pode confiar em Jimmy Sanducci, o único grande amor de sua vida. Lori
Handeland permeia seu romance com uma eletrizante atmosfera de Apocalipse, no
segundo livro da trilogia!
Leonice Pompônio Editora

Copyright ©2009 by Lori Handeland


Originalmente publicado em 2009 pela St. Martin's Paperback

PUBLICADO SOB ACORDO COM ST. MARTIN'S PAPERBACK


NY, NY-USA

Todos os direitos reservados.


Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com
pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.

TÍTULO ORIGINAL: DOOMSDAY CAN WAIT

EDITORA Leonice Pomponio


ASSISTENTES EDITORIAIS
Patrícia Chaves
Silvia Moreira
EDIÇÃO/TEXTO
Tradução: Marcia Maria Men
Revisão: Patrícia Chaves
ARTE Mônica Maldonado
MARKETING/COMERCIAL
Andréa Riccelli
PRODUÇÃO GRÁFICA
Sônia Sassi
PAGINAÇÃO
Ana Beatriz Pádua

Copyright © 2009 Editora Nova Cultural Ltda.


Rua Butantã, 500 — 10a andar — CEP 05424-000 — São Paulo - SP
www.novacultural.com.br
Impressão e acabamento: RR Donnelley

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)

Capítulo I

Há um mês, atravessei com uma estaca o coração do único homem que já amei.
Por sorte, ou não, dependendo do dia e do meu humor, isso não foi suficiente para matá-
lo.
Descobri ser a líder de um grupo de videntes e matadores de demônios no
amanhecer do Apocalipse. Isso transforma muitas daquelas descrições bíblicas em
realidade. Ser escolhida para liderar a batalha final entre as forças do Bem e do Mal é
algo que considero estranho e assustador. Até o mês passado, eu não era nada além de
uma ex-policial que se tornou garçonete. Ah, e eu sou paranormal! Sempre fui.
Não que ser paranormal tenha me ajudado de alguma forma, ao contrário, só me
fez perder o único trabalho que eu queria, que era ser policial, e o único homem também,
o extremamente difícil de matar Jimmy Sanducci. Isso também matou meu parceiro, algo
que ainda tenho de superar, embora a esposa dele insista que a culpa não foi minha.
Na tentativa de pagar uma dívida astronômica, aceitei um emprego de garçonete
na taverna da viúva de meu ex-parceiro. Também me tornei a melhor amiga dela.
Depois de toda a morte e destruição do último mês, fui para Milwaukee, tentar
descobrir o que fazer em seguida. O exército das trevas estava vencendo. Seu antigo
líder havia me feito prisioneira, transformado Jimmy em algo mau, quase aniquilando toda
a minha tropa antes que eu conseguisse matá-lo e escapar, com Jimmy a reboque.
Agora, três quartos de meus soldados estavam mortos, e o restante se
escondendo. Eu não tinha como encontrá-los, nem como saber onde estavam. A não ser
que encontrasse Jimmy, o que estava se revelando ser mais difícil do que eu havia
pensado.
Então, enquanto eu esperava pelo lampejo paranormal que deixaria tudo claro, fui
trabalhar no Murphy's. Afinal, uma garota precisa comer e pagar suas contas.
Incrivelmente, a líder das forças sobrenaturais da luz... estou brincando, somos
chamados, na verdade, de "federação"... não paga coisa nenhuma.
Na noite em que o Inferno veio à Terra, mais uma vez, eu estava fazendo turnos
dobrados. A garçonete da noite estava doente, e eu não podia ir embora ao final do
expediente e deixar que Megan lidasse sozinha com o movimento da hora do jantar.
Não que houvesse muito movimento. Summerfest, o mais famoso festival de
música de Milwaukee, atraía a maioria das pessoas da cidade. Alguns policiais a serviço
apareciam aqui e ali; eram eles que sustentavam o bar de Megan, mas na verdade, o
Murphy's estava tão morto como eu jamais tinha visto. O lugar estava vazio! Foi por isso
que a mulher que apareceu ao anoitecer atraiu minha atenção.
Ela entrou usando saltos perigosamente altos. Era morena, alta e magra. Seus
cabelos estavam presos em um penteado chique que eu nunca seria capaz de fazer,
ainda que meu cabelo passasse da nuca. Seu terno branco fazia com que a pele
bronzeada e o pingente de prata se destacassem sobre a gola da jaqueta brilhante à
meia-luz.
Megan deu uma olhada, revirou os olhos e voltou para a cozinha. Ela não tinha
paciência com advogados. E alguém tinha? As roupas, os saltos altos, o comportamento

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daquela mulher praticamente gritavam "Sanguessuga!". Em meu mundo, sempre havia
grande preocupação que o termo fosse literal. Eu quase ri alto quando ela pediu um
Cabernet.
— Com essas roupas? — perguntei.
Seus lábios se curvaram; as sobrancelhas perfeitamente desenhadas levantaram-
se acima dos óculos de sol, cujas lentes pouco revelavam. Eu podia ver apenas a sombra
de seus olhos através das lentes. Castanhos, talvez pretos. Definitivamente, não eram
azuis como os meus. As maçãs do rosto e o nariz indicavam ascendência indígena, assim
como o tom da pele.
— Você acha que vou derramar uma gota que seja? — ela murmurou com uma
voz esfumaçada.
Como era possível alguém soar como fumaça? Eu nunca havia entendido essa
expressão. Mas assim que ela falou, o conceito repentinamente ficou claro para mim. Ela
soava como uma névoa cinza e quente, que poderia te matar.
— Você é da região? — perguntei.
— Sou de todo lugar — a desconhecida respondeu e então bebeu o vinho.
Uma gota escorreu por seus lábios, e sua língua serpenteou para fora, capturando
a gota cor de sangue antes que caísse na lapela imaculadamente branca. Tive uma
bizarra lembrança da Branca de Neve.
— Ou talvez de lugar nenhum. — Ela balançou a cabeça. — Você decide.
Eu estava começando a ficar preocupada. Ela podia ser bonita, mas era estranha.
Não que não atendêssemos gente esquisita no bar todos os dias, mas normalmente havia
de um a dez policiais por perto.
Certamente, eu havia sido policial um dia, mas já não era mais. E quase todos,
incluindo Megan, desaprovavam garçonetes que apontavam armas para os clientes. Mas
claro, se ela não fosse humana...
Meus dedos tocaram a faca de prata que eu escondia no avental do meu horrendo
uniforme verde, enquanto esperava por algum tipo de sinal.
A mulher pegou novamente a taça de vinho. Contrariando sua afirmação anterior,
ela entornou o vinho. O líquido vermelho-rubi se espalhou pelo balcão, empoçando na
borda antes de pingar no chão.
Eu deveria estar procurando por uma toalha, mas em vez disso me flagrei
fascinada pela poça cintilante, que refletia as luzes da luminária e o rosto da mulher.
Vagarosamente, levei meu olhar até ela. Pela primeira vez pude ver seus olhos.
Eu já os havia visto antes... No rosto de uma mulher de fumaça que fora conjurada
de uma fogueira em um deserto no Novo México. Não era de admirar que ela os
escondesse por trás de lentes escuras. Aqueles olhos podiam assustar qualquer cidadão
que os fitasse diretamente. Fiquei surpresa por não ter sido transformada em pedra. Eles
carregavam eras de ódio, séculos de maldade, milênios de prazer no ato de assassinar,
além de uma pitada de loucura.
Puxei minha faca e a lancei. Deveria conseguir acertá-la, de uma distância tão
curta, mas ela agarrou a arma no ar com dedos impressionantemente ágeis.
— Droga — praguejei baixinho.
Com um sorriso falso, ela atirou a faca de volta, na direção da minha cabeça. Eu
me abaixei, e a faca se cravou na parede atrás de mim, produzindo um som digno de um

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
desenho animado.
Eu me levantei, com a intenção de agarrar a faca e atravessar o bar correndo.
Também tenho velocidade e força sobrenaturais. Mas no instante em que minha cabeça
apareceu por cima do balcão, ela me agarrou pelo pescoço e me levantou no ar, quebran-
do garrafas e jogando copos para todos os lados.
— Liz? — Megan chamou.
Eu abri a boca para gritar "Fuja!", mas em vez disso engasguei, à medida que a
mulher apertava meu pescoço.
Ela olhou na direção em que Megan devia estar. Eu queria ter dito "Não olhe para
ela!", mas falar era algo que eu não conseguia fazer, e tampouco respirar.
Senti um movimento rápido e então ouvi uma pancada, como o de um corpo
escorregando por uma parede até colidir com o chão. Teria a mulher de fumaça matado
Megan com apenas um olhar? Eu não conseguia ver, com ela me segurando.
Segurei as mãos dela e puxei seus dedos, tentando afrouxar um pouco para poder
respirar.
Que diabos havia acontecido? A mulher de fumaça era com certeza uma serva
maligna enviada para me matar. Ser a líder da luz na batalha contra as forças do mal
parecia ter colocado um grande alvo invisível nas minhas costas.
De qualquer forma, nas outras vezes eu havia sempre recebido um aviso, que eu
chamava de "murmúrio fantasma". Era a voz da mulher que me criou — Ruthie Kane, cuja
morte desencadeou toda essa bagunça — me dizendo que tipo de criatura eu estava
enfrentando. Mesmo que eu não soubesse como matá-la, e considerando que fui
colocada naquele trabalho sem nenhum treinamento, isso era bastante freqüente, e eu
continuava preferindo ter um aviso prévio de uma morte sangrenta do que ser morta de
surpresa.
Tentei raciocinar. Estava totalmente sem ar, mas dei um jeito.
A mulher de fumaça pegou minha faca de prata, e seus dedos não queimaram com
o toque. Não era uma metamorfa, ou pelo menos não uma comum, como os lobisomens.
Quando se misturam prata e lobisomens, o resultado em geral é um monte de cinzas. Sua
força tendia mais para a dos vampiros, mas a maioria deles poderia apenas rasgar minha
garganta e regalar-se com meu sangue. Ainda assim...
Larguei o braço dela e abri meu uniforme, deixando o crucifixo de prata de Ruthie à
mostra. Os vampiros costumam enlouquecer quando vêem crucifixos de prata, não pela
forma, nem pela prata, mas pela bênção que eles representam.
Ela nem piscou. Pressionei o crucifixo contra seu pulso. Nada. Então, ela não era
uma vampira.
De repente, ela congelou. A pressão no meu pescoço diminuiu, e os pontos pretos
que embaçavam minha visão clarearam. Ela olhou para meu peito, e não foi com a
expressão, de fascínio que costumo receber quando abro minha blusa. Sem falsa
modéstia, meus seios não são de se jogar fora, embora eu nunca tivesse visto uma
mulher tão interessada neles. E não gostava da situação mais do que gostava da mulher.
— Onde você conseguiu isto?
Os olhos dela brilharam de tal maneira que eu poderia jurar que havia visto chamas
no meio de todo aquele preto.
— O... o... crucifixo é...

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— Um crucifixo não pode me deter — ela desdenhou e o arrancou do meu
pescoço, jogando-o para longe.
— Ei! — Fiz a mesma coisa com o amuleto dela. O ar pareceu parar, e meus pelos
se arrepiaram.
— A terrível — Ruthie sussurrou, finalmente. — Naye'i! Um Naye'i era um espírito
navajo. Eu já tinha ouvido sobre eles antes. Muitas peças do quebra-cabeça de repente
se encaixaram em um clique.
A mulher de fumaça de afastou, olhando para a pedra que eu havia recentemente
pendurado em sua própria corrente, em vez de deixá-la junto com o crucifixo de Ruthie.
— Você não gosta da minha turquesa — falei, sentando-me. Seu olhar foi do colar
até meu rosto. Tudo que pude ver através de suas pálpebras entreabertas foi o ardor de
chamas alaranjadas.
— Isto não é seu!
— Conheço alguém que diria o contrário. — Levei minha mão até a gema azul-
esverdeada. — A pessoa que a deu para mim. Acho que você o chama de... filho.
Assim que meus dedos se fecharam ao redor da pedra, ela faiscou como uma luz
branca... A Naye'i rosnou como o demônio que era, e então virou fumaça e desapareceu.
Um movimento próximo ao balcão me fez abaixar e virar naquela direção, embora
estivesse desarmada, exceto pela turquesa. Eu duvidava que a pedra pudesse fazer
muita coisa contra a espingarda que estava nas mãos de Megan.
Apesar de baixinha, Megan era forte, provavelmente por ter criado três filhos,
primeiro carregando-os na barriga, e depois na barra de sua saia, sem a ajuda de um
marido e ainda por cima administrando um negócio próspero. Ela não dormia muito,
freqüentemente se esquecia de comer, e apesar da pele pálida, tinha um viço saudável,
cabelos ruivos cacheados e olhos azuis. Era bonita como um camafeu, ou um bibelô, ou
qualquer outra simbologia para coisas miudinhas, bonitinhas e fofinhas, o que a deixava
enfurecida.
Embora essa adorabilidade de Megan pudesse bastar para colocá-la em minha
lista de "pessoas irritantes demais para viver", ela também tinha um humor seco e
sarcástico que combinava com o meu, e uma genuína falta de interesse em sua própria
aparência e a quem estava ou não impressionando. Tudo com que Megan se importava
eram os filhos, seu bar e eu.
Ela baixou a espingarda, me lançou um olhar rápido e indecifrável, serviu-se de
uma dose de uísque e entornou a bebida como se fosse água.
Suspirei, aliviada, ao vê-la viva e de pé, com todas as suas faculdades intactas.
Obviamente a mulher de fumaça tinha a capacidade de fazer uma pessoa desmaiar
apenas com um olhar, mas não podia matar ninguém assim. A primeira boa notícia que
eu tinha em semanas. Imaginei por que ela não tentara fazer o mesmo comigo.
Sem levantar a voz, Megan disse:
— Você vai se sentar e me contar o que diabos foi aquilo.
Hesitei. O pânico seria iminente se o mundo em larga escala soubesse que o dia
do Juízo Final estava próximo. Mas eu não sabia como poderia evitar contar-lhe algo. A
não ser que fosse embora e nunca mais voltasse. Provavelmente uma boa escolha, já
que minha mera presença, quase causara sua morte.
— Não, não mesmo — disse Megan. — Você não vai a lugar nenhum.

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Nossa, ela era boa... Criar três filhos com certeza havia dotado aquela mãe com
um detector de mentiras embutido. Uma piscadela, uma leve tensão em meus ombros, e
Megan soube exatamente o que eu planejava.
— E não pense que você pode desaparecer como sua amiga fez. — Ela parou e
franziu a testa. — Você pode desaparecer, como sua amiga fez?
Eu abri minha boca e a fechei novamente. Desisti.
— Não, não posso.
As sobrancelhas de Megan se arquearam. Ela estava tão surpresa quanto eu com
o fato de que a mulher de fumaça sumira, como um balão de gás que faz "puff..."
— O que mais você consegue fazer? — perguntou. — Além de saber onde as
pessoas estão, o que estão fazendo, ou onde estão escondendo alguém ou alguma coisa,
apenas tocando nelas?
— Eu não preciso tocar nelas sempre.
Às vezes bastava tocar algum de seus pertences. Foi assim que encontrei Jimmy
da última vez. Infelizmente, ele não deixou nada para trás que eu pudesse acariciar.
— Eu... oh, droga... — Fui até a porta, mudei a posição da placa de "aberto" para
"fechado" e a tranquei. — Me sirva um desses. — Apontei para as garrafas de uísque,
então peguei o crucifixo e o amuleto do chão e os guardei no bolso.
Antes de pegar o copo no balcão, eu me sentei. Megan removeu minha faca da
parede e me entregou, sem fazer comentários. Coloquei-a de volta no lugar certo e fiz o
possível para ajeitar minhas roupas. Tinha perdido muitos botões, então desisti e tomei
um gole de uísque. Não sabia por onde começar, por isso apenas continuei bebendo.
— Ruthie morreu — Megan sugeriu. Achei que esse era um bom ponto de partida.
A população acreditava que Ruthie Kane fora assassinada, e ela fora mesmo, mas
não por mãos humanas ou armas convencionais. O departamento de polícia local ficara
chocado. Não se podia culpá-los. Não havia muitas senhorinhas mortas era sua própria
cozinha com marcas de mordida de animais selvagens.
No final, Jimmy incriminou um matador de demônios que já estava morto, mais
para poder se safar, e a polícia acreditou. Eles tinham de explicar as coisas de algum
jeito.
— Liz? — Megan murmurou, me trazendo de volta à realidade.
— Ruthie me tocou e me deu seus poderes — falei.
— Poderes... — ela repetiu.
— De ver, de saber. — Movi minhas mãos, sem saber explicar exatamente.
Quando uma entidade sobrenatural se aproximava, os videntes ouviam uma voz;
para mim era a voz de Ruthie, dizendo que tipo de demônio estava por trás daquele
agradável rosto humano. Se tivéssemos sorte, recebíamos um alerta através de uma
visão. Então era nosso dever mandar um MD — um matador de demônios — para
resolver o problema.
Antes de morrer, Ruthie passou seu dom para mim, o que me deixou em um coma
profundo, mas eu sobrevivi. Levei algum tempo para aprender a controlar o poder; às
vezes eu continuava sem saber até que ponto estava no controle, mas eu achava que
estava pegando o jeito.
— Existem monstros no mundo — continuei. — Sempre existiram.

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— Sei disso.
— Não estou falando em metáforas. Quando digo monstros, quero dizer dentes e
garras, seres lendários mágicos e antigos, que planejam nos destruir.
— Eu sou irlandesa — disse Megan. — Eu sei.
— E o que ser irlandesa tem a ver com isso? — perguntei, confusa.
— Fui criada acreditando em criaturas mágicas e lendárias, tanto boas quanto más.
Como eu continuasse a olhar para ela com a testa franzida, ela gesticulou, me
encorajando a prosseguir.
— Vamos lá, conte-me.
— Ruthie foi assassinada por um Nefilim.
— Fruto do cruzamento de anjos caídos com humanas...
— Como você sabe disso? — indaguei, perplexa.
— Está na Bíblia, Liz.
— Você leu o Livro de Enoque?
— Sim. — Ela deu de ombros. — Eu era curiosa.
Ao longo dos séculos, várias seções foram removidas da Bíblia. Enoque,
originalmente, era adorado por judeus e cristãos, até que isso foi considerado heresia e
excluído da Bíblia. Eles faziam muito isso, naquela época.
— Para poupar tempo, por que você não me diz o que já sabe? — sugeri. Eu tinha
lugares para ir, pessoas para interrogar, demônios para matar. A mais nova história da
minha vida.
— Alguns anjos receberam a tarefa de cuidar dos humanos — Megan começou. —
Eles foram chamados de vigilantes. Mas, em vez disso, se encheram de luxúria por eles e
foram banidos por Deus. Seus descendentes ficaram conhecidos como Nefilins.
— Alguns dizem que eram gigantes — continuei. — Eles devoravam homens e
feras, bebiam o sangue de seus inimigos. Seus poderes eram inúmeros. Podiam voar,
mudar de forma...
Os olhos de Megan se arregalaram, e sua boca se abriu com a surpresa.
— Você está dizendo que...
— Vampiros, lobisomens. Criaturas más, obscuras, arrepiantes. As origens das
lendas sobre monstros de todas as culturas através dos anos.
— São todas verdadeiras?
— A maioria.
— Os filhos e filhas dos guardiões continuam na Terra — Megan murmurou. —
Isso explica muito.
— Explica?
— Você nunca se perguntou por que algumas pessoas são tão más? Como podem
fazer o que fazem com os outros e continuar sendo humanas? — Megan balançou a
cabeça — É simples. Elas não são.
Ela estava lidando com aquilo melhor do que eu, Mas, afinal, era irlandesa.
— Ruthie podia ver o que essas coisas eram, mesmo quando pareciam humanas?

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Sim.
— E agora você pode?
— Sim.
— Então, o que ela era? — Megan gesticulou com a cabeça na direção de onde
havia visto a mulher de fumaça pela última vez.
— Encrenca — resmunguei.
Mas até aí, que criatura meio-demônio não era? Levantei-me.
— Preciso ir.
— Sem me dizer o que ela era?
— É melhor você não saber.
Era perigoso para Megan saber informações demais. Do jeito como as coisas
estavam, eu não poderia voltar ali por um bom tempo. Isso, se voltasse.
— Você vai atrás dela?
— Tudo a seu tempo.
Primeiro, eu precisava ter uma conversinha com Sawyer, o homem que havia me
dado a turquesa que impedira sua mãe de me matar.
Coincidência? Eu não acreditava mais nelas.
— Então, o que você é? — Megan perguntou. — Uma super heroína paranormal?
Líder de algum culto antidemonita?
— Mais ou menos isso — respondi, mas então hesitei. Deveria abraçá-la ou não?
Eu nunca tinha certeza sobre esse tipo de coisa. — Ouça, Meg, se você precisar de
alguma coisa, ligue no meu celular.
Ela olhou para mim por alguns segundos.
— Dessa vez você não vai voltar.
— Não é seguro ter-me por perto.
— Posso cuidar de mim mesma.
— Graças a mim, teve de aprender.
Ela soltou um suspiro impaciente.
— Esqueça isso, Liz. Eu já lhe disse que a morte de Max não foi culpa sua.
Mas eu não pensava assim. Se Megan morresse por minha culpa, eu não seria
capaz de continuar. E eu precisava continuar. O destino do mundo estava em minhas
mãos.
Fui para casa fazer minhas malas e pegar um avião até Albuquerque. E com
Sawyer morando no limite da aldeia Navajo, que ficava bem longe do aeroporto, eu
também teria de alugar um carro. Com certeza, seria bem mais fácil apenas ligar para ele.
Infelizmente, o homem não tinha telefone. Sawyer era...
Sei lá. Difícil de explicar.
Dirigi meu carro para o norte na Rodovia 43, desci quando cheguei ao subúrbio, e
fui em direção ao oeste, até Friedenberg. O que havia começado como um pequeno
vilarejo às margens do rio Milwaukee se tornara o centro comercial de uma cidade
próspera. Eu morei lá quando era apenas um vilarejo, quando as construções eram

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velhas e os impostos refletiam isso.
Estacionei em frente ao estabelecimento comercial com sobre-loja residencial que
eu havia comprado depois de sair da polícia. Uma loja de miudezas, obviamente fechada
àquela hora da noite, funcionava no térreo.
Abri a porta da rua, entrei depressa e tornei a fechá-la e trancá-la; em seguida subi
a escada até meu apartamento. Uma rápida olhada nos dois cômodos, um que servia de
quarto, sala e cozinha, e o banheiro, revelou que eu estava sozinha. Pelo menos por
enquanto.
Rapidamente troquei meu jeans, a camisa rasgada, o avental horroroso e as
sandálias, por outro jeans e uma regata azul-marinho; o verão no Wisconsin era
implacável, e a temperatura costumava se manter acima dos trinta graus bem depois de o
sol se pôr; então calcei tênis. Correr de sandálias não dava muito certo, e ultimamente eu
vinha tendo de correr bastante.
Passei o crucifixo de Ruthie pela corrente com a turquesa de Sawyer, e então tirei
o amuleto do bolso para examiná-lo melhor. No centro da argola havia uma estrela de
cinco pontas entalhada. No verso, havia uma série de palavras gravadas, num idioma que
eu não conhecia. Não que eu conhecesse muitos, na verdade nenhum, além do inglês.
Guardei o amuleto no bolso do jeans. Já que eu tinha arrancado aquilo do delicado
pescoço da mãe de Sawyer, talvez ele tivesse alguma pista do que se tratava.
E por falar na mãe de Sawyer...
Abri a gaveta da penteadeira próxima à minha cama e peguei a foto que guardava
ali. Quando vi aquela foto pela primeira vez no covil do líder das trevas... um termo
curioso para o chefão do lado do Mal... quase tive um ataque cardíaco. Reconheci seu
rosto da noite em que Sawyer a havia conjurado no deserto. Até aquele dia, eu não sabia
que a mulher de fumaça também era uma Naye'i. Nem que era a mãe de Sawyer. Mas
sabia que era má, e não tinha gostado nada de encontrar sua foto perto do lugar onde o
seguidor de Satã dormia. Então eu a roubei.
Agora estava cogitando se tinha sido uma boa idéia. Antes que pudesse pensar
muito sobre o assunto, rasguei a foto em pedacinhos bem pequenos e os joguei na lixeira.
Talvez isso a impedisse de me encontrar. Mas eu duvidava.
Eu mantinha uma mochila embaixo da minha cama, sempre arrumada e pronta,
com roupas, dinheiro e meu laptop. Não havia precisado usá-la no último mês. Minhas
visões de desagradáveis surpresas sobrenaturais haviam secado, assim como a pequena
área gramada no jardim dos fundos.
Não tinha bem certeza se era porque estava com bem poucos MDs, tendo apenas
dois em meu arsenal depois do massacre do mês anterior: Jimmy, que estava no meio de
uma crise e portanto não seria de muita ajuda, e Summer Bartholomew, com quem eu
não simpatizava e só chamaria em último caso.
Quando as visões voltassem, e voltariam, porque sempre voltavam, eu teria a mim
mesma. Eu era a primeira MD vidente da história e duvidava que o chefe lá em cima, ou
fosse quem fosse que me enviava informações por meio da voz de Ruthie ou de visões,
fosse me dar uma folga de minhas obrigações só porque eu estava com poucos recursos.
A outra opção era que eu tivesse perdido meus poderes, mas não me parecia que
fosse isso, mesmo antes de Ruthie ter sussurrado Naye'i.
Mas agora eu tinha uma terceira opção no amuleto que havia arrancado da mulher
de fumaça. Ela só tinha conseguido chegar perto de mim porque não recebi o habitual
aviso de fatalidade iminente. Até eu pôr minhas mãos no medalhão, a voz fantasmagórica
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de Ruthie havia sido silenciada.
Eu realmente precisava descobrir o que era aquela coisa.
Guardei minha faca na bolsa e olhei para o cofre embaixo da pia onde eu guardava
minha arma quando não estava em casa. Eu poderia levar a faca no avião contanto que
declarasse, mas havia regras sobre o transporte de armas de fogo a bordo. Exigiam
estojos especiais, a munição tinha de ser embalada de determinada maneira, e eu não
conhecia todas elas.
O senso de urgência que havia me guiado desde que saí do Murphy's venceu, e
decidi levar apenas a faca. De qualquer forma, armas de fogo não eram tão eficazes
contra os Nefilins, a não ser que você soubesse onde atingi-los, quantas vezes e com o
quê.
Coloquei a alça da mochila no ombro e me virei. Havia alguém parado na porta.
A voz de Ruthie permaneceu silenciosa. Mas depois do incidente com a Naye'i, a
ausência de sussurros não era tão confiável como costumava ser.
Fosse lá quem fosse aquela criatura, era baixinha. Bem baixinha. Mas se fosse um
demônio, isso não faria diferença nenhuma.
Atirei minha mochila na cabeça do ser e então rolei pelo chão até chegar ao cofre.
Fui campeã estadual de ginástica nos jogos do colégio, o que vinha provando ser bem
mais útil do que eu imaginara. Duvidava que conseguisse abrir o cofre a tempo de atirar, e
não tinha idéia se as balas de prata com que eu costumava carregar minha pistola iriam
funcionar, mas eu tinha de fazer alguma coisa.
A mochila atingiu a intrusa no peito. Ouvi um "uf" abafado, e então um "ei!", no
instante em que meus dedos tocaram o segredo do cofre. Abaixei as mãos; eu conhecia
aquela voz... deveria ter sabido quem era pela baixa estatura, antes mesmo que as luzes
se acendessem, sem que nenhuma de nós duas tocasse no interruptor.
Pequena e loira, a mulher na porta parecia uma fada com feliche pelo estilo
country. A calça jeans justa, a blusa com franja, as botas de caubói e o chapéu branco
estavam um pouco deslocados naquele lugar onde as pessoas se vestiam na última
moda.
— O que você quer? — perguntei, me levantando.
Ela ergueu as sobrancelhas e franziu a boca perfeita. Minha vontade era de socar
a cara dela. Normalmente é o que eu faria, mas me contive. Summer Bartholomew era
minha única MD que estava viva e disponível. E era fada também.
Fada mesmo, de verdade,
Para lutar contra o mal sobrenatural, era necessário mais do que pessoas normais,
por isso a maioria dos MDs era híbrida — descendentes de Nefilins com humanos. A
influência cada vez maior de sangue humano nas sucessivas gerações diluía o sangue
demoníaco o suficiente para que eles fossem capaz de escolher de que lado lutariam. Os
que não eram híbridos eram anjos que não haviam sucumbido à tentação, mas que
estavam do lado de fora dos portões dourados quando Deus os fechou para os excluídos.
Não sendo bons o suficiente para irem para o céu, mas também não maus o suficiente
para irem para o inferno, eles se tornaram fadas.
— Há um problema — Summer começou. — Eu sei, estava indo para o Novo
México.
— Ele sumiu.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Sumiu? Isso é impossível.
— Não — disse Summer. — Não é.
— Há quanto tempo? Ela deu de ombros.
— Fazia semanas que eu não o via. Então fui até lá e... — Ela fez um gesto de
desamparo com as mãos.
— Não era para você ser a guardiã dele?
— Todo ano ele some. E sempre volta.
De repente me lembrei... Uma vez por ano ele saía para caçar. A própria mãe.
Que ela tivesse aparecido ali para me visitar era um fato que se tornava cada vez
mais interessante.
— Se ele sempre faz isso, por que atravessar o país para me avisar?
— Não estou aqui por causa de Sawyer. Estou aqui por causa de Jimmy.
Forcei meus dedos a se abrirem e se movimentarem, depois de cerrar as mãos em
punhos ao ouvir aquelas palavras. Era bobagem minha ficar com raiva e com ciúmes por
ele ter me trocado por Summer. Tínhamos dezoito anos, na época, ambos idiotas de
primeira grandeza. Mas Jimmy mais ainda, já que deveria saber que na próxima vez em
que o tocasse, eu a veria.
Nasci com o dom da psicometria. Basicamente, quando toco as pessoas, eu vejo
coisas. E já tinha visto muito mais do que queria de Jimmy e Summer.
Imagine só, seu primeiro amor, sua primeira vez, tudo em um único pacote. Uma
criança de rua, sozinha e abandonada, que encontrou um lar, e encontrou também a ele.
Achando que ele ama você, que vocês vão ficar juntos para sempre... e depois vê-lo nos
braços de outra pessoa. Eu reagi mal. Na hora, e ao longo dos últimos sete anos.
— O que tem Jimmy? — perguntei.
Algo em minha voz deve ter dado a Summer uma dica do meu humor, porque ela
recuou um passo.
— Do que você tem medo? — Dei um passo à frente. — Você é uma fada, também
tem poderes.
— Sabe muito bem que não posso usá-los contra você.
Eu sorri, e ela recuou mais um passo. Se continuasse assim, iria rolar escada
abaixo. Não que isso fosse machucá-la.
— Adoro as regras das fadas — continuei. — Não se pode usar mágica em
ninguém que esteja em missão de misericórdia. E já que toda a minha vida é uma
incansável luta por uma causa misericordiosa... — Meu sorriso se alargou. — Já a sua
vida deve ser uma droga.
— Você nem imagina quanto!
Antes que eu pudesse perguntar o que ela queria dizer com aquilo, Summer
prosseguiu:
— Voltando a Jimmy... — Meu sorriso desapareceu. — Não sei onde ele está.
Ela baixou o olhar, e a aba do chapéu encobriu seu rosto irritantemente perfeito. As
fadas podiam praticar o glamour, um tipo de metamorfose que as tornava mais atraentes
do que os humanos normais. Mas como a magia das fadas não exercia efeito em
videntes, eu era obrigada a admitir que Summer era realmente linda. Sendo assim, como

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a vida dela poderia ser uma droga?
— Eu sei — retrucou ela, relutante.
— Sabe o quê? — Por um segundo, me esqueci do que ela estava falando. Mas
logo em seguida me lembrei. — Você sabe onde ele está? Ele ligou para você?
— Eu o vi. — Ela apontou para a própria cabeça, e reparei que suas unhas
estavam muito bem-tratadas, pintadas com um esmalte rosa-claro.
— Pensei que você só pudesse ver o futuro.
— Exatamente.
— E de que isso me serve hoje? Summer levantou os olhos.
— Havia uma parada de Quatro de Julho, bem no centro da cidade.
— Isso será daqui a dois dias.
— Sim, no futuro, portanto.
— Em que cidade?
— Barnaby's Gap, no Arkansas.
— E por que você acha que Jimmy está lá?
— Eu o vi assistindo à parada. — Os lábios de Summer, irritantemente da mesma
cor das unhas, se contraíram. — Ele não parecia bem.
Meu coração deu um pulo, e em seguida afundou. Jimmy já não estava muito bem
na última vez em que eu o havia visto.
— Bem, você poderia simplesmente ter ido até lá. Por que vir até mim?
— Porque vocês dois têm uma conexão.
— Acho que a mesma que vocês dois têm.
— Não. — Summer respirou fundo e expirou devagar, o movimento levantando
ainda mais seus seios já empinados. — O que tivemos... — Ela desviou os olhos dos
meus. — Ele ama você.
Eu tinha certa dificuldade para acreditar que Jimmy já tivesse amado alguém, com
exceção de Ruthie. Ela o tirara das ruas, como fizera comigo, mas agora estava morta.
— Mesmo que ele tenha me amado algum dia, que diferença isso faz para tirá-lo
do Arizona?
— Arkansas.
— Que seja.
— Teremos problemas.
Os pelos em minha nuca se arrepiaram.
— Você já disse isso antes.
Mais exatamente, um dia depois de eu ter matado o líder das trevas, também
conhecido como o pai de Jimmy.
— Está aqui.
— Aqui? — Fui em direção à minha mochila, pensando na faca que estava dentro
dela.
— Não aqui, neste exato momento, mas muito em breve. Está vindo.
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— O que está vindo? — perguntei, embora tivesse um bom palpite. A mulher de
fumaça seria minha próxima pedra gigante no sapato.
— Não sei ao certo — respondeu Summer.
— Então, para que você serve?
— Eu encontrei Jimmy. — Ela ergueu o queixo. — Você não.
— Ótimo. Me ligue quando estiver com ele do seu lado.
— Não.
— Não? — Arqueei as sobrancelhas. — Parece que você se esqueceu de quem dá
as ordens aqui.
— Você precisa vir comigo. Você é a líder da luz. É mais forte do que qualquer um
de nós.
Eu não tinha tanta certeza assim sobre isso, embora soubesse que podia muito
bem ser. Infelizmente, para aumentar meus poderes, eu tinha de fazer algo um pouco
além do que estava disposta a fazer, a menos que fosse absolutamente necessário.
Jimmy vai precisar de ajuda — avisou Summer.
O pânico me invadiu. Teria a mulher de fumaça ido atrás dele?
— Como podemos matá-la?
— Ela, quem?
— Não é da Naye'i que você está falando?
— Naye'i — murmurou Summer. — A terrível. A única vez que ouvi falar de um
deles foi... — Seus olhos se arregalaram.
— A mãe de Sawyer?
— É.
— Aquela desgraçada tem sido um pesadelo, desde que nasceu — resmungou
Summer.
Ouvi-la falando assim de alguém me deu uma vontade quase irrefreável de rir
como uma adolescente. Foi difícil me controlar, mas, lembrando-me de com quem eu
falava, consegui.
— Mas os Nefilins não são, todos, um pesadelo? — perguntei. Acho que faz parte
da definição deles.
— Ela é diferente.
— Por quê?
— Ela é mais do que um espírito mau dos Navajos. É também uma bruxa.
— Eu sei. Ela ganhou seu poder matando o pai de Sawyer.
— Que também fora um poderoso xamã.
Eu disse que Sawyer era difícil de explicar. Este é um dos motivos. Ser criado por
uma assassina-espírito-do-mal-bruxa-demônio deixaria qualquer um com problemas.
Tivemos sorte de o sujeito não ter ficado resmungando coisas sem sentido em alguma
esquina ao longo dos últimos séculos.
— É por causa dela que eu estava indo até o Novo México para falar com Sawyer
— expliquei. — Ela apareceu esta noite e tentou me matar.

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— É melhor você ir se acostumando.
— Ruthie não precisava lidar com constantes tentativas de assassinato.
— Nenhum Nefilim conhecia a identidade dela.
— É verdade. — Deus e o mundo sabiam quem eu era.
— O líder das trevas mata o líder da luz e coloca o Armagedom em andamento —
recitou Summer. — Mas quando você inverte isso, tudo se reverte. Ou, pelo menos, é o
que dizem.
— Como é que é?
— Você notou que não tem havido muito caos acontecendo por aí?
— Bem... sim, notei.
— Há um rumor de que, quando o líder do bem, no caso você, mata o líder do mal,
há um retrocesso. Ao menos, até...
— ...até outro palhaço com complexo de Deus conseguir, me matar.
Summer encolheu os ombros. Acho que eu já entendia por que a mulher de
fumaça queria me ver morta.
— Tem certeza de que essa informação procede? Ela assentiu.
— Assim que ouvi o comentário, peguei alguns Nefilins e bati neles, até que me
contassem a verdade.
Quando Summer dizia coisas assim, eu nunca tinha certeza se era a sério ou não.
— Todos contaram a mesma história. — Ela cruzou os dedos. — Tivemos uma
renovação.
— Por que não soubemos disso? Por que Jimmy, ou Ruth, ou mesmo Sawyer não
me contaram?
— Não tenho certeza se eles sabiam. As profecias sobre o fim dos tempos são
confusas. Cada um as interpreta de modo diferente.
— Seria de se supor que Ruth, tendo morrido e ido para algum tipo de paraíso,
tivesse uma boa noção da verdade.
— De fato, seria — concordou Summer. — Mas o que é a verdade?
Eu gemi. Odeio questões existenciais. Para mim, é preto ou branco, bem ou mal,
verdade ou mentira,
— Nós temos livre arbítrio — continuou Summer. — Então, quando escolhemos um
caminho, em vez de outro, toda a profecia muda.
— Maravilha.
— Ruth foi a primeira líder da luz a ser morta por um líder das trevas. Eles já
tinham tentado, mas nunca conseguido. O Armagedom nunca havia sido colocado em
andamento antes, embora muitos acreditassem no contrário.
Por definição, o Armagedom é o período de caos que leva ao Apocalipse. Tenho
realmente tentado evitar a contagem regressiva. Claro que, mais cedo ou mais tarde, irá
acontecer. O fim dos dias é inevitável. Mas não pode ser no turno de outra pessoa?
— O que você quer dizer, que as pessoas achavam que já estivesse em
andamento?

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— Toda geração acredita estar vivendo no fim dos tempos. Os eventos da
Revelação... Armagedom, caos, tribulação, a besta, o Apocalipse... poderiam acontecer
em qualquer ponto da história. Mas nós sempre conseguimos detê-los.
— Nós, você quer dizer, a federação?
— Sim. A lista de figuras históricas que poderiam ter se tornado o Anticristo sem
nossa presença é bem longa. Nero, Calígula, Stalin, Hitler, Mussolini, só para começar.
— Esses todos eram Nefilins?
— Você acha que eles eram humanos, por acaso?
De fato, não, concluí.
— Está me dizendo, então, que qualquer maluco demoníaco pode se tornar o
Anticristo?
— Se ele preencher todos os requisitos antes que um de nós o mate, sim.
— Requisitos... Como me matar, por exemplo?
— Para começar. Depois matar todos os MDs e videntes.
— E depois?
— Líder carismático do mundo, reconstrução do templo, abolição do papel-moeda,
ressurreição dos mortos.
— Epa! O que foi esse último?
— Em algum momento, um deles vai se curar de um tiro na cabeça e então... como
é mesmo que se diz? — Ela bateu a unha rosada na boca rosada. — Será o inferno na
Terra. Literalmente.
— Curar-se de um tiro na cabeça não é uma tarefa muito difícil para um Nefilim.
— Eu sei.
— Então nós seguimos em frente, na esperança de conseguir um tempo extra.
— Seguimos em frente como sempre fizemos — disse Summer.
— Matando, matando, matando.
— Desse jeito, o ciclo nunca vai terminar. Mate o líder da luz, e será o fim dos
tempos... mate o líder das trevas e evite o fim dos tempos. Fim dos tempos... — meneei a
cabeça afirmativamente.
— Não fim dos tempos — balancei a cabeça negativamente.
— Fim dos tempos... Não fim dos tempos...
Eu estava ficando tonta. Baixei a mão enquanto algo me ocorria.
— Ruthie me disse que essa seria a batalha final.
— Talvez. — Os olhos azuis de Summer encontraram os meus.
— Nunca houve alguém como você.
— Então, de acordo com o rumor... — que já seria uma lenda na semana seguinte
— ...matando o líder das trevas, eu evitei o Armagedom. Para começar tudo de novo, eles
têm de me matar. Mas não vai ser tão fácil comigo como foi com Ruthie.
— Não há nada com que se preocupar.
— Exceto a psicótica e espírito maligno e... — E bruxa — acrescentou Summer.

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— Não, eu ia dizer desgraçada, mesmo. — Nós compartilhamos um sorriso, então
percebemos o que estávamos fazendo e paramos. — Ela está... hum... atrás de mim —
terminei. — E não sei como matá-la.
— Primeiro, o mais importante — disse Summer. — Buscamos Jimmy, depois
encontramos Sawyer.
— Temos de fazer isso juntas? — perguntei, com uma careta. Summer e eu na
estrada. Caçando Jimmy Sanducci e confrontando-o juntas. Que pesadelo...
Um Impala ano 57 estava estacionado em frente ao meu prédio, azul-claro, tão
lindo que me fez lacrimejar. Summer abriu a porta do motorista e entrou.
— Esse carro é seu?
Ela me olhou como se dissesse "dãã!..." A fada Summer não podia voar, pelo
menos não em um avião. Ela alterava os controles, e em se tratando de toneladas de
metal e combustível a milhares de pés de altitude, não seria muito boa idéia. Ela podia
ascender ao céu sem asas, uma proeza que eu ainda estava para ver, mas uma pessoa
dançando nas nuvens geralmente chamava a atenção. Por isso, a não ser que houvesse
um assunto de extrema emergência que exigisse sua presença imediata, Summer se
atinha a automóveis.
— Quero dizer, o que aconteceu com sua picape? — perguntei, sentando-me no
banco do passageiro.
— Aquela é para o Novo México. Este aqui... — ela colocou suavemente as mãos
sobre o painel — é para a estrada.
Eu não era uma típica aficionada por carros. O meu carro era um Jetta, para você
ter uma idéia. Mas sempre admirei automóveis antigos, estilo anos cinqüenta e sessenta,
com linhas aerodinâmicas e arrojadas, daqueles que acordam o quarteirão inteiro quando
passam na rua. Esses, sim, são realmente poderosos.
Sempre fez muito sentido para mim que Christine, o carro sobrenatural de Stephen
King, fosse um Plymouth Fury 58.
Summer manobrou e apontou o Impala na direção sudoeste.
— O que você tem aí no bolso? — ela perguntou.
Minha mão tinha se acostumado a ficar acariciando o amuleto. Eu hesitei, depois
me dei conta de que duas cabeças pensam melhor que uma, mesmo que uma delas seja
a cabeça de Summer. Ela tinha tanto tempo de vida quanto a mulher de fumaça, e isso
tinha que ter alguma serventia.
Tirei o amuleto do bolso.
— Eu arranquei isto da Naye'i...
Summer olhou para o aro de prata e franziu a testa.
— Isso é um pentáculo.
— Nunca ouvi falar.
O que não era de admirar. Pergunte-me como limpar uma arma ou preparar um
martíni e sou simplesmente genial, mas no que se refere a artefatos satânicos, sou um
zero à esquerda.
— Pentáculos são amuletos usados para fins mágicos — explicou Summer. — A
estrela é um pentagrama, tem cinco pontas. Se o símbolo tiver uma das pontas voltada
para cima, estamos falando de magia branca.

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— E se tiver duas pontas para cima e uma para baixo, como esta?
— Magia negra.
Eu não estava surpresa.
— Até arrancar o amuleto da Naye'i, eu não sabia o que ela era. Acho que ele
estava bloqueando minhas visões.
— Fantástico — Summer murmurou. — O que acontece se tiver outros iguais a
esse espalhados por aí?
Eu não havia pensado nisso. Até então, estava preocupada com a existência de
um.
— Como você sabe todas essas coisas? — perguntei.
Desde que me foi confiado o cargo de líder da federação, juntamente com meu
destino como vidente, sem praticamente nenhum treinamento, eu não sabia tudo o que
precisava saber sobre os Nefilins. Na verdade, eu não sabia nada.
Matadores de demônios são treinados em táticas de extermínio. Videntes apenas
tinham de ver, mas eu era ambas as coisas. De qualquer modo, não tinha tempo de
estudar os textos antigos, as lendas de cada país e cada povo. E do jeito como as coisas
iam, eu duvidava que algum dia tivesse. Eu consultava qualquer MD disponível, e a
internet, claro.
— Estou neste ramo há algum tempo — Summer respondeu. — Também existe
um site, onde MDs e videntes começaram a criar um banco de dados contendo
informações do que eles sabem sobre determinado Nefilim ou híbrido. Economiza o
tempo gasto na busca.
— Por que eu não sabia sobre isso?
— Foi criado há apenas algumas semanas. — Ela rascunhou um endereço, então
pediu para que eu acessasse os arquivos com senhas. — Não é tão compreensível, já
que matadores são melhores matando do que digitando, e uma grande parte de
conhecimento foi perdida, já que três quartos da federação foram dizimados.
Eu praguejei.
— Conforme-se — disse Summer. — E siga em frente.
Eu não tinha muita escolha.
— Você já tinha visto alguma coisa parecida? — Levantei o amuleto.
Summer o pegou, e fiquei tensa, com um pouco de medo que ela virasse uma
labareda ao tocá-lo. Quem sabia o que aquilo era capaz de fazer?
— A mulher de fumaça provavelmente o confeccionou — disse ela. — Lançou um
feitiço. Sacrificou uma cabra.
Eu gelei.
— Por que você diz isso?
— Sempre há o sacrifício de uma cabra. — Ela olhou para os lados e então voltou
a atenção para a estrada escura. — Você sabia que nem sempre uma cabra é uma
cabra?
— Quê? — A cabra sem chifres. Significa sacrifício humano. — Devo ter feito
algum movimento involuntário, porque Summer ergueu as sobrancelhas. — Não me diga
que está surpresa! Estamos falando do puro mal. Para os demônios, os humanos são

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
presas. Gado. Carne. Cabras, entende?
Eu sabia disso, já tinha visto um sacrifício ser praticado pelo líder das trevas, que
mantinha um harém de mulheres-petiscos. Estava feliz por aquele sujeito estar morto.
Summer deixou o amuleto no banco, entre nós.
— Tem mais alguma coisa incomodando você. A intuição dela era quase tão
irritante quanto suas unhas.
— Eu já tinha visto a Naye'i antes — confessei.
— E você não a matou?
— Eu era criança. — Não fazia idéia do que estava vendo. Bastou ver os olhos do
demônio, e me escondi embaixo das cobertas pelo resto da noite.
— O que aconteceu?
— Sawyer. Ele... — Procurei pelas palavras para explicar o que havia visto. —
Ele... a conjurou. Matando uma cabra.
O carro deu uma derrapada quando as mãos de Summer tremeram no volante.
— Uma cabra cabra, ou...
— Uma cabra cabra. — Ainda assim, fora um choque.
— E depois? Fechei os olhos e vi novamente o que havia visto muitos anos atrás.
Ruthie havia me mandado para Sawyer no verão em que completei quinze anos a fim de
descobrir tudo o que pudesse sobre a capacidade psicométrica com a qual nasci. Eu
precisava aprender a viver com isso, e Sawyer ajudou.
Claro que foi um pouco esquisito mandar uma garota de quinze anos para uma
região isolada do Novo México para ficar com um homem que aparentava ter seus trinta
anos.
Sawyer, porém, não tinha trinta anos. Droga, ele nem mesmo era homem. E eu
não era uma garota de quinze anos como qualquer outra.
Não acho que Ruthie estivesse radiante com a idéia de me mandar para lá, mas
também não creio que ela tivesse muita escolha. Eu era especial de um jeito como ela
nunca havia lidado antes, assim como Sawyer era especial de uma forma que ninguém
podia entender. Por mais que eu tivesse medo dele, ele me entusiasmava, me tentava, e
me ensinou muita coisa.
Naquela noite, tanto tempo atrás, eu acordei no escuro, ouvi uma voz e espiei, pela
janela bem a tempo de testemunhar a morte da cabra e muito mais.
O sangue jorrava sobre as mãos de Sawyer e caía rio chão. Uma fumaça começou
a se formar enquanto ele cantava em uma língua que eu não conhecia — Navajo, sem
dúvida — e erguia as mãos ensangüentadas em súplica para a noite. A fumaça se entre-
laçava com a fogueira no limite do jardim e depois rodopiava, como se quisesse se
libertar. Sawyer então deu uma ordem, e a chama dançante parou, tomou forma e virou a
mulher de fumaça.
Quando ela olhou para mim com aqueles olhos negros vítreos, eu tentei me
esconder, mas era tarde demais. Ela havia me visto, e eu sabia, no fundo de minha alma,
que ela viria atrás de mim um dia.
— Por que ele fez isso? — Summer murmurou, quando terminei minha história.
— Não sei, nunca perguntei.

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— Por que não?
— Eu morria de medo dele naquela época. — Na verdade, ainda morria, às vezes.
Summer acenou, concordando. Sawyer a assustava também. O que significava
que ela era mais esperta do que aparentava ser.
— Ele provavelmente não teria dito a verdade.
— E alguma vez ele diz?
Sawyer era muito poderoso, e com pouca consciência. Na última vez em que o vi,
ele simplesmente me drogou e me possuiu. Ele treinou muitas pessoas para a federação,
matadores e videntes, mas tinha um preço. Independentemente de sua falta de ética e de
seu irritante hábito de fazer o que bem entendesse, ele sabia das coisas. Quando você
vive séculos e mais séculos, você acumula conhecimento.
— Quais são os poderes da Naye'i? — perguntei.
— Viajar com o vento, transformar-se em fumaça...
— Ela deixou minha amiga Megan inconsciente apenas com um olhar.
Summer concordou, meneando a cabeça.
— Adicione isso à lista. Se bem que é possível que ela tenha aprendido isso
através da bruxaria. É difícil dizer.
— Por que ela não me derrubou?
— Porque gosta de sujar as mãos com sangue? Quem sabe? Talvez esse talento
funcione apenas com humanos.
— Eu sou humana. Summer deu uma tossidela.
— Claro que é.
— O que você quer dizer com isso?
Certa vez ela me dissera que um dia eu conheceria minha mãe e que não iria
gostar nem um pouco.
— Relaxe... Eu estava só... — A voz dela morreu nos lábios.
— Me atazanando?
— Sim. Às vezes você pede por isso. Com freqüência, admito.
— Meus pais... — comecei.
— São desconhecidos para nós. Por enquanto. Essa é uma preocupação para
depois. Já não tem problemas suficientes com que lidar?
— Sim.
Encostei-me no banco e fiquei observando a estrada passar. Desde que descobri
que o mundo é habitado por demônios com rostos humanos, comecei a pensar o que
haveria por trás do rosto de meus pais. Ninguém parecia saber, ou se alguém sabiá, não
contava, mas para eu ter o dom que tenho, um deles, ou ambos, também possuía
poderes demoníacos.
— Continuo pensando por que Sawyer tinha de conjurar a mãe — Summer refletiu.
— Considerando que ele sai em uma caçada anual para matar a própria mãe, não
acho que seja normal.
— Ele nunca superou o fato de ela ter matado seu pai.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Sim, ele é assim estranho. Summer me lançou um olhar irritado.
— Aonde quero chegar é: por que ele a conjurou? Ela é de carne e osso, não um
espírito.
— Ela sempre foi? De carne e osso? Um Naye'i é um espírito maligno.
— Os Nefilins foram considerados espíritos malignos através das eras, mas isso
não significa espírito no sentido de fantasma. Apenas... um espírito do mal.
— E aqui voltamos ao por que ele a conjurou. Acho que terei de ir até lá e
perguntar a ele.
Viajamos a noite toda. As fadas, ao que tudo indicava, não precisavam dormir. Mas
como eu precisava, capotei bem antes de St. Louis.
O amanhecer nas montanhas Ozark era uma coisa linda. A neblina aparecia densa
nas colinas, fazendo com que cada raio de sol se esforçasse através dos picos.
A visão me fez querer salvar todo o mundo novamente. Depois de ver um nascer
do sol como aquele, quem não teria vontade de sair e chutar o traseiro de alguns
demônios?
Mas estávamos ali para encontrar Jimmy, descobrir os nomes dos videntes
restantes, e fazer tudo o que fosse necessário para que ele voltasse ao trabalho. Eu não
estava certa de que conseguiria tanto. Nunca fui muito boa como psicóloga, e Jimmy
definitivamente precisava dar unia olhada naquela cabeça e apertar alguns parafusos.
Ou de um abraço. Eu não sabia bem qual.
Chegamos a Barnaby's Gap ao entardecer, bem mais tarde do que eu havia
planejado. Apesar de Summer ser uma fada, acabamos nos perdendo, demos voltas,
voltamos parte do caminho, perdemos tempo.
A cidade era velha, provavelmente estava ali desde a Guerra Civil. No passado, as
Ozarks foram um prato cheio para a mineração; mas, assim como aconteceu com a
maioria das minas, o ouro acabou. As cidades que cresceram para suprir as
necessidades das indústrias ou morreram ou encontraram outra forma de tocar a vida
adiante.
A maioria das localidades de Ozark tinha recentemente começado a se beneficiar
da explosão do turismo ocasionada pelo sucesso de Branson. Barnaby's Gap, não, Não
se podia culpá-los.
Por que macular a vista espetacular com condomínios completos com piscina,
quadra de tênis, academia e spa. Por que encher a rua principal de comércio do tipo que
vende velas, decoração para festas, antiquados, artesanato e doces?
Eles sem dúvida sobreviveram sem se entregar às massas por causa da serraria
impressionante pela qual passamos no caminho. Eu tinha certeza de que a maioria dos
habitantes trabalhava ali, enquanto a minoria ganhava a vida nas lojinhas de rua, prova -
velmente pertencentes às mesmas famílias havia tempos.
Passamos por uma mercearia, um consultório médico, uma farmácia e... ora, vejam
só!... uma cafeteria.
— Café — murmurei, apontando.
O modo como falei deve ter indicado a Summer o quanto eu estava necessitada de
um café, porque ela estacionou o Impala junto ao meio-fio e me seguiu para dentro sem
discutir.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
O local estava quase vazio àquela hora do dia. Pedi um café grande e forte a uma
jovem muito pálida, que parecia extremamente assustadiça. Ela deu um pulo quando falei,
como se tivesse sido alto demais, depois deixou meu troco cair, encolhendo-se quando as
moedas bateram no balcão. Acho que andava tomando café demais.
Tomei vários golinhos, rapidamente, antes de me afastar do caixa.
— E agora? — perguntei. — Esperamos até Jimmy aparecer para o desfile?
— Acho que não.
— O olhar de Summer estava fixo na vidraça da frente, que dava para a rua
principal. E a rua estava deserta. Comecei a ficar inquieta. Claro, aquele lugar não era um
chamariz de turistas, mas deveria ter alguém passando por ali.
— Vamos — chamou ela.
Andamos pela calçada, espiando em cada vitrine. Todas as lojas estavam abertas,
os empregados fazendo seu serviço, mas todo mundo estava meio assustado. Quando
aparecíamos pelo vidro, eles davam um pulo, olhavam para nós com olhos arregalados e
rapidamente desviavam o olhar. Não gostei nem um pouco disso.
Bem à frente, um senhor veio em nossa direção; alto e magro, com cabelos
brancos e bem-vestido. Não era um mendigo, apesar do jeito como seus ombros estavam
caídos e de como resmungava consigo mesmo, o que me fez lembrar de vários que eu já
tinha visto. Enquanto se aproximava, suas palavras vagaram até nós, carregadas pela
brisa da tarde.
— Olhos vermelhos — entoava ele. — Dentes e sangue. O demônio nas colinas. O
demônio nas cavernas...
Acho que aquilo explicava o comportamento da população.
Imediatamente, passei na frente de Summer e coloquei minha mão no ombro do
homem. Em sua maioria, emoções fortes transmitidas assim — medo, ódio, amor — me
davam uma visão das situações envolvidas. Como o sujeito estava apavorado, fui
invadida por tantas imagens que quase caí.
Noite. Escuridão. Árvores. Água. O cheiro acre do terror, o roçar do perigo. Correr.
Cair. Dor. Sangue. E então, um entorpecimento misericordioso, abençoado. Droga.
Definitivamente, havia algo ali.
O pobre homem me olhou como se esperasse minha transformação em monstro.
Eu não podia culpá-lo. Pessoas normais não estão programadas para aceitar a aparição
de um filme de terror em sua cidadezinha. Normalmente, os Nefilins não deixavam
ninguém vivo, então não tínhamos de lidar com o comportamento de zumbi dos
sobreviventes. O que só me fazia imaginar com que tipo de fera estávamos lidando.
Ele não era tão idoso quanto eu acreditara a princípio. O modo como ele
caminhava, os resmungos, os cabelos brancos, indicavam pelo menos sete ou oito
décadas de vida, mas seu rosto aparentava mais para uns quarenta e cinco, e percebi
que ele vira alguma coisa que o envelhecera, talvez da noite para o dia.
— Viu algo? — Summer perguntou.
Assenti, depois indiquei o sujeito com a cabeça, e ela estalou os dedos, soprando
pó de fada. Assim que as partículas cintilantes, invisíveis aos outros, atingiram o rosto
dele, seus olhos clarearam, suas costas sé endireitaram, e ele saiu com a postura de um
homem bem mais jovem.
— Ele não vai se lembrar? — perguntei.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
A resposta dela foi um olhar fulminante. Claro que não.
— Com o que estamos lidando aqui? — pressionou Summer.
— Não sei.
— Nada de sussurros? Nenhuma visão?
— Não.
Enfiei a mão no bolso e esfreguei o polegar no amuleto.
Será que o que andava assombrando aquela cidade também tinha um amuleto?
Senão, como eu não teria visto o monstro em uma visão, ou ouvido Ruthie assim que
cruzamos os limites da cidade?
Vozes altas chamaram nossa atenção para o outro lado da rua, onde várias
pessoas estavam envolvidas em uma discussão acalorada. Gestos de mão na direção
das montanhas, uma imitação de alguém pegando um rifle, mirando e atirando... Parecia
que mais de um morador tinha encontrado a coisa nas colinas.
Outro homem, e uma mulher usando um vestido de verão, verde e sem mangas,
juntaram-se à turma. Admirei a linha do pescoço e o decote interessante em forma de
coração que revelava seu colo e um pouquinho da fenda entre os seios. O homem
também fez gestos e imitação de artilharia. A mulher continuava quieta, parecia meio
dopada.
— O que você acha? — perguntou Summer.
— Acho melhor acertá-los também. — Se eles fossem até as montanhas com
armas convencionais, seriam mortos.
— Não entendo isso — resmunguei, enquanto íamos em direção à aglomeração.
— Não ouvi nada, não vi nada. E se Jimmy está na cidade, o demônio nas cavernas
deveria estar morto a esta altura.
Antes de ter seu ataque de nervos, Jimmy tinha sido o melhor caçador da
federação. Não precisaria de mim para lhe dizer que havia algo estranho em Barnaby's
Gap.
— Tem certeza de que ele está aqui? — questionei.
Summer lançou uma imensa nuvem de pó de fada sobre a reunião. Em vez de irem
embora com um caso sério de perda de memória recente, o grupo congelou, como se
fossem o maior exemplo de brincadeira de estátua do país.
— Se tenho certeza de que Jimmy está aqui? — Summer repetiu e se aproximou
da mulher de vestido verde.
Ela puxou um pouco para baixo o lenço no pescoço para revelar feridas em um
padrão familiar, antes de seu olhar encontrar o meu.
— Sim, tenho certeza.
Summer bateu palmas, e as pessoas se afastaram, sem nem um olhar em nossa
direção.
Senti-me tão congelada quanto eles tinham estado. Jimmy era o demônio nas
montanhas. É agora, o que eu faria? Provavelmente, o mataria.
— Precisamos arrancar dele os nomes dos videntes antes de... — Parei ao ouvir
Summer engasgando.
— Você não pode matá-lo!

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Ah, sim, eu posso!
—Você o ama!
— E o que isso tem a ver com o assunto?
Talvez eu ainda amasse Jimmy. Provavelmente amava. Mas também o odiava. Ele
me machucara tantas vezes, de tantas formas... Apenas um mês antes, ele tinha me
mantido como sua escrava sexual, e quase me matara. Que estivesse possuído por um
vampiro e strega, um bruxo medieval, que por acaso também era seu pai, era apenas um
detalhe,
Jimmy era um dampiro — parte vampiro, parte humano — um híbrido. Ele possuía
muitas caraterísticas de vampiro: velocidade, força e a habilidade de curar quase qualquer
coisa, combinadas com o talento de um dampiro de identificar criaturas noturnas.
Entretanto, uma vez que compartilhou sangue com seu pai, sua natureza vampírica tinha
despertado. Ele fugira para tentar sufocá-la. Pela aparência de Barnaby's Gap, não tivera
muita sorte.
Eu me voltei, indo até minha mochila, onde guardava não apenas minha faca de
prata, mas também, já que viajávamos de carro, a arma que retirara do cofre. Eu sabia
como matar um dampiro: acertar duas vezes no mesmo lugar. Da última vez, eu só
conseguira enfiar a estaca uma vez. Nem mesmo o deixou mais lento.
— Ele não matou ninguém. — Summer se apressou a meu lado.
— Não sabemos disso.
Ela parou de súbito, e eu também, embora não soubesse por quê. Seu pó de fada
não funcionava em mim.
— Ele não faria isso, e eu vou provar.
Summer girou sobre os saltos das botas e voltou pela calçada. Parando a algumas
vitrines de distância, indicou a placa: Clínica Médica de Barnaby 's Gap. O que ela estava
tramando?
Antes que eu pudesse perguntar, ela tirou uma carteira do bolso de trás do jeans e
abriu a porta. Eu fui atrás dela, enquanto ela abria a credencial e declarava:
— FBI. Houve alguma morte inexplicável por aqui?
Eu fiquei estupefata, do mesmo jeito que o rapaz na mesa da recepção. Com a
diferença de que ele estava olhando embasbacado para o rosto dela, e eu, para a
credencial. Parecia autêntica para mim.
— Eu... bem... não sei, exatamente. É melhor você falar com o doutor, agente... —
Ele se inclinou, espremendo os olhos sobre a identificação. — Tink. — Ele sumiu, indo
para os fundos.
— Agente Tink? — perguntei. — Acha isso engraçado?
— Hilário — falou ela, mas seus olhos estavam apertados, e seus olhos, sérios.
Baixei minha voz.
— Onde conseguiu essa identificação?
— Onde você acha que foi?
Abri a boca para exigir uma resposta, depois a fechei de novo. Afinal, não
importava.
— Acha que os MDs podem andar por aí matando gente? — ela continuou.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Eu nunca tinha pensado nisso. E não pensava nos Nefilins como pessoas. Não
mais. Mas eles pareciam humanos, levavam vidas humanas para se misturar, causar
mais caos. Quando desapareciam, aconteciam interrogatórios, embora, em sua maioria,
os Nefilins se desintegrassem em cinzas, quando mortos do jeito certo. A ausência de
corpos resolvia muitos problemas, mas não todos, e em muitos casos essa ausência só
parecia criar um novo conjunto de problemas.
— Às vezes, mesmo com os videntes para nos guiar, temos de caçá-los —
prosseguiu Summer. — Ajuda ter um passe livre.
Ela balançou a carteira.
— Por que você não acerta todo mundo com o pó cintilante e os faz cuspir tudo o
que tiverem na cabeça?
— Compelir as pessoas a me dar informações já é suficiente para eu obter as
informações.
— E por que isso é ruim?
— Porque não recebo impressões, pensamentos, sensações que, ao lidar com o
sobrenatural, são importantes. Por exemplo, se alguém vê algo bizarro e racionaliza isso,
como a maioria faz, eles não me falariam a respeito se os atingisse com a poeira da
verdade.
— Mas eles contariam ao FBI sobre o demônio nas montanhas?
— Você se surpreenderia com o que as pessoas contam ao FBI.
De alguma forma, eu não acreditava nisso.
— O que acontece se alguém for checar com o FBI sobre a agente lindíssima que
estava fazendo perguntas esquisitas?
Ela me lançou aquele olhar de novo, e eu entendi.
— Você os acerta com uma dose de "me esqueça" assim que termina.
Summer piscou e voltou-se para cumprimentar o médico. O dr. Gray era a versão
hollywoodiana de um médico de cidade pequena. Alto, magro e grisalho, com olhos
cinzentos brilhantes e expressivos por trás dos óculos de armação fina de metal.
— Nunca tive o FBI me procurando antes — ele comentou, com o sotaque dos
Estados de fronteira.
— Não vamos tomar muito do seu tempo — disse Summer. — Houve alguma
morte inexplicável na região no último mês?
— Nenhuma.
Summer me lançou um olhar de triunfo.
— Há algum hospital por perto? — perguntei, refletindo que um hospital seria o
lugar para se perguntar sobre mortes sem explicação, não o médico local.
— Não, num raio de cem quilômetros.
— Então — continuou Summer —, qualquer atestado de óbito seria assinado por...
— Por mim — respondeu o dr. Gray. — Sou o único médico da cidade, por isso
também trabalho como legista. Os corpos vão daqui para a agência funerária.
— Não há um necrotério?
— Não precisa. — O médico contemplou Summer por vários segundos. — Embora

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
eu duvide muito que isso lhe diga respeito, temos tido um estranho surto de ataques de
animais. As pessoas estão tão traumatizadas que não conseguem se lembrar de nada, só
de olhos vermelhos. As descrições parecem ser de um urso. O que fez as pessoas
começar a falar sobre o uivador negro de Ozark.
— E o que é isso? — perguntei.
— Uma criatura lendária que vaga pelas montanhas.
Olhei para Summer, que já não parecia tão alegre. Em nosso mundo, criaturas
lendárias significavam Nefilins, e eram reais. Teríamos de tomar cuidado com um uivador
também. Só como prevenção.
— Eles têm o tamanho de um urso — prosseguiu o doutor. — Pelos pretos
desgrenhados e chifres. O som que eles emitem é algo entre o uivo de um lobo e o
bramido de um alce. Mas nunca ouvi falar de um uivador que mordesse alguém.
— As pessoas estão sendo mordidas? — Minha pergunta era apenas uma
orientação, eu já tinha visto a evidência.
— Sim. O que é estranho, uma vez que uivadores geralmente matam as pessoas
só de olhar para elas.
— E as feridas, doutor? — encorajei.
— Ah, sim. As feridas são diferentes de tudo que já vi. Animais rasgam e
despedaçam. As pessoas... bem, as pessoas deixariam na pele uma marca reconhecível
dos dentes de cima e de baixo. O que temos são marcas de perfuração. Como se alguém
estivesse tentando nos fazer acreditar que há um vampiro à solta.
Eu ri, e Summer também. O dr. Gray permaneceu sério.
— Qual o interesse do FBI em Barnaby's Gap? — ele questionou. — Ninguém foi
morto, então não estamos falando de um psicopata, nem de um assassino serial.
Os dedos de Summer estalaram. Ela queria acertá-lo, mas ainda precisava de
algumas informações.
— Pode nos dizer onde essa criatura foi vista?
— Nas cavernas. — Ele foi até a janela e apontou para o pico mais próximo,
coberto de vegetação. — Do lado oeste da ponta. O pessoal está falando em subir e atirar
em qualquer coisa que se mova. Não acho que seja uma boa idéia.
Eu também não, já que atirar só iria irritá-lo.
Jimmy podia curar qualquer ferida, a menos que alguém conseguisse atingi-lo com
duas balas exatamente no mesmo ponto, e em um ponto fatal.
O único modo de isso vir a acontecer seria chegando perto o bastante para
encostar uma arma em seu peito ou cabeça e acertá-lo duas vezes. Jimmy podia não ser
o mesmo, mas isso não queria dizer que deixaria alguém armado chegar perto dele,
mesmo que fosse eu.
— As lendas dizem que, para matar um uivador, tem-se de retirar a cabeça com
ele ainda vivo. — O doutor deu uma risada curta e aguda. — Estava imaginando como
isso seria...
Partículas brilhantes passaram pelo meu rosto e choveram sobre o dr. Gray,
interrompendo-o no meio da frase. Ele continuou olhando para as montanhas distantes,
como se não estivéssemos ali. Para ele, provavelmente não estávamos.
A porta interna se abriu, e Summer lançou uma porção sobre o ombro, pegando o

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assistente em cheio no rosto, enquanto ele voltava para a sala.
Saímos sem nos despedir. Não acho que pudesse ser considerado rude, já que
ambos não se lembravam de quem éramos ou até de que tivessem falado conosco.
Voltamos para o Impala.
— Você dirige — ela falou.
Não precisava dizer duas vezes. Pulei para trás do volante, liguei o motor e pisei
no acelerador. Summer levantou as mãos acima da cabeça. Pó de fada fluiu pelo centro
da cidade, girando para dentro das portas, dançando pelas chaminés e janelas abertas.
A estrada fazia uma curva para cima, e começamos a ascender ao topo do pico,
onde eu quase esperava encontrar uma placa indicando o caminho para as "Cavernas
Assustadoras".
— Imagino que todos de Barnaby's Gap vão esquecer nossa passagem?
Summer assentiu, ainda massageando as mãos.
— Assim como qualquer coisa assustadora nas montanhas.
— E se alguém estiver fora de casa hoje? De férias, viajando...?
— Se ninguém mais se lembrar, eles acabarão esquecendo também. É da
natureza da mente humana racionalizar.
— O que acontece em lugares aonde você não vai? Jimmy não tem esses talentos
de "esqueça-me".
Porque, se ele os tivesse, eu também teria.
— Como eu disse, as pessoas racionalizam. Uma vez que a ameaça se vai, as
lembranças somem, especialmente quando essas lembranças são tão difíceis de
acreditar, para início de conversa. Eles vão começar a pensar que tiveram um pesadelo,
um delírio.
— Uma cidade inteira vai esquecer um assassinato em massa por um monstro?
— Assassinato em massa não acontece. — Eu me encolhi, e ela se corrigiu: —
Com freqüência.
Eu já tinha visto assassinato em massa. Tinha chegado tarde demais para evitá-lo
e ainda era assombrada pelas imagens, quase toda vez que fechava os olhos.
— Os Nefilins matam — assinalei. — Eles gostam disso. Um assassinato em
massa seria a glória para eles.
— Os MDs são enviados ao primeiro sinal de problema, se não antes. O objetivo
da federação é deter os Nefilins antes que causem morte e destruição. Por que outra
razão todos os nossos videntes seriam paranormais?
— Então, o que aconteceu em Barnaby's Gap?
— Jimmy é um de nós.
— Então não recebemos nenhum aviso de que ele está fazendo um lanchinho com
as pessoas mais fracas? Parece que temos um problema na comunicação.
— Eu o vi — disse Summer, baixinho.
Meus olhos se estreitaram, e minha boca se apertou. Eu não precisava que ela me
lembrasse disso.
— E por quê? — questionei. — Você não é vidente.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— E Jimmy não é um Nefilim.
— Não entendi.
— Se os poderes enviassem uma visão de Jimmy para qualquer vidente, um MD
seria enviado, e ele estaria morto. Obviamente, não o querem morto, por isso a
mensagem para mim.
— Convenientemente, sem a informação de que ele passou dos limites e começou
a chupar o sangue dos locais como um vampiro recém-transformado.
— Isso foi deixado de fora por um motivo. Nós precisamos encontrá-lo, temos de
ajudá-lo. Não devemos matá-lo.
— Ainda não temos um veredito sobre isso — falei.
— Parece um pouco injusto, já que você é o juiz, o júri e... — Ela se interrompeu,
mordendo o lábio.
— O executor? É verdade.
— Você quer puni-lo por algo, cujos detalhes não conhece.
— Conheço os fatos, Summer. Jimmy compartilhou o sangue com o strega; tornou-
se igual a ele. Ele começou a matar gente naquela torre de metal em Manhattan. Sei
disso porque estava lá. Ele me manteve cativa. Bebeu de mim até eu ficar fraca demais
para lutar.
Mas quem sofreu foi ele, pois tentando me ferir, me humilhar, me subjugar, ele
estava, na verdade, me fortalecendo. Quando ele tomou meu corpo, me deu suas
habilidades sobrenaturais. Foram eles que me permitiram destruir o líder das trevas.
— Aquele não era ele — ela murmurou.
— Andava como ele, falava como ele, parecia-se muito com ele. — Não mencionei
que também transava como ele.
Eu tinha ficado tão confusa... Acreditava que Jimmy ainda estivesse dentro daquela
coisa que vestia sua pele, que se eu pudesse fazê-lo lembrar-se de nós, poderia salvá-lo.
Fui uma tola.
— Eu não estava falando de Manhattan — disse Summer.
— Então do que... — Meus dedos apertaram o volante. Eu não ia conversar sobre
aquilo.
— Você nunca se perguntou por que ele foi tão ingênuo de dormir comigo,
sabendo muito bem que quando você o tocasse veria tudo?
— Achei que fosse porque ele é homem. — Deixei meu olhar deslizar do topo
daquele chapéu estúpido até a ponta das botas. — Ele não conseguiu manter o zíper
fechado mais do que qualquer outro conseguiria.
— Você não tem uma opinião muito boa sobre os homens, não é?
— E deveria ter? — Todos em quem confiei me traíram. Summer suspirou.
— Você deveria pensar um pouco melhor de Jimmy. Ele não era tão idiota quanto
parecia.
— Isso seria impossível — resmunguei. Se ele fosse tão idiota, seria incapaz de
andar e falar ao mesmo tempo.
Continuei a dirigir subindo a montanha, mas comecei a pensar, e não gostei do
rumo que meus pensamentos seguiam. Summer tinha razão, embora eu odiasse admitir

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
isso. Jimmy sabia o que eu podia fazer, logo, saberia que eu o veria com Summer.
— Está me dizendo que ele queria terminar comigo, mas era covarde demais para
me encarar, então... — Fiz um gesto vago na direção dos seios dela.
— Para alguém com assento permanente no trem dos retardados, você chama os
outros disso muito facilmente.
Engasguei. Aquilo era algo que eu diria.
— Se pensar sobre isso com sua cabeça em vez de com seu coração infantil —
disse Summer —, você vai enxergar a verdade. — Ela ergueu os olhos. — Chegamos.
Segui a direção de seu olhar. Logo acima, na curva seguinte da estrada, assomava
o semicírculo escuro da entrada de uma caverna. Pontuando a área ao redor dela, havia
cerca de outras dez ou doze. Eu não tinha tempo de me preocupar com o que Jimmy
fizera tantos anos atrás. Tinha de lidar com o que ele andava fazendo ultimamente.
Levei o carro até a curva final e estacionei fora da estrada, em uma área de
cascalho reservada para acostamento. Saímos, olhamos para cima e suspiramos.
— Você vai para aquelas — apontei para o lado esquerdo. — Eu fico com as da
direita. Quem encontrá-lo primeiro... — Parei, incerta de como terminar a frase.
— Ganha? — murmurou Summer, e flutuou para cima, sem precisar de asas.
Eu teria de subir à moda antiga, me arrastando pelo chão cheio de pedras, me
impulsionando para cima sobre áreas íngremes, usando raízes expostas de árvores,
deslizando vários metros aqui e ali, depois amaldiçoando Jimmy Sanducci, Summer, os
Nefilins e qualquer um de quem eu me lembrasse.
Ainda bem que eu tinha velocidade e força superiores, graças a Jimmy, e os cortes
e arranhões que eu recebia se curavam quase imediatamente. Ainda assim, preferiria
voar. Devia ser divertido. Mas estava restrita às minhas armas, pelo menos figurativa-
mente, e me virando com elas até onde podia. Tinha certeza de que, mais cedo ou mais
tarde, iria precisar de mais magia do que possuía para combater os Nefilins.
Deixei minha pistola no carro e levei apenas a faca. Ricochetes c pedaços de
rocha, sem mencionar a falta de iluminação adequada, tornavam desaconselhável atirar
dentro de uma caverna.
Arrastando-me sobre um monte de terra, contemplei uma caverna escura e pouco
acolhedora. Olhei para o oeste e praguejei mais um pouco... Era o que faltava para
completar meu dia. Nuvens imensas e escuras rolavam pelo horizonte.
Dentro da caverna, tirei uma lanterna da mochila e verifiquei cada recanto. Nenhum
sinal de Jimmy. Teria sido muita sorte encontrá-lo no primeiro lugar em que procurava.
Continuei subindo, com um ouvido procurando Summer e o outro escutando o
vento. Lembrei-me de ter lido em algum lugar sobre tempestades que interditavam as
montanhas para o tráfego. Não seria lindo ficar presa ali a noite toda com Jimmy, o
vampiro surrado?
Eu falava muito em matá-lo, mas isso não seria fácil, emocional ou fisicamente.
Jimmy era perigoso. Já era, antes mesmo de virar vampiro. Seu verdadeiro trabalho — ou
talvez fosse o seu disfarce, e matar demônios sua verdadeira profissão, não sei — era
fotógrafo de celebridades. Ele viajava pelo mundo, era muito requisitado; sempre tivera
um bom olho para cores, luz, pessoas, e isso o levou longe.
Mas houve um tempo em que ele foi uma criança de rua como eu, hábil com uma
faca e de pavio curto. Ninguém se arriscava com Sanducci naquela época; quando isso

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
acontecia, a pessoa se arrependia profundamente.
Na quarta caverna, caí no chão. Primeiro pensei que fosse outro buraco vazio e
úmido, mas essa seguia em frente, ligeiramente maior que as outras. O ar era mais frio;
eu podia sentir o cheiro de água, ouvi-la fluindo em algum lugar. As paredes estreitas de
pedra se ampliavam até se abrirem em uma gruta.
Algum bicho guinchou; um morcego, talvez um rato. Nenhum dos dois me
assustava. Varri o lugar com a luz da lanterna, e estava me virando para sair quando meu
cérebro registrou algo no canto mais distante. Pés calçados, pernas cobertas por jeans.
Podia ser qualquer um, mas não era. Eu reconheceria o cheiro de Jimmy em qualquer
lugar. Mesmo coberto de sujeira, água, musgo e outros odores mais desagradáveis, ainda
era possível sentir o aroma de canela e sabonete.
Lentamente, me virei, levantando a luz. Ele estava um horror.
A camiseta já tinha sido branca, mas agora era marrom-acinzentada, e estava em
frangalhos. Sua pele, sempre bronzeada, mesmo nos invernos mais frios e longos,
cintilava; os músculos de seu abdômen e as curvas flexíveis de seus bíceps e peitorais
brilhavam sob a luz. Seus olhos estavam fechados, e ele murmurava, em um sono
agitado. Os cabelos escuros, embaraçados com suor e terra, caíam parcialmente em cima
do rosto.
Se eu ainda precisasse de alguma evidência de que Jimmy não se encontrava em
seu estado normal, a sujeira fecharia o caso. Desde que fora para a casa de Ruthie, ele
tomava duas ou três banhos por dia. Era mais cheiroso do que qualquer outra pessoa que
eu conhecia. Sempre achei que essa obsessão se devesse a tantos anos passados nas
ruas, onde as condições de asseio eram precárias.
Havia compulsões piores. Beber sangue, por exemplo.
Peguei minha faca na cintura, apertando tanto o cabo que meus dedos doeram.
Arrastei-me adiante, sem saber o que devia fazer. Não podia matá-lo enquanto dormia,
embora, se fosse mesmo inevitável fazê-lo, aquela seria minha melhor chance. Eu só não
tinha certeza...
Seria tão mais fácil se ele abrisse aqueles olhos para mostrar uma centelha de
vermelho no meio deles, depois sorrisse com as presas e tentasse me matar...
— Jimmy? — Eu mesma mal podia me ouvir, porque meu coração batia mais alto
que minha voz.
Ou será que eram trovões? O chão parecia tremer com eles.
— Jimmy! — chamei novamente, dessa vez um pouco mais alto. Mas de novo
minha voz foi tragada pelo estrondo do trovão.
O vento que eu esperava encheu a caverna, levantando meu cabelo enquanto eu
ouvia a voz de Ruthie murmurar uivador negro... Olhei para a entrada, muito distante e
pequena. Algo se moveu à luz cinzenta que ia embora, fazendo com que piscasse pelo
túnel como em unia discoteca. Pelo tom e volume do sussurro de Ruthie, deduzi que o
uivador era um Nefilim, não um híbrido. Geralmente eu sabia dizer pelo número de corpos
ao redor. Nefilins gostam de matar.
Entretanto, alguns híbridos também gostam. Alguns lutavam por nós, alguns por
eles, e outros ainda estavam indecisos. O mesmo valia para as fadas.
Olhei para Jimmy. Ele continuava a se virar e resmungar no sono, mas não
acordou. Ouvi algumas palavras.
— Não... não posso... não vou... sede... — E depois: — Perdão, Lizzy.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Ele era o único que me chamava assim, e quando o fazia, eu sabia que era Jimmy.
Quando ele estava sob o controle de seu pai esquisitão, me chamava de Elizabeth. Eu
odiava isso quase tanto quanto odiava as vezes em que ele me chamava de "querida".
O ser na entrada moveu-se para dentro. Segurei minha faca com mais força e me
lancei para ele. Grande e descabelado, com uma cabeça parecida com a de um urso, era
provavelmente o Nefilim mais feio que eu já vira. Imaginei qual seria a parte humana
escondida nele, até chegar perto o suficiente para ver que o longo pelo negro escondia
um nariz que poderia ser de qualquer pessoa normal.
Desviei os olhos, dando espiadelas pela visão periférica. Não podia me arriscar a
cair morta, embora já estivesse cogitando se esse poder não seria um mito. Se fizesse
muito tempo que aquela fera estava nas montanhas, haveria corpos espalhados por toda
parte.
Ainda assim, eu não testaria as possibilidades; não deixaria o uivador passar pelo
meu corpo inerte para chegar até Jimmy. Eu poderia até ter de matá-lo mais tarde, mas
de jeito nenhum deixaria que um Nefilim fizesse isso.
De acordo com o dr. Gray, o modo de matar um uivador era separar sua cabeça do
corpo. Pena que eu tivesse deixado em casa minha espada samurai e meu machado.
Não sabia como iria matar aquela coisa, mas tinha de tentar.
A besta estava me deixando nervosa ao inclinar a cabeça, tentando enxergar o que
estava atrás de mim, e fazendo um barulho suspeito, parecido com "humm...". Talvez um
dampiro fosse uma guloseima para um uivador. Vai saber...
De repente, a criatura inclinou a cabeça para trás, abriu os braços e soltou um uivo
terrível, inumano. O som balançou as paredes da caverna, latejando em meus tímpanos
até me dar vontade de tapar os ouvidos com as mãos. Fiquei paralisada, quando o
uivador deu um passo à frente e tentou me estapear, eu mal consegui me abaixar.
Desequilibrada, caí de joelhos. Meus ouvidos tiniam por causa do eco na caverna,
mas eu consegui afundar o ombro e rolar, enquanto ele tentava acertar minha cabeça
com suas garras afiadas como navalhas. O ar chicoteou perto do meu rosto.
Fiquei de pé, me esquivei de outro tapa, depois pulei para evitar um apertão e
acertei seu queixo com o calcanhar. Consegui segurar minha faca, mas deixei cair a
lanterna. Não importava muito, já que estávamos perto da entrada o suficiente para
sermos iluminados pela claridade do fim de tarde e pelos relâmpagos da tempestade que
se aproximava.
Onde estava Summer, afinal? Ela já devia ter terminado de conferir as cavernas do
outro lado, àquela altura. Na certa, tinha flutuado de volta para o Impala para me esperar.
Do jeito como as coisas estavam indo, ela esperaria bastante.
Quanto tempo demoraria até que ela viesse me procurar? Chegaria a tempo? Seria
de alguma utilidade, se chegasse?
Eu não podia depender dela, nem de ninguém além de mim mesma. Que
novidade!
O uivador veio trabalhosamente atrás de mim, dando um golpe poderoso. Eu me
abaixei, e quando me levantei, atingi-o com a faca de prata. Ele rugiu aquela combinação
horrorosa de uivo e trombeta que fazia meus ouvidos doer, mas não explodiu em cinzas.
Imaginei que não o faria. Não era um metamorfo, portanto prata não o mataria. Eu estava
só ganhando tempo.
Tentei arrancar a faca de volta, talvez acertá-lo outra vez, se pudesse, mas ela
estava enterrada fundo. Meus dedos, banhados em sangue, escorregaram, e eu acabei
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deixando a arma no peito do uivador. Estava reduzida à minha velocidade, minha força e
minha esperteza.
— Isto tem de dar certo — murmurei.
Minha voz enfureceu o Nefilim. Ele soltou aquele som medonho outra vez, e a
breve paralisia que se seguiu à quase explosão dos meus tímpanos permitiu que ele se
aproximasse. Dessa vez, quando ele me estapeou, eu voei. Quando minhas costas
atingiram a parede de rocha, captei um borrão de movimento no fundo da caverna.
Deslizei para o chão, piscando para clarear a visão a tempo de ver Jimmy dar um
empurrão no peito do uivador. A fera recuou vários passos. Os olhos de Jimmy
flamejavam, bem do jeito como eu tinha imaginado, vermelhos no centro. As presas
apareceram. Ele rosnava como um animal raivoso, e fiquei tensa, esperando que
avançasse e afundasse aqueles dentes brancos e brilhantes no pescoço do Nefilim.
Em vez disso, ele colocou uma mão na cabeça do uivador, a outra no ombro, e
partiu a fera em duas, como um osso de frango.
O sangue espirrou para todos os lados, deixando negro o chão de terra, tingindo de
vermelho meus sapatos brancos, sujando minha camiseta e meu rosto.
Jimmy largou a cabeça do uivador, e ela atingiu o chão com um impacto
nauseante, quicando alguns metros antes de parar, com o nariz humano apontando para
cima através do crescido e animalesco cabelo escuro. O corpo ficou de pé por vários
segundos, ainda lançando sangue em direção ao teto em um jato vermelho brilhante.
Por que eu não tinha pensado naquilo? Eu me prendia a armas como facas,
espadas, serras. Ainda não tinha aprendido a pensar criativamente quando se tratava de
assassinato.
Minha força dampiro seria suficiente para partir um Nefilim em dois? Eu duvidava.
Era mais provável que fosse necessária a força de um vampiro.
Coberto de sangue, Jimmy olhou para o uivador. Com os punhos fechando e
abrindo, ele lambeu os lábios.
Todo aquele sangue... Como ele podia resistir?
Meu peito começou a doer enquanto eu prendia o fôlego, esperando que ele se
abaixasse e colocasse sua boca sob a fonte que secava lentamente, como uma criança
com uma mangueira de jardim, em um dia de verão.
Respirei fundo, me encolhendo com a dor nas costelas. Elas iam sarar,
provavelmente nos próximos minutos, mas por enquanto...
— Ai!
Eu deveria ter ficado de boca fechada. Jimmy virou rapidamente a cabeça em
minha direção. A luz vermelha em seus olhos tinha sumido, suas presas se retraído. Ele
parecia exatamente igual ao rapaz que eu amara, exceto pelo sangue no rosto.
Seus lábios formaram o nome "Lizzy", então ele estendeu as mãos tingidas de
vermelho e se contraiu. Antes que eu pudesse dizer ou fazer algo, ele correu direto por
mim, em direção às profundezas da caverna, em um borrão de velocidade que meus
olhos mal puderam discernir. Forcei-me a ficar, pegar a lanterna e depois segui-lo. À
distância, algo grande atingiu a superfície da água. Segui o cheiro da chuva para outra
caverna menor, que continha uma lagoa.
Ao longe, ouvia-se o som dos trovões. A água corria pela face da rocha,
produzindo uma melodia gentil e pacífica, um contraste gritante com a visão de Jimmy

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
surgindo no centro, esfregando freneticamente o sangue do rosto, pescoço e das mãos.
Eu queria pular na água também, mas com Jimmy encarnando Lady MacBeth,
imaginei que seria melhor esperar, então me sentei na margem. Jimmy mergulhou,
ficando lá por tanto tempo que quase fui buscá-lo. Finalmente ele subiu à superfície em
uma explosão, espalhando gotas de água para todo lado.
— O que está fazendo aqui? — Ele encarava a parede de pedra, esfregando a
pele, embora não houvesse mais nem uma gota de sangue.
— O que você acha? — perguntei. — Estamos em guerra, Sanducci, e estou com
poucos soldados.
— Não trarei nenhum bem à causa.
— Você me pareceu muito bem há alguns minutos. Eu diria que não perdeu o jeito.
Ele balançou a cabeça, e seus ombros se curvaram.
— Eu estava tentando combater o monstro. Pensei que o tivesse sob controle, mas
então vi aquela coisa acertar você e...
— E me salvou. O que há de errado com isso?
— Eu queria beber o sangue dele, Lizzy.
— Eu sei — falei, suavemente.
— Nunca vou poder sair daqui enquanto essa vontade existir, e estou começando
a achar que isso nunca vai acontecer.
— Talvez Sawyer... Jimmy se virou.
— Não.
Eles nunca se entenderam. Nunca soube por quê, mas tinha minhas teorias.
— Ele conhece muitas coisas — falei.
— Se eu deixar que ele mexa com minha cabeça, acabarei mais louco do que já
estou.
— Não acho que ele...
— Não, Lizzy.
Já que eu também não sabia onde Sawyer estava, deixei passar.
Jimmy inclinou a cabeça, analisando meu rosto. Como se alguém estivesse
testando efeitos sonoros, uma alta explosão de trovões chacoalhou a terra.
— Você veio aqui para me matar. Hesitei, depois falei a verdade.
— Talvez. Eu não sei.
— Estive me alimentando das pessoas.
— Mas ninguém morreu. — Não acreditei que estava usando o argumento de
Summer.
E por falar nela, onde estava? Eu não tinha tempo para caçar fadas agora. Tinha a
forte sensação de que, se virasse de costas, Jimmy sumiria.
— Ainda — ele completou, tomando o meu lado da discussão.
— Você disse que esteve tentando controlar o... — Parei, incerta sobre como
chamar a parte dele que o strega tinha despertado.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Monstro. Fera. Vampiro. Coisa. Diga! — Sua voz ecoou nas paredes da
caverna, cheia de dor e fúria.
— Ótimo — falei. — Como você controla sua sanguessuga interior?
— Não sei. Ficar próximo às pessoas... — Jimmy encolheu os ombros, a camiseta
molhada se agarrando ao corpo. — É difícil demais. Posso ouvir seu pulso, o sangue
correndo por suas veias. — Ele colocou as mãos sobre os ouvidos, deixando-as cair
depois lentamente dentro da água. — É ensurdecedor.
— Então veio para cá por ser isolado?
— Não o suficiente — ele resmungou. — Mas é isso. Já estive aqui antes,
explorando as cavernas.
— Para quê?
— O uivador. Sempre me incomodou não tê-lo encontrado.
— Dessa vez, ele encontrou você. — Provavelmente percebeu que Jimmy estava
atrás dele de novo, e decidiu terminar as coisas de uma vez por todas.
Jimmy parecia mais calmo, então esvaziei os bolsos — celular, amuleto, dinheiro
— e pulei na água, ainda de sapatos. Eles já estavam estragados mesmo.
Ele ficou tenso.
— O que está fazendo?
Não respondi, só me abaixei sob a água e comecei a esfregar o rosto, pescoço e
cabelos, como ele tinha feito. Quando subi, Jimmy estava sentado na beira do lago.
— Não deveria ter vindo atrás de mim — avisou. — Não queria que me visse desse
jeito.
— Eu já tinha visto.
Ele fechou os olhos, apertando os lábios.
— Como pode suportar ficar perto de mim, depois do que fiz? Como pode ter...
— Tocado você? — Nadei para mais perto. — Feito amor com você?
— Por quê? — sussurrou ele.
Porque eu queria afogar as lembranças ruins com as boas. Torcia para que ele
superasse tudo o que acontecera, tudo o que fizera, se eu fingisse já ter feito isso. Mas
quando acordei na manhã seguinte, Jimmy havia desaparecido. Uma das coisas em que
ele era muito bom, além do sexo, era em partir.
Eu não queria trazer à baila o tempo que passara como cativa de Jimmy no antro
do strega. Aquelas lembranças não fariam bem a nenhum dos dois. Em vez disso,
coloquei as mãos nos joelhos dele. Seus olhos se arregalaram. Como sempre que
ficávamos próximos, tínhamos dificuldade de nos concentrar em qualquer coisa que não
fosse no corpo um do outro.
Minhas mãos deslizaram pelas suas coxas, os músculos tensionados parecendo
rochas sob meus dedos. Coloquei-me entre suas pernas, olhando para seu rosto. Ele
tentou se afastar. Talvez quisesse se levantar e fugir de novo, não sei. Desequilibrado,
acabou se inclinando para a frente, e só precisei de um puxãozinho para que ele se
juntasse a mim.
Seu corpo encontrou o meu, enquanto o movimento da água nos aproximava,
depois separava. Ele conseguiu encostar os pés no fundo; eu também, e tão perto que

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
meus seios deslizaram sobre o peito dele. Perdi o pé, quase afundei, e ele me segurou.
Congelamos, apenas por um instante. No momento seguinte, estávamos nos beijando
como se fizesse anos que estávamos separados.
Não sei o que me deu. Eu não pretendia beijá-lo, tocá-lo. Não tinha nenhum tipo de
plano.
Mas assim que começamos, pareceu certo mostrar a ele que algumas coisas não
haviam mudado. Que aquilo não mudara. Só precisávamos ficar perto um do outro, tocar
um ao outro para que o desejo tomasse conta.
De modo familiar, embora sempre excitante, sua boca encontrou a minha. As
línguas se tocaram, as mãos vagaram. Enfiei a minha pelo que restava de sua camiseta,
aqueci meus dedos gelados contra ele, reaprendendo os contornos de sua pele.
Sua rigidez pressionava meu estômago, quente onde eu estava fria. O beijo se
derreteu em algo mais; sua boca acompanhou meu rosto, meu pescoço; ele sugou
primeiro um mamilo, depois o outro, através do tecido da minha camiseta ensopada,
Não pude evitar: ergui os pés e enlacei as coxas em seu quadril, pressionando. O
encaixe era quase perfeito.
Como se soubesse o que eu queria, provavelmente por também querer a mesma
coisa, ele me girou até minhas costas ficarem contra a borda do lago, e então nos
comprimiu, enquanto sua boca se abria, tomando mais de mim, sua língua pressionando,
fluindo, provocando.
Eu me arqueei, ofegando, implorando. Ele pulsava contra mim, o ritmo chamando o
meu. A caverna ecoava com o som de nossa respiração entrecortada e a ondulação dá
água contra a rocha, os dois sons sincopados, quase tão excitantes quanto o calor da
pele dele e o pulsar de seu coração. Ele apertou o rosto contra a curva do meu pescoço,
inalando profundamente, como se quisesse memorizar meu cheiro. Naquele momento,
provavelmente eu cheirava a...
Sangue.
Fiquei rígida, mesmo enquanto ele lambia minha pele, segurava a carne úmida
com seus dentes, tomava um pouco em sua boca e sugava. Imagens surgiram, de outras
mulheres em seus braços, outros homens. O sabor do sangue, o apelo sexual contido
nele. O desejo de se alimentar, de devorar, possuir, a luta para não matar.
Senti tudo, como se aquelas sensações fossem minhas. Provei o sangue; também
o quis. Queria que ele se alimentasse de mim enquanto me possuía, rude, contra a pedra,
o orgasmo ainda mais forte por senti-lo drenar minha vida em sua boca.
Estremeci e empurrei seus ombros. Sem nenhuma hesitação, ele me soltou.
— Você viu? — ele murmurou.
Meus olhos se estreitaram. Ele tinha feito aquilo de propósito.
— Você achou que eu ficaria enojada? — perguntei. — Que não compreenderia?
Aquilo não é você, Jimmy.
Seus lábios se curvaram em um sorriso sem humor. — O strega está morto. Quem
mais seria?
— Senti sua luta. Você não... — Fiz uma pausa. — Ou sim?
— Eu não o quê? — Ele olhou para mim rapidamente e desviou o olhar.— Os
forcei? Nunca tive de forçar ninguém. Uma vez que tenha bebido deles algumas vezes,
farão qualquer coisa que eu quiser.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Como é?
Ele saiu da piscina; suas roupas pingavam água suficiente no piso da caverna para
criar uma poça.
— Lembra-se do harém do strega?
Como poderia esquecer? As mulheres se comportaram como algo saído de um
filme de ficção científica, robôs em exposição.
— Quanto mais um vampiro se alimenta de alguém, mais essa pessoa fica presa a
ele.
Fui para a lateral da piscina enquanto refletia sobre as palavras de Jimmy. Seria
por isso que eu não conseguia deixá-lo?. Quantas vezes ele se alimentara de mim em
Manhattan? Não me lembrava. Mas eu tinha colocado uma estaca nele, na torre de vidro,
planejara fazer isso novamente, até que, com a morte do strega, Jimmy saiu de seu
transe. Eu não conseguiria machucá-lo se ele fosse capaz de me controlar.
E a inegável atração que eu sentia vinha de muito tempo. Mesmo quando ele partiu
meu coração e saiu de minha vida, eu não conseguia esquecê-lo. Que não o fizesse
agora era só uma continuação disso, não algum tipo de controle mental que ele obtivera
afundando as presas em meu pescoço vezes demais.
Saí da água quando um pensamento repentino afastou os outros.
— Se vampiros podem controlar humanos ao se alimentarem deles, isso significa
que poderiam dominar o mundo.
— Acho que era o que papai planejava.
— E por que isso ainda não aconteceu? — perguntei. — Tenho certeza de que há
muitas sanguessugas por aí; elas estão se alimentando à vontade, então como é que o
mundo ainda não virou um grande harém para os vampiros?
— Porque a maioria deles mata. Uma vez que comecem a se alimentar, não
conseguem parar. Não querem parar.
— Então, o que havia de errado com o strega?
— Ele era poderoso o suficiente para conseguir se controlar. Inclinei a cabeça.
— Você também consegue.
Ele gesticulou com as mãos para cima, e gotas de água atingiram meu rosto.
— Se isso fosse verdade, Lizzy, eu não estaria aqui.
— Você não está matando pessoas, e isso é controle. Se conseguiu fazer isso em
apenas um mês, em algum momento será capaz de deter completamente os desejos
vampíricos.
— Talvez — ele murmurou. — Mas não posso me arriscar. Pelo que sei, quanto
mais me alimento, menos humano fico.
Ele podia estar certo.
— Essas coisas levam tempo.
— Não temos tempo. Você precisa de mim agora.
— Parece que conseguimos uma prorrogação. Jimmy ficou confuso.
— O quê?
— Você ouviu o rumor de que, ao matar o líder das trevas, podemos deter o Juízo

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Final?
— Não se pode detê-lo. O Juízo Final é inevitável.
— Bem, adiá-lo, então.
Ele meneou a cabeça, pensativo.
— Reverta as profecias, e reverterá os resultados.
Faz sentido. Eu deveria ter pensado nisso.
— Não teria importado. Eu teria matado o strega de qualquer jeito.
Jimmy continuou em silêncio por vários segundos.
— Como está aí fora? — perguntou, por fim, indicando a entrada da caverna com a
cabeça.
— Mais calmo do que estaria se o caos estivesse reinando.
— Tudo o que isso significa é que eles têm de matar você para recomeçar o Juízo
Final.
Dei de ombros.
— Estão tentando me matar, de qualquer jeito. Estão atrás de todos nós.
Jimmy pressionou as mãos contra os olhos.
— Tenho de me livrar dessa coisa dentro de mim. Você precisa de ajuda.
— O que eu preciso é de você sadio, consciente, no melhor de sua forma.
— E se eu nunca chegar lá?
Não respondi. Não podia deixá-lo naquela caverna indefinidamente; na verdade,
não deveria deixá-lo ali de jeito nenhum. Mas o que eu faria com ele?
— Jimmy, preciso das informações sobre os contatos dos videntes, as que você
conseguiu com Ruthie.
— Você quer dizer, as que eu roubei da mente dela enquanto ela dormia?
Além de ser um dampiro, Jimmy também era um andarilho de sonhos. Ele podia
penetrar nos sonhos das pessoas, roubar suas lembranças, seu conhecimento, seus
segredos, e não deixar nenhum vestígio de que estivera ali. Que ele tenha sido compelido
a isso, do mesmo jeito que a fazer tudo o mais, não o reconfortava.
— Se não o tivesse feito, estaríamos enrascados agora. Preciso dessa informação.
— Você não poderia perguntar a ela na próxima vez que a "vir"? — Ele desenhou
aspas no ar.
— Não recebo uma visita de Ruthie desde que voltei para casa.
Deixei de fora a mulher de fumaça e o amuleto. Ele já tinha problemas suficientes
sem os meus. Jimmy ficou preocupado.
— E como você me encontrou?
— Summer viu você em Barnaby's Gap, e aqui estamos nós.
— Jesus! — Ele esfregou a testa. — Vocês vieram juntas?
— Sim.
— Onde ela está?

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— No carro, acho.
— Por favor, me diga que não ficaram fazendo comparações. Franzi o nariz.
— Temos coisas melhores para fazer do que falar sobre suas proezas sexuais,
Sanducci. Afinal, ela é uma MD. Sou uma vidente, e mesmo que tenha matado o líder das
trevas, isso só significa que há outro a caminho. Precisamos recompor a federação, e
rápido.
— Como?
— Não faço idéia.
— Algumas das crianças que Ruthie mantinha em sua casa eram provavelmente
futuros membros da federação. Ela sempre acolhia as crianças-problema, as que tinham
excesso de imaginação, as que mentiam, as que tinham problemas em ficar com famílias
porque coisas estranhas sempre aconteciam ao redor delas. Esse tipo de coisa
geralmente é uma indicação de poderes especiais.
— Aquelas crianças eram novas demais para isso — falei.
— Podemos não ter escolha.
Balancei a cabeça. De jeito nenhum eu enviaria adolescentes atrás de demônios. A
menos que fosse obrigada, e esperava, sinceramente, que não chegasse a esse ponto.
— Os nomes, Jimmy.
Ele saiu da caverna, e apressei-me em segui-lo. Tudo o que precisava era que ele
sumisse de novo! Mas o vi virar e desaparecer em outro corredor de pedra, na direção
oposta à saída. Poucos metros adiante, encontrei-o em uma caverna junto com sua
mochila, um saco de dormir novinho, fogão, cantil e outras evidências de que ele estava
morando ali. E já começara a se despir.
— O que está fazendo?
— Vestindo roupas secas. Quer algumas?
Neguei, incapaz de mover os lábios enquanto ele tirava a camiseta esfarrapada e
as calças. Ainda tinha o mesmo belo tom bronzeado de sol no corpo todo. A visão de toda
aquela pele me deu vontade de lambê-lo inteiro, como um sorvete.
Virei de costas, contrafeita.
— Você devia mesmo tirar essa roupa molhada — ele avisou.
— É o que todos dizem.
Ele riu. O som me deu esperança. Não ouvia Jimmy rir de verdade desde muito
antes de Manhattan.
Uma folha de papel surgiu em frente ao meu rosto, com nomes, endereços, e-mails
e números de telefone.
— Obrigada. — Peguei a folha.
Como cada vidente trabalhava independentemente com sua conexão psíquica e
seu contingente pessoal de MDs, raramente houvera necessidade de o líder da federação
os contatar. De acordo com Ruthie, quando um novo líder surgia, os videntes o visitavam
assim que fosse seguro, para jurar aliança a ele ou ela.
— Eles não vão estar em casa — Jimmy avisou. — Todos estão se escondendo.
Eu dedurei suas identidades para o inimigo.
— "Dedurar" não seria o termo que eu usaria.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Estão todos mortos por minha causa.
— Nem todos.
Ele me deu uma olhada.
— Vai desistir? — perguntei. — Vai só se deitar e morrer?
Jimmy desviou o olhar, e eu tive uma sensação muito ruim.
— Por que você escreveu isso? Ele deu de ombros.
— Você não achou que eu chegaria a tempo.
— A tempo de quê? — ele questionou, mas eu sabia.
— A tempo de você me dizer os nomes antes de se matar.
— Você sempre foi uma garota esperta.
Jimmy estava se culpando pela morte de Ruthie e de todos os outros, desde que
saíra de sua fase "gêmeo mau". Certamente fora ele quem havia comprometido as
identidades deles, embora não tivesse a intenção. Jimmy adorava Ruthie tanto quanto eu.
Nunca revelaria a identidade dela aos vilões, se fosse capaz de se impedir.
Enfim, ela ainda estava morta — algo que ele frisava para mim sempre que
possível — e todo o arrependimento do mundo não a traria de volta. Assim como não o
faria o suicídio de Jimmy.
— Não faça isso, Jimmy.
— Não posso. — Sua voz era desgostosa. — E não é por falta de coragem, mas
pelo que eu sou, e como tenho de ser morto.
— Duas vezes no mesmo lugar — murmurei.
— Toda vez que consigo a primeira, perco a consciência; morro, e então não posso
me matar de novo. Acordo completamente curado. — Seus olhos encontraram os meus.
— Alguém vai ter de fazer isso por mim.
— Não eu — falei, rapidamente. Ele apenas encolheu os ombros.
— Conheço alguém que vai fazer.
Abri a boca par dizer que eu precisava dele, que não podia vencer aquela luta sem
ele, que ele não podia morrer e me deixar sozinha com aqueles monstros.
Mas antes que eu pudesse falar, a sala girou, e luzes que não estavam lá de
verdade espocaram. Meu estômago embrulhou.
Agora não, pensei.
Mas assim que fechei os olhos, tive uma visão.
Uma sala pequena, cheia de pessoas de mãos dadas e cantando. Velas
tremeluziam, e os rostos também.
Mulher, lobo, mulher. Homem, lobo, homem. Em todos, a face humana dava lugar
à da fera. Olhei tão fixamente que minha cabeça começou a doer, tentando lembrar da
aparência de cada um deles, mas havia muitos.
— Matem todos eles — murmuraram, juntos. — Á Terra será noooossa...
A última palavra virou um uivo, e dessa vez as faces viraram lobo definitivamente.
Seus corpos se contorceram. Mãos e pés viraram patas, colunas estalaram e mudaram,
pelagem cobriu cada centímetro de pele.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Eu já tinha visto lobisomens antes, e matado também. Balas de prata funcionavam
tão bem quanto dizia a lenda. Mas os lobisomens eram maiores do que um animal
normal, com olhos amarelos brilhantes e sombras humanas, assustadoras. Esses se
pareciam com lobos normais, mas eu os vira se transformar e sabia a verdade.
Luceres.
A palavra foi sussurrada em minha mente. Nunca tinha ouvido o termo antes, não
sabia o que significava, além de um nome para os Nefilins que eu estava vendo.
As feras começaram a girar pela sala, agitadas, revelando ao caminhar o que as
fazia diferentes. Eles não tinham rabos. Aquilo devia torná-los facilmente identificáveis.
De repente, o maior do grupo pulou pela janela, e o vidro se espatifou. Os outros o
seguiram, saltando graciosamente pelo portal agora totalmente aberto. Sob um céu
encharcado de luar, os luceres corriam como um bando. Torci para ver um campo vasto e
aberto, sem sinal de casas ou cidade. Em vez disso, porém, os lobos correram por ruas
de subúrbio. As casas pareciam ter sido construídas recentemente, e bicicletas, triciclos e
carros dos Flintstones bloqueavam as calçadas.
— Onde vocês estão? — resmunguei.
Enquanto eu olhava, fogos de artifício explodiram à distância, iluminando um
horizonte conhecido, com o barulho resultante chacoalhando a terra. Eu estava caindo da
visão, acordando no piso de uma caverna nauseante, dolorida e tonta. Minhas roupas
ainda estavam ensopadas, frias contra minha pele aquecida. A terra abaixo de mim tremia
com os trovões, o som lembrando o dos fogos de artifício que vira a quilômetros de
distância, perto da...
— Torre Sears — falei.
— Chicago.
Summer se apoiava na entrada. Eu fiquei onde estava, cansada demais para me
sentar. Sabia, por experiência anterior, que o enjôo e a tontura iam passar; só tinha de
ficar parada por alguns minutos.
Eu podia receber informação por três caminhos. Ruthie falava se um Nefilim
chegasse perto; ela me dizia o que eles eram em visões como a que eu tinha acabado de
ter, e também vinha a mim em sonhos, para responder ao que pudesse. Havia regras
sobre o que fantasmas podiam dizer, e algumas informações ela não podia revelar, na
maior parte das vezes, o que eu mais precisava saber.
Visões sempre me deixavam fraca, mas também passavam as informações mais
úteis.
— Já ouviu falar de um lucere? — perguntei.
Summer se aproximou, sentou-se no chão e dobrou as pernas, para poder apoiar o
queixo nos joelhos. Imaginei se ela praticava aquela pose em frente ao espelho.
A chuva corria para a lagoa, pingando na superfície com um barulho rápido. Lá fora
estava caindo aos cântaros; ainda assim, Summer estava tão seca quanto o deserto em
pleno verão.
— Um lucere é um tipo de licantropo — ela respondeu.
— Isso eu soube quando eles mudaram de gente para lobos. Seus olhos azuis se
estreitaram.
— Você quer informações ou quer bancar a espertinha?

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Não respondi, porque obviamente queria as duas coisas, depois de alguns
segundos, ela prosseguiu:
— Os luceres perambulavam pela Roma antiga. Alguns o chamavam de
lucumones, que vem de loco.
— Então, eles são ainda mais loucos do que o lobisomem comum?
— Sim. Na antigüidade, os luceres formavam tribos ou alcateias e dizimavam
aldeias inteiras.
Matem todos.
— Acho que eles ainda estão seguindo esse plano — murmurei.
— Os luceres se transformam seguindo uma cerimônia. — O que coincidia com o
que aparecera em minha visão. — Uma vez que tenham acabado com uma área, a terra,
os lares, os negócios, se tornavam deles. Enviavam uma parte da tribo para a próxima
cidade que cobiçavam, formando uma nova alcatéia, cobrindo áreas inteiras com sua
raça.
— Uma versão da Roma antiga de uma invasão hostil.
— Pode-se dizer que sim — concordou Summer. — Alguns estudiosos acreditam
que o primeiro lucere foi o rei Liceu, um rei grego...
— Como é que pode o primeiro lucere ser grego, e eles terminarem em Roma?
— Todas as estradas não levavam a Roma, naquela época?
— Diga você.
— Está insinuando que sou velha?
— Estou afirmando que você é pré-histórica.
— Pode dizer o que quiser — Summer murmurou. — Eu não envelheço, você sim.
Era verdade.
As fadas não ficavam velhas, nem os Nefilins. Os híbridos nasciam e, portanto,
também morriam. Eles envelheciam, mas como raramente ficavam doentes e curavam
qualquer machucado, não envelheciam tão mal ou tão rápido quanto os humanos. Eu não
sabia o que eu era, mas definitivamente não era imune à idade.
— Voltando ao Liceu — incentivei.
— O mito foi levado a Roma por colonizadores gregos. Quando foram confrontados
com licantropos, os chamaram pelo nome que conheciam. Lucere.
— E a lenda?
— O rei Liceu era visitado por deuses de passagem, mas ele não acreditava de
fato que fossem o que diziam ser, então inventou um teste. Ele serviu-lhes pratos feitos
com carne humana, um insulto imenso. Sendo deuses, eles descobriram a enganação e
transformaram Liceu em lobisomem, uma forma mais própria para devorar pessoas. Do
seu nome, originou-se o termo "licantropo".
Lendas de seres sobrenaturais surgiam quando as pessoas tentavam dar um
sentido para o que não tinha nenhum. Os Nefilins caçaram sobre a Terra desde o início
dos tempos, o que significa que os luceres estavam por aqui desde que os anjos caíram e
copularam com humanos. Só não tinham recebido um nome, até que a história de Liceu
começou a circular.
— Você não me contou o mais importante. — Sentei-me, feliz por minha cabeça

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
não latejar e meu estômago não embrulhar. — Como eu os mato?
— Atingindo seu coração com fogo. Eu sugiro uma flecha incendiaria.
— Pareço Robin Hood para você?
Summer não respondeu. O que poderia dizer? Eu fiz a pergunta, não era sua culpa
se eu não gostava da resposta.
Minhas habilidades no arco e flecha eram tão boas quanto as de qualquer outra
mulher, o que queria dizer que eram quase nulas. A última vez que eu pegara em um arco
fora para acertar um alvo, na época do ensino médio. Não que eu fosse das piores, mas
duvidava que fosse capaz de acertar o coração de um lobisomem a vinte metros de
distância, quanto mais de uma dúzia deles.
— Não tem outro jeito?
Summer abriu os braços e encolheu os ombros.
— Droga.
Apesar da minha falta de habilidade, eu tinha de partir imediatamente para
Chicago. Vira fogos de artifício, o que significava duas noites à frente, mas também
poderia querer dizer uma. Várias cidades grandes começavam a comemorar com fogos
no dia três de julho. Olhei para Summer; talvez devesse enviá-la.
Ela me encarou de volta, mordendo o lábio.
— Tem uma pilha de cinzas ali. — Ela apontou.
Fiquei tão feliz em ouvir que o corpo do uivador tinha se desintegrado que quase
esqueci de dizer a Summer o que ele era.
— Ei! — ela gritou.
— Ah! Desculpe. São os restos do uivador.
— Havia mesmo um? — Ela soltou um suspiro de alívio. — Por um segundo,
pensei...
— Droga! — Olhei em volta. — Onde está Jimmy?
— Você o encontrou?
— Droga, droga, droga! — Fiquei de pé. Tudo o que estava na caverna antes tinha
sumido.
— O que aconteceu? — perguntou Summer. — O que você disse? — Ela segurou
meu braço. — O que você fez?
Soltei o braço de seu aperto.
— Consegui a informação. Foi por isso que viemos.
— E agora você simplesmente se esquece dele e segue seu caminho, toda
contente?
— Eu falei isso? — Tínhamos de encontrar Jimmy. Ele era um perigo para si
mesmo e para os outros.
— Ele... estava normal?
— Sim. — Tomei fôlego. — E não. Ele falou sobre suicídio.
A testa de Summer se vincou.
— Mas ele é um dampiro. Ele...

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Queria ter algo que ele tocou — interrompi. — Poderia ver onde ele está.
Meu olhar vagueou pela caverna. Ele não deixara nada para trás. Nenhum mapa,
nem anotações...
Eu parei, praticamente rindo alto, depois coloquei a mão no bolso procurando pela
lista. Assim que a toquei, tive a visão de um rosto e fiquei rígida.
— Ele foi ver Sawyer. Summer praguejou.
— Com sorte, não o encontrará. — Porque se Jimmy quisesse morrer, Sawyer
ficaria feliz em ajudar.
— E se Sawyer voltou?
Dessa vez fui eu que praguejei, resistindo ao impulso de correr da caverna, pular
no carro e sair em disparada para pegar um avião até o Novo México. Tinha de pensar
antes de agir. Tinha de decidir o que era melhor para o mundo, antes de fazer qualquer
coisa.
Embora quisesse desesperadamente ir atrás de Jimmy, para encontrar algum jeito
de convencê-lo de que precisava viver, se não por mim, pelos humanos que ele jurara
proteger, ainda havia o problema dos luceres em Chicago.
Suspirei. Não tinha muita escolha.
— Você vai atrás de Jimmy — falei. — Eu vou para Chicago.
— As chaves estão no carro. — Sua voz era prática. Ela sabia o que eu diria antes
de mim. — Faça um arranhão nele, e teremos uma conversinha.
Sem dúvida, teríamos mais do que isso, mas em outro dia.
Com o dom de voar de Summer, ela seria capaz de chegar ao Novo México antes
de Jimmy. Mesmo que ele tivesse a velocidade superior de um dampiro, um avião
comercial ainda era mais rápido, com o incentivo adicional de não usar os próprios pés.
Summer poderia encontrar Jimmy no aeroporto, ou na estrada, ou em qualquer lugar que
quisesse, desde que o alcançasse antes de ele chegar a Sawyer.
— Faça o que for preciso — falei. Ela me encarou.
— Qualquer coisa?
— Qualquer coisa — repeti. — Apenas o mantenha vivo.

Capítulo II

O tempo dentro da caverna avançara muito mais rápido do que eu pensava.


Quando peguei meu celular e os outros objetos que deixara ao lado da lagoa e saí, já
estava amanhecendo. O ar cheirava a chuva, o solo estava ensopado, cheio de folhas
caídas e galhos derrubados.
— Quanto tempo fiquei lá? — eu quis saber. Summer deu de ombros, embaraçada.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Caí no sono. Imaginei que me acordaria quando voltasse. Então fadas
precisavam dormir.
— Sorte eu não depender de você para me salvar.
— Sorte — concordou ela, com voz perfeitamente normal, então eu soube que ela
estava sendo sarcástica.
Saí de carro, e Summer pelo ar, e dez horas depois, cheguei a Chicago. Consegui
descobrir, através do celular, que os fogos em Chicago eram soltos no dia três, do Píer
Naval. O que era, ao mesmo tempo, uma boa e uma má notícia.
Boa, porque eu devia chegar a tempo para impedir os luceres de correrem soltos,
se conseguisse encontrar o subúrbio apropriado em... olhei para o relógio... três horas.
Má, porque eu ainda não sabia com certeza onde eles estavam, e meu
conhecimento da área de Chicago era bem pequeno, apesar de ter morado menos de
cento e cinqüenta quilômetros ao norte da cidade pela maior parte da minha vida.
Enquanto muitos habitantes de Milwaukee viajavam até Chicago regularmente para
fazer compras, comer, ir a concertos e peças de teatro, eu estava feliz em minha cidade
às margens do lago. Nunca tinha viajado muito, até recentemente. No último mês, tinha
visitado mais Estados do que o fizera antes em toda a minha vida.
Agora que estava ali, e sabia que não era tarde demais, meu desespero atenuou.
Eu chegara tarde demais em Hardeyville, e ainda revivia o que acontecera ali, na
escuridão da noite. Achava difícil aceitar que algumas coisas tinham de acontecer, que
algumas pessoas estavam destinadas a morrer, e não havia nada que eu, ou qualquer
pessoa da federação, pudesse fazer a respeito. Ter conseguido impedir os lobisomens de
Hardeyville de seguir em frente para a próxima cidade com seu show de horror não servia
de consolo para os mortos que ainda dançavam pelos meus sonhos.
Liguei para todos os números de telefone da lista de Jimmy. Ninguém atendeu.
Não esperava que atendessem. Os videntes estavam se escondendo, o que significava
que não iriam atender em nenhum de seus números conhecidos nem ficar em seus
endereços. Então, parei em um cyber café e mandei um e-mail informando todos os
videntes restantes sobre os mais recentes acontecimentos, e ordenando que nos
comunicássemos pela internet até ordem em contrário.
Não tinha certeza de quantos estariam aptos a acessar suas contas no
esconderijo, mas precisava tentar. Na verdade, a lista de Jimmy era provavelmente tão
inútil para mim no momento quanto ele.
Presumi que cada vidente ainda estivesse em contato com seus MDs, continuasse
lhes atribuindo tarefas e frustrando os planos dos Nefilins o melhor possível com nossas
forças dizimadas. Só porque colocamos uma pausa no caos, não queria dizer que os
demônios não estivessem por aí fazendo das suas.
Meu celular tocou quando parei para comprar um mapa. Atendi, torcendo para que
um dos videntes tivesse decidido se arriscar e retornar minha ligação. Mas eu não tinha
tanta sorte.
— Sawyer não está aqui — avisou Summer, sem se incomodar mais do que eu em
dizer "alô".
O peso em meu peito aliviou um pouco.
— Jimmy?
— Também não.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Por um instante, acreditei que um dos meus problemas estivesse resolvido, até
pensar um pouco mais. O peso caiu de volta, quase me deixando ofegante.
— O que há de errado? — perguntou ela. — Vou esperar Jimmy aparecer e...
— Eles podem ter ido para as montanhas. — Depois disso, houve um silêncio. —
Summer?
— Estou aqui. — Sua voz era fraca. Ela entendera o que isso significaria.
Da última vez em que fiz isso, me arrependera. As montanhas eram sagradas.
Consideradas mágicas. Sawyer praticava muita magia, a maior parte, negra.
Embora as montanhas fizessem parte de Dinetah, a antiga terra dos Navajos, na
verdade pertenciam a Sawyer, e ele fazia praticamente qualquer coisa que quisesse
nelas. Certamente, tinha feito isso comigo. Sem contar o que lhe passaria pela cabeça
fazer a Jimmy, especialmente se este lhe pedisse.
— Encontre-o — mandei. Não tinha certeza a qual dos dois estava me referindo.
Naquele momento, qualquer um servia.
— Vou fazer isso.
Era estranho trabalhar com Summer. Ainda mais estranho era perceber que ela era
a pessoa em quem eu mais confiava para fazer o que fosse necessário. Summer era a
melhor aposta de Jimmy para sobreviver, porque a despeito de como eu me sentisse
sobre ele, eu tinha outras responsabilidades, e se elas fossem mais bem servidas com
sua morte, eu o faria. Já fizera isso antes.
— Não encontrou nada fora do comum? — ela perguntou.
— Ainda não.
— Se vir um lobo, provavelmente é melhor matá-lo.
— Você acha?
— Com uma flecha incendiaria — ela me lembrou. Onde eu ia conseguir isso, tão
perto de um feriado?
— Tenho suprimentos no porta-malas — Summer informou. Às vezes, eu era
capaz de jurar que ela lia pensamentos, embora ela negasse.
— Que tipo de suprimentos?
— Você não olhou?
— Estive um pouco ocupada.
— Certifique-se de que não haja ninguém por perto quando o abrir. Você seria
presa.
— Maravilha.
Se eu fosse parada por excesso de velocidade, o que era uma forte possibilidade,
já que pisara fundo a noite toda, me encolhi ao pensar no que o guarda encontraria se
decidisse abrir o porta-malas. Eu teria acabado na cadeia, já que não tinha como lançar o
pozinho mágico de "me esqueça", como Summer podia fazer. A falta disso estava ficando
cada vez mais incômoda, mas ainda não queria dormir com o amigo fada de Summer
para conseguir. Não ainda, pelo menos. Quem sabe o que eu ainda teria de fazer.
— Os luceres voltam a se transformar em humanos quando o sol nasce? —
perguntei. Os lobisomens comuns faziam isso.
— Não obrigatoriamente — ela respondeu. — Os luceres são controlados pelo

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feitiço, não pela lua. Eles podem ficar na forma de lobo o tempo que quiserem.
Então eu continuaria caçando até o romper da aurora, se eles colaborassem,
continuando lobos. Se bem que eu duvidava que os luceres continuassem correndo por
ali sem os rabos, uma vez que soubessem que eu estava na cidade e era capaz de matá-
los.
Claro que eu provavelmente podia identificar a maioria dos luceres, já que vira
seus rostos humanos, mas atirar em pessoas, mesmo que não fossem gente, com flechar
incendiárias tendia a fazer de mim a aparente assassina psicótica.
Vai entender... O melhor era terminar esse negócio naquela noite mesmo.
Depois de encher o tanque, parei o Impala em uma área gramada nos fundos do
posto de gasolina. Abri o porta-malas e encontrei todo tipo de sortimento: rifles, carabinas,
pistolas, munições, espadas e punhais. Mas o melhor achado foi um arco de caça.
Levantei-o com gentileza, quase com reverência. Um arco de caça era mais
acurado que outros arcos, motivo pelo qual, pelo menos no Wisconsin, apenas caçadores
inválidos ou acima de sessenta e cinco anos de idade tinham autorização para caçar com
eles. Junte um arco de caça com um jovem em forma, e os cervos não têm nenhuma
chance. Eu não achava que tivessem chance de jeito nenhum, mas ninguém me
perguntou.
Eu não conhecia bem as regras sobre arcos de caça em Illinois, mas não
importava. Possuir um arco assim não era ilegal, só caçar sem permissão, e já que eu
estava caçando gente que virava lobo... bem, se alguém me pegasse, eu teria problemas
maiores do que a falta de licença.
Perto do arco, havia uma sacola de flechas de formatos diferentes, envoltas em
linho branco, e várias garrafas cheias de um líquido transparente.
Tirei uma tampa e quase sufoquei. Gasolina!
Minha nossa... Que sorte que ninguém atingiu minha traseira!
Como Jimmy dirigia uma Hummer com uma artilharia semelhante, imaginei que
todos os MDs andassem equipados mais ou menos do mesmo jeito.
Fechei o porta-malas, depois entrei no carro e fiz uma grande curva, até conseguir
ver o horizonte de Chicago. Fechando os olhos, recordei minha visão. Para ter uma vista
da Torre Sears e dos fogos no Píer Naval do jeito que eu tinha visto, os Luceres tinham
de estar...
— Mais ou menos por aqui. — Marquei no mapa.
Vários subúrbios de Chicago eram de classe média-alta, e parecidos com o local
que eu tinha visto. Tinha poucas opções além de dirigir por ali e torcer para que algo
parecesse familiar. Em um pequeno vilarejo chamado Lake Vista, algo pareceu.
O sol estava se pondo rapidamente, a escuridão a apenas uma hora de distância,
no máximo. O pânico voltara, pulsando atrás de meus olhos como o voo baixo de moscas
em um dia quente.
Lake Vista não era um subúrbio de verdade, era mais um empreendimento,
imenso, situado fora dos limites da cidade. Passeei pelas ruas, para cima, para baixo,
cruzando, e finalmente vi o prédio onde os luceres se transformavam.
Sem querer ser muito óbvia e assustá-los, se é que isso era possível, estacionei a
um quarteirão dali e andei naquela direção. Pela lateral do prédio, podia ver o horizonte
da cidade. Quando me virei e olhei de volta para Lake Vista, o arranjo das casas,

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calçadas, bicicletas e triciclos me fez estremecer.
Era aquele o lugar.
Uma rápida espiada para dentro revelou um prédio vazio. Uma pequena placa o
nomeava "Centro Comunitário de Lake Vista".
Como eu precisava seguir em frente antes que alguém ficasse desconfiado, fui
para o Impala. O subúrbio parecia quase deserto, e muitas famílias sem dúvida tinham ido
para o lago, para assistir à queima dos fogos.
Aqueles que decidiram fugir das multidões, fosse por exaustão, por terem filhos
pequenos, ou por genuinamente não gostarem de fogos, ou tinham ido para a cama ou
assistiam à tevê em casa, onde luzes brancas ê azuis piscavam contra as janelas.
Vi o plano dos luceres. Matar aqueles que ficaram em casa, depois ficar de tocaia
pelos que tinham saído. Era um bom plano, se você fosse de um bando de meio-
demônios inclinados ao assassinato.
Deslizando para o volante do Impala, vasculhei a área por um lugar onde eu
também pudesse ficar de tocaia. Lake Vista tinha vista para o lago em um dos lados, daí
seu nome. Mas nos fundos, jazia uma anomalia: uma alameda cheia de árvores altas, tão
deslocadas ali quanto os lobos.
Em Chicago, há muitos arranha-céus, e perto do lago havia algumas pretensões
disso, mas não havia muitas árvores. Imaginei de onde diabos aquelas tinham vindo.
De repente, entendi por que os luceres tinham escolhido Lake Vista para seu
massacre. Podiam, correr para aquela mata como lobos, se precisassem, depois sair pelo
outro lado como humanos. Abri caminho para uma trilha que levava à cobertura das árvo-
res. O Impala balançava no terreno duro, e o chassi arrastava no chão, enquanto a grama
seca sussurrava contra os pára-choques.
Consegui chegar até as árvores, empurrei o Impala entre duas delas, e as sombras
nos envolveram com um suspiro quase audível. O sol poente estremecia entre as folhas
exuberantes que se moviam, e a luz dançava sobre o pára-brisa.
Atrás de mim a civilização assomava — subúrbio, cidade, ruas e rodovias —, mas
à minha frente estendia-se uma floresta aparentemente interminável. Claro, se eu
seguisse em frente, encontraria outro subúrbio ou uma estrada que levaria a um. Mas ali,
não via nada além de árvores; nem um carro, nem o mais leve vislumbre do branco-
acinzentado do cimento. Podia haver qualquer coisa por ali.
— Até o lobo mau. — Ri, mas o som pareceu forçado. Já vira o lobo mau. Ele não
vestia a camisola da vovó, nem touca ou óculos. Vestia apenas pelos, e vinha para te
matar.
Fiz um reconhecimento da área, procurando pelo melhor lugar para ficar para que
meus tiros não se desviassem em galhos baixos, mas onde eu ainda estivesse escondida
o suficiente para ficar invisível, caso alguém olhasse naquela direção. Assim que
encontrei um local apropriado, embebi as flechas em gasolina e fiz uma pilha, para
facilitar o acesso.
Tudo que me restava fazer era esperar. Procurei pelo vento, feliz ao notar que ele
tinha sumido, quase como se esperasse também.
Não tive nenhum aviso, nenhum barulho de pés contra a terra, ou o sussurro de um
respiração, mas subitamente senti o alvo invisível em minhas costas começar a queimar.
Lentamente, me virei.
Nas profundezas das árvores, onde a luz sumia e as sombras comandavam, um

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par de olhos cintilou. Baixo demais para ser humano, cedo demais para um lucere, mas
ainda assim, eu reconhecia um lobo quando via um.
Apenas um par de olhos... Seria um batedor? Os luceres estariam planejando
entrar em Lake Vista pela floresta, como eu temia. Não queria atirar no que parecia ser
uma pessoa com flechas incendiárias, mas o faria, se fosse obrigada.
Entretanto, minhas flechas estavam no chão, assim como o arco. Eu podia tentar
pegá-los, mas duvidava que conseguisse atirar antes que o lobo chegasse até mim.
Minha pistola estava no carro, inútil contra os luceres, mas minha faca estava na
bainha, em minha cintura. Levei a mão ao cabo. Aquilo poderia, pelo menos, diminuir o
ritmo da fera.
O lobo bufou, mais com humor do que raiva, e eu congelei.
— Venha para a luz — murmurei, e quando ele o fez, baixei minha mão.
Sawyer.
Eu já devia saber.
— O que está fazendo aqui?
O lobo negro saiu das sombras por completo: cabeça enorme, pernas compridas,
dentes e cauda. Eu jamais o confundiria com um lobisomem; ele não era grande o
bastante, e sua sombra refletia apenas sua forma animal.
Sawyer era um skinwalker — ao mesmo tempo um bruxo e um metamorfo —, um
poderoso xamã que caminhava em uma fina linha entre o Bem e o Mal. Ele fora proscrito
pelos Navajos, muito rígidos com o sobrenatural.
Algumas vezes, alguém de seu próprio povo tentava matá-lo. Nunca conseguiam
— era quase impossível matar um skinwalker —, o que apenas aumentava sua lenda
assustadora.
Muito tempo antes, sua mãe, a mulher de fumaça, o amaldiçoara.
Não poderia deixar Dinetah como homem, o que tornou muito difícil para ele fazer
algo além de babar em outros locais.
O lobo era o seu animal, mas podia se transformar em praticamente qualquer
coisa, desde que usasse uma roupa que mostrasse o animal escolhido. Para Sawyer, sua
pele era essa roupa. Sobre ela, havia tatuado imagens de cada animal em que gostava de
se transformar.
Ele caminhou até minha pilha de flechas, cheirou, bufou e olhou para mim. Então
se sentou e esperou. Novamente abri a boca para exigir respostas, apenas para fechá-la
em seguida. A despeito de seus vários poderes, Sawyer não era um lobo falante! Até ali,
eu ainda não encontrara nenhum assim, uma das poucas desvantagens de mudar de
forma, além da irritante falta de polegares opositores. Fui em direção ao carro.
Em minha mochila, eu carregava um robe de seda em tons de azul-marinho, roxo e
preto com reflexos prateados. Um presente de Sawyer, ou talvez minha maldição pessoal,
que eu ainda não tinha experimentado. Achei que já era hora.
A coisa estava enfiada em um canto da bolsa, abaixo das minhas roupas, da arma
e artigos de higiene. Levantei a peça, e a luxuriante seda desdobrou-se, revelando a
trêmula imagem de um lobo, que sumia e voltava de acordo com o movimento.
Olhei para Sawyer, que ainda esperava sentado, ofegando um pouco enquanto me
observava.

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— Vire de costas — mandei.
Ele bufou de novo. Seu repertório de comentários era um tanto limitado naquela
forma. Mesmo assim, eu praticamente podia ouvir seus pensamentos. Nada que eu não
tivesse visto, tocado e lambido antes.
Que foi como entrei nessa categoria, afinal. Fazer sexo com Sawyer me deu a
habilidade de mudar de forma, também.
Ele só precisava passar os dedos experientes por uma das imagens que
enfeitavam seu corpo para se tornar aquele animal. Como obtive meu poder dele, podia
fazer o mesmo. Toque uma tatuagem, vire um animal. Era um pouco mais complicado
que isso, mas não muito.
De qualquer forma, já que as tatuagens de Sawyer só apareciam em sua pele
humana, esse caminho estava fechado no momento. Felizmente, pensei, apertando os
dedos com força na seda roxa, havia outro modo.
Olhei para o horizonte. Não era o momento de ficar com vergonha, restava apenas
meia hora, talvez, de luz do dia. Eu precisava falar com Sawyer, e depois lutar contra a
invasão dos luceres.
Rapidamente, tirei minhas roupas e jóias — não tinha o suficiente delas para
destruí-las na transformação —, depois envolvi meus ombros com o robe. Quando o
material tocou minha pele, eu mudei.
Uma explosão de luz me fez fechar os olhos. Minha pele ficou fria, depois quente, e
eu caí. No momento em que minhas mãos tocaram o chão, já eram patas.
Nessa forma, eu ainda conseguia pensar como humana. Conseguia argumentar,
planejar. Também conseguia matar.
Os metamorfos são mais fortes, mais rápidos e melhores que seus semelhantes
animais. Somos mais fortes, mais rápidos e melhores que os humanos em muitas coisas,
também.
Por exemplo, como lobo, eu podia enxergar na escuridão úmida da floresta muita
além do que era capaz segundos antes. Podia cheirar e ouvir melhor também. À
distância, carros deslizavam pela rodovia. Embaixo daquela árvore, um veado havia
dormido.
Balancei a cabeça, senti a brisa acariciar meu pelo, lutei contra a vontade de correr
até encontrar aquele veado e matá-lo com facilidade. Minha boca se encheu de água. Eu
não comia desde o dia anterior.
Phoenix.
A palavra foi murmurada em minha cabeça na voz de Sawyer — tão profunda, tão
sedutora e ao mesmo tempo tão traiçoeira que me arrepiou.
Sawyer sempre me chamara de "Phoenix"; não me recordo de nenhuma vez em
que dissera "Liz" ou "Elizabeth". Definitivamente, nunca me chamara de "querida".
A lembrança de Jimmy me fez encolher, para em seguida me consolar. Se Sawyer
estava aqui, não o estava ajudando a morrer.
Ele deslizou contra meu corpo, esfregando o focinho no meu. Por mais que eu
quisesse enfiar-lhe uma faca, nessa forma nós éramos uma matilha, uma conexão que
lançava seu canto para mim como uma sereia. Não podia resistir, mesmo sabendo que
segui-lo poderia me causar uma morte dolorosa nas rochas afiadas.
Como me encontrou?, pensei.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
"Conversar" como animais era uma forma de telepatia. Palavras eram
pensamentos, sentimentos eram cheiros. Difícil explicar.
Eu sempre vou te encontrar.
A pedra não apenas parecia me proteger da Naye'i, como também era um
localizador. Sawyer sentia onde eu estava sempre que a carregasse comigo.
Recebi uma visita de sua mãe. Ela não gostou muito da turquesa.
Seu focinho se arregalou em um sorriso canino, a maior demonstração de humor
que eu já o vira demonstrar naquela forma. Senti o cheiro de algo doce; definitivamente,
ele ria.
Você achou que ela iria atrás de mim?
Algum dia.
Por quê?
Sabia que você se tornaria alguém especial, Phoenix. O que só significa que matá-
la estaria no topo das prioridades de todo Nefilim.
Matar-me parece ser o novo passatempo favorito do próximo candidato a
Anticristo.
Ele parou de rir.
Não estou entendendo.
Rapidamente, o informei sobre a teoria de Summer.
Já tinha ouvido isso?
Não, mas a fada está certa. Profecias são guias, e podem ser interpretadas de
várias formas. Não importa se o Juízo Final está em contagem ou pausa, os Nefilins vão
tentar te matar, e a Naye’i precisa ser detida. Continuamos do mesmo jeito que sempre
foi.
Por que veio me procurar? , perguntei.
Senti que você poderia precisar de ajuda.
Olhei para ele por vários segundos, desconfiada, mas quem era eu para
argumentar com uma premonição?
Tive uma visão, eu disse. Este lugar vai ser tomado por luceres, senão fizermos
algo.
O que você sugere?
Como lobo, Sawyer não seria capaz de me ajudar a atirar nos luceres, mesmo que
eu tivesse um arco extra. Entretanto...
Um dos modos de matar um metamorfo é uma luta até a morte com outro
metamorfo. A cura é acelerada pela mudança em si, e se você estiver morto, não pode
mudar, o que significa que curar uma ferida mortal é impossível.
Tecnicamente, eu poderia tomar esse caminho também, mudando e lutando. Mas
eu não tinha a mesma capacidade de Sawyer para o assassinato. Não fui lobo por tempo
suficiente para ir além do básico. Ficara preocupada de não ser capaz de atirar com
rapidez ou habilidade suficiente para matar todos os luceres. Mas agora que Sawyer
estava ali...
Vou atirar neles enquanto saem pela janela. Os que eu deixar passar...

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
O olhar de Sawyer foi na direção do centro comunitário próximo, seus olhos
cinzentos inspecionando o local.
Eu pego.
Não tinha a menor dúvida de que ele não daria conta. Já vira Sawyer lutando com
uma matilha de coiotes uma vez, com uma pequena ajuda minha. Ele sabia exatamente o
que fazer quando em desvantagem numérica. Os luceres não teriam a menor chance.
Próximo dali, um cão começou a latir freneticamente. Vários outros se juntaram a
ele, e os pelos em minha nuca se arrepiaram. Animais domésticos ficavam loucos na
presença de metamorfos. Eles sentiam nossa estranheza.
Eles podem sentir nosso cheiro, pensei.
Sawyer apareceu a meu lado, levantou o focinho, e seu pelo se eriçou.
A brisa está na nossa direção.
O que queria dizer que os cães cheiraram algo chegando do lado oposto de Lake
Vista.
Eu mesma sentia um cheiro diferente — humano, com uma pitada animal; cheiro
de pele com um toque de ozônio.
Embora tivesse que mudar de volta, me vestir, me mexer, enfim, eu queria vê-los.
Precisava saber.
Com a visão superior da minha forma de lobo, notei um traço de movimento. Uma
fila de pessoas vinha pelo meio da rua. Ombro a ombro, como pistoleiros em um filme de
faroeste. Eles obviamente não estavam com medo de serem vistos, ou questionados
quanto ao que estavam fazendo, e por que estavam ali. Acreditavam que seriam os donos
da cidade, e mesmo que alguém os visse, questionasse, ou tentasse detê-los, não
importava. Logo teriam matado todo mundo.
Não percebi que tinha me movido em direção ao Impala e mudado de volta para
minha forma humana até sentir a brisa tocando minha pele, em vez de meu pelo, e ficar
com frio. Rapidamente, me vesti e fui para meu local. Sawyer passou por mim enquanto
os luceres desapareciam dentro do centro comunitário. Peguei a primeira flecha,
encaixando-a no arco. Sawyer se abaixou e arrastou-se de braços na grama alta até
aparecer de novo bem perto do prédio.
Veio a escuridão, velas tremeluziam do outro lado da janela. Eu juro que ouvi as
vozes cantando baixo lá dentro. Talvez fosse apenas uma memória da visão, mas
provavelmente era o aumento dos meus sentidos por ter absorvido os poderes tanto de
Jimmy quanto de Sawyer.
O brilho rápido de luz e cor ao leste foi seguido pela explosão abafada de pólvora,
e o primeiro lucere passou pela janela em uma cascata de vidro.
Embora eu estivesse em minha forma humana, e minha visão não fosse tão boa
como quando era lobo, ainda era melhor do que a da maioria. Podia enxergar a sombra
do lucere arqueada no chão.
Acendi a flecha e soltei-a, apreciando a trilha laranja cortando a noite, seguida de
um barulho suave e uma explosão de cinzas se espalhando pela grama, enquanto o
lucere desaparecia deste mundo para sempre.
Outro saiu pela janela, chegando ao chão e indo em direção às casas antes que eu
pudesse pegar a segunda flecha. Sawyer saltou da grama alta, um borrão de sombra se
movendo tão rápido que parecia sumir de um lugar e reaparecer em outro.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Ele aterrissou nas costas do lucere e o derrubou. Não pude ver o que ele estava
fazendo, só ouvir a briga, os rosnados, e depois os ganidos. Já que Sawyer não iria,
jamais, ganir, murmurei:
— Já foram dois. — E coloquei outra flecha no arco. Levantei para acendê-la e
quase derrubei tudo.
Entre mim e o centro comunitário, subia uma coluna de fumaça, cada vez mais
rápido, até que não pude acompanhar a transformação da fumaça em mulher.
Subitamente, ela estava ali, sólida e mortal. Seu sorriso dizia que havia vencido,
antes mesmo de a batalha começar. Não levei muito tempo para perceber o motivo.
A turquesa não estava mais no meu pescoço. Em vez disso, estava pendurada no
retrovisor do Impala, onde eu a colocara para me transformar e me esquecera de
recolocar, na pressa de voltar. Não era de se espantar que ela sorrisse. A mulher de
fumaça estava esperando por isso.
Soltei a flecha acesa. Não a machucaria. Talvez eu tivesse meu primeiro momento
de sorte inacreditável e ela explodiria e chamas, morrendo em agonia enquanto eu torrava
marshmallow em seu cadáver.
Eu já devia saber. Qualquer sorte que eu tivesse era do tipo mau.
Com a velocidade que já demonstrara quando agarrara minha faca no Murphy's, a
mulher de fumaça pegou a flecha no ar e a jogou de lado. A grama de verão, alta e seca,
começou a queimar lentamente.
— Oh-oh...
Os luceres tropeçavam para fora da janela, correndo em direção às casas. Até
onde eu podia ver, Sawyer ainda estava às voltas com o primeiro.
— Sawyer! — gritei, mas a mulher de fumaça levantou a mão como um guarda de
trânsito em um cruzamento, e a palavra voltou para minha garganta, o som impedido de
sair.
Enquanto ela andava em minha direção, um vento gelado cheirando a enxofre
atingiu minhas narinas, fazendo meus olhos lacrimejar. Eu nunca havia sentido aquele
cheiro, mas o que mais poderia ser? Fedia como o inferno, fogo, cinzas, morte, tudo o que
era mau, o fim do mundo sobre nós.
Tossi, sufocada; lágrimas rolavam pelo meu rosto. Tentei pegar minha faca — pelo
menos, me lembrara de prendê-la em volta da minha cintura —, mas antes que pudesse
puxá-la da bainha, sua mão se fechou sobre meu pulso.
Onde seus dedos me tocavam, minha pele chiava, mas não de calor, e sim de frio.
A sensação me lembrava a dor que vinha depois do congelamento: a queimação, o
formigamento que ocorrem quando a carne congelada começa a se aquecer.
Ela agarrou meu pulso, e o clique seco feito pelo osso se quebrando era
exatamente igual ao de um galho sendo esmagado por uma bota na floresta invernal.
Quando abri a boca para gritar, ela arrancou minha faca da bainha e me matou.

***
Um golpe certeiro no coração, seguido de outro exatamente no mesmo lugar. A
mulher de fumaça sabia o que eu era. Eu ainda tinha algum segredo?
Um gorgolejo horrível, de morte, escapou dos meus lábios, e ela riu, um som

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
bizarro de alegria e malevolência. Nas redondezas, algo uivou: um grito pesaroso de dor e
fúria.
A Naye'i espiou sobre o ombro, os lábios se afastando dos dentes em um rosnado.
Ela girou e virou fumaça de novo, antes de subir espiralando e desaparecer na noite.
Eu desabei no chão com a faca ainda enfiada no peito. Enquanto minha visão
enfraquecia, mais rosnados eclodiam à distância, e a terra parecia se agitar entre as
fortes pancadas de uma batalha épica. O ar ao meu redor escureceu, e o mundo sumiu
como a fumaça da chama de uma vela sob a chuva.
Acordei na casa de Ruthie. Não me surpreendi. Não apenas era o lugar aonde eu
ia quando precisava de ajuda, como também Ruthie freqüentemente recebia ali aqueles
que morriam cedo demais. Isso queria dizer que a casa dela estava sempre cheia de
crianças, como havia sido na Terra.
Passei pelo portão na cerca branca, caminhei pela passagem entre a grama
impecavelmente cortada para a casa branca e bati na porta. O riso das crianças, a
emoção de suas vozes felizes, soava lá de dentro, A porta se abriu, e lá estava ela... a
única mãe que conheci. Estava igualzinha ao dia em que morreu, tirando as manchas de
sangue, a garganta aberta e as várias marcas de mordida.
— Lizbeth — ela murmurou e me pegou nos braços.
A despeito das saliências dos cotovelos e joelhos, e da aparência ossuda de seu
corpo, Ruthie dava os melhores abraços. Ela me adotara quando eu tinha doze anos,
saída de outra casa adotiva que não me quis. Parecera antiga mesmo naquela época, seu
rosto vincado, da cor do café, os olhos escuros tão penetrantes que via tudo na pessoa,
mesmo coisas que você passou a vida aprendendo a esconder.
Nada disso importava para Ruthie — onde você esteve, o que fez, ou quem foi;
uma vez que você estivesse lá, ela jamais o deixava ir. Para crianças abandonadas, essa
promessa valia mais que dinheiro, valia nossas próprias almas. Ser aceito, saber que, não
importando o que acontecesse, Ruthie te amaria...
Nós faríamos qualquer coisa por ela.
Eu ainda tinha problemas para aceitar que Ruthie havia propositalmente procurado
por crianças "especiais", adotando-as e preparando-as para tomar parte da federação.
Sabia que ela não tivera opção — estamos falando do fim do mundo —, mas mesmo
assim, seria bom ter sido escolhida por mim mesma, e não por minhas habilidades
psíquicas.
De qualquer modo, já que foi por essas habilidades que fui expulsa de todo lar
adotivo em que estive, ser escolhida por elas, em vez de apesar delas, não foi tão ruim
assim.
Nós nos soltamos. Ela tocou meu rosto e a preocupação anuviou seu olhar.
— Estou morta, não estou?
Ruthie suspirou e se afastou, deixando a porta aberta como um convite para segui-
la. Foi o que eu fiz, através do hall, entrando na cozinha ensolarada, onde as grandes
janelas traseiras permitiam que ela cuidasse das crianças no jardim.
Vi quatro delas. O pequeno número, somado à ausência de um carrinho de bebê,
me deixou aliviada. A última vez em que eu estivera ali, o lugar estava estourando com
tantas crianças que deixara de salvar, e também um pacotinho que não parava de chorar.
Era uma lembrança que eu faria qualquer coisa para apagar.
— Sente-se — ordenou Ruthie. — Estamos numa situação complicada aqui.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— O fato de eu estar morta vai jogar um pouco de lama em nossos planos. O
relógio para o Juízo Final vai começar a contar de novo.
— Você não está morta — disse ela.
— A mulher de fumaça... — Fiz uma pausa e me sentei. — Você sabe sobre ela?
Ruthie me deu um de seus olhares clássicos. Ela já sabia de tudo, mesmo antes de
se tornar...
Eu não tinha muita certeza do que ela havia se tornado, mas definitivamente era
mais poderosa morta do que quando estava viva. Tê-la matado foi o primeiro erro do
strega.
— Ela me apunhalou com minha própria faca. Duas vezes, no peito.
Eu baixei o olhar, emocionada ao descobrir que a arma não estava mais enfiada
em mim. Meu pulso quebrado também parecia estar funcionando. Acenei com ele
algumas vezes, só para ter certeza.
Claro, ninguém chegava ali com as feridas das quais havia morrido; seria muito
desagradável para as crianças.
— Você não está morta — repetiu Ruthie.
— Mas...
— Duas vezes no mesmo lugar mata um dampiro.
— Certo. Eu... — Parei, sem vontade de dizer o que havia feito para conseguir
aquele talento.
Mas Ruthie sabia. Não falar sobre meus estranhos dons não os fazia desaparecer.
— Fazemos o que é necessário para sobreviver, lutar, vencer — disse ela. — Você
não teria o poder de empatia que tem se não fosse para usá-lo, criança.
O mesmo que Summer dissera.
— É por causa da empatia que ainda está viva. — Ante minha falta de
compreensão, ela continuou: — Você é mais que dampiro, Lizbeth. E uma skinwalker,
também.
Eu levantei uma sobrancelha.
— Como se mata um desses? Ela fez o mesmo, em resposta.
— Isso, só eu sei.
— Mas...
— Conheço suas reações a respeito de Sawyer. Se soubesse como matá-lo, já o
teria feito, umas dez vezes.
Verdade. Ninguém me irritava mais do que Sawyer, nem me assustava tanto
quanto ele, com exceção de sua mãe.
— Precisamos dele — declarou Ruthie. — Você precisa. Apesar de odiar admitir
isso, ela estava certa. Mesmo assim...
— Como posso evitar morrer como uma skinwalker, se não sei como isso pode
acontecer?
— Não acontecerá. Eles fazem parte das criaturas mais difíceis de matar que Deus
pôs na terra. Você acha que ele ainda estaria vivo, se não fosse assim?

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Verdade, de novo. Eu não era a única a querer vê-lo morto. Algumas vezes,
imaginava se haveria alguém que o quisesse vivo. Exceto Ruthie.
— Ainda não gosto dele — resmunguei.
— Ainda não ligo para isso.
— É verdade o que Summer me disse? — perguntei. — Que o Juízo Final está em
pausa?
— Parece que sim. Os demônios, ainda estão matando, mas não como
costumavam fazer.
— Então, temos tempo para nos reagrupar.
— Não sei — murmurou ela. — Ainda posso sentir o mal no ar, como um furacão
se aproximando. Aquela imobilidade zunindo, que sempre vem exatamente antes de o
céu ficar verde e o tornado começar.
Maldição. Era o mesmo que eu sentira em Barnaby's Gap.
— É estranho — continuou. — Quase como se nada tivesse mudado. Como se o
Juízo Final ainda estivesse se aproximando.
Ela balançou a cabeça, como querendo afastar os pensamentos.
— Sou só uma velha que já viu demais. Não consigo evitar sentir cheiro de
encrenca, mesmo quando não há nenhuma.
— Ah, mas existe uma encrenca. E se chama Naye'i.
— Eles vão ter de voltar ao início do jogo. — Ruthie pôs a mão sobre a minha, em
cima da mesa. — Têm de matar você.
— A mulher de fumaça acredita que já fez isso. Deve pensar que é a nova líder. O
que vai acontecer quando ela descobrir que não é?
— Com sorte, vai morrer de frustração — resmungou Ruthie. — Mas eu não
contaria com isso.
— Você não tem idéia de como matar aquela... — eu me interrompi antes de dizer
algo que não devia — ...coisa?
— Temo que não. Ela é muito mais do que era no início. Um espírito mau torna-se
uma bruxa, que se torna sabe o diabo o quê.
— Ótimo. — Espiei pela janela, contando as crianças sem atenção, e cheguei a
cinco, dessa vez. Deviam estar brincando de esconde-esconde.
— Onde você esteve? — perguntei, — Não a ouvi desde que deixei Manhattan.
Estava começando a achar que tinha perdido a magia.
— O amuleto me bloqueou — disse Ruthie. — Não podia vê-los, nem falar com
você. Bagunçou meu radar. — Ela indicou a própria cabeça. — Ainda me sinto tonta.
Posso ter dificuldades para atravessar, às vezes.
— Isso não é bom.
— Você vai ficar bem. Sawyer estará lá. Ele a ajudará.
— Tem certeza disso? Ele sempre me pareceu ser mais do tipo "eu primeiro, dane-
se o mundo".
Os lábios de Ruthie se curvaram.
— Sawyer gosta do mundo como está. Vai ajudá-la. — Ela voltou a ficar séria. —

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Você vai ter de destruir o amuleto.
— Que tal se o jogar de um precipício?
Ruthie já estava balançando a cabeça em negação antes que eu terminasse a
frase.
— Ela o encontrará. Você tem de ir até a benandanti. Ela vive em Detroit, em Tulia
Street. Uma casa cinza, com persianas vermelhas. Você...
— Um momento — interrompi. — Uma o quê?
— Benandanti. Uma andarilha do bem, em italiano.
— Tudo bem, Então, uma benandanti é uma andarilha do bem... de que tipo?
— Bruxa.
— Uma bruxa boa — repeti. — Como Sabrina? Samantha? Tábata?
Ruthie me lançou aquele olhar, e eu me calei.
— A benandanti tem o poder de curar os enfeitiçados.
— E por que isso vai me ajudar com o amuleto?
— Jóias não possuem poderes. É o encantamento que lhes dá magia.
Pensei na turquesa com o crucifixo, ainda no carro, assim como o amuleto. A força
do crucifixo reside em sua bênção. A mágica da turquesa, nos talentos de Sawyer como
xamã. De onde se conclui que o poder do amuleto vinha de um feitiço, ou maldição, ou
bênção, não importava.
— Está me dizendo que uma benandanti pode "curar" o amuleto?
— Não uma benandanti, a benandanti. Só existe uma a cada vez. E sim, ela pode
cuidar facilmente disso.
— Uma benandanti é uma boa bruxa italiana, o strega era um bruxo mau. — Franzi
as sobrancelhas. — Só tinha um strega, também?
— Até surgir outro.
Uma notícia boa, outra ruim. O strega estava acabado, mas conhecendo os
Nefilins, outro apareceria em breve.
— Há sempre um exemplar bom e outro ruim de tudo?
— A vida anseia por equilíbrio — explicou Ruthie. — Não teríamos demônios, se
antes não tivéssemos anjos.
— De onde se conclui que deveríamos ter videntes e MDs suficientes para lutar
contra os Nefilins. De outro modo, estaríamos fora de equilíbrio.
— Ausência de equilíbrio é o que querem os Nefilins. Isso cria o caos. Precisamos
encontrar mais soldados, e precisamos treiná-los. O que não vai ser fácil, já que ao
mesmo tempo estamos combatendo os Nefilins com os poucos que nos restaram.
— Então, o que fazemos? O que eu faço?
— Lidere-os.
— Isso realmente não me ajudou. Ela sorriu.
— Você está no caminho certo. Traga Jimmy de volta; ele é o melhor soldado que
você tem. Summer também não é nada má. Coloque Sawyer para procurar novos
membros para a federação, aqueles que ainda não sabem o que fazer com seus poderes,

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
e faça com que os oriente.
— Sawyer?
— Ele sempre foi muito bom em encontrar novos videntes. MDs também. Embora
os videntes costumem atrair seus próprios MDs.
— A menos que os herdem.
Como eu tinha feito. O poder de um vidente podia ser passado adiante, como
Ruthie me passara os seus.
— Sim — concordou ela. — Você precisa juntar os que estão se escondendo,
manter-se lutando, ao lado deles. É tudo o que pode fazer.
— Seria bom se Sawyer pudesse andar com duas pernas e falar em outros lugares
além do território Navajo — murmurei.
Ir até os novos recrutas e treiná-los o mais rápido possível seria bem mais prático
do que ter de encontrá-los por osmose, arrastá-los para o Novo México, para só então
lidar com eles.
— Leve Sawyer com você até Detroit — Ruthie recomendou. — É perigoso.
Imaginei se ela queria dizer que era perigoso por ser Detroit ou por causa da
benandanti e outros seres sobrenaturais, depois decidi que não importava. Perigoso era
perigoso, e Sawyer era o melhor guarda-costas, mesmo que eu não pudesse colocá-lo
em um avião sem uma jaula e uma focinheira.
Por sorte, eu tinha o Impala, e Detroit era uma curta, mas extremamente irritante
viagem ao redor do lago Michigan, partindo de Chicago. Estaríamos lá de manhã.
A risada das crianças chamou minha atenção para a janela mais uma vez. Sete
crianças, agora. Onde elas estavam se escondendo? Fiquei de pé e me aproximei,
olhando pelo vidro. Entre uma piscada e outra, já havia oito.
— Filho da... — murmurei, compreendendo tudo.
As crianças não estavam brincando de esconde-esconde; estavam aparecendo...
Bing! Bing! Bing!... enquanto morriam, uma por uma, em Lake Vista.
— Tem pessoas sendo assassinadas! — Eu girei, saindo da janela e encarando
Ruthie. — E nós aqui, conversando em uma cozinha ensolarada?
Os olhos dela estavam úmidos.
— Você acha que eu quero que eles morram? Que eu gosto de ficar com a casa
cheia?
Gesticulei, com as mãos para cima.
— Não sei o que você quer. Não sei nem o que eu acho! Só sei que pessoas,
crianças, estão morrendo pelo ataque dos luceres. Um ataque que fui enviada para
impedir!
— Mas você foi derrubada na luta...
— Segundo você, ainda não morri.
— Mas precisava de tempo para se curar. — O olhar de Ruthie ficou desfocado,
enquanto ela olhava além de mim. — Sawyer fez tudo o que pôde.
— Você me pôs algum feitiço, para que eu esquecesse o que estava acontecendo
lá? — Não podia acreditar que não tinha me lembrado até ver aquela criança aparecendo
do nada.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Você estava aqui por um motivo; para ouvir, aprender e se curar. Até que
tivesse feito essas coisas, não poderia partir. É inútil se preocupar com isso.
— Preciso voltar.
— Vá. — Ruthie fez um gesto de dispensa.
Eu caí, rápido e forte, batendo de volta no meu corpo, sufocando, tossindo,
sentindo gosto de sangue. Meu rosto estava molhado... eu estava toda molhada, e meu
peito doía. Pus a mão no ponto de dor, esperando encontrar a faca, mas ela não estava
lá. Levantei-me, praguejando, e abri os olhos.
Estava chovendo, e já por algum tempo, considerando-se o estado das minhas
roupas e do cabelo. Um lado do meu corpo estava aquecido, o outro levemente frio,
apesar do calor remanescente da noite de verão.
Sawyer estava pressionado ao meu corpo, de lado. Ele levantou a cabeça; seu
focinho e suas patas estavam cobertos de sangue.
Perto de nós estava minha faca, impecável, como se nunca tivesse sido enterrada
até o cabo em meu peito. Considerando a agonia brilhante e aguda pulsando entre
minhas costelas, fui obrigada a concluir que a chuva devia ter lavado o sangue.
Teria Sawyer arrancado a faca com os dentes? Ou eu mesma tinha feito isso, nos
estertores da morte? Teria ela desaparecido magicamente, para reaparecer logo ali? E
isso importava, uma vez que a arma não estava mais espetada em mim?
À distância, alguém gritou, e olhei para Lake Vista, e de lá, imediatamente de volta
para o chão. O subúrbio estava iluminado como se fosse Natal, e havia policiais em toda
parte.
Eu queria perguntar a Sawyer o que acontecera, além do óbvio — morte, morte e
mais morte. De qualquer jeito, eu não tinha tempo para mudar de forma e brincar de
interrogatório. Precisávamos sair dali, e era impossível dirigir um carro com patas.
— Venha — murmurei, lentamente voltando ao local onde tinha estacionado o
Impala, sob as árvores.
Não demoraria muito para a polícia ampliar a área de busca. Se encontrassem
uma mulher e um lobo perto do massacre... Bem, facilitaria bastante o trabalho deles.
Jogariam a culpa em nós c fechariam o caso. Mesmo que conseguíssemos sair da cadeia
por alguma combinação de mudança de forma e magia, estaríamos marcados dali em
diante. Eu não conseguiria viajar com a liberdade necessária. Mais pessoas morreriam.
Eu já tinha mortes demais na consciência do jeito que estava.
A lembrança das crianças pipocando uma de cada vez no quintal de Ruthie me deu
vontade de bater em algo. Pensei em fazer uma marca no Impala, mas já sabia por
experiência própria que o que se machucaria seria a minha mão. Claro, eu me curaria,
mas aquelas crianças continuariam mortas. Para sempre.
Esfreguei o rosto com as mãos, limpando as gotas de chuva.
Chegamos ao carro, e abri a porta tão silenciosamente quanto pude. Sawyer pulou
para dentro. Coloquei em ponto morto e empurrei o veículo por uma trilha estreita até
emergirmos em outra clareira, como eu havia esperado. Possuir força, superior era muito
útil.
Apenas quando estávamos afastados o bastante para que ninguém ouvisse o
ronco do motor foi que liguei a ignição e deixei Lake Vista para trás.
Sawyer se sentou no banco do carona e colocou a cabeça para fora como qualquer

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
cão, com a boca aberta e língua balançando. Se ninguém visse suas longas pernas e
patas enormes, ou olhasse com mais atenção para seus olhos muito inteligentes, mas
nem por isso menos ferozes, ele poderia mesmo passar por um cachorro.
Ambos precisávamos urgentemente de um banho. Se alguém visse minhas roupas
molhadas e meu... bem..."cachorro" coberto de sangue...
— Companheiro — murmurei, e ele bufou.
Algumas vezes, podia jurar que ele era capaz de ler minha mente. Pelo menos, me
entendia, mesmo quando não podia falar.
— Vamos parar em um hotel, nos limpar.
E enquanto estivéssemos lá, eu poderia mudar de forma e descobrir o que diabos
tinha acontecido em Lake Vista. Depois, dependendo da história, iríamos decidir se
voltaríamos para caçar luceres ou se seguiríamos para Detroit.
Dirigi para o sudeste por uma hora. Precisava colocar certa distância entre o
massacre e nós, de forma a não atrair suspeita imediata.
Na Interestadual 94, encontrei um motel de beira de estrada, utilizado por
caminhoneiros. Um lugar onde eu poderia me registrar — depois de cobrir a regata suja,
rasgada e sangrenta com uma jaqueta, apesar do calor—, depois dirigir até meu quarto
nos fundos, estacionar em frente a ele e deslizar o lobo pela porta.
Uma vez lá dentro, Sawyer se dirigiu para a cama.
— Banho primeiro — decretei. — Não precisamos de lençóis manchados de
sangue. Tive de dar a eles a placa do nosso carro.
Sawyer rosnou, mas foi para o banheiro, sentou-se no chão e olhou para a
banheira, até que eu abrisse a torneira.
O sangue havia secado em seu focinho e nas patas. A água conseguiu soltá-lo,
mas com sabão o processo seria mais rápido. Suspirei e me ajoelhei. Teria de banhá-lo
como se faz com um cão, depois secá-lo do mesmo jeito. Pela sua expressão, Sawyer
achava isso hilário.
— Não vá se acostumar — resmunguei, enquanto abria a embalagem do pequeno
sabonete. Sawyer podia não se acostumar, mas com certeza gostou, gemendo um pouco
enquanto eu passava o sabonete em seu pelo escuro e áspero. Ele colocou a cabeça
embaixo do chuveiro, depois se sacudiu, espalhando água para todo lado.
— Ei! — protestei, mas a água fez cócegas, e acabei sorrindo, até que notei que o
fazia e parei. Sorrir depois da morte de tantos era algo que eu não podia me permitir.
Fechei a torneira, peguei várias toalhas e me afastei para que Sawyer pudesse sair
da banheira. Depois o esfreguei tão rápida e eficientemente quanto pude.
Enquanto eu fazia isso, ele colocou a cabeça sobre meu ombro, e sua face tocou a
minha. Eu me afastei. A despeito do que tivesse feito para ajudar a federação, o fato era
que ele era filho da Naye'i, a mulher que conjurara da fumaça, e nós precisávamos
conversar.
— Vá. — Apontei para o quarto.
Ele reclamou, mas foi. Acho que não podia culpá-lo por ficar bravo comigo por
tratá-lo como um cachorro, mas honestamente, como evitar, se era o que ele era?
Fechei a porta, depois tranquei, embora não fizesse idéia de por que fazia isso.
Sawyer não podia abri-la como lobo, e estava preso a essa forma, já que estava fora do

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
território Navajo.
Mas eu já vira Sawyer fazer coisas inacreditáveis. Vai saber, de repente ele podia
atravessar paredes... Eu certamente não queria descobrir isso estando nua e vulnerável.
Tirei a roupa. À ferida no peito já não sangrava, mas ainda não havia sumido. Era
agora uma feia cicatriz avermelhada, que doía se eu me mexesse muito rápido ou ficasse
muito tempo parada. Como eu nunca tinha sido morta antes, não sabia quanto ia durar,
ou se algum dia sumiria. Desde que eu continuasse viva, não me importava.
Antes de entrar embaixo do chuveiro, tirei a arma da mochila e a coloquei na pia do
banheiro. A maioria das criaturas que poderiam entrar pela porta não se incomodaria com
uma arma, mas não custava nada prevenir.
Meia hora depois, me sequei, me enrolei na toalha, recolhi a arma e a mochila e fui
para o quarto. Sawyer estava na cama, assistindo à tevê, com o controle perto da pata.
Na tela, um programa sobre caça, seus olhos cinzentos acompanhavam um cervo cruzan-
do um campo de outono. Quando um tiro soou, ele adiantou-se, o pelo subindo, um
rosnado vindo do fundo da garganta, o olhar fixo avidamente no animal enquanto ele
saltava, corria alguns metros, depois caía lentamente. Acho que um lobo é sempre um
lobo, mesmo quando não nasceu assim.
Parei na frente da televisão. Sawyer se inclinou, tentando ver além de mim. Tirei a
toalha. Ele lentamente voltou ao seu lugar, já sem nenhum interesse no cervo. Acho que
um homem é sempre um homem, mesmo quando não permanece assim.
Rapidamente, coloquei a arma no criado-mudo, peguei o robe de lobo na mochila,
joguei-o sobre os ombros e mudei.
Era sempre assim. A explosão de luz, o frio e em seguida o calor. A queda de uma
grande altura, enquanto meus ossos estalavam e mudavam e eu me tornava outra coisa.
Minha atenção foi imediatamente atraída para a tela. Outro cervo saltitava, e eu
estava fascinada. Quando soou o tiro, meu coração pulou, a adrenalina invadindo.
Quando ela pulava, eu queria persegui-la. Sabia que a derrubaria, que era vulnerável, que
era minha.
Com um som abafado, a tela ficou preta.
Phoenix.
Virei-me para a cama, onde Sawyer estava com a pata no controle. Balancei a
cabeça para me livrar da fome animal, da necessidade premente de matar; isso sempre
me assustava.
Sua ferida vai se curar mais rápido nessa forma.
Levantei o pescoço, esticando a pele do peito. Ele tinha razão. Já não doía ou
repuxava como antes.
O que aconteceu?, perguntei.
Eu vi você cair, aí ela desapareceu.
E então?
Continuei lutando.
Eu deveria estar feliz por ele ter continuado com a tarefa. Não tinha nada que
pudesse fazer para me ajudar, mesmo...
Mas eu não estava feliz. Ao contrário, estava furiosa.
Mesmo comigo caída no chão, você só continuou lutando?
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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Eu sabia que não estava morta.
Seria legal se eu também soubesse disso.
Você precisa usar a turquesa. Sempre.
Eu não iria reclamar desse fato.
Falando nisso, você não me explicou por que ela sumiu só de avistar a pedra.
A pedra a marca como sendo minha.
Rosnei. Eu não era de ninguém, menos ainda de Sawyer.
As narinas dele se inflaram, sem dúvida pelo cheiro de pura fúria que eu devia
estar exalando como fogo.
Relaxe, Phoenix, era o único jeito de manter você viva.
Deixe-me ver se entendi direito: se eu estiver com a turquesa, ela não pode me
matar?
Exatamente.
Então, eu sou invencível.
Ele balançou a cabeça com desdém.
Só porque ela não pode, não quer dizer que os outros não possam.
Raios. Ser invencível parecia muito bom, naquele momento.
Voltei à pergunta original.
O que aconteceu em Lake Vista?
Sawyer se deitou, apoiou o focinho nas patas e suspirou.
O que se podia esperar.
De que serve saber que eles estão vindo, se não pudermos impedi-los?
Teríamos conseguido, se não fosse por ela.
Aprumei as costas.
Ela planejou tudo?
Ou ela seguiu os luceres, ou os enviou.
Enviou?
Controlar os Nefilins era um poder do líder da trevas, e a mulher de fumaça não
podia ser isso até que me matasse. O que só havia feito depois da chegada dos luceres.
E mesmo assim...
O pelo da minha nuca se eriçou.
Ela me matou. Isso faz dela a nova líder da trevas?
Ela não a matou de verdade.
Então, como pôde controlar os luceres?
Não pôde. Não exatamente. Mas ela é persuasiva. Especialmente se o que está
sugerindo é o que você já queria fazer.
Seu tom e a escolha do pronome me fizeram observá-lo com atenção. Estaria se
lembrando de seu pai, o xamã que acolhera seu espírito urso, vivera permanentemente
como um animal e viera a ansiar por carne humana por causa dela? Ou estava falando de

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
si mesmo? Uma vez, ele me dissera que ela podia convencer qualquer um a fazer o que
ela queria.
A despeito do meu pelo, estremeci. A que a Naye'i o obrigara? Ou ainda poderia
obrigar?
Se a Naye'i é assim tão poderosa, ela não precisa me matar. Pode mandar nas
forças do Mal apenas pela própria vontade.
Não funciona bem assim.
As coisas não parecem estar funcionando do jeito como deveriam.
Certas coisas vão acontecer. O líder das trevas vai matar o líder da luz, resultando
no Juízo Final. O Juízo Final leva ao Armagedom.
Alguns dizem Apocalipse, outros Armagedom. Tem alguma diferença ou é só como
aipim e mandioca?
E o que a mandioca tem a ver com isso?
Eu queria cocar a cabeça, mas não tinha mãos para isso. Ele era tão literal, o
tempo todo...
Qual a diferença entre Apocalipse e Armagedom?
A batalha final entre Deus e Satã é chamada de Armagedom. Apocalipse é um
termo genérico para o fim do mundo.
Fazia tanto sentido quanto todo o resto.
Precisamos ir atrás dos luceres.
Eu matei a maioria deles.
Sawyer não era um vidente ou um MD, era outra coisa, algo que nunca tive muita
certeza do que era. Imaginei se Ruthie sabia. Ela confiava nele. Eu, não. Ele era um
assassino. Mas não éramos todos?
Deveríamos juntar os que escaparam.
E inútil. Eles vão voltar às suas vidas disfarçadas, até serem chamados outra vez.
Luceres se espalham, se misturam. Podem estar em qualquer lugar.
Rosnei e raspei minhas garras no carpete, relaxando ao ouvir o som dos rasgos,
desejando que fosse um lucere ali, ou a mulher de fumaça.
Como podemos matá-la?
Se eu pudesse, já o teria feito. Vamos ter de continuar procurando, continuar
tentando.
Não é um pouco vago, isso?
E o que não é?
Levantei a cabeça, cheirando o ar e sentindo novamente o cheiro de chamas e
cinzas.
Por que você está cheirando a fumaça?
Já disse: ela faz parte de mim.
Os Navajos são matriarcais. Acreditam que o lado da mãe é mais forte. Não
importava o que eu dissesse, Sawyer não deixaria de crer nisso, também. As vezes, me
preocupava se ela iria levá-lo para as trevas. Este pensamento me assustava quase tanto

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
quanto Sawyer. Se ele um dia se juntasse ao Nefilins, seria nosso fim.
O poder que ele emanava o tempo todo me lembrou do tornado a que Ruthie se
referira. Dentro de Sawyer, vivia uma tempestade de destruição, apenas esperando para
sair.
Foi por isso que a conjurou, tantos anos atrás? Por que ela é parte de você? Por
querer, como todas as crianças rejeitadas, a aprovação dela?
Os olhos dele chamejaram. Jamais o questionara a respeito daquela noite; não
queria que soubesse que andei espionando. Mas ele devia saber, senão, por que me
daria a turquesa mágica para evitar que ela me matasse?
Acha que estou secretamente trabalhando para minha mãe?
Eu achava? Não de verdade. Mas não podia ter certeza. Eu havia tocado Sawyer
do modo mais íntimo que uma mulher pode tocar um homem, e vira muita coisa, mas não
tudo. Sawyer era capaz de me bloquear de uma maneira como ninguém mais conseguia.
Eu sabia que ele escondia algo, mas não achava que fosse isso.
Por que a chamou, naquela noite?, pressionei.
Ele se levantou, chacoalhando o pelo como se tivesse acabado de sair de um lago
nas montanhas. Quase esperei que a água fria espirrasse em mim.
Tínhamos assuntos a discutir.
Chame-a agora. Gostaria de falar com ela.
Você sempre teve mais coragem que bom senso. Não aprendeu nada com a última
surra? Não está pronta para encontrá-la de novo.
Apronte-me.
Seu ar de humor sumiu, e ele desviou os olhos.
Não posso.
Quem pode?
Ele não respondeu.
Então, não vai conjurá-la?
Houve um tempo em que eu podia trazê-la a mim com fogo, sangue e magia, mas
esse tempo se foi.
Por quê? Ela está mais forte. Resiste ao feitiço. Talvez tenha sempre podido fazer
isso, mas agora sabe que é inútil tentar me seduzir.
Seduzir você? Engoli em seco, sentindo um gosto podre algo verde e musguento e
simplesmente errado no fundo da minha garganta.
Nossos olhares se encontraram.
Você acha que é algum eufemismo? Não é. Para me fazer trocar de lado, ela faria
qualquer coisa.
Você é filho dela.
Ela é um espirito mau, Phoenix. A única coisa que ser um filho dela significa é que
eu possuo magia, e ela a quer.
Ela pode absorver poderes como... Fiz uma pausa. Bem, como eu posso?
Ninguém absorve poderes como você.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Não sei se eu devia ficar feliz com isso, ou mais assustada.
Ela não pode tomar o talento alheio. Para se fortalecer, ou ela os seduz para seu
lado, como fez com meu pai, ou mata seus inimigos e recolhe os poderes deles da terra.
Se você não está comigo, está contra mim.
É uma filosofia que a manteve viva por um longo, longo tempo.
Mais cedo ou mais tarde, ela vai se cansar de esperar e simplesmente matar você.
Provavelmente.
Outro calafrio me percorreu, fazendo minha pele se arrepiar sob o pelo. A única
coisa mais assustadora do que ter Sawyer do lado do mal, era Sawyer não estar em
nenhum dos lados. Meus sentimentos a respeito dele eram complicados, para dizer o
mínimo.
Ela pode matar você?
Ele deu uma pequena bufada, cheia de diversão e escárnio, depois tocou o focinho
com a pata, com se o cocasse.
Eu posso ser muito difícil de matar, Phoenix, mas isso não me faz imortal.
Você poderia usar uma turquesa, sugeri.
Não funcionaria para mim.
Por que não?
Magia. Ele respirou fundo. É difícil explicar.
Eu teria de aceitar a palavra dele. Embora eu tenha lidado com minha quota de
magia ultimamente... feitiços, bruxas e fadas... ainda não sabia muito a respeito.
Então, o que fazemos?
Sawyer levantou a cabeça grande e peluda, e os olhos cinzentos, bizarramente
humanos e selvagemente lupinos, fixaram-se nos meus.
Acharemos um jeito de matá-la antes.

Jimmy estava no Novo México, praticamente em um clone do motel que nós


ocupávamos. Duas placas eram visíveis pela janela aberta às suas costas: O Barato de
Dormir — um nome que realmente faz você querer se enrolar nos lençóis, não? — e
Interestadual 25.
Era dia, e Jimmy estava lendo A Sentinela de Red Rock. Parecia muito interessado
no conteúdo.
— Sexta-feira — murmurou, e então sorriu. As malditas presas estavam expostas,
e o brilho do sol destacava o vermelho de seus olhos. Poderia dizer que ele não parecia
ser o mesmo, mas estaria mentindo. O novo e não tão melhorado Jimmy Sanducci estava
começando a se parecer com aquilo ali mesmo.
Ele deixou o jornal voltado para cima na mesa, e eu olhei cada propaganda, cada
artigo. O único que dizia algo a respeito de sexta-feira era o de um show itinerante.
Circo Extravaganza, os ciganos que lêem a sorte.
Uau! Tinha de tudo no mundo.
O que teriam a dizer para Jimmy? A pergunta me deu uma péssima sensação.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Enrolando-me em uma toalha, deixei minha mochila no outro quarto, fechei a porta e
peguei meu celular.
Sawyer estava vendo o canal de caça e pesca de novo e mal me viu.
Provavelmente sabia que eu jogaria o objeto pesado mais à mão se resolvesse me
provocar naquele momento. O homem podia ser irritante, mas o lobo aprendia rápido.
Summer atendeu, parecendo bem-disposta e alegre... e quando era que não
estava assim?... para o que devia ser tarde da noite no oeste.
— Estou feliz que tenha ligado.
— Você o encontrou?
Seria demais esperar que ela já tivesse encurralado Jimmy, e era até onde meus
pensamentos iam. Não fazia idéia do que podia fazer para tirar dele o fascínio pelo
suicídio.
— Não. Eu voei sobre as montanhas. Eles não estavam lá, então estou esperando
na casa de Sawyer.
— Pode riscar essa opção. Ele está comigo.
— Sawyer? Mas como...?
— O que tem quatro patas e gosta de uivar para a lua?
— Ah... então por que...
Rapidamente, informei-a de tudo o que ocorrera desde que ela saíra voando.
— Não diga a Jimmy que ele está aqui — finalizei.
— Você acha que sou idiota?
— Suponho que você não queira que eu responda.
Ouvi uma risada suave do outro lado da linha, e me vi sorrindo. Algumas vezes,
falar com Summer era quase como conversar com Megan.
Aliás, eu precisava ligar para ela.
— Vá para Red Rock — continuei. — Sabe onde fica?
— Perto de Las Cruces. Jimmy está lá?
— Sim.
Não esperei que ela me perguntasse como eu sabia, apenas prossegui dando
ordens. Era meu ponto forte.
— Ele planeja assistir a um show itinerante na sexta-feira. — Fiz uma pausa,
preocupada. — Que dia é hoje?
— Sexta-feira.
— Droga!
— Calma... Eu consigo chegar lá bem depressa. Ela podia voar.
— Que tipo de show itinerante? — ela perguntou. — Não consigo imaginá-lo
assistindo à mais recente versão de O Rei Leão.
— Um circo. Com ciganos.
A linha se encheu de silêncio, e eu tive um pressentimento ainda pior do que o
primeiro.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— O que há de tão ruim com os ciganos? — perguntei.
— Você não sabe?
Eu não ia explicar quão pouco eu sabia, como era inadequada para liderar as
forças contra o Armagedom, o Apocalipse, o Juízo Final, o fim dos tempos. Seja lá como
for chamado, eu não estava pronta para ele. Por sorte, Summer não me fez explicar; cm
vez disso, explicou:
— Ciganos sabem tudo sobre dampiros, inclusive como matá-los.
— Em primeiro lugar: ainda existem ciganos?
— Ainda existem italianos, navajos, irlandeses e qualquer outra nacionalidade que
você puder imaginar. Ciganos não são diferentes. — Ela fez uma pausa. — Bem, são sim.
Mesmo tendo se espalhado pelo mundo séculos atrás e tendo perambulado por todos os
continentes, eles raramente interagem com os outros, exceto no comércio. Se um cigano
se casa com um gaje, um não-cigano, ambos são banidos.
— Tão feudal...
— É o costume deles.
— Conte-me por que eles sabem tanto sobre dampiros.
— Porque foram eles que os criaram.
Dei uma espiada em Sawyer, que desligara o canal de caça e me encarava com
avidez. Não tive dúvidas de que sua audição superior lhe permitia ouvir os dois lados da
conversa.
— Isso não faz sentido. Dampiros são descendentes do cruzamento de um Nefilim
com um humano, do mesmo jeito que qualquer híbrido. O que significa que os Nefilins os
criaram.
— Sim e não. — Ela respirou fundo. — Ciganos são nômades. Eles viajaram pelo
mundo todo, e assim, viram muitas coisas.
— Coisas do tipo Nefilim?
— Sim. Vários deles possuem a visão.
— Por que não os recrutamos?
— Eles não lidam com os gaje — ela repetiu. — Mas se viram muito bem matando
Nefilins por sua própria conta. A palavra "dampiro" significa "filho do vampiro" em romeno,
o idioma dos Rom, como dizem os ciganos.
— E como, exatamente, os ciganos criaram os dampiros?
— Eu não deveria ter dito que criaram; eles descobriram seus poderes, deram-lhe
um nome e começaram a usá-los para combater os Nefilins há muito tempo.
— Está me dizendo que a mãe de Jimmy era cigana?
— É possível, embora o termo dampiro tenha vindo a significar qualquer
descendente de vampiro com humano. Dampiros podem reconhecer vampiros; eles são
muito bons em matá-los. A lenda diz que eles têm todas as qualidades, sem nenhum dos
defeitos.
— Diga isso a Jimmy...
— A menos que eles compartilhem o sangue — ela continuou. — Então eles viram
mais vampiros que humanos, e os ciganos os matam. Diferente da maioria das pessoas,
os Rom acreditam no sobrenatural.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Que é o motivo pelo qual Jimmy vai para lá. Ele vai mostrar suas presas, rosnar
um pouco, talvez morda alguém...
— E eles colocam uma estaca em seu coração — concordou Summer. — Duas
vezes.
— Impeça-o... Impeça-os!
— Estou indo — ela disse e se foi. Eu olhei para Sawyer.
— Tenho certeza de que você ouviu isso.
Ele piscou uma vez, o que tomei como um "sim", depois caminhou até a porta e
esperou que eu a abrisse. Assim que o fiz, ele saltou para o campo atrás do motel e
desapareceu na grama alta e seca.
Olhei em volta. Ainda não tinha amanhecido, e não havia ninguém no
estacionamento, graças a Deus. Eu não queria ter de explicar por que tinha um lobo de
estimação. Claro, eu diria a qualquer um que Sawyer era um cão, e talvez ali as pessoas
acreditassem em mim. Mas se eu estivesse em Wisconsin, Minnesota, Michigan ou
Canadá, não apenas as pessoas iriam rir na minha cara, como provavelmente atirariam
em Sawyer antes mesmo que eu tivesse a chance de mentir.
Pessoalmente, acho os lobos lindos, ou pelo menos achava, antes de virar um.
Agora, os acho muito práticos. Os lobos podem correr a mais de sessenta quilômetros por
hora, e cobrir mais de duzentos quilômetros em um dia. São conhecidos por seguirem
uma presa correndo por oito quilômetros, e depois ainda acelerar. São bons lutadores,
assassinos ainda melhores, e em minha nova vida havia algumas situações que só um
lobo podia resolver.
Não obstante, o pessoal na fronteira norte da civilização considerava os lobos
patifes, e os matavam se conseguissem se safar com isso. Claro que a espécie estava
ameaçada em alguns lugares, e protegida em outros, mas diga isso a um fazendeiro que
tenha perdido várias ovelhas ou um bezerro. Ele mataria o lobo com certeza, e enterraria
os restos na floresta, onde ninguém jamais os encontraria.
Fiquei na porta aberta, enrolada em uma toalha, sem querer tirar os olhos do
campo onde Sawyer tinha desaparecido para fazer o que os lobos fazem nos campos. E
se aparecesse um caminhoneiro com um rifle?
Não que uma bala fosse fazer muito efeito em um skinwalker, ou pelo menos é o
que me fizeram crer. Embora as histórias da indestrutibilidade de Sawyer possam ter sido
levemente exageradas para me impedir de estourar seus miolos.
Ainda assim, que Jimmy não o tivesse assassinado era notável. Eu não precisava
ser paranormal para saber que se Jimmy pudesse matá-lo, já o teria feito, e vice-versa.
Que era o principal motivo para Jimmy estar procurando por ele agora. Quando não o
encontrara, partira para o plano B.
Enquanto eu esperava por Sawyer, peguei meu celular e liguei para Megan. Se
fosse com qualquer outra pessoa, eu teria receio de acordá-la, mas Megan sempre se
deitava tarde. Dizia que era seu único "momento de solidão".
— Você sabe, não sabe? — Ela não se deu o trabalho de dizer "alô". Por que
desperdiçar palavras, quando se tinha um identificador de chamadas?
Eu franzi as sobrancelhas.
— Sei o quê?
— Eu ia ligar para você, logo cedo, de manhã.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Ao contrário de Megan, eu não precisava de momentos de solidão, e acordar antes
de o sol nascer era considerado uma tortura cruel e desumana. Ou pelo menos era, antes
que eu ficasse disponível o tempo todo para combater Nefilins. Dois meses atrás, se eu
não saísse da cama, alguém teria de esperar pela sua cerveja; agora, pessoas morreriam.
— Por que você ia me ligar? — perguntei.
— Houve um assassinato.
— Há muitos assassinatos em Milwaukee.
As pessoas comuns não sabem que Milwaukee era uma das dez cidades com
maior índice de assassinatos, com, freqüência aparecendo acima de Los Angeles nas
pesquisas. Considerando-se que Milwaukee era quase pequena, e que L.A. era quase
gigante, isso era embaraçoso.
— Não em Milwaukee — esclareceu Megan. — Em Friedenberg.
— Droga!
— Na sua casa. "Dupla droga" seria uma expressão válida?
— Quem? Como?
— Você conhece uma mulher chamada Jenny Voorhaven?
O nome soava familiar, mas eu não me lembrava de onde. Em meu ramo de
trabalho, isso acontecia muito. As pessoas se apresentavam no bar, nós ficávamos muito
chegadas por uma noite, enquanto eu ouvia sua incrível história triste... e escutei dúzias
delas... depois nunca mais nos víamos.
— Talvez — respondi.
— Ela foi encontrada na sua porta, ou pelo menos seus restos. Eles pediram ajuda
do FBI.
— Eles, quem?
— A polícia local. Não acontece um homicídio em Fridenberg nos últimos dez mil
anos.
— Você está exagerando — comentei. Mas não devia ser muito.
— Voorhaven era de Ohio. Morreu em Wisconsin e... bem, eles não conseguem
descobrir como ela foi assassinada.
— O FBI não consegue descobrir?
— Parece que ela foi partida em duas, e como todos sabem que isso é
impossível... — A voz de Megan dizia que o que ela sabia era diferente.
Assim como eu. Vira Jimmy partir algo em dois, havia menos de dois dias.
Jimmy. Ah, droga!
Minha respiração acelerou ao ponto da hiperventilação. Megan deve ter ouvido,
porque falou:
— Liz? — E depois, bem mais alto, de novo: — Liz!
— Estou aqui. Só me dê um minuto para pensar.
E quando eu pensei, vi que Jimmy não poderia ter viajado de Ozark para os
Grandes Lagos, depois de volta para a casa de Sawyer e de lá para o sul do Novo
México, parando para rasgar alguém no meio no caminho, Ele era rápido, mas nem tanto.

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Em seguida a estes pensamentos, veio outro, e eu corri, tirei a lista de Jimmy do
bolso do meu jeans e achei o nome de Jenny entre os outros. Não era de se espantar que
tivesse soado familiar.
Jenny tinha sido uma vidente de Cleveland, e sem dúvida perdera o e-mail e a
chamada telefônica avisando para que se escondesse. Tive um mau pressentimento de
que outros poderiam segui-la.
A maioria dos videntes não era como eu, capazes de se defender contra os vilões
sobrenaturais com sua própria velocidade e força sobrenaturais, que era o motivo pelo
qual Ruthie conhecia suas identidades, muito tempo atrás. Mesmo assim, eles não
costumavam ir longe sem um MD para protegê-los; todos os de Jenny deviam estar
mortos.
Eu podia ver claramente o que acontecera. Jenny estava se escondendo, longe de
todos que conhecia. A voz que a guiava estava em silêncio, ou por causa do amuleto ou
porque os Nefilins estavam se reagrupando para outro esforço em direção ao Juízo Final.
Por isso, ela pensou que estava tudo bem, e que poderia vir até mim e conseguir ajuda.
Assim, chegou à minha porta, tocou a campainha e ouviu a voz que anunciava um
demônio. Ela me chamou, gritou, talvez chorou, enquanto a mulher de fumaça sorria e a
partia em pedaços.
Às vezes, esse cargo de líder da luz era realmente ruim.
— Aquela nai... ne... nefi... — Megan se interrompeu com um rosnado de irritação.
— Aquela deusa-vagabunda esquisita, que desaparecia, fez isso?
— Sim.
Ela, ou um de seus servos. Não importava. Jenny estava morta.
— Liz? — Megan murmurou. — O que está acontecendo?
— Ela era uma vidente, como eu.
Enquanto eu pensava, também pegava meu laptop, esperando que ligasse para
conectá-lo à internet. Chequei meu e-mail. Três videntes tinham respondido, concordando
em ficar escondidos. Podiam guiar seus MDs remanescentes enquanto isso, e segundo
eles, havia muito a fazer. Parecia que os Nefilins, sabendo que tinham acabado com a
maioria de nossas forças, estavam fazendo um desfile.
Suspirei. Nada a ser feito, a não ser tentar impedir a enchente o melhor que
pudéssemos, com o que tinha sobrado.
Eu tinha esperado mais respostas, más além daqueles três e-mails, só havia
alguns spams.
— Megan — falei. — Pode haver mais alguns. Eu não sabia como impedir.
— Seu prédio está cercado com aquela fita amarela da polícia. Um cego poderia
vê-lo do espaço sideral. Se eu fosse um ser sobrenatural, vidente, me escondendo dos
vilões, daria só uma olhada e correria como louca.
E era verdade. Meu humor melhorou um pouco, depois afundou.
— Eles podem ir para o bar. Ela provavelmente tem alguém vigiando o lugar.
Eu não achava que os Nefilins fossem se incomodar com Megan, mas também,
eles pareciam gostar de matar apenas por diversão.
— Não quero que se machuque.
O que eu queria era enviar um MD para acampar lá em um dos bancos do bar,
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mas não tinha nenhum de reserva.
— Vou ficar bem.
Não respondi. Megan era durona, mas não tanto assim.
— Vou conseguir alguma ajuda. — De quem, eu não tinha a menor idéia.
— Eu disse que vou ficar bem.
Ela estava ficando impaciente. Odiava quando alguém afirmava que ela não podia
tomar conta de si mesma, do bar, dos filhos, ou de qualquer coisa que considerasse sua.
Como eu.
— Tenho certeza que sim — menti. — Mas se os Nefilins mandarem alguém vigiar
o bar, eu envio um MD para matá-lo e todos que estiverem com ele. É estritamente
profissional.
— Ah — disse Megan, devagar. — Bem, faz sentido.
Agora, eu só tinha que achar um. Ocorreu-me que Summer devia conhecer alguns
MDs, depois de séculos sendo uma. Talvez tivesse um jeito melhor de contatá-los do que
o meu. Quem sabe?
Assim que desliguei, voltei a chamar Summer. Ela não atendeu; suspeitei que voar,
mesmo sem um avião, exigia toda a sua atenção, e que ela estava direcionando suas
chamadas para a caixa postal.
Sawyer entrou no quarto enquanto eu estava deixando uma mensagem, o pelo
escuro salpicado de grama seca, pólen e alguns carrapichos. Teria de escová-lo antes de
entrarmos no carro.
Balancei a cabeça. Não podia tratar um animal selvagem como um de estimação.
Era um bom jeito de levar uma mordida, ou coisa pior.
— Summer — eu disse, assim que acabou a mensagem na secretária eletrônica —
ligue para mim quando ouvir isso. Eu... — Fiz uma pausa, sem querer admitir, mas
incapaz de achar outro jeito de dizer o que tinha de ser dito — ...preciso da sua ajuda.
Sawyer bufou, e eu o olhei. Ele não sabia sobre Jenny, a vidente morta, então
contei tudo. Sempre me parecia meio bizarro falar com um lobo, mas eu sabia que ele
podia me entender. Só não tinha como responder. Com palavras.
Em ações, ele declarou seu ponto de vista muito bem. Assim que terminei de falar,
pegou minha calça jeans que estava no chão com a boca, arrastando-a pelo carpete e
deixando-a junto a meus pés ainda descalços. A mensagem era clara: Vista-se e vamos
logo.
Eu estava muito tentada a dirigir de volta para Milwaukee e proteger Megan
pessoalmente. Mas junto com essa tentação, veio a certeza de que isso me colocaria
exatamente nas mãos da mulher de fumaça.
Não tinha muita certeza de por que ela não viera novamente atrás de mim;
provavelmente, por causa de Sawyer, da turquesa, ou ambos. Se eu me permitisse
desvios, ou recuos, seria um desastre.
Sawyer e eu estávamos na estrada em meia hora. Eu tinha parado na recepção,
comprado um copo de café para viagem e uni sanduíche de queijo embrulhado em
celofane. Também peguei um para Sawyer, mas ele só o cheirou e esnobou, então o comi
também. Não me lembrava da última vez que comera alguma coisa.
Suspeitei que Sawyer tivesse usado seu tempo na grama alta, além de outras

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coisas, para comer um coelho ou um rato. Eu não sabia como um rato podia ser mais
apetitoso que um sanduíche, mas talvez me sentisse de outro modo se tivesse orelhas
pontudas e um rabo.
— Assim que mandarmos sua mãe para o inferno, teremos de arranjar um jeito
melhor de contatar videntes. Inventar um tipo de plano de contingência para emergências.
O que tínhamos era bem mais ou menos, mas descobri que muita coisa neste
mundo era assim. Humanos eram imperfeitos, assim como seus planos.
Sawyer, que estivera com a cabeça para fora da janela, colocou-a para dentro e
esperou que eu continuasse.
— Eu sei, nossa vida toda é uma longa emergência, mas ainda assim, celulares, e
até e-mails, provavelmente não são os melhores meios. Acho que os Nefilins, tendo vivido
tanto tempo, compraram tecnologias impressionantes.
Celulares podiam ser rastreados. Monstros, com sua audição anormalmente
apurada, podiam ouvir conversas que absolutamente não lhes diziam respeito. Hackers
vinham em todos os formatos, tamanhos e sobrenaturalidades.
Chegamos em Detroit antes do meio-dia. Tulia Street ficava em uma área
particularmente pobre de Detroit, a casa muito próxima às outras do quarteirão, com muito
pouco espaço entre elas. O bangalô cinza era cercado por uma pequena área de grama
seca, com as persianas vermelho-brilhante servindo apenas para enfatizar as grades nas
janelas.
Quando tocamos a campainha, o rosnado de um cão imenso do outro lado fez a
pelagem do pescoço de Sawyer se eriçar. Ele se enfiou entre mim e a porta, empurrando-
me para trás até que eu quase tropeçasse para fora da entrada.
Um som deslizante, seguido por um clique, revelou um postigo na porta, na altura
do rosto. O interior da casa estava tão escuro que não consegui enxergar direito os olhos
da pessoa, além de um brilho fugaz conforme o sol fraco atravessava o vidro.
Então o postigo se fechou. Fiquei tensa, preparada para bater na porta e gritar um
pouco, mas as fechaduras se abriram, trancas foram puxadas, a porta se abriu e uma voz
murmurou da escuridão:
— Ciao, Bella. Estava esperando por você.
Embora a porta estivesse escancarada, eu ainda não via ninguém no longo túnel
escuro da entrada, mas podia ouvir o cachorro rosnando. Ele soava monstruoso e mau,
— Você é...
Fiz uma pausa. Como eu deveria perguntar se a dona da voz melodiosa e sexy era
uma bruxa? Seria educado perguntar? Ou ao contrário, um convite para me servir ao
cachorro?
Sawyer entrou com as pernas rígidas e o pelo ainda eriçado. Ele levantou a
cabeça, cheirou o ar, chacoalhou-se como se estivesse ensopado, depois olhou para mim
com uma expressão confusa.
— Sou quem, bella? Ou talvez queira dizer o quê?
Ela riu, o som tão rico e alegre que não pude deixar de acompanhá-la. Queria rir
com a mesma felicidade, mas tinha a impressão de que nunca mais faria isso.
— Já que você mencionou...
— Este não é o lugar para ter essa conversa. Você na porta, eu no escuro, seu

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
pobre lobo...
— Cachorro — soltei.
— Claro — respondeu ela, sem perder o ritmo. Sua voz não apenas era bonita,
suave e clara, como uma ária soando através de um teatro escuro, como também tinha
um leve sotaque. O inglês não era sua língua mãe; de qualquer forma, já a falava havia
muito tempo. — Vocês dois devem entrar, depois fechar a porta e trancá-la.
Hesitei. Trancar a porta junto com Deus sabia o quê, e o cachorro dela, podia ser
uma atitude insensata. Eu tentava evitar esse tipo de coisa.
— Elisabetta — ela sussurrou, me deixando tensa, embora meu nome não fosse
mais nenhum segredo, se é que alguma vez tinha sido. — Eu sou Carla Benandanti.
Bem, isso era conveniente, mas qualquer uma podia chamar a si mesma de bruxa
boa. Não significava que fosse.
— Você foi enviada a mim por uma mulher que é sua amiga e minha, também.
— Ruthie — murmurei.
— Ela me disse que você viria.
— Você falou com ela? — Dei um passo à frente, ansiosa. — Recentemente?
— Não. Ela está um pouco morta, não?
— Então, quando ela lhe disse...
— Anos atrás.
— Anos atrás, ela já sabia que eu viria aqui?
— Ruthie sabia de muitas coisas.
Verdade. Claro, Ruthie podia dar um jeito de realizar as próprias profecias. Fora ela
quem me enviara a Detroit, a princípio.
— Inclusive — continuou Carla — que você precisaria de uma benandanti em
algum ponto do futuro. Entre, bella, e traga seu cãozinho.
"Bella" não era a palavra em italiano para bonita? Ou linda, talvez. Tive uma rápida
visão da Bruxa Má do Oeste. Vou pegar você, minha linda, e seu cãozinho também.
A lembrança da bruxa má me deixou ainda mais nervosa. Eu deveria estar
visitando uma bruxa boa, mas não dava mais para saber quem era bom ou mau, e quem
podia se tornar mau se o vento soprasse nessa direção.
Como se respondesse ao meu pensamento, uma brisa repentina surgiu e quase
bateu a porta no meu rosto. Eu segurei bem a tempo, olhando sobre meu ombro, com
raiva ante a evidência de outra tempestade com ventania no horizonte.
O que estava havendo com as tempestades ultimamente? Elas pareciam me
seguir, aonde quer que eu fosse. Como eu não tinha poderes sobre o tempo... ainda...
voltei minha atenção para Carla, que esperava eu me decidir. Ia entrar ou fugir?
Eu odiava toda essa incerteza. Eu possuía poderes, assim como Sawyer, e juntos
seríamos capazes de evitar que uma benandanti nos matasse.
Entrei e fechei a porta atrás de mim. Um movimento no final do hall me fez ir
naquela direção. Sawyer também vira, e suas unhas batiam contra as tábuas do piso
enquanto ele ia na frente.
Ele entrou na sala de estar e olhou em todas as direções, procurando pelo

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
cachorro que ainda rosnava intermitentemente. A sala estava vazia, a não ser por...
Uau! Falando na bruxa má... Tirando a pele verde, Carla Benandanti podia ser a
gêmea de Elphaba: rosto longo, esticado, parecendo pastoso, com um nariz em forma de
gancho, uma verruga ou duas cominando com dedos ossudos, e pés longos e magros
cobertos por chinelos vermelhos.
Olhei para cima e encontrei os olhos sorridentes da mulher. Azul-claros, pareciam
reluzir, com vida, alegria, magia... todo o poder da mulher se refletia ali. Não podia
acreditar que uma bruxa má tivesse olhos como aqueles. Mas também não podia
acreditar que uma bruxa boa escolhesse ter a aparência de uma megera.
— Posso ver o que está pensando — disse ela. — O que faz uma bruxa como eu...
— Carla gesticulou, indicando com a mão manchada pela idade seu corpo esquelético
metido em um vestido que parecia feito de saco — ...em um lugar como este?
Ela podia colocar um chapéu pontudo sobre os cabelos negros entremeados de
prata para terminar a fantasia.
— Eu sou quem sou — continuou, quando não fiz comentários. — Não preciso de
glamour.
— Você tem esse dom?
— Prefiro não usá-lo. A beleza é fugaz, só a alma é eterna.
— Seu sorriso era como a risada, e tirou um pouco do peso do meu peito. —
Prefiro não atrair atenção para minha pessoa. É mais seguro.
— Mais seguro como?
— Uma bela mulher é vista por todos, e lembrada. Uma feia é facilmente
esquecida.
Sawyer passou por mim, quebrando minha concentração. Ele cheirou cada canto,
espiou sob os móveis e atrás das cortinas, mas não achou nada.
— Onde está seu cachorro? — perguntei, e o sorriso da benandanti aumentou. —
Você tem um cachorro invisível?
— Não tenho nenhum cachorro.
— Mas...
Ela acenou, e um rosnar horripilante encheu a sala. Sawyer, que estava com a
cabeça sob uma cadeira, pulou, bateu a cabeça e veio para trás, rosnando enquanto se
virava para encarar seu atacante. Sua expressão quando encontrou apenas nós duas foi
impagável.
— Eu conjuro este som sempre que soa a campainha — explicou Carla. —
Espanta a maioria das pessoas.
— E se não espantar? Ela deu de ombros.
— Eu conjuro um cachorro.
Ela conjurava um cachorro. Bem, para uma pergunta estúpida...
— Por que continuar morando aqui, se é tão perigoso?
— Alguns lugares são mágicos, e este é um deles.
Eu sentira uma energia assim no ar sobre as montanhas de Sawyer, com tanta
certeza quanto notara o roçar frio do mal na primeira vez em que vira o antro de vidro e
metal do strega, no horizonte superlotado de Manhattan. Mesmo após eu e Jimmy termos

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
queimado o lugar até as cinzas, duvido que qualquer coisa que seja construída ali possa
colocar os fantasmas que restaram para descansar.
Aquela casa tinha uma aura, uma essência, uma presença, mas não era do mal.
Era uma antecipação, uma impressão de que o bem podia acontecer, se você soubesse
onde procurar por ele, para quem perguntarão que fazer. Quanto mais eu ficava ali, mais
minha pele se arrepiava, e mais alto o ar parecia zumbir.
— Vim para cá ainda criança, com meus pais — explicou Carla. — Meu pai
trabalhava em uma empresa automotiva. Era uma vida feliz. Muito melhor do que a que
deixamos para trás. Fomos felizes. Tanto, que parecia magia. Mais tarde, descobri que
era, mesmo.
— O que seus pais eram?
Toda bruxa que eu conhecera até então era também algo mais. Sawyer era um
metamorfo, sua mãe, um espírito do mal, e o strega, um vampiro. Isso não queria dizer
que não podia haver uma que fosse apenas uma bruxa, mas eu não apostaria meu
dinheiro nisso. A magia vinha de algum lugar; nascia com o sangue.
— Meu pai era humano, minha mãe, uma andarilha.
— Ruthie disse que benandanti significa "andarilha do bem", o que, de acordo com
ela, é uma boa bruxa, com o poder de quebrar encantamentos.
— Tudo verdade. Eu peguei o lugar de minha mãe. Sou ambas as coisas, bruxa e
andarilha.
Olhei para Sawyer, que ainda estava cheirando tudo.
— Como ele?
— Não, não uma skinwalker. — Não perguntei como ela sabia o que Sawyer era.
Tenho certeza de que elas tinham algum tipo de radar de bruxa. — Os benandanti só
podem se transformar ao se banharem em um lago mergulhado na luz da lua. Quando eu
for lutar a seu lado, vou descer ao submundo através da água.
Minha confusão devia estar aparente, porque ela explicou melhor:
— Um benandanti é um lobisomem que deixa para trás sua forma humana quando
desce ao submundo para lutar contra os perversos.
Sawyer trotou, aproximando-se, e se sentou em frente a Carla, olhando para seu
rosto como se ela fosse uma amiga havia muito perdida. Considerando-se o que ela
acabara de revelar, talvez fosse.
— Pensei que os perversos estivessem sobre a Terra — disse eu. — Os Nefilins.
— Os Nefilins são a descendência do maior mal já conhecido, os Grigori. Na Bíblia,
geralmente são chamados de "os perversos". Houve momentos, ao longo dos séculos,
em que os Grigori tentaram se libertar.
— Mas uma benandanti sempre os impediu?
— Até agora.
— O que vai acontecer se os Grigori conseguirem?
— Está escrito: no reinado da Besta, uma vez mais haverá cruzamentos entre
homens e demônios.
Tive um calafrio. Havia tanta coisa que eu não sabia... Provavelmente, deveria
fazer um curso. Pelo menos, comprar um exemplar do Juízo Final para Iniciantes.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Onde isso foi escrito?
— Livro de Daniel.
Um exemplar da Bíblia para iniciantes também não era má idéia.
— O reinado da Besta significa o Anticristo — murmurei. Quem quer que ele fosse
naquela semana.
— Durante a grande tribulação, aquele período de caos e imenso sofrimento, os
portões do Tártaro, o poço do inferno, serão abertos, e os Grigori libertados novamente
sobre o mundo.
— Como eles serão abertos?
— Se eu soubesse, saberíamos como impedi-los.
— E isso jamais seria permitido — resmunguei. — Deus nos proteja de estarmos
um passo adiante dos vilões, em vez de um atrás, para variar.
— Tudo vai dar certo. Tenha fé. — Ela abriu um sorriso e olhou para Sawyer. — É
o que planejo fazer.
Carla estava certa. Fé era uma grande parte do nosso arsenal. Se não
acreditássemos na promessa de que eventualmente venceríamos aquela guerra, não sei
se a federação sobreviveria.
— O que os Grigori farão quando estiverem livres?
— Um sinal claro do fim dos tempos será quando os anjos caídos uma vez mais
acasalarem com os humanos, produzindo uma legião de Nefilins.
Legião. Outra palavra para "exército". Droga! Já estávamos em desvantagem
numérica. O que eu faria quando houvesse um exército marchando contra mim? Acho
que o melhor seria apenas assegurar que isso nunca acontecesse.
— Então, você só vira lobisomem quando desce ao submundo para lutar contra os
Grigori? — perguntei, e Carla assentiu. — Isso acontece com freqüência?
— Em meu tempo de vida, nenhuma vez. — Seu sorriso sumiu. — Mas posso
sentir que está chegando.
— Você pode sentir?
— Você não? Há uma tempestade à vista, no horizonte. Olhei para a janela,
lembrando das nuvens rolando no oeste e das palavras de Ruthie.
— Literal ou figurativamente?
— Ambos. Quando o fim dos dias se aproxima, o clima reflete o caos que ameaça
a Terra. Nos últimos anos, o clima esteve bastante incontrolável.
— Aquecimento global — murmurei.
— Não explica todas as ocorrências estranhas. Certamente as centenas de
quebras de recorde de temperatura, o derretimento da calota polar, as enchentes
extensas podem ser racionalizadas dessa forma. Mas e o tornado em Nova York, o
ciclone no Irã, a neve na África do Sul? E, claro, o Katrina.
— O Katrina? Está dizendo que a culpa de tudo isso é a aproximação do Juízo
Final?
— E de quem mais seria?
— Não acha que construir uma cidade abaixo do nível do mar é meio que pedir por

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
isso?
— Exceto que eles nunca receberam "isso" antes. Quantos furacões se desviaram
no último minuto e passaram direto? Quantas vezes Nova Orleans foi ameaçada de
extinção, e não sofreu nada além de uma chuvarada? Sempre foi discutido em meus
círculos, o que eu interpretei como os círculos bruxos, que a magia de lá era o que
mantinha a cidade a salvo.
— Magia — repeti. — Vodu? Carla assentiu.
— Vodu é baseado em equilíbrio, e obviamente o mundo se tornou extremamente
desequilibrado. Não acho que eles foram capazes de manter as coisas estáveis.
— Você está colocando a culpa pelo Katrina em uma falta de estabilidade, trazida
por uma falha na magia vodu?
— Você tem uma idéia melhor?
Eu poderia citar as estatísticas, se as conhecesse, mas não faria nenhum bem.
Carla acreditava que o clima estranho era um sinal do Juízo Final, e quem era eu para
discutir?
O Juízo Final estava de volta. Tudo o que eu podia fazer era tentar ficar viva por
tempo suficiente para que a federação pudesse repor suas linhas para conseguir lutar.
Que eu estaria morta quando tudo isso acontecesse já não me parecia tão ruim.
— Você nasceu com a magia ou é algo que... aprendeu depois?
O sorriso de Carla voltou.
— O que está perguntando, de fato, é se eu tomei minha magia?
Havia outra forma de virar uma bruxa, o modo como a mãe de Sawyer se tornara
uma, que era matando alguém que você amava. Quando a chamei de espírito mau e
vagabunda, eu estava de fato usando um eufemismo.
— Tomou? — perguntei.
— A magia negra é tomada. A branca é dada.
— Ainda não responde à minha questão.
— Minha mãe me deu sua magia, através de seu amor, ao me dar a vida. Pois a
vida é mágica, não é, Elizabeth?
Eu ri. Não pude evitar. Aquilo era "Poliana" demais para mim, especialmente
quando o ponto de vista alegre vinha de alguém que parecia pertencer à última
propaganda de uma versão da Broadway para A Feiticeira.
Sawyer, que continuava sentado, olhando atentamente para Carla, rosnou, sem
desviar o olhar.
— Bem, honestamente — eu disse para ele. — A vida é mágica? Isso não é
resposta.
— É toda a resposta que vai conseguir — sussurrou Carla. — Sou uma bruxa boa,
e um lobisomem.
— Como ele — falei.
— Não. — Carla passou a mão sobre a cabeça dele, em um gesto terno e ao
mesmo tempo levemente erótico, embora eu não soubesse como isso era possível. — Ele
é um skinwalker, mais que um lobisomem, e muito, muito mais que um bruxo.
— É mesmo?

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Voltei meu olhar para Sawyer, enquanto Carla brincava com as orelhas dele. Não
podia acreditar que ele estivesse permitindo aquilo.
— Gostaria que eu retirasse a maldição dele? — Carla perguntou.
Meus olhos saltaram de volta para os dela.
— O quê?
— Ele está amaldiçoado. Posso ver em sua aura.
Ela gesticulou com a mão sobre a cabeça dele, em movimentos circulares. Sawyer
observou o movimento, seu focinho fazendo pequenos círculos também.
— Você pode remover maldições?
— O que você acha que é um feitiço, Elisabetta?
Eu estivera pensando em termos de joalheria... o amuleto, minha turquesa... não
em termos de pessoas. Comecei a ficar entusiasmada. Ter Sawyer com plenos poderes,
como homem e todas as suas feras, à solta no mundo, não mais confinado ao território
Navajo, poderia virar a balança com a mulher de fumaça!
No mínimo, iria deixá-la realmente furiosa.
Ruthie devia saber que Carla era capaz de tirar a maldição de Sawyer;
provavelmente fora por isso que insistira que o trouxesse comigo. Mas por que
simplesmente não me dissera a verdade?
Porque as regras do que ela podia ou não me contar eram um tanto bagunçadas.
— Por que você veio, se não foi por ele? — Carla perguntou.
— Por isto. — Tirei o amuleto do bolso.
Seu olhar ficou atento, e ela o arrancou de minha mão.
— Um amuleto. Para proteger de problemas. A inscrição está em latim, e significa
"a face do mal está oculta".
— Onde o conseguiu?
Rapidamente, contei a ela sobre a Naye'i, quem ela era e o que tinha feito.
— Só um strega poderia criar algo assim — ela murmurou.
O strega tinha amaldiçoado o amuleto. Eu nunca teria imaginado. Mas se ele
tivesse o poder de me impedir de ver o que ele era e o que estava tramando, por que não
o fizera?
Porque queria que eu fosse até ele, para fazer de mim sua rainha e concubina.
Mais uma vez, ainda bem que estava morto.
— Por que tem certeza de que um strega o criou? — perguntei.
— Para um feitiço assim, é preciso um bruxo muito poderoso. Para selar a magia, é
necessário banhar o amuleto no sangue de alguém que anseia por sangue.
— Um vampiro.
— Certos feitiços, certos amuletos e coisas do tipo são característicos a alguns
tipos de bruxos. Bruxo, mais vampiro, mais latim... Strega. Onde está o bruxo agora?
Nossos olhares se encontraram.
— No inferno, presumo.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Excelente! — ela aprovou. — Isso me poupa de uma viagem. Eu sorri. Gostava
dela.
— E a Naye'i? — ela perguntou.
— Pode estar em qualquer lugar. Carla suspirou.
— Eles são assim.
— Você pode remover o feitiço?
— Sou a única que pode fazer isso. — Ergui as sobrancelhas, surpresa, e ela
continuou: — Equilíbrio, Elisabetta. Um bruxo italiano mau lançou a maldição...
— Então um bruxo italiano bom poderá desfazê-la.
— Exatamente.
E já que o strega não estava mais entre nós, a mulher de fumaça teria uma certa
dificuldade em conseguir outro. Não tinha certeza de quantos bruxos medievais italianos
andavam por aí, mas estava apostando que eram poucos.
Menos um problema, faltavam só mais uns trezentos ou quatrocentos.
— Vai desfazer o feitiço agora? — perguntei.
— Agora? — Ela olhou para Sawyer, que inclinou a cabeça. — Mas e...
— O amuleto primeiro, por favor.
Sawyer podia continuar lobo um pouquinho mais, mas o amuleto estava me
incomodando. Na minha maré de sorte, a mulher de fumaça iria aparecer e não só levaria
o medalhão de cobre, como também mataria a benandanti. Se o amuleto se tornasse
apenas um colar, não haveria necessidade de nada daquilo.
— Tudo bem — disse ela. — Venha comigo.
Carla foi em direção aos fundos da casa, com Sawyer a seguindo. Tive de me
apressar para acompanhá-los. Ela se movia bem rápido para uma velha megera.
Na extremidade mais distante da entrada, ela abriu uma porta sob as escadas. Eu
a alcancei a tempo de vê-la começando a descer. Hesitante, olhei para a escadaria
sombria de cimento, que sumia em uma treva fria.
Nunca era uma boa idéia descer para o porão. Legiões de lindas adolescentes aos
gritos aprenderam isso a cada Halloween, em cores, no cinema. Mas que escolha eu
tinha? Podia ficar lá em cima e esperar, mas então nunca saberia ao certo se ela fizera o
que eu havia pedido.
Além do mais, eu queria ver.
Sawyer já tinha descido em seu encalço. Não parecia nem um pouco assustado
com a idéia de assassinatos cometidos no porão por psicopatas. Mas também, Sawyer
não tinha televisão, e provavelmente nunca havia estado em um cinema na vida.
Mesmo assim, ele conhecia muito sobre o mal. Nascera dele.
Então, ou Carla era de fato uma boa bruxa e o porão era apenas um porão, ou
Sawyer planejava fazê-la em picadinho onde ninguém pudesse encontrá-la.
O pensamento não me incomodou, quando deveria me incomodar. Eu havia me
distanciado muito da policial que uma vez fui, até mesmo da bartender que me tornei.
Desci. O porão não era apenas um porão, era um laboratório. Frascos, tubos, bicos
de Bunsen, tudo jazia espalhado em cima de várias bancadas; livros empoeirados

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empilhavam-se em todo lugar; vidros de conserva alinhavam-se em várias prateleiras, e
seu conteúdo não era compota de frutas.
— Olhos?! — Eu era capaz de jurar que um deles tinha olhado para mim.
Abafei um gritinho e dei um passo à frente, mas tropecei e caí. Ia ficar com um
hematoma.
Carla e Sawyer me encaravam como se eu fosse uma criança boba que caíra na
lama.
— Não gosto de olhos — murmurei, na defensiva. — Especialmente em frascos.
E quem gostava?
— Aquilo é cebola em conserva, Elisabetta. — Carla gesticulou, sem me dar
atenção.
Claro que sim! Quando olhei para lá novamente, eles estavam voltados para a
parede, mostrando apenas a parte de trás, redonda e branca como cebola. Todos os
traços de consciência humana tinham sumido junto com as pupilas.
Estreitei os olhos para Carla, mas ela já se movera para uma de suas mesas de
trabalho e colocara o amuleto ali. Deixei o frasco de olhos de cebola para trás para me
juntar a ela.
Conforme eu me aproximava, o ar que passava por meu rosto ficava cada vez mais
quente. Quando cheguei à pesada bancada, descobri por quê. Toda a parede do porão
consistia em uma fornalha. Definitivamente, parecia algo que ela roubara de Auschwitz.
Observei Carla enquanto ela se inclinava sobre o amuleto. Com o fogo queimando
alegremente às costas, ela daria um belo modelo para um pôster de João e Maria, o
Retorno.
— Você cozinha aqui embaixo? — perguntei.
— Pode-se dizer que sim. Meu forno é bem prático para dispor de qualquer coisa.
Ou qualquer um.
— Sawyer — murmurei, enquanto recuava em direção à escada. Eu já vira gente
boa ficar ruim. Jimmy, particularmente.
Não queria ver de novo. Sawyer me ignorou. Fiquei tentada a agarrá-lo, mas isso
só me faria perder um ou dois dedos.
O sorriso de Carla desapareceu, e uma ruga surgiu em sua testa.
— Aonde está indo? Pensei que quisesse que eu retirasse o feitiço.
— Vá em frente.
Continuei perto da escada, pronta para correr ao primeiro sinal de perigo. Sem
dúvida, ela poderia acenar e me paralisar, talvez até enviando um raio para me matar na
mesma hora. Se é que um raio me mataria. Eu não tinha certeza.
Carla pegou o amuleto e, sem outra palavra ou gesto, jogou-o na fornalha ardente.
Depois, tirou o pó das mãos e voltou sua atenção para Sawyer.
— Você é o próximo.
A boca dele se abriu, a língua se pendurando. Se eu não o conhecesse, juraria que
estava sorrindo.
— Espere! — falei, dando um passo à frente apesar de tudo. — E só isso?

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Gesticulei para a fornalha, onde as chamas estavam ainda mais altas, como se
estivessem se alimentando do amuleto. Não imaginei que um pedacinho de cobre fosse
tão combustível. Talvez as chamas tirassem seu poder mágico.
O pensamento me deixou desconfortável. Fogo mágico podia ser um problema
sério.
— Nenhum encanto? — continuei. — Nenhum olho de... — gesticulei para o jarro
de "cebolas" — ...seja lá o que for? Você só joga a coisa no fogo? Eu podia ter feito isso.
Carla levantou uma sobrancelha.
— Você é a benandanti?
Eu poderia ser... se fizesse sexo com uma. Dei uma olhada em Carla, da cabeça
aos pés. Não queria tanto assim ser uma benandanti.
— Fique feliz por ser só poeira — disse ela. Pensei a respeito, depois dei de
ombros.
— Tudo bem.
Ela se voltou para Sawyer, que ainda a encarava como se fosse a criatura mais
fascinante do planeta, ou talvez como se sentisse o cheiro de biscoitos para cachorro no
bolso do vestido preto.
Ela começou a cantar. Seria italiano? Não, era latim. Sempre uma boa língua para
cantar.
A energia zunia na sala. Sawyer parecia ter enfiado a pata em uma tomada. Cada
milímetro de seu pelo preto estava levantado. Quando toquei meu próprio cabelo, chiou
uma centelha de eletricidade estática. Os dedos pálidos e ossudos de Carla bri lharam,
prateados, contra as chamas dançantes do forno aberto. Ela fez um gesto, como se
estivesse jogando algo em Sawyer. Imaginei que ele fosse cair, levantar-se, mudar de
forma. Em vez disso, Carla se afastou de súbito com um grito de dor, como se o poder
que ela jogara na direção dele tivesse ricocheteado de volta; depois tropeçou e se dobrou
no chão.
Quando a alcancei, ela já lutava para se sentar. Enquanto me ajoelhei a seu lado,
as pontas de seus cabelos brilhavam com o resto do que a havia derrubado. Um cheiro de
queimado impregnou a sala. O vestido dela começou a fumaçar onde as cinzas tinham
pousado, e ela as espanou com mãos trêmulas e distraídas.
— Que raios foi isso? — perguntei, olhando para Sawyer. Ele se sentou, olhando
para nós duas com expressão cautelosa.
— Eu não sabia — murmurou Carla.
— O quê?
— Ele não é um híbrido.
— Não é? — perguntei, embora já soubesse disso. Por Jimmy.
— Ele é outro — afirmou Carla.
— Outro o quê?
— Nefilim com Nefilim cria algo diferente de humanos e monstros. Algo que jamais
será um dos dois.
Sawyer continuou me encarando.
— Seu pai era um xamã que vestia o robe — murmurei. — Um amador. Não um

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Nefilim.
— Não? — Carla ficou de pé, afastando minha oferta de ajuda. — Você acha que
virar um animal, mesmo usando um robe, é algo que humanos podem fazer?
Eu podia, mas não tinha muita certeza de até que ponto eu era humana.
— Então, ele é outro. E daí?
— Eles não são confiáveis.
Deixei escapar uma risada curta e seca.
— Isso eu já sabia, antes de saber o que ele era.
Sawyer revirou os olhos. Não parecia muito preocupado com as observações de
Carla, ou com minha falta de confiança. Sawyer nunca parecia se preocupar muito com
nada.
— Híbridos têm poder, mas são mais humanos que os Nefilins — ela continuou. —
Os que são outros, pela combinação de duas forças malignas, podem ficar ainda mais
fortes que elas.
— O que explica algumas coisas — sussurrei.
— Se ele for para o lado da mãe... — Carla deixou a sentença no ar.
— Estamos ferrados — terminei por ela. — Eu sei. Então, talvez você deva
remover a maldição dele. Poderia convencê-lo a jurar fidelidade eterna ao nosso lado, não
acha? Ela riu, um som de pura alegria.
— Você tem idéias estranhas, Elisabetta.
— E você está enrolando — falei. Um pensamento me ocorreu, de que não gostei
nem um pouco. — Você pode mesmo curá-lo?
— Curar? Não.
Senti uma dor repentina no peito. Teria de continuar a perambular por aí sozinha,
com a mãe satânica de Sawyer tentando me matar, e ele sem poder ajudar mais do que o
faria um lobo extremamente rápido,"bastante forte e muito maldoso.
Eu morreria. Mas, graças à Naye'i, não seria minha primeira vez. Só não tinha
certeza se conseguiria continuar voltando.
— O que ela fez com ele é muito forte — Carla continuou. — Como ele não é um
híbrido, foi arrastado para esse mal, como uma voz que viesse de sua infância. O único
modo de acabar com essa maldição é matando quem o amaldiçoou.
— Já está na minha lista. Bem embaixo do "encontre a vagabunda".
Sawyer fungou. Carla me lançou um olhar frustrado, e eu resmunguei um pedido
de desculpas.
— Creio que ela está tentando descobrir como abrir o Tártaro, ou, se já sabe, está
se preparando para isso.
Olhei para Sawyer. Ele piscou, assim como eu.
— Espere um minuto — falei. — O Tártaro é aberto durante o período da grande
atribulação. O caos que se segue ao Juízo Final.
— Sim.
— Mas eu impedi o Juízo Final ao matar o strega. Os olhos azuis de Carla
encontraram os meus.

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— Parece que o caos foi interrompido?
Bom, tinha parecido. Claro que os videntes com quem eu falara estavam cheios de
trabalho, mas estávamos com poucos soldados e muitos demônios.
— Você não sabia? — Carla perguntou.
— O quê? — consegui dizer, por entre os dentes.
— O strega era um servo, não o líder das trevas. O líder das trevas era...
Praguejei.
— A mulher de fumaça.

Capítulo III

— Mas se ela já é a líder das trevas, ela não precisa me matar.


— É verdade.
— Então por que está tão obcecada em tentar?
— Pergunte para ele. — Carla indicou Sawyer com a cabeça. Ele levantou o lábio,
em um rosnado silencioso.
— Não acho que ele vá me contar. — Mesmo que soubesse.
— A Naye'i é um espírito mau — disse Carla. — Ela não precisa de um motivo para
matar, além do prazer de fazer isso.
Infelizmente, fazia sentido.
— E é uma prática comum na guerra acabar com o líder da oposição. Sem
ninguém a quem seguir, os exércitos se desintegram, alguns soldados mudam de lado,
outros desertam.
— O meu não fará isso. — Minha voz soava mais confiante do que eu me sentia.
— O tempo dirá — murmurou ela.
— Como não fiquei sabendo disso? Eu vivi... se é que se pode chamar escravidão
sexual de viver... no antro do strega por semanas. Nunca senti nem o cheiro da mulher de
fumaça.
Nem ouvi um sussurro. Aquele maldito amuleto estava se mostrando uma pedra no
sapato maior do que eu pensara ser possível.
— Ela não esteve lá — afirmou Carla.
— Nunca?
— Não precisava. — Carla moveu a mão em um arco, partindo do ombro esquerdo
para cima, como se estivesse desenhando um arco-íris no ar. Uma sombra de estática
brilhante apareceu alguns metros acima de nossas cabeças. — Veja.

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O som daquilo girou pela sala. Sawyer deu um latido, e as partículas brancas,
pretas e prateadas ficaram mais claras.
Embora o strega aparentasse ter trinta anos, sua pele azeitonada era finamente
estendida sobre os ossos finos, e seus olhos negros eram os de um velhinho. Ele afastou
o cabelo negro, que chegava à altura do ombro, para as costas, com mãos que deveriam
ser permanentemente manchadas de sangue, mas em vez disso chamavam a atenção
com a graça flexível de seus dedos longos.
Seu quarto devia ter sido decorado por alguma loja especializada em haréns.
Cortinas transparentes cercavam uma cama baixa e redonda; uma enorme fonte se
derramava em uma piscina de pedra que provavelmente fora roubada de uma casa de
banhos romana, no tempo em que elas ainda existiam. As paredes eram equipa das com
vários pares de algemas e correntes. A única iluminação vinha de grandes velas brancas,
reluzindo em diversos castiçais.
Obviamente estávamos olhando para o passado, já que não apenas o strega
estava morto, mas também seu antro fora carbonizado.
Ele colocou uma vasilha na ponta da mesa. As chamas das velas se refletiram na
superfície marrom brilhante. Eu conhecia uma vasilha de sangue só de ver.
Ele cantou em latim, mergulhou um dedo no sangue, depois o deslizou pela borda
da fotografia emoldurada da mulher de fumaça, a que eu havia roubado e jogado no lixo.
— Sempre quis lhe perguntar sobre essa foto — murmurei. Sawyer rosnou quando
a foto começou a falar.
— Temos a informação de que precisávamos. Mande os metamorfos atrás de
Ruthie Kane.
— Sim, senhora — disse o strega. Aquilo certamente não soava como ele.
Os olhos dela chamejavam, e seus lábios se afastaram de seus dentes brancos
demais.
— Faça com que seja sangrento.
O strega levantou a cabeça e sorriu.
— E há outro jeito?
Minhas mãos se fecharam. Ruthie morreu sofrendo. Não que houvesse um jeito
bom de morrer, mas não tinha que ser daquela maneira. O líder da luz morre, colocando o
Juízo Final em andamento. Dor, sangue e medo não fazem parte da equação. Esses
foram adicionados apenas para a diversão dos Nefilins.
Bem, dois podem brincar disso. Fiz uma anotação para mim mesma; faça com que
a vingança seja bem sangrenta.
— Quando seu filho estiver sob controle — ela continuou —, solte os vampiros.
O strega fez uma reverência com a cabeça, em uma postura atipicamente
submissa. Ou ele tinha muito medo dela, ou estava aprontando.
— Minha identidade permanecerá secreta — ela murmurou, acariciando o amuleto.
— É melhor assim.
A foto da mulher de fumaça se tornou só uma foto outra vez. O strega foi até a
janela e afastou as cortinas para olhar as luzes da cidade contra o céu negro da noite.
Pude ver seu rosto refletido no vidro.
Ele sorria.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Por que ele está tão feliz? — Imaginei. — Ela está mandando nele como se
fosse seu irmão caçula tolo, sem mencionar oferecê-lo para mim como se fosse um... um
bode expiatório sem os chifres!
— Que é exatamente o que ele era — disse Carla. — O bode dela. O sacrifício.
— Acho que ele era mesmo o caçula tolo, se não descobriu isso.
— Ah, mas ele descobriu — afirmou Carla. — Por isso está sorrindo.
— Agora você me confundiu.
— Ele planejou tudo. E precisava que ela juntasse todos os Nefilins.
— Não podia fazer isso ele mesmo?
— Não sei se você notou, bella, mas ele era... um cretino. Engasguei.
— Como é?
— É a palavra errada? — Ela voltou-se para Sawyer. — Imbecil, talvez?
A boca de Sawyer estava aberta, com a língua de fora. Era óbvio que ria.
— O strega era isso, definitivamente — concordei. — Como você sabia?
— Os stregas são todos iguais — Carla afirmou, desdenhosa. — Ele teria
dificuldade para convencer todos os Nefilins a segui-lo.
— Mas eles seguiriam alegremente a vagabunda psicótica do inferno?
— Eles gostam de apoiar um vencedor.
Estremeci. Ela não podia vencer. Eu tinha de impedir.
— Então, qual era o plano secreto do strega? — questionei.
— Você.
— E?
Carla acenou como se estivesse apagando o ar, e a cena do passado se foi. O
vampiro, seu antro, é tudo nele, desapareceram.
— Ele não tentou atrair você para o lado deles?
— E não é o que todos fazem? — resmunguei.
— Por que acha que isso acontece? Você é mais poderosa que qualquer pessoa
que o mundo já conheceu.
— Mas não sou...
— Você pode ser, bella. Pode ser qualquer coisa.
O silêncio dominou a sala, quebrado apenas pelo crepitar do fogo no forno.
Embora eu odiasse admitir, Carla estava certa. Eu podia ser qualquer coisa. Se tivesse
cedido ao strega, poderia ter me tornado... bem, uma strega.
— Ele não sabia o que posso fazer — eu disse. Se soubesse, teria percebido que,
uma vez que dormisse com seu filho, teria poder para matá-lo.
— Não — concordou Carla. — Mas ele sentia a profundidade de sua força. Tenho
certeza de que pensava que, juntos, vocês dois poderiam dominar o mundo.
Juntos, comandaremos esta rocha. É. Foi o que ele achou.
— Por que Ruthie não descobriu que era a mulher de fumaça quem puxava as
cordinhas?
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— O amuleto.
Eu olhei para o fogo. Odiava aquele negócio.
A sensação de urgência que estivera sentindo desde que me tornara a líder da luz
aumentara tanto que eu fiquei tonta. Mais uma vez, os Nefilins estavam à nossa frente, e
nós tentando alcançá-los. Precisava muito que Sawyer fosse ele mesmo.
— Não se desespere — disse Carla. — Posso fazer meu próprio feitiço, que
permitirá que ele ande como um homem, sob certas circunstâncias.
Eu me endireitei, o peso no peito diminuindo.
— Sério?
— Tudo que preciso é de um pouco de terra do Mundo Brilhante.
O Mundo Brilhante era outro nome para Dinetah. Território Navajo.
O peso retornou. Isso era no Novo México. Quando conseguíssemos terra de lá, já
estaríamos todos mortos. A menos que...
— Eu podia pedir para Summer...
Peguei meu celular, apenas para descobrir que não tinha sinal no porão. Era de se
esperar.
— Não precisa. — Carla andou até as prateleiras com os vidros de conserva.
Quando passou pelo jarro cornos olhos, bateu nele com a unha, e o olho que estava me
encarando outra vez virou para a parede com um giro tão rápido que me deixou em
dúvida se eu tinha mesmo visto aquilo.
Ela trouxe um vidro vazio para a mesa. Mais algumas palavras em latim, um estalar
de dedos e, em um piscar de olhos, o que estava vazio se encheu.
Carla tentou tirar a tampa com um giro de seu pulso, mas não conseguiu, e depois
de olhar para Sawyer, entregou-o para mim. Eu o levantei. O vidro transparente parecia
estar cheio até em cima com terra marrom-avermelhada.
Girei a tampa e peguei um pouco entre os dedos. Parecia terra. Levei as partículas
ao nariz. Cheiravam a terra.
Devolvi o jarro para ela, junto com a tampa.
— Como você fez isso? Ela sorriu.
— Abracadabra?
— Este pote estava vazio.
— E qual é sua dúvida?
— Depois ficou cheio.
— Que parte da magia você não compreende, Elisabetta? Bastante, pelo jeito.
— Você conjurou terra de Dinetah?
— Não foi o que eu falei que íamos precisar?
— E se precisasse de, digamos, um pote de dinheiro? Carla simplesmente sorriu.
— E agora? — perguntei.
— Agora, vou fazer meu feitiço. Vá embora.
— Como é?

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— Saia — disse ela.
— Mas...
— O que eu farei fica entre mim e ele. Franzi a testa.
— Acho que não. Carla deu de ombros.
— Ele ficou amaldiçoado por tanto tempo, tenho certeza de que mais alguns
séculos não vão lhe fazer mal.
— Pensei que você fosse uma bruxa boa.
— E sou. Não vou machucá-lo, Elisabetta, vou ajudá-lo. Acha que ele não pode
tomar conta de si mesmo?
Sawyer abaixou, depois levantou a cabeça, repetindo o movimento, como se
dissesse ao mesmo tempo "sim" e "cai fora".
Eu ainda não estava à vontade. Se ela não estava tramando nada, por que eles
precisavam ficar sozinhos? Mas também, o que eles poderiam aprontar?
Sawyer cruzou a distância até mim e me empurrou para fora com o nariz, em
direção à escada.
— Tudo bem, tudo bem. Já entendi. Estarei no carro.
— Vá para um hotel — ordenou Carla. — Isso vai levar algum tempo, e não é
seguro demorar-se na minha vizinhança.
— Vou ficar bem.
— Acha que ele não vai encontrar você? — Carla fez um gesto para me mandar
embora. — Vá!
Eu poderia ficar e brigar, mas Sawyer não estaria mais próximo de voltar a ser
humano, então fui. Quando alcancei o corredor, Carla murmurou:
— Um pagamento deve ser feito.
Pagamento? Ao lidar com magia, o pagamento normalmente era em sangue,
entranhas, alma, coisas de que as pessoas não querem abrir mão.
Voltei em direção à porta, e ela se fechou na minha cara. Não houve força que a
abrisse. Bati, gritei, fiquei quieta e ouvi. Era como se eu estivesse sozinha na casa. O que
eles estivessem fazendo no porão, faziam muito silenciosamente. Pelo que eu podia
dizer, talvez nem estivessem mais lá.
Fiquei por ali, tentei a porta novamente, sem sucesso. Pensando na força que tinha
obtido com Jimmy, eu deveria ser capaz de arrancar a porta do batente. O fato de não
fazê-lo me levou a pensar que ela havia sido reforçada de algum modo, provavelmente
por magia. O que significava que eu não passaria, a não ser que saísse e encontrasse
outra bruxa. E não estava com disposição para tanto.
Pelas leis do meu dom de empatia, eu possuiria a magia de Sawyer, se ele tivesse
nascido com o dom. Como eu não a possuía, concluí que ou ele a aprendera, ou tomara,
do mesmo modo que sua mãe. Ele nunca me disse como foi.
Vaguei pela casa, que estava empoeirada e escura, a casa de uma velha senhora,
onde uma porção de gatos poderia morar, embora eu não tivesse visto nenhum. Talvez
eles fossem invisíveis. Como o cachorro.
A única coisa estranha que encontrei foi um quarto extra. Para um bebê, não para
plantas.

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O lugar parecia nunca ter sido usado. Teria Carla perdido um bebê? Ou talvez
estivesse esperando um neto. Imagino que ela fosse matá-lo de medo.
Como correr do tempo, comecei a me sentir vulnerável. Todas as minhas armas
tinham ficado no Impala. Além disso, ainda não conseguira serviço no telefone. E se
Summer tivesse ligado enquanto eu estava presa naquela zona morta?
Não podia mais me demorar ali. Precisava informá-la das novidades que, enquanto
estávamos nos movendo achando que o Juízo Final estava paralisado, ele estava, na
verdade, logo ali.
O sol se punha quando fui para a varanda. Assim que a porta se fechou atrás de
mim, me arrependi, mas era tarde demais para voltar. Aporta da frente era tão
impenetrável quanto a do porão.
Fiquei ali, na luz que sumia, e o alvo permanente nas minhas costas começou a
arder. Sondei as sombras que se moviam, mas não vi nem ouvi nada.
Se outro Nefilim tivesse sido despachado para me matar, se a mulher de fumaça
estivesse de volta, eu teria recebido algum aviso. O amuleto era, se não cinzas, um
pedaço distorcido de metal.
Claro, naquele bairro, alguém podia muito bem estar me observando apenas com a
intenção de me assaltar, ou estuprar ou matar, ou as três opções. Infelizmente, isso seria
preferível ao primeiro cenário, ao menos porque eu podia lidar com monstros humanos
facilmente. O problema seria me livrar dos corpos, para não ter de explicar a ninguém
como o fizera.
Não era sempre esse o problema?
Carla me disse para não esperar no carro, mas ir para um hotel. Eu só podia torcer
para que Sawyer sobrevivesse ao que ela fizesse com ele, e me encontrasse como
combinado.
Conferi meu celular, que agora tinha sinal, mas nenhuma indicação de chamada
perdida.
Droga. Summer não me respondera. O que estaria fazendo? Ela partira atrás de
Jimmy naquela manhã. Devia saber que eu estaria esperando para saber o que
acontecera. A menos que...
Interrompi essa linha de pensamento. Não queria imaginar o que poderia estar
impedindo que Summer me ligasse. Qualquer coisa que conseguisse acabar com uma
fada e um dampiro era algo que eu não queria encontrar, mas com certeza iria. Em breve.
Devia haver hotéis perto do aeroporto,então segui as placas, escolhi um, e liguei
para Summer. Ela não atendeu. De novo.
Estava nervosa demais para dormir, comer, ler ou assistir à tevê, que estava cheia
de histórias sobre o crescente caos no mundo. Tudo o que eu podia fazer era andar de
um lado para o outro.
Eu precisava saber, então peguei o fone outra vez, e me lembrei de minha outra
conexão.
— Tocar algo que ele tenha tocado — murmurei.
Afundei na cama, deitei-me de costas e deslizei a mão sobre meu ventre, seios e
lábios.
Nada.

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Da última vez que tentara isso, estava excitada, até demais, a luxúria zumbindo em
meu sangue. Agora, estava preocupada demais para sentir algo além de medo.
Respirei fundo e forcei minha mente a relaxar, e quando o fiz, ela se voltou para o
passado.
Quando crianças, Jimmy e eu brigávamos. Tínhamos ciúme das atenções de
Ruthie, disputávamos para ver quem seria o líder nas brincadeiras, nos provocávamos,
pregávamos peças um no outro. Depois que ele colocou uma cobra na minha cama, eu fiz
seu nariz sangrar e quebrei alguns de seus dentes. Mas ele nunca encostou a mão em
mim com violência, e para Jimmy isso era sagrado. Depois veio uma época em que
percebemos que havia mais do que rivalidade entre nós.
O calor de uma tarde de verão, a excitação do toque de sua mão, sua boca, a
noção de que o que estávamos fazendo era errado, mas de que íamos fazer mesmo
assim. Escondendo-nos em armários para roubar um beijo, fugindo para fora na calada da
noite, a lua se derramando sobre nós, enquanto nos deitávamos na relva. Ele era tão
lindo, a pele lisa e morena, o cabelo longo e macio, o rosto cheio de tudo o que sentia.
Ele me adorava. Tinha certeza de que mataria por mim.
Por um instante ouvi outra voz, vi minhas lágrimas, os hematomas, o rosto de
Jimmy, e afastei esses pensamentos.
— Jimmy — sussurrei. — Onde você está agora?
Precisava de uma lembrança de amor. Não que eu não as possuísse, Ainda que
ele nunca tivesse me amado, como cheguei a acreditar, eu o amara o suficiente por nós
dois.
Eu me lembraria até o dia em que morresse de como me sentia quando ele me
abraçava, quando sussurrava meu nome com a voz cheia de desejo. Eu acreditava que,
pelo resto da minha vida, o único homem a quem amaria de verdade era ele.
Agora, em um quarto alugado em Detroit, toquei meu peito, onde estava meu
coração, onde Jimmy me tocava simplesmente ao dizer meu nome, e saí de mim para
dentro da visão.
Novo México. Terreno diferente daquele onde Sawyer morava, na reserva. A rocha
ainda era vermelha, as montanhas ainda assomavam, mas a grama, a vegetação, os
cactos eram levemente diferentes. Mesmo assim, reconheci em um instante.
Presumi que as tendas brancas no espaço aberto, fora de uma cidade pequena,
pertencessem ao show itinerante dos ciganos. Principalmente porque conseguia discernir
a placa "Bem-vindo a Red Rock" na estrada poeirenta, um pouco adiante.
Apesar de o local estar cheio de luzes, parecia deserto. Pelo lixo espalhado no
chão, e o cheiro remanescente de pipoca e algodão-doce, o show tinha sido exibido.
As luzes se apagaram com um pequeno estalo, uma por uma, e as trevas
invadiram o deserto. A distância, coiotes uivaram, e os pelos em meu braço se
arrepiaram.
Cheguei mais perto, à procura de algum sinal de vida. Onde estava Jimmy? Onde
estava Summer? Diabos, onde estava todo mundo?
Uma luz se acendeu em uma das tendas. Sombras se moveram por trás da lona.
Fui atraída para a frente, através do ar, e entrei na tenda.
Jimmy estava amarrado a uma cadeira com correntes douradas. Os ciganos
definitivamente sabiam o que estavam fazendo. Prata não faz nada com um dampiro, mas

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ouro, sim. Não iria matá-lo, mas com certeza ardia. Seus pulsos e tornozelos já estavam
vermelhos, em carne viva. Iriam se curar, mas muito mais lentamente do que feridas
causadas por outro material.
Imaginei se sua natureza vampírica lhe permitiria superar a sensibilidade ao ouro.
Ele com certeza não incomodara o strega. Mas vendo a reação de Jimmy às correntes, o
metal continuava sendo sua criptonita.
A tenda estava cheia, e presumi serem os ciganos. Tinham cabelos e pele escura,
mãos ásperas, usavam jeans e camisa branca, e alguns tinham argolas nas orelhas.
— Você ousa vir aqui, e tocar nossas mulheres? — gritou um dos homens, depois
deu um tapa na boca de Jimmy com as costas da mão.
Seu lábio se partiu, o sangue correu por seu queixo, a língua deslizou para sentir o
gosto, e suas presas apareceram. Sibilou para eles... — ah, ele ia interpretar até o ultimo
minuto... e seus olhos brilharam, as pupilas vermelhas. Ele avançou, lutando contra as
algemas, a pressão das correntes douradas em sua pele levantando fumaça.
O homem que gritara levantou a mão, e um dos outros colocou ali uma arma.
— Balas? — ele perguntou.
— De ouro.
O homem sorriu.
— Isso vai doer — disse e atirou no peito de Jimmy.
Gritei. Mas ninguém me ouviu. Eu não estava ali de verdade. Não podia fazer nada
além de assistir. Nunca me sentira tão indefesa na vida.
Era o fim. Nunca mais o veria, nem o tocaria, ou resolveria todos os problemas que
tinha pendentes com ele. E além disso, não poderia contar com ele em meu arsenal de
armas de combate ao Juízo Final. Podia perder alguns MDs aqui e ali, mas perder Jimmy
seria fatal para a nossa causa.
Tudo isso passou pela minha cabeça em um milésimo de segundo. A bala se
afundou no coração de Jimmy; sua cabeça pendeu para a frente; ele morreu com um
sorriso no rosto.
O dedo do cigano se ajustou no gatilho de novo, mas rapidamente se soltou, antes
de disparar o segundo tiro, o fatal. Algo estava acontecendo. Todos no lugar tinham
congelado, enquanto poeira brilhante chovia sobre eles.
Summer entrou, tirou a arma da mão do homem e a jogou em um balde de água
que estava por ali. Havia vários, não sei por quê. Talvez um dos ciganos estivesse
planejando dar de beber aos animais do show depois que acabassem com o dampiro.
Tudo parte da rotina.
— Estava na hora — murmurei. Por onde ela andara? Embora, agora que parava
para pensar, ainda fosse sexta-feira.
Tanta coisa havia acontecido que eu calculara que já tínhamos passado para
sábado ou domingo em algum momento. Mesmo assim. Summer devia ter chegado ali
antes; talvez tivesse enfrentado algum problema de voo.
A fada foi direto para Jimmy, deu tapinhas em seu rosto e afastou seu cabelo em
um gesto que fez meu estômago doer com uma emoção à qual eu não queria dar muita
atenção agora. Ela estava lá, iria salvá-lo, e eu tinha de ser grata.
As correntes estavam trancadas. Pensei que ela iria exigir a chave, ou fazer um

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dos ciganos soltá-lo. Em vez disso, atingiu-os com pó de fada, e eles caíram no chão
poeirento com um som abafado.
Jimmy ainda estava inconsciente. Seu lábio partido havia se curado, mas sua
camiseta preta estava escorregadia com sangue.
Summer bateu em seu rosto.
— Jimmy? Ele não reagiu. Ela o estapeou com força.
— Agora, maldição!
Sua voz tremia. Ela estava furiosa. Quando ele nem assim despertou, ela pegou
um dos baldes e derrubou água em sua cabeça. Ele respirou e acordou sufocando. Uma
mão foi ao peito, que devia doer como o diabo. Ele olhou para a mão sangrenta, depois
para Summer. Sua boca endureceu, e ele saiu da cadeira com um grito furioso, as presas
à mostra. Summer lançou-lhe uma porção generosa de pó de fada, e ele ficou tão parado
quanto os ciganos.
Como ela conseguiu? Sua magia não devia funcionar em nós.
Summer tomou sua mão e o guiou em direção à saída da tenda. Jimmy a seguiu
como uma criança. Ela olhou para cima, direto nos meus olhos. Ninguém havia me visto
os observando antes, mas Summer não era como os outros. Disse algumas palavras, que
achei serem em gaélico, e os dois saíram juntos da tenda.
Eu me apressei a segui-los, mas uma vez do lado de fora, a escuridão do deserto
era total. Não havia lua, apenas estrelas, e as únicas luzes vinham da tenda e da distante
cidade de Red Rock. Nenhum movimento que eu pudesse ver. ?
Jimmy e Summer tinham desaparecido, como em um passe de mágica.
O toque do celular me arrancou de minha visão. Peguei-o com . minha mão livre, a
outra ainda sobre o peito. Eu tinha de voltar ao Novo México. Precisava descobrir para
onde eles tinham ido.
— Alô.
— Não venha atrás de nós.
— Summer?
— Ele precisa ficar sozinho. Eu posso ajudá-lo.
— Se você vai ajudá-lo, então ele não vai estar sozinho — observei.
— Eu bloqueei você.
— E como você pode fazer isso? Aliás, como sabia que eu estava lá?
— Sou uma fada — ela respondeu, como se isso explicasse tudo.
— Grande porcaria... — Eu sou muito articulada, quando estou nervosa. — Como
paralisou Jimmy? O que aconteceu com aquele negócio de sua mágica não funcionar em
MDs e videntes?
— Não é que minha mágica não funcione em vocês, ela não funciona naqueles que
estão envolvidos em missões de misericórdia.
— E?
— Duvido muito que Jimmy se lembre do que significa "misericórdia" no momento.
Ela estava certa, mas ainda não gostava do fato.
— A razão para que eu enviasse você foi por saber que... — Parei, sem querer

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falar o resto.
— Que eu pensaria nele primeiro. Que o protegeria, até de você.
— As coisas mudaram. A mulher de fumaça é a líder das trevas.
— Ela não pode ser. Você ainda está viva e perturbando.
Eu quase ri. Se não estivesse tão em pânico com a situação, teria rido.
Rapidamente, repeti o que Carla me contara.
— Não importa — ela respondeu. — Nada mudou.
— Tudo mudou. Ela está tentando abrir os portões do inferno e soltar os Grigori.
— É o trabalho dela.
— E o meu é matá-la, antes que ela consiga. — Se eu realmente matasse o líder
das trevas, em vez de um de seus servos, tudo voltaria ao normal, pelo menos tanto
quanto possível.
— Achei que teríamos mais tempo para repor a federação — continuei. — Mais
tempo para Jimmy se recuperar, mas não temos. Traga-o e me encontre na casa de
Sawyer, vamos resolver isso.
— Não — ela falou. — Jimmy não está pronto. Ele precisa se reencontrar, antes de
poder se doar para a causa.
— Não haverá uma causa, se ele não voltar!
— Você me disse para fazer o que fosse necessário — Summer murmurou.
— Agora estou falando para entregá-lo.
— Não farei isso — ela respondeu. — Não posso.
— Vou matar você — sussurrei.
— Vai tentar. — Ela não parecia preocupada. Nem precisava ficar. Mesmo que eu
soubesse como matar uma fada, ainda teria de encontrá-la primeiro. — Vou fazer o que
puder, o mais rápido que conseguir — ela continuou, e eu sabia que tinha perdido. Acho
que já sabia que perderia, desde o início.
— Espere — falei, desesperada, antes que Summer desligasse.
— Você conhece alguns MDS, e Jimmy também.
— Sim — ela concordou, cautelosa.
— Entre em contato com eles. Preciso de alguém para vigiar Megan Murphy em
Friedenberg. — Contei a ela sobre a morte da vidente na minha porta, e como eu temia
que outros pudessem ter a mesma sorte.
— Vou mandar alguém — disse Summer. — Ele vai matar qualquer Nefilim à vista,
e informar quaisquer videntes que apareçam para que sumam novamente.
— Ótimo. Faça com que as pessoas com quem você entre em contato avisem as
pessoas que eles conhecem, e assim por diante.
— Uma corrente telefônica sobrenatural.
— Certo. Talvez eu consiga descobrir as coisas e resolver tudo, então nós todos
poderemos ter uma... conferência, ou algo assim.
Summer bufou.
— Claro, sem dúvida.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Acha que Jimmy pode estar melhor dentro de uma semana ou duas?
Ouvi um rosnado violento do outro lado da linha, e Summer suspirou.
— Eu não contaria com isso.
Tentei encontrá-los novamente, mas não consegui nada. Então tentei contatar
Ruthie, e nada também.
Ela vinha até mim quando os Nefilins vinham, ou quando tinha algo a dizer.
Obviamente, a situação com Jimmy não merecia uma visita. Ou talvez ela não soubesse a
respeito. Talvez Summer também a tivesse bloqueado.
Olhei para o relógio. Eu estivera lidando com Summer, Jimmy e minha visão por
quase duas horas. Onde diabos estava Sawyer?
Eu pegara um quarto nos fundos do hotel, para que ele pudesse entrar sem ser
notado se ainda estivesse em quatro patas, em vez de duas. Carla parecia muito certa de
que seu plano ia funcionar, mas eu tinha aprendido, fazia tempo, a não contar com os
ovos antes de a galinha botá-los. Ainda mais com um lobo por perto.
Ouvi vozes do lado de fora. Pelo horário, achei melhor dar uma olhada. Pelo tom
de raiva, era bom olhar rápido. Abri a porta. Sawyer e sua mãe estavam no
estacionamento.
Ele usava um short para atletismo, e só. Eu duvidava que Carla tivesse outra coisa
à mão para lhe emprestar. Sua pele brilhava sob as luzes mais acima.
Se a situação fosse menos extrema, eu teria feito uma pausa para admirar a cena.
A despeito de como me sentia sobre Sawyer, ele era um belo homem. Parecia um crime
ter marcado aquele corpo com tantas tatuagens. Mas sob a tinta, a pele era flexível, e os
músculos ondulavam e dançavam. Além das luzes artificiais, nuvens rolavam, e o vento
soprava forte, espalhando lixo no estacionamento. Os cabelos de Sawyer se agitavam,
assim como os de sua mãe.
— Quem foi? — A voz dela era enganadoramente calma, seu rosto rígido e
inexpressivo. Atrás dela, raios atingiam o chão, que tremia, e a grama seca começava a
queimar.
— Pare com isso — Sawyer ordenou, a voz, igualmente tranqüila. Um rápido gesto
de seu pulso, e começou a chover, apagando o fogo. Assim que as chamas apagaram, a
chuva também parou.
— Você não manda em mim, garoto. Eu mando em você.
— Não por muito tempo.
Eu estava congelada na porta. O fascínio e o medo me mantinham presa. Queria
ouvir o que eles tinham a dizer um ao outro, mas não queria que soubessem que eu
estava escutando. Queria menos ainda que ela olhasse sobre o ombro de Sawyer e me
visse. Estava usando a turquesa. Deveria estar a salvo, mas havia centenas de pessoas
no hotel, e ela adoraria matar cada uma delas.
A mulher de fumaça se aproximou de seu filho. Sawyer ficou tenso, mas não se
afastou. Quando se lida com animais perigosos, qualquer demonstração de fraqueza é
um convite a ter sua garganta rasgada.
Ela deslizou uma unha sobre o rosto dele. Eu quase esperei que um talho se
abrisse e o sangue vazasse. Sawyer não recuou.
Nossa...

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Você acha que pode me matar? — ela murmurou.
Ele não respondeu. Ela continuou a deslizar a unha pelo seu pescoço e peito. Eu
franzi a testa. O jeito como o olhava fez minha pele se arrepiar, como se ela quisesse...
A Naye'i se inclinou para a frente e lambeu seu ombro, depois pressionou o rosto
contra seu pescoço e inspirou, enquanto deslizava as mãos pelas costas, os dedos
vagando sob a barra do short para acariciar a curva alta de suas nádegas.
Oh...
— Junte-se a mim.
Ela levantou a cabeça, tomou o lábio dele entre os seus e sugou, depois o beijou
em cheio na boca. Parecia haver uma intensa movimentação de línguas, ali, e tive de
fazer força para respirar.
Ela afastou os lábios, mas continuou com o rosto bem próximo ao de Jimmy.
— Eu a darei para você — a mulher sussurrou.
Aprumei as costas, com uma sensação de déjà vu. O strega me prometera para
Jimmy, embora no fim planejasse ficar comigo para si mesmo. Na verdade, eles
planejavam que eu ficasse com ambos.
— Quem disse que eu a quero?
Pois é, pensei. Quem disse?
A mulher de fumaça riu, e o vento respondeu... Olhei a tempestade com cautela.
Do jeito como ela castigava os elementos, teríamos um tornado a qualquer instante.
— Você sabe que a escuridão o chama. — A Naye'i deslizava a boca pelo maxilar
dele, enquanto sussurrava suas tentações. — Você quer ir para lá. Comigo.
Os ombros dele ficaram tensos, suas mãos se fecharam. Eu devia ir até ele,
agora? Ou isso apenas faria tudo piorar?'
— A luz é engolida pelas trevas — ela murmurou. — Só dor e morte o esperam lá.
— Não é o que dizem as profecias.
— As profecias deles. Não as nossas.
Deles? Do que ela estava falando?
— Nós somos bons, juntos. — A mão dela veio para a frente do short.
Dei um passo à frente. Sawyer fez um gesto para parar, com a palma da mão para
fora, em minha direção. Diabos, ele sabia o tempo todo que eu estava ali. Ela também?
— Você sabe que quer — ela disse, baixinho.
Do que estava falando? Do mundo? De poder? De mim?
Ou dela?
O jeito corno o tocava, murmurando, se esfregando, me deixava enjoada. O modo
como Sawyer só ficou lá, deixando-a fazer aquilo; não ajudava em nada. Não era de
admirar que ele fosse tão confuso. Ou que sexo para ele fosse um trabalho, uma arma.
Ah, ele era bom nisso, mas quando acabava, se levantava e partia, como se nada
tivesse acontecido. Para Sawyer, sexo era um meio para um fim. Ele o usava para
desbloquear o poder de alguém, para conseguir o que queria ou o que a federação lhe
pagava para conseguir. E agora eu entendia o porquê.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Eu sei o que não quero — ele disse, naquela voz muito calma.
O vento e a chuva rodopiavam no céu. O rosto da Naye'i estava tão branco quanto
as luzes brilhando acima dela, seus olhos como lagos negros, sua boca um rasgo de
lábios vermelhos como sangue.
— Você acha que eu passei pelo trabalho de parto para nada?! — ela gritou.
Raios caíram, atingindo o solo ao redor dela. Seu cabelo se arrepiou
completamente, fazendo-a parecer não apenas enlouquecida, mas elétrica.
— Fiz isso por você! — rugiu ela, num rosnado feroz.
— Obrigado — disse Sawyer, brandamente.
Ela gritou, e o chão tremeu. Quase esperei que uma ravina se abrisse e engolisse
a ambos. Mas isso seria fácil demais. E eu realmente queria perder Sawyer, mesmo que
isso significasse perdê-la também?
Não sabia.
— Vou matá-la lentamente, enquanto você assiste. Vou fazê-la implorar para
morrer. Vou fazer com que o odeie.
— Ela já odeia.
— Então, por que a protege? Por que a marca como sua?
Eu me inclinei para a frente, apurando os ouvidos, mas ele não respondeu.
Sem nenhum aviso, a Naye'i esticou o braço, apontando em minha direção.
Fagulhas saltaram das pontas de seus dedos. Não tive tempo de me abaixar. Não que
isso fosse me proteger muito.
Mesmo assim, as chamas pararam a vários metros de onde eu estava, bramindo e
dançando, explodindo para cima, depois de volta para baixo, como se desviadas por uma
parede invisível.
Levantei a mão para a turquesa; a pedra estava quente ao toque. Enquanto meus
dedos se curvavam ao redor dela, a Naye'i gritou mais uma vez e desapareceu em uma
coluna de fumaça. No mesmo instante, as chamas morreram, assim como a tempestade.
Sawyer cruzou o estacionamento, sua pele dourada mesmo sob as luzes brancas,
seu passo tão suave quanto o de uma pantera. Nós realmente teríamos que achar umas
roupas para ele, senão, o trânsito ia parar.
Sawyer não parecia abalado pelo confronto. O mesmo não podia ser dito de mim.
Estava tremendo.
Ele abriu a porta do carro para mim, depois sentou-se no banco do passageiro e
travou as portas. Então lançou os braços para cima, inclinou a cabeça para trás e entoou
uma cantiga Navajo para o teto. Vendo-o ali, à meia-luz, seminu, as tatuagens dançando,
seu cabelo longo e negro cascateando pelos ombros, eu senti desejo, mas afastei o
sentimento. Ele já fora muito abusado.
Ver Sawyer como uma vítima me perturbou. Ele sempre havia sido a cruz da minha
vida. Eu o temia. Odiava, como ele afirmara. Mas houve algo entre nós desde a primeira
vez que nos vimos. Eu não compreendera, aos quinze anos, o que era aquilo; só sabia
que, assim como ele, era algo perigoso.
Ele parou de cantar, baixou os braços, depois a cabeça, embora ainda não olhasse
para mim, e continuasse desviando o rosto.
— Isso deve mantê-la à distância por algum tempo — murmurou.
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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Está me dizendo que, em todo esse tempo que esteve na Terra, nunca ouviu,
nem uma vez, uma dica de como matar a mulher de fumaça?
— Ouvi algumas coisas, e as testei. Não funcionaram. — Ele olhou para fora, o
rosto, uma máscara assustadora. — Nada funciona.
— Carla disse que tem um professor na Faculdade Bíblica de Brownport que sabe
como matar uma Naye'i. O nome dele é Xander Whitelaw. Acha que vale a pena falar com
ele?
—Sim. Definitivamente, acho que preciso falar algumas coisas com o professor.
— Ah, não, não precisa — falei. — Você não vai matar Xander Whitelaw.
— Quem falou em matar?
Ele não precisava dizer. Seus olhos gritavam isso. Mas era o que eles geralmente
faziam.
— Você não vai tocá-lo — eu disse, depois lembrei da mão de Sawyer subindo e a
porta de Carla se abrindo. Ele não precisava tocar ninguém. — Você não vai machucá-lo
de forma nenhuma.
Ele não respondeu.
— É sério, Sawyer. Temos de ouvir o que esse sujeito tem a dizer.
— E nós vamos.
— E depois vamos embora. Com ele exatamente na mesma quantidade de
pedaços que tinha quando chegamos. Ele pode ser útil no futuro. Quem sabe o que ele
sabe?
— De fato, quem sabe? — concordou ele.
— Você não vai machucá-lo? — pressionei.
— Não.
Estava surpresa que ele tivesse concordado, até me lembrar que Sawyer mentia.
Bastante.
Pensei em jogá-lo para fora do carro, mas ele só mudaria de forma e correria atrás
de mim o resto do caminho. Melhor mantê-lo comigo, assim podia vigiá-lo.
Ele acendeu um cigarro antes que tivéssemos completado cinco quilômetros.
Estive tentada a avisá-lo que Summer não iria gostar do cheiro de fumaça no carro dela,
mas se Summer podia apagar memórias com magia, podia fazer o mesmo com o cheiro
de fumaça. Além disso, ela tinha tanto medo de Sawyer quanto qualquer pessoa com
cérebro.
Parei no posto de gasolina mais próximo e comprei um mapa de Indiana. Enquanto
estava lá, tentei ligar para Summer. Ela não atendeu. Não me surpreendi com isso.
Não recebi mais nenhuma chamada apavorada de Megan, então presumi que a
corrente telefônica paranormal tinha funcionado. A menos que um Nefilim a tivesse
matado, encerrando as chances de que ela me ligasse de novo. Minhas mãos tremiam
enquanto acionava a discagem rápida.
— É melhor que seja tão bom, que vai me dar um orgasmo de alegria só de ouvir
— Megan rosnou. Ao fundo, pude ouvir água correndo.
Olhei para o relógio e me encolhi. Oito da manhã. Ela estava tomando banho.
— Desculpe — falei. — Você está viva. Tenho de ir.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Desligue e vai morrer devagar — ela respondeu.
Megan daria uma ótima MD, se fosse meio-demônio e não uma mulher normal,
mãe de família.
— Desculpe — repeti. — Estava só conferindo.
— Acha que eu não teria ligado, se tivesse algo a dizer?
— A menos que não pudesse ligar.
— Ah, daí o comentário, "você está viva".
— Bingo.
Megan riu.
— E como está indo?
— Acho que temos uma pista.
— Quem somos "nós"? — perguntou ela, casualmente.
— Só modo de falar — menti, observando Sawyer pela janela do posto.
Ele estava de pé perto do Impala, com o vento quente soprando por seu cabelo
comprido. O short, a regata e a sandália pareciam bobos, como pôr um chapeuzinho em
um pit-bull. Nenhuma roupa poderia disfarçar sua ferocidade interior. Mesmo quando
Sawyer estava assim, qualquer um que não fosse cego enxergava que ele era perigoso.
Não queria Megan perto dele. Não queria nem que ela soubesse seu nome.
— O plural da realeza? — ela perguntou.
— É, isso mesmo.
— Não deixe essa coisa de líder da luz lhe subir à cabeça.
— Acredite, não vou deixar. — Seria um bom jeito de ter minha cabeça arrancada.
— Você notou alguém rondando por aí ultimamente?
— Você diz, o guarda-costas que você enviou?
Franzi a testa. Se ele era algum guarda-costas, ela não deveria tê-lo notado.
— Não — continuou Megan. — Não vi nada,
Sawyer viu que eu o observava, e abriu as mãos, impaciente. Acho que estava me
demorando um pouco. Levantei um dedo.
— Preciso ir.
— Não se preocupe comigo — ela disse.
— Como se eu conseguisse evitar...
— Assim como eu, Liz. Assim como eu.
Sawyer se sentou. Eu dirigi. Em silêncio. Ele nunca fora de muita conversa. Eu não
sabia o que dizer que não fosse acabar em discussão, ou pior, com Sawyer me olhando
com aquela expressão confusa de quem não sabia o que tinha dito para me irritar tanto.
Olhei preocupada para a paisagem. Fazia uma hora que tínhamos passado por
Indiana, uma cidade maior do que eu esperava, com um bom número de arranha-céus e
trânsito condizente.
O terreno pelo qual eu me movia agora era um contraste bem-vindo. Colinas,
plantações prontas para a colheita, montinhos de feno; vimos até algumas vinícolas.

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Havia também áreas de pobreza: trailers, lixo, e lixos de trailers. Estava eu
dirigindo, apreciando a paisagem, e de repente surgia uma casa arrebentada, outra com
portas e janelas de alumínio já fosco, ou uma cidadezinha tão minúscula que nem
mereceria o nome.
Enquanto passávamos por uma dessas, a uma velocidade razoável para evitar que
qualquer policial rodoviário louco por uma placa de outro Estado nos multasse, Sawyer
subitamente se endireitou no banco, depois colocou a cabeça para fora do vidro, deixando
o vento bater em cheio no rosto. Embora humano, o movimento parecia o de um cão.
— Que foi? — perguntei, mas ele não podia me ouvir, pois ainda estava com a
cabeça fora da janela.
Coloquei minha mão em seu ombro esquerdo, fazendo uma barreira entre mim e o
roçar do oceano frio, com o cheiro distante de sangue, que chamava para a
transformação em tubarão. Imaginei com que freqüência Sawyer se transformava em
tubarão, morando no deserto.
Antes que minha pele o tocasse, ele sentou-se de volta.
— Temos de parar.
— Se tem de ir, então vá.
— O quê? — Seus olhos estavam concentrados, mas não em mim. Em algo que
ele viu, ouviu, cheirou, talvez sentiu. Lá fora.
— Daquele lado — ele apontou, com urgência na voz e desesperado, duas coisas
que raramente aconteciam. Então segui seu dedo por uma estrada de cascalho, com o
mato crescendo, que se afastava da cidade.
— O que é? — perguntei.
Ele me ignorou, olhando pelo pára-brisa, praticamente vibrando com o entusiasmo
reprimido, como um cão de caça seguindo uma trilha.
As árvores estavam carregadas nessa época do ano; os galhos pendiam baixos,
batendo nas laterais do Impala. O cheiro de verão, o calor cintilante, folhas frescas,
dentes-de-leão, entravam pelas janelas abertas. Os pneus estalavam sobre as pedras do
caminho, parecendo acentuar nosso isolamento.
Era em lugares assim que gente morria sofrendo. Assassinos em série,
pervertidos, estupradores, homens com ganchos no lugar das mãos, todos moravam em
um lugar aonde se chegava por uma estrada de cascalho, em cidades pequenas, com
policiais que não eram espertos o suficiente para preencher uma multa, quanto mais lidar
com um psicopata.
Balancei a cabeça. Minha imaginação era muito viva, às vezes. Mas infelizmente,
essas coisas com freqüência existiam. Havia algo ali que fizera Sawyer tremer, o que só
me fez querer fugir mais do que nunca, e nunca mais voltar.
— Pare! — ordenou Sawyer, e eu obedeci. — Desligue o motor.
Girei a chave, e o silêncio se instalou como uma névoa azul. Sawyer saiu do carro,
fechando sua porta com cuidado para não fazer barulho. Lançou-me um olhar rápido, e
agi do mesmo jeito que ele.
Ele meneou a cabeça à direita, acenou para mim uma vez, depois saiu pelo mato,
abaixando-se para evitar os galhos e qualquer inspeção rápida.
Bem, eu tinha uma escolha; podia ficar no carro. Mas isso só permitiria que seja lá
o que estivesse lá fora me pegasse sozinha.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
De jeito nenhum!
Em segundos, me juntei a Sawyer enquanto, de cabeça baixa, ele seguia direto
para o que, ou quem, havia encontrado.
A frente, os arbustos rareavam, e tive um vislumbre de uma cabana decrépita,
cercada por um pedacinho de quintal. Sawyer parou tão rápido, que se eu fosse humana,
teria lhe dado um encontrão. Sendo o que sou, meus seios só rasparam em suas costas.
Ele nem notou.
Abri a boca para pedir informações, e ele levantou uma mão. No silêncio, rolaram
vozes.
— Você vai se arrepender de ter vindo aqui, menino.
— É, vai sim!
— Não sei quem você pensa que é, entrando em casa que não é sua!
Embora as palavras fossem infantis, as vozes eram de homens. Adolescentes,
pensei, mesmo antes que nos aproximássemos mais um pouco, indo para a esquerda
para conseguir enxergar a turma.
Garotos brancos, grandes, saudáveis, de fazenda. Nenhum espanto. Eu duvidava
que houvesse alguma minoria tão ao sul de Detroit. Contei quatro, em semicírculo, com
um quinto no meio.
E o quinto elemento provou que minha teoria sobre as minorias estava errada.
Quase com certeza, ele tinha um pouco de alguma outra raça, como eu. Alto e magro,
tinhas mãos e pés enormes. Seu cabelo era longo e ondulado, uma mistura de castanho e
dourado, refletindo os tons de terra e sol. Ainda não era plenamente desenvolvido, nem
de corpo nem de rosto. Quando fosse, seria alguém perigoso.
No momento, seu nariz era grande demais, assim como as sobrancelhas, e seus
olhos brilhavam espantosamente claros em seu rosto mais que bronzeado. Àquela
distância, eu não podia dizer se eram cinzentos, verdes ou azuis, e não importava.
Aqueles olhos o tornavam estranho para um povo, enquanto sua pele o fazia um estranho
em outro.
O menino não falou. Manteve-se firme, o peso para a frente, as mãos soltas. Seu
olhar estava fixo no garoto maior e mais barulhento. Imaginei que aquele seria o que
mandaria o primeiro soco. São sempre os maiores.
Estava errada de novo. Ou talvez não muito. O grandão soltou um impropério, e o
magricela bateu. O sangue jorrou.
— Você quebrou meu nariz!
A brisa soprou, movendo meus cabelos, mas não as árvores.
Marbas, sussurrou Ruthie.
Estaria ela se referindo ao garoto negro, ao branco, ou aos dois? Difícil dizer. Além
da certeza de que era um híbrido, eu não sabia que raio de coisa era um Marbas.
— Chute o traseiro dele! — grunhiu o líder do bando, e os três baderneiros
enormes se adiantaram como monstros desajeitados de histórias em quadrinhos.
Também dei um passo à frente, e Sawyer pôs a mão em meu braço.
— Espere — murmurou. — Observe.
Eu quase o ignorei. Não podia ficar parada ali enquanto o garoto apanhava. Ele
podia ser alto como os outros, mas não era tão forte. Eles tinham se alimentado bem a
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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
vida toda. Ele não. Além disso, me irritava quando alguém era abusado por ser diferente.
Sim, era culpa da minha infância. E daí?
Enfim, no curto tempo entre Sawyer falar comigo e eu hesitar, o garoto se virou
sozinho. Um veio até ele pela direita, outro pela esquerda, e um terceiro por trás. Ele
pegou as mãos dos dois nas laterais enquanto eles tentavam lhe acertar um soco, e os
jogou em direção um do outro. Eles deram um encontrão, batendo primeiro os peitos,
depois as testas, caindo como pedras.
O garoto deu um salto mortal sobre seus corpos caídos, e aquele que estivera
prestes a agarrá-lo pelas costas caiu de cara no chão. O gigante sangrando levantou-se
pesadamente, e o garoto chutou seu peito com um tênis molambento. O atacante não só
caiu sobre o próprio traseiro: a força do golpe o derrubou de costas, e sua cabeça bateu
contra a terra e a grama seca.
O que queria espremer o garoto até a morte se sentou, esfregando a testa. Sua
pretensa vítima estava se inclinando sobre o rapaz cujo nariz tinha quebrado, e não
prestou atenção. Abri a boca para gritar um aviso enquanto o grandão avançava atrás
dele como uma locomotiva sem freio na descida, e Sawyer tapou minha boca.
No último instante, o garoto se abaixou, virou e deu um chute com a perna
esquerda. O atacante foi jogado longe, de costas. Estava se levantando devagar, assim
como os outros três. Balançavam as cabeças, tontos, mas iam voltar.
Um rosnado lento e retumbante serpenteou pela clareira, crescendo até um rugido,
um bramido de leão, tão alto e forte que eu podia jurar que as árvores balançaram, e a
terra tremeu. Se isso não fosse assustador o bastante, os olhos do garoto reluziram na
cor do âmbar e sua juba de cabelos dourados e castanhos se arrepiou, como as cobras
de Medusa.
— Marbas — falei.
— Um tipo de metamorfo que vira leão — murmurou Sawyer.
— Que tipo?
Sawyer encolheu os ombros. Ele sabia muito, mas não tudo.
Os valentões fugiram, dando encontrões nos arbustos como búfalos feridos. O
Marbas fechava e abria as mãos, gingando, os olhos fixos nas figuras em retirada.
Seu desejo de caçá-los vibrava no ar, como a aproximação de uma tempestade
elétrica. Quando a presa corre, os predadores a perseguem. Era o que fazíamos.
Mesmo quando era uma policial, o princípio se aplicava. Só os culpados correm.
Não persegui-los era contra minha natureza na época, como deveria ser contra à daquele
garoto deixar que os vencidos fugissem. Mas ele deixou.
Eu o contemplei e imaginei por que tínhamos vindo ali. Para impedi-lo de matar os
outros? Ele não o fez, e poderia muito bem fazer, o que me levou a pensar que não era
mau, mas nunca se sabe.
Tirei minha faca da bainha. Prata funcionava contra a maioria dos metamorfos, e
valia a pena tentar.
— Vocês podem sair agora — o garoto falou baixinho, ainda olhando na direção
dos fugitivos.
Não percebi que ele estava falando conosco até que Sawyer saiu das árvores e
entrou na clareira. O Marbas o mediu de cima a baixo.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Acho que você não é do serviço social — comentou. Sawyer não respondeu.
— E ela? — Meneou a cabeça em direção às árvores. Ele era bom. Eu saí, e assim
que fiz isso, ele sorriu.
— Acho que você também não é assistente social.
Deve ter sido a faca que me entregou.
— Então, quem são vocês, e como me acharam?
Sawyer o encontrara. O que, pensando agora, era estranho. Ele não era um
vidente, esse era o meu papel, mas eu não tinha nenhuma dica até me aproximar dele.
Para descobrir de uma vez por todas por que estávamos ali, tive de chegar mais perto.
— Sou Elizabeth Phoenix. — Guardei a faca e estendi a mão para ele. Um risco,
mas Sawyer podia dar conta de um leão. Eu achava, pelo menos.
O garoto hesitou, como se não estivesse acostumado a alguém apertando sua
mão, depois estendeu a dele.
— Luther Vincent.
No instante em que sua pata enorme envolveu minha mão bem menor, vi onde ele
havia estado. Lar adotivo atrás de lar adotivo. Ninguém tinha coragem de ficar com ele.
Coisas estranhas aconteciam perto de Luther, e ninguém sabia explicar. Coisas
sangrentas, mortais.
Seus pais tinham sido...
O garoto puxou a mão, mas não soltei. Fechei meus olhos e abri minha mente.
Mortos por leões. Em um subúrbio de...
Meus dedos apertaram mais. Cleveland.
Pensei como as autoridades tinham conseguido explicar aquilo.
Quando ele puxou de novo, eu o libertei, e no instante em que nossas mãos se
separaram, peguei uma palavra: Barbas.
Eu precisava de um tempinho com meu laptop. Então, tomara, a grande e
maravilhosa internet iria esclarecer tudo.
— Tudo bem, senhora?
Abri meus olhos. Senhora? Eu estava com vinte e cinco anos!
— Qual a sua idade? — perguntei. Luther desviou os olhos.
— Dezoito.
Sawyer bufou, e o rosto do garoto corou.
— Tenho, sim!
Não tinha. Mas não precisávamos conversar sobre isso agora.
— Quem são vocês?
Luther olhou para Sawyer. Estaria sendo apenas adolescente, com problemas com
autoridade, ou era seu leão interior sentindo o... zoológico interior de Sawyer?
— Sawyer.
— Sawyer de quê? Ou seria o quê Sawyer?
— Só Sawyer.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Como a Beyoncé? — Luther provocou. Sawyer olhou para mim.
— Ela é Nefilim? Eu neguei.
— Cantora.
Ele vincou a testa.
— Sereia?
— Ele é de verdade? — perguntou Luther. — Ficou preso em um túnel do tempo?
— De certo modo — murmurei, mas o rapaz não estava ouvindo. Ele tinha outras
questões, melhores.
— Quem enviou vocês?
Eu também gostaria de saber.
— Quem você acha que nos enviou? — questionou Sawyer. Ah, uma pergunta
com outra pergunta. Isso ia fazer o garoto falar.
— Tem alguém perseguindo você? — Sawyer continuou. — Tem algo a esconder?
Os olhos de Luther, que agora pareciam mais amendoados do que âmbar,
reluziram.
— Esta é a minha casa. Vocês dois podem ir caindo fora.
— É sua casa? Se eu sair perguntado por aí, o que eu vou descobrir?
Sawyer se aproximou de Luther. E Luther, de mim.
— Sawyer — murmurei. — Acho que ele não quer você tão perto.
— Não ligo para o que ele quer — Sawyer respondeu.
O garoto agarrou minha faca. Pelo jeito como ele estava recuando para mim, como
se precisasse da minha proteção, retrocedendo, eu não esperava o movimento, e fiquei
ali de boca aberta feito uma idiota.
O garoto era rápido como um felino... por que seria, não?... e teria enfiado minha
faca na barriga de Sawyer. Mas Sawyer era ainda mais rápido.
Ele segurou o pulso de Luther antes que o garoto pudesse começar um arco
descendente, e apertou. A faca caiu, e a ponta se espetou no chão, como ele pretendia
fazer em Sawyer.
— Você é alguma coisa — Luther baixara a voz; o leão ronronava logo abaixo da
superfície. — Alguma coisa diferente.
Fiquei tensa. Como ele sabia? Claro que Sawyer não parecia uma pessoa normal,
mas também não era inumano. De repente, entendi por que Sawyer nos trouxera até ali.
— Vidente? — murmurei. Sawyer negou.
MD.
O que nos levava à pergunta original.
— Por que você acha que ele é diferente? — perguntei.
Os dois lutaram, o garoto tentando se soltar, Sawyer fazendo um esforço mínimo
para não permitir. Luther arreganhou os dentes para mim e não falou nada.
Sawyer torceu seu braço para trás.
— Responda!

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Ei! — protestei. — Não precisa ser rude.
— Ele podia sair, se tentasse. — O garoto levantou a cabeça; seu rosto refletia sua
confusão.
Estava começando a ter a impressão de que Luther não sabia o que ele era. Quão
assustador seria algo assim?
— Por que você acha que eu sou diferente? — repetiu Sawyer.
— Eu posso sentir, ok? — A voz de Luther era tensa. Quanto mais ele tentava se
soltar, mais forte era o aperto de Sawyer em seu braço. — Sempre senti, a vida toda.
— O que, exatamente, você sente?
Sawyer deve ter afrouxado um pouco o aperto, pois quando Luther tornou a falar,
sua voz era quase normal. Ah, a fúria ainda estava ali, mas a dor tinha sumido.
— Eu passo por alguém e ouço um zumbido, como abelhas ou moscas, mas não
tem nada. Algumas vezes, eles olham para mim, e seus olhos... — ele estremeceu. — É
como se houvesse um demônio neles.
Um silêncio caiu entre nós. Luther suspirou.
— Eu sei que sou louco. — Seus ombros se curvaram. — Como sempre me
disseram. Sawyer o libertou.
— Eles estão sempre errados.
Pobre menino. Vi a mão de Ruthie nisso. Entendi por que eu tinha de fazer essa
viagem, para Detroit, para Indiana, e por que tinha de trazer Sawyer.
— Você vem com a gente — afirmou Sawyer.
— Acham que eu sou burro? — desdenhou o garoto.
Como o animal que era, Luther avançou no pescoço de Sawyer! Como o animal
que era, Sawyer sentiu o movimento e se esquivou. Os dedos de Luther se engancharam
na tira de couro cru que continha o talismã de Sawyer e a partiram em duas.
Tive de fechar os olhos contra a súbita explosão de luz, e quando tornei a abri-los,
Sawyer era um lobo.
Luther olhava para Sawyer, que olhou para Luther, levantou o lábio e rosnou
baixinho.
— Nossa... — disse Luther. — Que legal!
O lábio de Sawyer desceu de novo sobre os dentes afiados.
— O que ele é? — o garoto perguntou.
— Um skinwalker.
— Lobisomem?
— Não exatamente.
Expliquei que Sawyer era mais do que um lobisomem, e mais, muito mais do que
um bruxo.
— E você é o quê? — ele perguntou. — Não sinto nada vindo de você.
— Sou paranormal — resumi, — O que chamamos de vidente. Eu posso ver...
ouvir, na verdade... o que eles são.
— E o que são eles? Demônios?

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Meio-demônios, meio-humanos.
O rapaz tinha uma expressão distante nos olhos.
— Não parecem humanos. Nisso, tinha razão.
Estendi a mão e tomei o talismã de volta. Ele piscou, como se não tivesse
percebido que ainda estava com ele, e pediu desculpas.
Amarrei a coisa em volta do pescoço de Sawyer e me afastei para olhar a
transformação. A mudança de Sawyer era diferente das outras que eu já vira. Seu pelo
escuro brilhou, como se coberto por diamantes, e seu contorno se alterou, ficando maior,
mais alto, empurrando um círculo de luz, até ele se libertar como homem.
Um homem nu, pois suas roupas e sapatos estavam em farrapos no chão. Sorte
ele ter comprado outras roupas.
Ele se endireitou, nem um pouco embaraçado com sua nudez. Luther olhou para o
lado, depois de volta para ele, e para o lado de novo.
— Você disse que pode ver o que eles são — começou Luther. — Pode ver o que
eu sou?
— Marbas.
Ele engasgou. Primeiro achei que estivesse tossindo, depois vi que estava
tentando sufocar um soluço.
— Sou um demônio. Sou mau. Fiz coisas que apareceram nos meus sonhos.
— Que coisas?
Ele fechou os olhos.
— Coisas terríveis.
Pus minha mão em seu ombro, como que oferecendo conforto, e... quase chorei
também.
Na maior parte, das vezes, um lar adotivo é oferecido por pessoas carinhosas, que
realmente querem ajudar. E há aqueles que abusam dos mais fracos. Talvez Nefilins,
talvez não.
Luther tinha sido molestado. Seu pai adotivo fora encontrado em pedaços, por todo
o quintal.
Sorte de Luther.
Mas o garoto não se lembrava de ter feito? Isso era... estranho.
Tentei novamente, tocando-o gentilmente na mão. Ele só mudava à noite, quando
o sono profundo permitia que se abrisse para a magia. Não tinha controle sobre a
mudança. Ainda.
— Você não é mau — falei. — Não matou aqueles valentões, mesmo podendo.
Matá-los, enterrá-los e seguir em frente. Ninguém ficaria sabendo. É o que alguém mau
teria feito.
— Verdade? — A voz do menino era esperançosa.
— Verdade. — Olhei para Sawyer, que baixou o queixo, respondendo à pergunta
que eu nem tinha feito. — Sawyer pode ajudar você a entender o que é, e como usar isso.
— Sawyer? — A voz dele tremia. — Não você?
Depois do que eu tinha acabado de ver, entendia sua relutância em trabalhar com

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
um homem. Se isso fosse um problema tão sério, talvez eu pudesse pedir para Summer
ajudá-lo. Quando a encontrasse.
— Não é o meu trabalho — falei. — Ele treina, e eu...
Luther levantou a cabeça. Seus olhos estavam brilhantes, mas nenhuma lágrima
caiu. Chorar era uma fraqueza a que crianças como Luther, como eu tinha sido, não
podiam se permitir.
— Você o quê?
Abri a boca para explicar, mas Sawyer me interrompeu.
— Conversamos no carro.
Olhei para Luther, com medo que houvesse outra briga, e se ele ficasse realmente
bravo, haveria um leão no meio. Como diabos caberia no carro?
Mas ele esfregou os olhos e assentiu.
— Tudo bem.
Ele desapareceu naquela cabana medonha, e eu me voltei para Sawyer.
— Como você sabia que ele estava aqui?
— É isso que eu faço, ou o que fazia, antes de minha mãe me confinar a Dinetah.
— É verdade... Ruthie me contou que você era bom em recrutar novos membros
para a federação.
— Não há necessidade de recrutamento. Somos o que somos, nascemos assim
por um motivo. Eu desperto talentos especiais, os refino e treino.
Lembrei de como ele despertara meu talento.
— Você não vai...
Suas narinas inflaram, e a fúria lampejou em seus olhos.
— O garoto é um Marbas. Ele já se transformou; já matou. Não precisa ser aberto
para a magia, só tem de ser treinado para seu controle. Despertá-lo quando quiser, e não
quando o medo ou a raiva soltarem a fera contra a sua vontade.
— Mas...
— Acha que eu o tocaria?
— Tocou em mim.
— Nunca vai me perdoar por isso, não é?
— Você quer ser perdoado?
Ele pensou um pouco, depois meneou a cabeça.
— Fiz o que precisava ser feito. — Olhou para o céu ensolarado. — Como você
fará. Somos mais parecidos do que pensa.
— Não somos nada parecidos.
Ele não respondeu. Sawyer acreditava no que queria. Não ligava se eu concordava
com ele ou não. O que, pensando bem, era muito parecido comigo.
— Como sabia que ele estava aqui? — repeti. Sawyer indicou sua têmpora.
— Vozes? Ele negou.
— Então o quê?
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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Como o rapaz disse, é um zumbido. Você sente na pele.
— Você sente MDs?
— E videntes.
— Mas ele sentiu Nefilins. Como pode?
— Todos os MDs têm essa habilidade, até certo ponto. Conhecem o mal, podem
senti-lo, percebê-lo; alguns sentem seu cheiro. Mas não sabem o que é, sem seu vidente.
Aquele sexto sentido significa menos erros.
— Eles vêem pessoas más — murmurei. A testa de Sawyer se enrugou.
— Como é?
— Em teoria... — abaixei para pegar minha faca e colocá-la de volta na bainha
— ...um MD poderia simplesmente espetar um Nefilim com prata, para ver se queimaria.
— E se não queimasse, o MD estaria morto. Melhor esperar pela informação do
seu vidente e matar a pessoa certa, na primeira vez. A federação foi organizada dessa
forma porque nosso método funciona, e tem sido assim há muito tempo.
— Se funcionasse, eles estariam todos mortos.
— E serão — disse ele.
— Acha mesmo?
— Não.
Por que eu ainda falava com Sawyer?
Luther emergiu com uma mochila tão surrada quanto seus sapatos. Lembrei-me
claramente de quando cheguei na casa de Ruthie com tudo o que possuía, embrulhado
de modo muito parecido.
— Há alguém que vá sentir sua falta? — perguntei, só por garantia.
Luther revirou os olhos.
— E como foi que você veio parar nesta cidade, nesta estrada, nesta casa?
— Eu só vaguei, sabe?
Jimmy e eu vagamos quando éramos muito mais jovens que Luther. Havia algo
nos olhos daquele menino que me lembrava muito Jimmy, na primeira vez que eu o vira.
A ousadia disfarçando o medo, a carência aparecendo por trás da bravata.
— Quando cheguei aqui, pareceu um bom lugar para esperar.
— Esperar o quê? — Sawyer perguntou.
Luther encolheu os ombros, os ossos se movendo sob a camiseta puída.
Cada vez mais eu tinha a sensação de que tudo acontecia por uma razão, a seu
próprio tempo, como dizia o clichê. A vida é destino, se você não partilha a opinião de que
Deus tem um plano.
Naquele momento, eu tinha a convicção absoluta de que Luther estivera nos
esperando.
À nossa frente, o Impala azul claro reluzia sob os galhos baixos e pesados das
árvores. Alguns arranhões maculavam a pintura, outrora perfeita. Summer e eu teríamos
uma conversinha, mas isso já era uma certeza desde o início.
Voltamos à estrada para Brownport, e depois de se vestir, Sawyer explicou as

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
coisas para Luther. Acho que nunca o tinha ouvido falar tanto de uma vez só. Colocou
tudo às claras, o passado, o presente e as profecias do futuro. O que o garoto era, o que
se tornaria. Ele aceitou tudo muito bem.
— Legal — comentou Luther, e recostou a cabeça, fechando os olhos.
Parei na primeira cafetéria que encontrei, peguei meu laptop e entrei. Luther nem
se moveu. Abrimos as janelas e o deixamos dormir.
Pedi dois chás gelados, entreguei os dois copos para Sawyer e nos sentamos onde
pudéssemos manter um olho no garoto. Acessei o site da federação com a senha que
Summer me dera e digitei "Marbas" no campo "buscar".
— Descendente do demônio Barbas. — Olhei para Sawyer, que me entregou meu
chá.
— Faz sentido.
Ele bebericou, parecendo que ia cuspir o chá gelado no piso, depois engoliu e
devolveu seu copo para a mesa, enojado, me lançando um olhar raivoso. Acho que ele
ainda não tinha tomado um. E não voltaria a fazê-lo.
— Um híbrido é filho, ou filha, de um demônio — terminou ele.
— Meio-demônio — eu disse.
— Os Nefilins podem ser em parte humanos, mas não agem como se fossem —
comentou Sawyer, parecendo ecoar a frase de Luther. — Quando as lendas se referem a
demônios, estão falando dos Nefilins.
— Então, que tipo de demônio é um Barbas?
Sawyer fez que não sabia, e indicou o computador. Digitei mais um pouco.
— Um grande leão que, a um pedido do conjurador, se transforma em homem. Do
latim "barba", um tipo de planta usado para invocar demônios. — Relaxei na cadeira. —
Então, um Barbas é um leão que se transforma em humano, mas um Marbas...
— Teria a aparência de um humano, que se transforma em leão.
— Certo — concordei. — Seus pais foram mortos por leões. O olhar de Sawyer
ficou mais atento.
— Mas que interessante...
— Por quê?
— Um de seus pais era leão, e pela descrição que você leu, eu diria que o outro
era um conjurador, cuja magia permitiu que seu marido, ou esposa, permanecesse
humano.
— Por que leões... Barbas ou Marbas... matariam seu próprio sangue?
— Na natureza, só pode haver um macho alfa por grupo. Eles disputam batalhas, e
quando um macho é derrotado, seus filhotes são mortos também.
Meu olhar foi para o Impala. Luther continuava dormindo, o sol da tarde brilhando
em seu cabelo, destacando o dourado no castanho e fazendo-o brilhar.
— Isso é horrível!
— A lei da selva — lembrou Sawyer.
— A selva é uma droga! — Minha voz saiu muito alta, e várias pessoas olharam
para mim, depois voltaram para seus livros, seus filhos, seus laptops. Baixei o volume. —

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Não estamos na selva.
— Para ele, estamos.
Meu olhar voltou para o pára-brisa e o cabelo dourado, bagunçado do homem-
menino no banco traseiro.
— Então, por que deixaram esse filhote vivo?
— Quem sabe? — Sawyer estendeu a mão para seu chá gelado, e então, como se
lembrasse que tinha odiado aquilo, deixou a mão pousar sobre o joelho.
— Talvez o garoto saiba.
Joguei fora meu copo, peguei o computador e saí. Os clientes olharam
furtivamente para Sawyer quando passamos.
A segunda muda de roupas novas não disfarçava a estranheza de Sawyer melhor
do que a primeira. Seus bíceps se destacavam, a regata branca só fazia sua pele parecer
mais morena, e suas tatuagens pareciam reluzir e dançar sob as luzes. Seu cabelo descia
pelos ombros como um rio de ébano.
Quando entramos no Impala, Luther se sentou, esfregando seus olhos como uma
criança.
— Onde estamos?
— Sei lá. — Entreguei a ele um saco de bolinhos e várias caixinhas de leite por
cima do banco.
O rosto dele se iluminou. Seus dentes eram brancos, mas tortos. Minha língua
deslizou sobre os meus, também não muito retos — típicos em crianças adotadas. O
governo não iria pagar por milhares de aparelhos.
Enquanto ele se virava com a comida, perguntei:
— O que sabe sobre seus pais? — Ao mesmo tempo, rocei minha mão na dele.
Leões. Vários deles. Espreitando por uma casa no subúrbio.
Sangue em toda parte.
Minha mãe, os olhos dela iguais aos meus, verde-amarelados e raivosos. Ela grita
para meu pai deixá-la se transformar, mas ele está comigo. Ele me toca e então...
— Eu não estava lá — disse Luther.
Ele estava falando a verdade, ou o que achava ser verdade. Seu pai o tocara, e
Luther não estava mais lá. Porque seu pai, o conjurador, o enviara para outro lugar.
Sawyer estava olhando para mim. Balancei a cabeça. Não acreditava que Luther
soubesse de algo que fosse ser útil, e não achava que os leões, fossem eles Marbas ou
Barbas, soubessem de sua existência. Ou, se sabiam, desconheciam seu paradeiro. Caso
contrário, o teriam seguido, e Luther não conseguiria impedi-los de matá-lo.
Luther engoliu os bolinhos e o leite como o leão faminto que poderia virar, depois
dormiu de novo. Era uma estranha, mas adorável, mistura de menino e quase homem. Eu
queria protegê-lo, mesmo que ele sem dúvida pudesse fazer isso muito melhor do que eu.
Quando tive certeza de que tinha apagado, falei para Sawyer:
— Vi algo estranho. E o que não era?
— Luther amava seus pais, e eles se amavam.
— E por que isso é estranho?

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Eles eram demônios, ou pelo menos a mãe era.
— Acha que o amor é só para os humanos?
— E a sua... — Parei, mas ele sabia quem era o assunto.
— Assim como há humanos que são muito pouco humanos, existem Nefilins que
são muito pouco humanos.
— Então, ela é uma exceção?
— Infelizmente, está mais perto de ser a regra, e o que você viu no passado do
menino, uma exceção. Pode ser que o conjurador fosse capaz não só de controlar a
mudança, mas também suas tendências maldosas.
Era algo a se pensar, no caminho até Brownport.
A cidade era pequena, formada na maior parte pela universidade, mas não parecia
uma cidade universitária. Não havia nenhum bar; compreensível, já que a universidade
era religiosa. Em vez disso, o comércio refletia a devoção às pessoas que moravam ali e
à entidade que serviam. Havia uma igreja, e era imensa.
A Universidade Bíblica de Brownport se espalhava pelo lado sul da cidade.
Flanqueados por uma plantação de milho prontinha para a colheita, contei dez edifícios
para aulas e dois de dormitórios, um masculino e um feminino.
Ambas, a faculdade e a cidade, pareciam vazias. De acordo com o site, que
também acessara na cafeteria, a maioria dos estudantes saía em missões naquela época
do ano. Mas Carla me assegurou que o dr. Whitelaw estava em casa, pois ele morava ali,
e eu poderia encontrá-lo no final da tarde, antes de suas aulas no curso de verão.
Não foi difícil encontrá-lo. Em vez de terem seus escritórios nos prédios em que
davam aulas, todos os professores tinham um no terceiro andar do prédio administrativo.
A estrutura era antiga, sem elevadores à vista. Os pisos estavam amarelados. As
paredes mostravam umidade. No terceiro andar, apenas uma porta estava aberta, através
da qual a luz se infiltrava.
Dentro, um homem estava sozinho, sentado à mesa. Livros se empilhavam sobre
cada superfície que não estivesse coberta com papéis. As prateleiras estavam
sobrecarregadas; mais papéis tinham sido pregados ao longo de duas paredes. Na
prateleira mais alta estava um chapéu que me lembrou de algo. Reconheci aquilo, mas
não sabia por quê.
O sujeito não nos ouviu. Normal, já que eu estava com um índio metamorfo e um
leão em forma humana. Eles tendem a se mover em silêncio, e eu mesma não sou
barulhenta. De qualquer jeito, os ouvidos dele estavam com fones brancos, com fios que
desciam pelo seu pescoço para terminar no bolso de sua camisa azul de manga curta.
Ele estava de gravata e calça caqui, e mocassins com meias, o que deveria ser um
sofrimento naquele calor. Ou o prédio, não tinha ar condicionado, ou as autoridades não
viam a necessidade de ligá-lo no verão. Provavelmente, nem no inverno.
Um livro estava aberto à sua frente, e um bloquinho amarelo coberto de garranchos
ilegíveis repousava ao lado. Ele batucava uma caneta na mesa acompanhando um ritmo
que eu podia distinguir facilmente, já que eu ouvia muito bem e a música estava no último
volume. Claro, Guns and Roses soava muito melhor assim.
Sawyer se adiantou, e eu levantei minha mão. Queria dar uma boa olhada no
sujeito antes, formar uma impressão. Xander Whitelaw poderia ser a nossa salvação. Ou,
se fosse falso, poderia selar nosso destino.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Seus cabelos loiros se curvavam sobre o colarinho, longo demais para uma
entrevista formal, mas aceitável para o semestre de verão. Imaginei que sua pele seria
pálida, talvez até doentia, mas em vez disso, seus braços tinham um saudável tom
bronzeado. Seus ombros eram estreitos, mas musculosos. Pelo que eu via, ele parecia
um maratonista.
De repente, o homem se inclinou para a direita, levando a caneta para a boca
como um microfone, para cantar a última frase de Paradise City a plenos pulmões.
Axel Rose não teria de se preocupar com a concorrência.
Seu movimento deve ter nos colocado em sua visão periférica, pois o homem
congelou e se virou. Era mais jovem do que eu esperava, perto da minha idade. Talvez
aquele não fosse Xander Whitelaw, só um estudante. Usava óculos, e era bonitinho, se
você gostasse do tipo intelectual, como professores, escritores, bibliotecários.
Achei que ele fosse se envergonhar por termos ouvido seu solo, talvez corar. Em
vez disso, ele sorriu, o que o fez parecer ainda mais jovem, e um pouco mais interessante
que antes. Em algum outro momento, ou lugar... tudo bem, num outro mundo... e se eu
fosse outra pessoa, poderia ter sorrido de volta, lhe dado meu número de telefone, ou o
levado para casa. Do jeito que as coisas eram, não fiz nada disso; só me aproximei mais
e gesticulei para que ele retirasse os fones,
— Ah! — Ele os retirou, depois apertou um botão, cortando o vocalista no meio de
um grito. — Desculpe.
— Estou procurando o dr. Whitelaw.
— Já o encontrou.
Sua voz tinha um sotaque sulista macio, que fazia a pessoa querer se inclinar à
frente, à espera das próximas palavras.
— Você deve ser um dos PhDs mais jovens de toda a história, não?
Whitelaw riu.
— Na verdade, não. Você ficaria surpresa com a quantidade de gênios nas salas
de aula, senhorita...
— Phoenix. — Estendi a mão. — Elizabeth.
Nossos dedos se tocaram. Não consegui ver muita coisa. Ele estava empolgado
sobre seu novo livro, gostava de sua classe de verão, me achava exoticamente atraente;
simpático, mas não podia me prender a isso.
— E você é? — Seu olhar passou por mim, ávido.
Se eu não tivesse percebido aquela faísca de interesse em mim, diria que ele se
apaixonara por Sawyer. Enquanto soltava sua mão, entendi por quê. Sawyer era Navajo.
Whitelaw mal podia esperar para ficar sozinho com ele e entrevistá-lo sobre sua vida, sua
família, seu passado. Aquela seria uma conversa divertida. Pena que nunca aconteceria.
Sawyer e Luther se apresentaram polidamente, mas se recusaram a apertar a mão
de Whitelaw, cruzando os braços, depois encarando-o até fazê-lo desviar o olhar. Quase
esperei que começassem a rosnar.
Whitelaw não pareceu se ofender. Os Navajo não gostavam de ser tocados, então
provavelmente seu aperto de mão já tinha sido ignorado antes.
Ele se voltou para mim.
— Em que posso ser útil?

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Nós... ahn... — Parei. Como iria explicar o que queríamos e por que achávamos
que ele ajudaria?
Fez-se silêncio na sala. Sawyer e Luther não iriam ajudar. Pareciam ter sentido
uma antipatia imediata pelo professor, e eu não sabia por quê.
Enquanto eu enrolava, tentando descobrir um jeito de levantar o assunto, meu
olhar recaiu sobre o livro que ele estivera estudando, e que se fechara quando ele ficou
de pé.
As benandanti.
Era coincidência demais para ser um acaso.
— Você está interessado em antigas lendas romanas? — Indiquei o livro.
— Entre outras. Já estudei as benandanti antes, mas ultimamente... — Ele
gesticulou, as mãos manchadas de tinta. Tive a impressão de que, quando ele estudava,
o fazia com o mesmo abandono de uma criança fazendo pintura com os dedos.
— Ultimamente...
— Tenho sentido uma estranha compulsão para aprender mais sobre elas.
Estranha compulsão. Humm...
A estranha compulsão de um era o empurrão sobrenatural do outro. Seria o bom
doutor um pouquinho paranormal? Poderia sentir Carla observando-o? Sentir o que ela
era?
— O que descobriu?
— Coisas fascinantes. Já ouviu falar delas?
— O básico.
— Excelente! — O sotaque ficava estranho com o comentário curto. — O poder era
passado de mãe para filha. Só filhas podiam recebiam o legado da Benandanti, e se uma
fosse morta no submundo antes de dar à luz, sua magia estaria perdida para sempre.
Uma história familiar. Ruthie passara seu poder para mim antes que eu estivesse
pronta pelo mesmo motivo. Melhor fritar meus neurônios e me colocar em um curto, mas
intenso, coma, do que permitir que o poder desaparecesse.
— Uma benandanti tinha aparência de megera — continuou Whitelaw —, o que
dificultava um pouco a procriação, a menos...
— Basta — interrompeu Sawyer, sua voz cortando o professor no meio da
explicação.
Confusa, olhei para trás, preparada para dizer a Sawyer para calar a boca e deixar
o homem terminar. Sawyer estava parado enganadoramente, o rosto sem expressão, mas
vi sua urgência, e compreendi.
Certo, eu estava interessada no que Whitelaw sabia sobre a lenda das benandanti,
mas não precisava daquela informação. Tinha chegado ali por outras pistas, muito mais
importantes, e não tinha tempo para aquilo.
Quem podia saber quando a mulher de fumaça iria surgir? Conhecendo a figura,
ela chegaria bem quando Whitelaw começasse a nos contar o que precisávamos saber, e
arrancaria sua língua antes que ele terminasse.
— Desculpe-me — Whitelaw pediu. — Às vezes, eu me empolgo. O senhor é
Navajo, sr. Sawyer, não é verdade?

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Sawyer meneou a cabeça. Olhou rapidamente para mim, depois para o doutor.
Seus músculos se flexionaram, os tendões dos braços se apertando. Se ficasse um pouco
mais territorial, podiam começar a urinar por ali.
De qualquer forma, Whitelaw parecia indiferente às sutilezas.
— Minha tese de doutorado foi sobre os Navajos.
— Foi o que ouvi dizer — murmurou Sawyer, e senti suas feras logo abaixo dá
superfície.
— É um povo fascinante — continuou Whitelaw. — Eu pesquisei o caminho da
bruxaria. — Suas palavras saíam mais rápidas quando ele se entusiasmava no assunto.
— A maioria dos pesquisados igualavam a palavra "lobo" à palavra "bruxo". O senhor
concorda?
Sawyer apenas sorriu, depois acendeu um cigarro, surgido não se sabe de onde.
— Você... ahn... não poderia fumar em um espaço... — começou o professor.
Sawyer levantou uma sobrancelha e soprou a fumaça na direção de Whitelaw. O
professor tossiu e desistiu.
— Vejo que tem um lobo no seu... — Whitelaw indicou os bíceps de Sawyer, que
saltavam como se o lobo quisesse muito sair. — Você é um...
Ele parou, como se subitamente percebesse que perguntar a um bruxo se ele era
um bruxo poderia muito bem levá-lo à morte. Engoliu em seco, fazendo barulho no
repentino silêncio da sala.
Interrompi, antes que as coisas ficassem desconfortáveis demais.
— Adoraria ouvir mais de sua pesquisa sobre os Navajos. Foi por isso que viemos.
— É mesmo? — Seu rosto se iluminou de novo.
— Sim — comecei a dizer.
— Diga-nos o que sabe — Sawyer ordenou, e as palavras jorraram de Whitelaw
como de uma fonte.
Lancei um olhar desconfiado para Sawyer. Eu não o tinha visto fazer nada para
convencer Whitelaw a falar, mas isso não significava que ele não o fizera.
— Os bruxos Navajo são metamorfos. Skinwalkers. — O olhar de Whitelaw
relanceou para as tatuagens de Sawyer outra vez, e ele molhou os lábios nervosamente.
— Eles fazem sexo com os mortos, praticam canibalismo e possuem a habilidade de
matar à distância, usando um ritual.
— Prossiga — Sawyer murmurou.
Ele não parecia chocado com o que o professor dissera, mas eu estava.
— Cachorros mordem bruxos, quando eles estão em sua forma humana.
— E? — incentivou Sawyer.
A próxima coisa que ele perguntaria era onde Whitelaw conseguira suas
informações, e então decidiria quem merecia morrer — aqueles que contaram os
segredos ou quem os escutara. Havia momentos em que ele se parecia muito com a mãe.
— Os bruxos são mais temidos quando o vento está soprando. Eles viajam na
tempestade, e tiram seu poder dos raios. Dizem que a chuva é uma mulher.
Eu duvidava que Whitelaw precisasse de muito encorajamento para nos dar uma

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lição de história, mas o jeito como ele parecia não conseguir calar a boca era um tanto
suspeito.
— Bruxos são associados com a morte e os mortos, e também com incesto. Para
retirar o poder de um bruxo, deve-se repetir seu nome verdadeiro quatro vezes.
— Nome verdadeiro?
— Ao nascer, os Navajos recebem um nome de guerra secreto. Esse nome é
propriedade daquela pessoa, jamais usado por ninguém, nem mesmo pela família.
— Como as pessoas são chamadas, se ninguém sabe seus nomes?
— A maioria tem apelidos. Algo para serem chamados pelo homem branco. É
considerado falta de educação pelos anciãos chamar alguém pelo nome na presença
deles.
Olhei para Sawyer. Ele abandonara o cigarro e estava olhando para Whitelaw com
um ódio assassino.
— O que você sabe sobre os Naye'i? — indaguei.
— Os Terríveis. Os piores espíritos do mal dos Navajos.
— Já ouviu falar como se mata um deles?
— Matar? Um espírito do mal? Não acho que isso seja possível.
Carla havia dito que nós talvez tivéssemos de ajudá-lo a encaixar as peças. Mas
como fazer isso, se eu nem sabia quais eram as peças, para começar?
— Espíritos são bons e maus — prosseguiu Whitelaw. — Ao mesmo tempo, luz e
trevas. Houve uma vez...
Sua voz sumiu, e ele olhou pela janela.
Olhei para Sawyer, que fixava estoicamente Whitelaw. Luther ainda estava perto
da porta, seria o primeiro a sair, caso fosse necessário. Tive a sensação de que ele
estaria nessa posição, perto da porta, por muitos anos ainda. Pobre criança.
De repente, Whitelaw girou, voltando para sua mesa às pressas. Folheou uma
pilha de livros, afastou diversos papéis.
— Não está escrito em lugar nenhum. Eu ouvi falar. Alguém me disse. — Ele
esfregou a testa por vários segundos, depois murmurou: — Alguma coisa... algo sobre
matar as trevas.
Foi apenas por ter ficado inquieta com o olhar anterior de Sawyer que o encarei
naquele momento. Ele estava levantando a mão, ainda olhando para Whitelaw. Não
pensei: entrei no meio deles.
Atrás de mim, Luther rosnou. Não ousei olhar par trás e ver o que estava
acontecendo. Não ousava me mover.
Os olhos de Whitelaw tinham se arregalado, as íris castanho-escuras no meio de
um imenso mar branco. Ele percebera que Sawyer queria matá-lo; eu até podia sentir o
cheiro. Aquele odor de ozônio no vento, exatamente o mesmo de Mamãe Querida.
— Prossiga — mandei, e quando Whitelaw hesitou: — Rápido!
Whitelaw não era bobo. Sabia que estava encrencado, que era melhor contar tudo,
pois assim que o fizesse, não haveria mais motivos para matá-lo. Uma vez que
compartilhasse o método para matar as trevas, a informação não mais morreria com ele.
A questão era: por que Sawyer queria que ele morresse?

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Parem com isso! — ordenei, para todos.
Os rosnados de Luther sumiram, o que era um bom sinal de que Sawyer tinha
baixado a mão. Não que não fosse levantá-la de novo. Ou que pudesse matar Whitelaw
de algum outro jeito. Embora, se ele pudesse, acho que já o teria feito.
— O que eles são? — sussurrou Whitelaw, os olhos ainda muito grandes e muito
brancos.
— Você não acreditaria.
— Pode ser que acredite, sim. Também achava que ele acreditaria, mas...
— Não agora — falei, e ele assentiu, entendendo a urgência.
— Para matar a escuridão — ele falou, baixinho —, a pessoa tem de aceitá-la.
— Aceitar? — Minha boca se curvou para baixo. Isso definitivamente não
aconteceria.
— Aceitar ou se transformar. Lembro de ter perguntado, e ele disse...
— Quem disse? Um Navajo? Whitelaw assentiu.
— Os Navajos acreditam no mal, e é por isso que não falam sobre o assunto.
Algumas vezes, falar sobre o mal o, atrai. — Ele olhava fixamente para Sawyer enquanto
dizia isso.
— Vamos torcer para que não — murmurei, e Whitelaw estremeceu, me fazendo
pensar se o fato de ele ter falado sobre entidades sobrenaturais, escrito essas lendas,
tinha atraído coisas que deviam ser mantidas à distância.
— Quando estava pesquisando para meu livro sobre as Revelações — continuou
—, falei com um rabino que tinha uma teoria interessante sobre o fim do mundo. Ele disse
que a batalha final seria entre o Bem e o Mal.
— E o que há de interessante nisso?
— Ele não usou estes termos. Usou Trevas e Luz. Disse que a única forma de
derrotar as trevas era com a luz. Que a luz teria de... — Ele se encolheu, fechou os olhos,
depois completou:
— ...aceitar a escuridão, e ao fazer isso, se transformaria nela. Só assim o mal
poderia ser derrotado.
— Transformar — repeti, olhando para Sawyer. Ele deu de ombros, mas não olhou
para mim, ainda encarava Whitelaw como se quisesse fazer algo muito desagradável com
o sujeito.
Luther se colocou entre nós, de costas para mim, de frente para Sawyer. Eu estava
enganada. O garoto não saiu pela porta ao primeiro sinal de encrenca; adiantou-se para
encarar o problema. Eu estava impressionada.
— Não entendi nada do que ele queria dizer — falou Whitelaw.
— Essas línguas antigas são difíceis de compreender, algumas vezes a tradução
está errada, e em outras, eles misturam dialetos.
Ele estava falando demais. Quanto mais eu ficava ali, mais pensava que Whitelaw
também devia ser um pouco paranormal. Certamente sentiu as vibrações "vou te matar"
que vinham de Sawyer.
— Esse rabino... onde posso encontrá-lo? — perguntei. A testa de Whitelaw se
franziu.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Foi morto. Um caso muito estranho. Cães selvagens.
— Não fui eu — murmurou Sawyer.
Whitelaw abriu a boca e tornou a fechá-la. Esperto.
— O rabino disse como descobriu essa informação?
— Em um grimório.
— Como?
— Um livro didático de magia. A maior parte é de instruções para invocar anjos ou
demônios.
— Você disse "é"? — Fiquei alerta. — Eles ainda existem?
— Partes deles. Traduzidos. Que é a razão para o rabino não ter certeza das
palavras exatas. — O professor franziu a testa. — Não sei por que ele me contou isso,
para falar a verdade, mas ele parecia determinado a que eu soubesse.
Cada vez mais, eu me certificava de que esse rabino fora um de nós, e tinha
descoberto de algum jeito que eu, ou alguém como eu, iria chegar até Whitelaw e precisar
dessa informação. Então ele contou ao doutor, e depois foi morto. Pelo jeito, por meta-
morfos... lobisomens, coiotes, filhotes possuídos, não importava. Ele estava morto.
— Você tem uma cópia do grimório que ele usou? O doutor negou.
— Ele disse que conseguiu a informação da Chave de Salomão, que é um livro
atribuído ao rei Salomão. Há traduções e partes dele em todo lugar. Mas esta parte, em
particular, ele jurou que vinha do livro original.
— E onde ele está?
— Não existe. Ou melhor, ninguém nunca o encontrou.
Minha nossa, alguém podia mudar o disco?
— As traduções datam da Idade Média — Whitelaw continuou.
— Mas depois disso, ninguém mais o viu?
— Exceto o rabino Turnblat. Ele insistiu ter lido a receita para matar as trevas na
Chave de Salomão original.
— Você acha que era verdade?
— Se era, o livro desapareceu, não estava entre seus pertences quando ele
morreu.
Provavelmente porque seja lá quem o tenha matado o levou. Não creio que isso
fosse positivo para o nosso lado.
— O que mais havia nesse livro?
— Feitiços para ficar invisível, ganhar sorte e amor, achar itens roubados, coagir e
libertar demônios.
Ah... eu já tinha uma idéia de quem estava com a maldita coisa.
— Precisamos ir — falei.
— Esperem! — Whitelaw se adiantou, congelando quando Luther e Sawyer
rosnaram ao mesmo tempo.
Lancei um olhar para eles e os vi recuar, embora os dois parecerem estar prontos
para atacar.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Quero ajudar — disse Whitelaw.
— A fazer o quê?
— Estive estudando as revelações, eu vejo os sinais. Também creio que muitas
dessas lendas sobrenaturais sobre as quais li são reais. — Ele endereçou um olhar
significativo a Sawyer e Luther. — Mesmo antes de eles aparecerem. Acho que vocês
poderiam usar alguém como eu do seu lado.
Eu também achava, então o informei de tudo. Não levou muito tempo, ele já estava
bastante preparado. Como Sawyer não falou nada, achei que estava de acordo. Não que
eu precisasse de sua aprovação, mas sempre era bom.
— Tem alguma sugestão de como alguém se torna trevas? — perguntei.
Lentamente, Whitelaw meneou a cabeça.
— Pelo que você disse, os Grigori criaram os Nefilins por miscigenação com os
humanos. Apesar das histórias, você não pode se tornar um deles compartilhando o
sangue, ou sendo mordido ou amaldiçoado...
— Transformar-se... — murmurei, e de repente eu sabia o que tinha de fazer. Mas
primeiro, o mais importante. — Veja se consegue encontrar alguma informação sobre algo
chamado O Livro de Samyaza. Já ouviu falar?
Whitelaw negou.
— Um grimório?
— Algo como um manual de instruções satânico. Profecias reveladoras para o
outro lado.
Whitelaw era esperto, entendeu rápido.
— Se tivermos isso, saberemos o que eles estão aprontando.
— Não pode ser ruim, — eu disse. — E veja se consegue achar alguma pista da
Chave de Salomão. Tenho uma sensação muito ruim de que ele está em mãos erradas.
Whitelaw empalideceu, mas concordou, disse adeus, e quando olhei para trás
enquanto saíamos da sala, ele já estava com o nariz enterrado em um livro empoeirado.
Lá fora, já anoitecera. Eu me virei par Sawyer e dei-lhe um empurrão no peito. Era
como empurrar um prédio.
— Você sabia! — falei.
— Sabia o quê?
— Não tente me enrolar, Sawyer! Você ia mandar Whitelaw para o outro mundo
antes que ele me contasse.
— Ia?
— Ah!
Soquei seu peito com as duas mãos. Sawyer me segurou pelos pulsos antes que
eu pudesse continuar. Luther rosnou.
— Afaste-se, garoto — mandei. — Isto é entre mim e ele. Espere no carro.
Surpreendentemente, ele foi.
Puxei meus pulsos, mas Sawyer não soltou.
— Por que você ia matar o professor?

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— Ele sabe demais.
— Por exemplo, como matar sua mãe?
Sawyer cerrou os dentes. Ele odiava quando eu a chamava assim, mas e daí?
— Às vezes, me pergunto de que lado você está — falei.
— Não é o dela.
— Não? Então por que você não me explicou como matá-la? Mentiu, dizendo que
não sabia. Alguns pensariam que você é um espião. Que seria uma boa idéia matar você
agora.
Pena que "alguns" não sabiam como fazer isso.
— Quem lhe contou? — perguntei.
— Ninguém. — Ele me soltou, com um pequeno empurrão. — Todo mundo. É uma
lenda antiga, uma profecia que não fazia sentido. Até você aparecer.
— Ela sabe? — Respirei fundo. — Claro que sabe. Outro bom motivo para ela
tentar me matar.
— Tem de haver outro modo — disse Sawyer, baixinho.
— Geralmente, só há um jeito para matar essas coisas. Por que haveria dois, só
porque não gostou do primeiro?
— Whitelaw sabe como matar a escuridão. Mas também deve ter uma maneira de
matar um Naye'i.
— Pelo que disse Whitelaw, é impossível.
— Ele não sabe de tudo.
— Pareceu saber bastante.
— É perigoso demais — ele avisou. — Você se tornará um deles, Phoenix. E
então...
Ele parou o que dizia e se virou.
— Então, o quê?
— Então vou ter que te matar. Tomei fôlego.
— Estou contando com isso. Ficamos em silêncio.
— Vai dar tudo certo — afirmei.
Foi Sawyer quem me avisou que eu não deveria nunca dormir com um Nefilim, pois
poderia absorver sua maldade junto com seus poderes. Imaginei, na época, que alguma
hora valeria a pena correr o risco. Só não pensei que seria tão em breve.
— Sou a única que pode, de fato, se tornar uma Nefilim. Sou a luz que vai se
transformar nas trevas.
— Por que as trevas vão devorá-la. Você vai sumir, Elizabeth. Franzi a testa. Ele
nunca me chamara assim. Aquilo me assustou mais do que... bem, várias coisas. Mas
ficar assustada nunca me deteve antes; pelo contrário, me incentivava.
— Preciso encontrar um Nefilim — comecei. — Não deve ser difícil. Eles estão em
todo lugar.
Olhei ao redor. O campus parecia vazio. A cidade inteira tinha saído das calçadas
quando o sol se pôs. Onde estava um demônio, quando se precisava de um? Quando não

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
se estava procurando, apareciam vários.
Braços fortes, morenos, vieram por trás de mim.
— Eu não vou deixar que faça isso — Sawyer afirmou.
— Não pode me impedir. — Lutei, mas como sempre, ele foi mais forte. — Vou
pegar o primeiro Nefilim que passar. Algum vai acabar aparecendo. É só uma questão de
tempo.
— Isso vai matar você.
— Duvido muito.
O pensamento de dormir com uma coisa malévola me deixou levemente enjoada,
mas faria o que fosse preciso. Se não fizesse, os Grigori andariam sobre a Terra
novamente, copulariam com humanos, repopulariam o mundo com demônios. O caos que
se arrastava sobre o planeta agora não seria nada comparado a isso. Sawyer suspirou,
seu peito roçando contra minha costas, os braços deslizando sobre os meus.
— Há outro modo. Congelei.
— Qual?
— Sanducci.
— Sanducci? Mas o que...
Parei, relembrando o que Whitelaw dissera: você não pode se tornar um deles
compartilhando o sangue, ou sendo mordido ou amaldiçoado...
Mas eu podia. Ganhara poderes de dampiro através de Jimmy. Mas não tinha me
tornado uma vampira, uma Nefilim, porque para fazer isso, teria de...
— Compartilhar o sangue — murmurei.
— Sim — Sawyer confirmou, e me soltou.
Jimmy não era mau até compartilhar sangue com seu pai vampiro. Ele tomara o
meu no antro do strega, mas consegui acabar com sua possessão, obsessão, ou fosse o
que fosse, matando o pai antes que Jimmy me forçasse a beber o sangue dele. Jimmy me
implorou para lembrar que eu nunca deveria compartilhar o sangue com um vampiro, ou
me tornaria um.
— Jimmy não é um Nefilim — apontei. — É um híbrido.
— Agora é um vampiro. E se você beber o seu sangue...
— Vou me tornar uma vampira também.
— Sim.
— Ele não vai aceitar.
— Então, terá de forçá-lo.
Isso ia ser divertido.
— Acho que prefiro pegar um demônio ruim, qualquer demônio ruim.
— Não. Com Sanducci, há uma chance de que você consiga sobrepujar o demônio
quando terminar.
— Sobrepujar quem? A ele?
— Não, dentro de você. Prendê-lo. Bloquear, talvez.
— E ele ficaria ali para sempre? — Lutei contra um tremor involuntário. —
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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Esperando?
— É melhor que a outra opção. Você se torna um demônio. Para sempre.
— Ao menos, até você me matar. Sawyer não respondeu.
— Jimmy não estava dando muita sorte com essa coisa de prender o demônio.
Isso pode ser feito?
— Teoricamente.
Acho que "teoricamente" era melhor que "de jeito nenhum". Lembrei-me da
angústia de Jimmy na caverna, o motivo principal pelo qual ele fugira e se escondera. Ter
aquela coisa dentro dele o estava matando aos poucos. Atrair Jimmy a me fazer o
mesmo...
— Não quero machucá-lo — falei. O rosto de Sawyer endureceu.
— Ele não teve a mesma preocupação com você.
— Ele estava possuído pelo strega. Não conta.
— E conta, quando ele e Summer... — Sawyer fez um gesto obsceno com as
mãos. — Ele sabia que você veria, que partiria seu coração. E não ligou.
Verdade. Ainda assim, um erro não justifica o outro. Mas nesse caso, talvez sim...
— Como vou encontrá-lo? — murmurei.
Sawyer olhou para mim por alguns segundos, mas já tinha se decidido que a única
escolha era Jimmy.
— Não sei — falou, finalmente. — Summer pode escondê-lo para sempre, se
quiser.
Ou, pelo menos, até Jimmy melhorar. Eu precisava chegar até ele antes. E sabia
exatamente como faria isso.
Momentos desesperados pedem soluções desesperadas, ou pelo menos, a
resposta para minha pergunta mais desesperada. Um plano surgiu em minha mente,
abrindo-se em todas as suas possibilidades e caminhos.
— Não faça isso — pediu Sawyer.
Olhei para ele. Lendo minha mente de novo, ou só meu rosto?
— Eu tenho de encontrá-lo.
— Caminhar pelos sonhos exige que se ande pela linha entre a vida e a morte. E
se você cruzar essa fronteira?
— E se eu cruzar?
— Não vou fazer isso, Phoenix. Não vou matá-la uma vez, só para você andar
pelos sonhos de Sanducci e descobrir onde a fada o escondeu.
— Não preciso que você faça isso — falei, e dei um tiro na minha cabeça.
Tudo ficou branco como a neve. À distância, um espocar de trovões, talvez armas,
ou cavalos, depois uma explosão final que soou como uma palavra que não consegui
discernir.
Lar? Chegar? Achar? Tentar?
Meus olhos pareciam ter sido passados em óleo fervente. Quando os abri, Jimmy
estava comigo. Ou melhor, eu estava com ele. Ele estava em um quarto limpo e estéril.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Lençóis brancos, cama de solteiro, uma penteadeira velha com um espelho na parede. A
noite encobria as janelas, mas eu ainda podia enxergar as grades.
Ele estava deitado na cama, nu, a luz brilhando através do vidro, dando ,à sua pele
morena tom do alabastro. Seu corpo era longo e magro, elegantemente musculoso, quase
perfeito.
Seus olhos estavam abertos. Ele parecia morto, até virar a cabeça e me ver.
— Lizzy — ele murmurou, como se estivesse drogado, e aparentava estar.
— O que ela fez com você? — perguntei.
— Ela está tentando ajudar. — Ele se sentou, os músculos se movendo em seu
abdômen e nos braços enquanto ele esfregava a mão no rosto. — Acho que está
funcionando.
O pânico travou minha garganta. Se ele estava melhor, eu estava encrencada.
Apesar disso, sob o pânico, flutuou um pequeno raio de alegria. Queria que ele
melhorasse. Queria que ficasse inteiro de novo. Não queria ter de traí-lo como planejava
fazer.
— O que você precisa? — ele perguntou.
— Preciso?
— Sei que não está aqui de verdade. Deve estar bem desesperada para estar
perambulando nos sonhos.
— Desesperada... — Eu ri, desalentada. — Pode-se dizer que sim.
Jimmy estendeu a mão.
— Pode perguntar.
Olhei para as janelas, mas a lua tinha se escondido atrás de uma nuvem, e estava
escuro demais para ver onde estávamos. Procurei por ele, minha boca se abrindo, a
mente formando as palavras "onde você está?", mas no instante em que nossos dedos se
tocaram, fui lançada de volta a uma velocidade estonteante. Jimmy se fora, assim como o
quarto. Em vez disso, eu sobrevoava um corredor longo e escuro com um monte de
portas.
Já estivera ali. Bem, não exatamente. Mas na mente de alguém, então reconheci a
decoração. Lembranças moravam por trás daquelas portas.
O vento me levou por um lugar, depois para outro, algumas vezes me lançando tão
rápido que eu batia em algum canto, sibilava de dor, mas nem assim ele parava.
Papéis se espalharam, alguns batendo no meu rosto, na mão, um ficou preso no
meu peito, e eu peguei o canhoto do primeiro pagamento que Jimmy recebeu de uma
revista. Ele vendera algumas das fotos que tinha tirado em uma fazenda, no verão cm que
fiquei com Sawyer, e ele no Wisconsin, para ordenhar vacas. Jimmy extraiu o melhor da
experiência, como sempre fazia. Aquelas fotos lhe garantiram uma bolsa de estudos em
Western Kentucky. Não que ele tenha feito uso dela.
Espalhados sobre o piso, estavam velhas bolas de beisebol, algumas facas com
manchas suspeitas, negativos e, em um canto, a camisa que eu estava usando no dia em
que perdi minha virgindade. É espantoso o tipo de coisa que assombra os corredores da
mente.
O vento subitamente morreu, me deixando em frente a uma porta branca
impecável. Bastante inofensiva, especialmente quando comparada a outras daquele

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
corredor. À minha direita, ripas de madeira cinza, tão distorcidas que eu podia ver a luz do
quarto atrás delas; à esquerda, uma tranca de metal enferrujado entrava em uma
fechadura ainda mais decrépita; atrás de mim, assomava algo que parecia ter sido
seqüestrado dos pesadelos de Bram Stoker: um portal grande, escuro, sinuoso, com um
imenso morcego negro como aldrava. Minha mão cocava para bater ali, mas Jimmy
provavelmente acabaria com um tumor cerebral, ou no mínimo, uma dor de cabeça dos
diabos.
Mais para o fim do corredor, uma porta pendia para fora, presa por apenas uma
dobradiça. O que será que estivera preso ali?
Curiosa, dei um passo naquela direção. Ou tentei dar. Minhas sandálias pareceram
colar no chão. Se é que havia algum chão. Quando olhei para baixo, tudo o que vi foram
meus pés, meus sapatos e mais nada.
— Tudo bem — murmurei. — Acho que a resposta à minha pergunta mais
desesperada está atrás da porta número um.
Estendi a mão e toquei a maçaneta. Ela não se mexeu. Chacoalhei. Soquei. Bati as
palmas das mãos.
— Ei! — gritei, e tentei me afastar. Quase torci o pé, mas não me mexi, e então vi o
olho-mágico.
Obviamente, Jimmy não queria que eu soubesse o que havia atrás daquela porta,
mas caminhar nos sonhos era uma coisa poderosa. Que ele fosse capaz de manter a
porta trancada contra mim era impressionante. De qualquer forma, a pergunta desespe-
rada, e o sangue que eu derramara para obter a resposta, tinham procedência. Por isso o
buraco na porta.
Inclinei-me para a frente. Em vez da imagem inversa e borrada comumente
projetada através de olhos-mágicos quando se espiava de fora para dentro, eu podia ver
claramente.
Jimmy e Ruthie, na casa de Milwaukee. Anos atrás, pela aparência deles.
Embora eu tivesse a impressão de que Ruthie não envelhecia, aquela visão me
mostrava que sim. Ali, o cabelo dela estava menos grisalho, as mãos menos ossudas,
porém os olhos estavam estranhamente mais cansados, em vez do contrário. Que
estranho...
Jimmy tinha talvez dezesseis ou dezessete anos. Alto e magro, ainda um
rapazinho, mas com a promessa do homem que se tornaria, os cabelos pretos reluzindo
ao sol, os olhos cintilantes de fúria. E qual era a novidade? Jimmy estava sempre nervoso
naquela época. Era seu jeito.
— Está maluca? — ele perguntou, sua voz partindo-se com raiva e uma outra
emoção.
O semblante de Ruthie endureceu. Esperei pela explosão. Desrespeito não era
tolerado, de forma nenhuma. Quando ela não falou nada, nem lhe deu uma pancada na
cabeça, eu me movi, inquieta, e percebi que meus pés agora podiam se mexer. Mas eu
não queria ir para nenhum lugar, além daquele. Qual era minha pergunta mais
desesperada, eu não sabia, mas tinha certeza de que ela seria respondida muito em
breve.
— Não posso — continuou ele. — Ela vai...
— É a idéia — falou Ruthie, e sua voz estava fria como eu nunca tinha ouvido. Tão
fria que abracei meu próprio corpo, estremecendo sozinha nos corredores da mente de

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Jimmy.
— Mas... — Ele passou os dedos pelo cabelo, um gesto que eu sabia ser derivado
de incerteza, indecisão, medo.
— Achou que eu não ia descobrir? Jimmy baixou a mão.
— Eu não sabia...
— Que eu não sou cega?
Ela sorriu, mas a expressão não era aquela à qual eu estava acostumada, aquela
que fazia toda criança sorrir de volta, que fazia meninos e meninas perdidos saber que
tinham chegado em casa.
Não, aquele sorriso era algo completamente diferente. Era calculista. Era quase,
mas não exatamente igual, ao da mulher de fumaça. O sorriso de uma criatura que faria
qualquer coisa, pagaria qualquer preço, sacrificaria qualquer um para conseguir o que
queria.
— Teria feito você se segurar, se soubesse? — murmurou Ruthie.
Jimmy desviou o olhar e não respondeu.
— Bem, não vai ter de se segurar agora. Faça o que lhe falei. É o único jeito.
— Vai matá-la.
— Ela é mais forte que isso — disse Ruthie. — O que vai matá-la é amar você. Ela
não pode ter um ponto fraco. Tem de ser capaz de pensar no mundo.
Eu estava esfregando minhas mãos nos braços espantosamente frios, tremendo
tanto que minhas costas doíam.
— Você também não pode ter um ponto fraco. Eles vão saber — ela continuou. —
E você precisa ser capaz de fazer o que faz melhor.
— Matar. — Sua voz perdera a fúria. Ele soava quase magoado. Eu queria ir até
ele, mas ele não estava realmente lá.
— É o que você nasceu para fazer — afirmou Ruthie.
Nascido para matar? Ruthie estava dizendo para Jimmy que ele tinha nascido para
matar? Não era psiquiatra, mas até eu sabia que isso não era uma coisa boa para se
dizer a uma criança. Claro, todos entendíamos que Jimmy não estava matando gente,
mas mesmo assim...
Ele o fizera.
Eu queria bater em alguém, e sabia exatamente em quem. Pena que Ruthie não
estivesse ali mais do que Jimmy.
— Não tem outro jeito? — ele perguntou.
— Acha que ela vai acreditar que você só a deixou para trás? Que vai deixar de
amá-lo, agora que você foi o primeiro dela? Eu o avisei para não tocar nela! — A voz de
Ruthie se ergueu. — Não lhe falei para nunca tocar nela?
— Eu não podia... — Jimmy parou, e eu me inclinei para a frente, batendo o nariz
contra a porta. O que ele não podia?
Mas Ruthie não o deixou terminar.
— Se você simplesmente for embora, ela vai procurá-lo para sempre. Nunca vai
esquecê-lo, e ela precisa fazer isso. Está na hora de você ocupar seu lugar. Mas ela não

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
está pronta, Se ela o seguir...
— Ela pode morrer.
Ruthie meneou a cabeça, e Jimmy suspirou.
— Tudo bem. Eu vou fazer. — Ele deu uma risada curta, sem humor. — Digo, vou
fazer com ela. Como era o nome dela?
— Summer — respondeu Ruthie. — Summer Bartholomew.
Eu engasguei, e ambos olharam para a porta, mas eu já tinha ido, arrastada para
fora da cabeça de Jimmy tão rápido que meu estômago embrulhou. Ou talvez fosse só o
efeito do que tinha ouvido, borbulhando ali como ácido.
Ruthie tinha mandado Jimmy dormir com Summer, sabendo muito bem que eu
veria, que partiria meu coração, que eu terminaria odiando-o. Ruthie, que sabia tudo
sobre mim, incluindo o quanto eu precisava desesperadamente de amor, o quanto a
traição magoaria, tinha friamente calculado o melhor modo de me virar contra alguém que
precisava de mim tanto quanto eu precisava dele.
E ele concordara.
Mas, afinal, qualquer coisa pelo mundo, certo?

Capítulo IV

Caí em meu corpo no sonho com um impacto que me mandou para o chão. Jimmy
estava sentado na cama na mesma posição de quando eu partira.
— Achou a resposta de que precisava? — ele perguntou.
O tom de sua voz era apenas de curiosidade. Ele não percebera o que eu havia
descoberto, e resolvi manter as coisas assim.
Minha pergunta mais desesperada era por que ele havia me deixado quando
estávamos com dezessete anos. Que patético! Quase tão patético quanto ele ter partido
porque recebera ordens.
Abafei aquela raiva. Ele tinha só dezessete, assim como eu. Confiara na federação
muito antes que eu o fizesse. Estivera perdido. Sozinho e vagando. Eu não teria como
ajudá-lo. Só faria com que fôssemos mortos.
Que Ruthie estivesse certa em sua suposição não me deixou mais feliz com ela no
momento.
Mas uma coisa de cada vez. Eu realmente precisava saber para onde Summer
havia levado Jimmy. Como eu ainda não tinha caído de volta para meu corpo frio e
semimorto, só podia pensar que ainda faltava descobrir a resposta para minha pergunta
mais desesperada, parte dois.
— Lizzy?
Ergui a cabeça, e meu nariz roçou em seu joelho. O cheiro dele, de canela,
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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
sabonete e água, me invadiu, e meus olhos se encheram de lágrimas. Tanto havia sido
dado, tomado, perdido...
Fiquei de pé, e ele fez o mesmo. Separados apenas por alguns centímetros, o
calor de sua pele nua tocou a minha. Coloquei a mão em seu peito, senti seu coração
batendo, e percebi que o meu não batia.
Oh...
Eu provavelmente devia cumprir minha obrigação ali e voltar. Não tinha certeza se
tudo saíra conforme o planejado, mas tinha a impressão de que, assim que meu corpo se
curasse, eu seria lançada para fora dali ainda mais rápido do que na vinda.
Jimmy cobriu minha mão com a dele. Era tão quente, que eu queria me enterrar
nele e deixar que aquele calor e aquele cheiro tomassem conta de mim. Agora que eu
sabia o que estava atrás da porta trancada e secreta, muitas outras portas estavam se
abrindo. Como as que eu trancara no dia em que o vira com ela.
Eu estava me inclinando para a frente, o rosto levantado, os lábios pedindo um
beijo. Então me endireitei, dei um passo para trás, e ele me soltou.
— O que você viu? — perguntou.
— Não tem muita coisa aí. — Apontei a cabeça dele com os dedos.
— Engraçadinha.
Minha tentativa de humor o ajudou a relaxar. Obviamente, se eu tivesse visto o que
ele não queria que eu visse, não estaria brincando.
Jimmy já não me conhecia tão bem. E alguém conhecia?
Fui até a janela. As grades eram de ouro. Tinham de ser; Jimmy arrancaria
qualquer outra coisa.
A lua que brilhava mais cedo tinha desaparecido. O sol ainda não se levantara, e a
escuridão reinava. Tudo o que eu tinha a fazer era perguntar a Jimmy onde ele estava, e
ele diria. Eu estava em sua cabeça; ele não tinha muita escolha. Ainda assim, hesitei.
Uma vez que eu soubesse, viria ali e o machucaria.
Ele se moveu por trás de mim, silenciosamente, mas eu sabia que ele estava ali.
Sempre sabia. Estávamos conectados de um jeito que nada nem ninguém poderia
separar.
Apenas eu.
Ele colocou as mãos em meu quadril. Senti sua boca em meu cabelo, seu hálito
em minha orelha. Inclinei-me contra ele, só por um instante.
— Você parece melhor — sussurrei.
— Não estou.
Eu não sabia se ficava feliz ou triste.
— Summer lançou um feitiço.
Lutei para não ficar tensa à menção do nome dela. Nada disso tinha sido culpa de
Summer, embora fosse irritante o fato de ela ter se apaixonado por Jimmy. Fez com que
eu sentisse pena dela, e eu não queria isso. Queria continuar odiando-a. Eu me sentia
melhor assim...
— Que tipo de feitiço?
— Subverter o demônio.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Como?
Ele não respondeu. Em vez disso, ficou parado. Algo havia mudado. Levei alguns
segundos para perceber o que era, e quando notei, parei também.
Sua pele parecia tão quente... Suas mãos em meu quadril chegavam quase a
machucar, de tanto que apertavam. Lentamente me virei e, por um minuto, no escuro,
pensei ter imaginado coisas. Seu cheiro era o mesmo; seus contornos, tão familiares;
tinha-o visto erguendo-se sobre mim à noite tantas vezes... a cadência de sua respiração,
o jeito do seu cabelo, a curva do pescoço para o ombro... tudo era Jimmy.
Então, atrás de mim, o sol nasceu e bateu alegremente em seu rosto. O centro de
seus olhos reluziu, vermelho, e suas presas cresceram.
— Está vindo. — Seu olhar desceu dos meus olhos para meu pescoço.
Meu pulso latejava nas têmporas. Acho que algo tinha assustado meu coração.
Provavelmente, o fogo em seus olhos.
— Não posso contê-lo o tempo todo. — Jimmy olhava para onde devia estar minha
carótida pulsante e lambeu os lábios. — Às vezes, ele se solta.
Eu me afastei, fiquei esmagada na parede, lancei um olhar sobre meu ombro e
gelei pela paisagem emoldurada pela janela.
Soube exatamente onde ele estava.
No momento seguinte, estava deitada no piso do estacionamento, no escuro. Tinha
uma dor de cabeça monstruosa.
A lua minguante reluzindo contra a noite azul-escura me confundiu, já que eu tinha
acabado de ver o sol se pôr no mundo dos sonhos. Duas cabeças surgiram acima da
minha, coroadas pela lua.
— Está melhor? — perguntou Sawyer, soando completamente calmo, sem se
abalar pela situação absolutamente atípica. Sawyer tinha algumas coisas boas, e essa
era uma delas.
— O que você é? — Luther parecia assustado o suficiente por ambos.
Sentei, toquei minha cabeça, que ainda latejava, mas parecia estar inteira, embora
grudenta com coisas que eu preferia não saber o que eram, e olhei em volta. Estávamos,
espantosamente, sozinhos.
— Ninguém ouviu? — perguntei.
Eu estivera com muita pressa para me preocupar com o barulho, e deveria ter
pensado nisso. Ali não era Los Angeles. Um tiro deveria fazer a cidade inteira vir
correndo; no mínimo Whitelaw deveria ter espiado pela janela.
— Ele fez um troço vodu — disse Luther. — Veio gente, mas ninguém podia nos
ver.
Outra coisa boa de Sawyer. Magia. Séculos disso.
— Preciso de um banho — murmurei.
— Precisa de mais do que isso — comentou Luther. — Você se curou de um tiro
na cabeça.
— Nesse caso, parece mais que eu não preciso de nada. — Fiquei de pé, um
pouco desequilibrada. A dor de cabeça estava sumindo, mas não rápido o suficiente.
— Por que você fez aquilo? — A voz de Luther falhou.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Desculpe. — Pus a mão em seu ombro. — Deveria tê-la avisado. Não foi certo.
Ele mordeu o lábio, encolheu os ombros. Eu o assustara. Bastante, pelo modo
como ele tremia. Pobre garoto... Tinha um coração de leão, literalmente, mas era só um
filhote. Voltei-me para Sawyer.
— Você não podia tê-lo avisado de que eu não corria perigo?
— Estava um pouco ocupado, tentando manter a bolha de invisibilidade à nossa
volta.
Encarei-o por um minuto, tentando descobrir se ele estava brincando, mas não
achei que ele soubesse como fazer isso. Não podia culpá-lo pelo meu próprio
comportamento apressado. Consegui a informação de que precisava, mas a que custo
para aqueles ao meu redor? Torci para que não tivesse deixado o garoto ainda pior do
que ele já estava.
— Onde está Sanducci? — Sawyer perguntou.
— Tem tanta certeza assim de que o encontrei?
— Como caminhar nos sonhos demanda um grande risco, sempre funciona.
Aquilo era reconfortante. Teria odiado estourar meus miolos por nada.
— Novo México — comecei a dizer, depois parei. — Acho.
— O que a está deixando em dúvida?
Tive a certeza quando vi o sol banhando a paisagem, mas pensando agora...
— As montanhas estavam erradas. Na primeira vez que vi seus contornos, eu as
reconheci. Era as suas, mas de um ângulo diferente. Talvez pelo outro lado. Mas agora...
— Apertei as mãos, me encolhendo pelo sangue espirrado nelas. — Eu penso nelas e
vejo colinas verdes se estendendo, em vez de rosa, vermelho e laranja. As flores eram
diferentes, mais exuberantes... flutuantes. Havia névoa em todo lugar.
— É a fada. Ela faz isso.
— Faz o quê?
Nós três começamos a ir na direção do Impala, que estava a alguns metros de
distância, com a porta do passageiro ainda aberta, revelando que Luther tinha saído dali
com muita pressa.
— Ela faz minhas montanhas parecer com as colinas da Irlanda — disse Sawyer.
— Irlanda? Por quê?
— Várias fadas foram para lá depois da queda, e foi como começaram todas as
histórias de fadas. Deve parecer o paraíso para elas.
— Mas Summer é uma fada country...
Os olhos de Sawyer se arregalaram, e pensei que ele ia começar a rir. Luther
olhava de um para o outro, absorvendo tudo sem questionar. Ele aprendia rápido.
— Ela é diferente, é verdade — concordou Sawyer. — Mas esteve na Irlanda por
um tempo bastante longo.
— Ela não tem sotaque — observei.
— Glamour. Ela pode ser quem quiser.
Será que poderia ser o que qualquer um quisesse? Por exemplo, será que Summer
era uma vaqueira sexy, loira e peituda porque era o que Jimmy queria? E se era, teria

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
assumido aquela aparência por ordens de Ruthie?
Cerrei os dentes. Não podia me preocupar com isso naquele momento. Tinha de ir
até o Novo México e fazer o que era necessário, antes que a mulher de fumaça
descobrisse o que eu pretendia e me impedisse.
— De avião ou patas? — perguntei.
Definitivamente, precisávamos chegar ao Novo México mais rápido do que o
Impala poderia nos levar.
Os skinwalkers conseguiam se mover mais rápido que a visão, o que deu origem à
lenda de que eles podem desaparecer em um lugar e reaparecer em outro. Eu não tinha
certeza de quanto um Marbas podia correr, mas achava que era bastante.
— Avião — respondeu Sawyer.
— Mesmo?
Eu estava chocada não só com sua escolha, mas com o fato de que ele não ia
discutir comigo. Estivera formulando um plano de como agir, se ele resolvesse me
segurar por ali, que envolvia arrancar o talismã de Sawyer, depois deixá-lo para trás
enquanto Luther e eu embarcávamos em um avião para Albuquerque.
O problema com aquele plano era que Sawyer como lobo provavelmente podia
derrotar a nós dois. No mínimo, ele não se atrasaria muito, o que estragava toda a parte
de fugir dele. Mas ele estar tão favorável era outra coisa.
— O que está acontecendo com você? — perguntei.
— Comigo? — Ele colocou a mão suja de sangue em sua camiseta, outrora
branca, não estava tão calmo quanto fizera crer quando eu voltara. Ele estivera tentando
me matar, embora eu não precisasse de resgate. — O que eu fiz?
— Recusou-se a me ajudar.
— Recusei-me a matar você! Ele baixou a mão e fungou.
— Pode atirar em mim. Ou usou todas as balas na sua cabeça? Ele estava bravo.
Isso era novidade. Acho que eu o tinha assustado para valer, apesar de não saber como.
Luther estava meio afastado para o lado, nos observando com atenção. Minha
arma tinha sumido. Pelo modo como as calças dele estavam tortas para a direita, eu tinha
uma pista de onde ela tinha ido parar.
— Deveríamos esperar um pouco — murmurou Sawyer. — Podemos achar outra
maneira de acabar com ela.
— Você encontrou outra maneira, em todas as décadas... — Ele arqueou uma
sobrancelha. — Certo, séculos em que esteve tentando?
— Não.
— Então, duvido que outro método vá cair em nosso colo tão cedo.
— Milagres acontecem.
— Não para mim.
— Você voltou dos mortos duas vezes na última semana. Isso não é um milagre?
Franzi a testa. Algo naquela afirmação me deu calafrios, mas eu não sabia o quê.
— Não entendo você — falei. — Sou a única que pode fazer isso, e mesmo assim
você tenta me convencer a não fazer.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Eu sei do que ela é capaz. — Ele respirou fundo enquanto olhava as sombras
que compunham a Universidade Brownport.
— Você vai vender sua alma, e ela ainda vai vencer.
— Puxa, obrigada. — Ele deu de ombros. — Então você quer que eu desista? Que
me esconda em um buraco e deixe todo mundo morrer?
Sawyer olhou para mim.
— Eu queria, mas sei que você não fará isso. Então... — Ele abriu as mãos,
desistindo. — Vamos para o Novo México.
— De avião — esclareci.
— Podíamos ir como animais, todos nós. — Sawyer contemplou Luther. — Eu
poderia ajudá-lo a se transformar, mas não acho que ele controlaria sua fera o suficiente
para viajar essa distância ainda.
— Também acho que não — resmungou Luther.
— E um leão iria se destacar demais em Indiana, Illinois, Missouri... em todo lugar,
ora, como um... — Procurei por uma comparação apropriada e desisti.
— Como um leão em um palheiro? — sugeriu Sawyer.
— Isso — falei. — Você está com seus documentos?
Sawyer assentiu, Luther também. Quase perguntei como aquilo era possível, mas
decidi que não importava, desde que chegássemos aonde precisávamos ir, e rápido.
Quando o sol despontou no horizonte de Louisville, estávamos estacionando no
aeroporto e indo para o terminal. Eu tinha tomado banho e trocado de roupa no vestiário
da universidade, com Sawyer e Luther vigiando.
Como já passava de meia-noite, o aeroporto estava vazio. Mas eu precisava lavar
todos os vestígios do meu ingresso para o mundo dos sonhos antes de ir a qualquer
lugar. Viajar, fosse de carro ou de avião, parecendo que eu tinha perdido uma luta san-
grenta não era uma boa idéia. Claro, poderíamos sair de encrencas usando força bruta ou
magia, mas isso levava tempo, e tempo era o que menos tínhamos.
Não sei como eu sabia, mas sabia. Desde que acordei com a lua se pondo no céu,
e uma boa porção dos meus miolos para fora, em vez de dentro, sentia como se um
dragão estivesse bafejando em minha nuca. Em outras palavras, precisava avançar, e
rápido.
Dentro do Aeroporto Internacional de Louisville, parei em frente ao quiosque de
jornais e li algumas manchetes: "Terremoto Abala a Antártica"; "Tornado Atinge a índia";
"Nevasca se Espalha pelo Quênia".
E a televisão estava ainda pior. Rebeliões. Assassinatos. Incêndios. Eu diria que
era um dia como outro qualquer, mas os âncoras pareciam não dar conta de divulgar as
notícias. Um desastre levava a outro, que levava a mais um.
— Caos — sussurrei.
— Juízo Final — disse Sawyer.
A urgência que sentia antes se intensificou. Se não tivessem anunciado nosso voo
naquele momento, eu poderia ter perdido o controle ali mesmo.
O tempo retrocedeu enquanto íamos para o oeste. No momento em que
aterrissamos em Albuquerque e fomos para a locadora de carros, captei fragmentos de
conversas.
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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Alguma coisa explodiu em Israel. Nenhuma novidade.
— Em Londres, Paris, Roma e Madri também.
Praguejei e dei uma espiada nos aparelhos de tevê. Fumaça subia de vários
prédios conhecidos. Militares e policiais andavam por ali, como formigas.
— Até agora, nada aconteceu aqui — alguém falou. Até agora, pensei.
— O mundo ficou louco.
— Você esperava menos que isso? — perguntou Sawyer.
Não, de fato.
— Por que eles recuaram por um tempo?
— Não tenho certeza se recuaram. Você estava bloqueada pelo amuleto, e eu
tenho a impressão de que vários outros também estavam.
— Só porque não estávamos tendo visões do caos, não quer dizer que não
estivesse acontecendo.
— O mundo está perdido, Até as coisas realmente fugirem do controle. — Ele
indicou a tevê com o queixo. — Foi só mais um dia no noticiário.
Talvez ele estivesse certo. Ou talvez os humanos tivessem começado a se
alimentar do mal dos Nefilins. Ou os Nefilins tivessem enlouquecido de vez. E por que
não? A hora deles estava chegando; em breve, seus criadores estariam perambulando
pela Terra, e os desarmados seriam em quantidade maior do que aqueles que tinham
alma.
A menos que eu conseguisse me transformar em trevas, assim como em luz.
Empurraria a desgraçada terrível no poço com todos os seus amigos, selaria as fendas da
porta e jogaria fora a chave. Que tal isso como plano?
— Compacto, médio, completo ou de luxo? — a atendente da loja nos perguntou.
— Como chamam aqueles veículos que parecem um tanque sobre rodas? —
perguntou Sawyer.
— Hummers?
As sobrancelhas de Sawyer se levantaram. Não sei o que ele pensou, mas pude
ver claramente o que a atendente estava pensando enquanto olhava para suas tatuagens
e umedecia os lábios.
— Gostaria de uma Hummer, senhor? Acho que posso dar conta disso.
Ah, sim, claro que podia. Sinceramente: caos por toda parte, nós tentando salvar o
mundo, e eu ainda tinha de agüentar o assanhamento da atendente e os olhares de peixe
morto de Sawyer.
— Qualquer carro serve! — falei.
— Não. — Ele parou de devorar a atendente com os olhos e voltou a ficar sério. —
A casa de Summer não é num lugar fácil de se chegar. Precisamos da Hummer.
— Talvez você precise — resmunguei. Jimmy dirigia uma Hummer. A última vez
que a vira foi quando ele tinha me largado na casa de Sawyer e fugido para se tornar
mau. As coisas vinham decaindo desde então.
Entretanto, eu podia entender por que um carro assim seria útil no lugar para onde
nos dirigíamos, e assenti para a mulher, assinei os papéis e peguei a chave.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Quinze minutos depois, olhei para o tanque de guerra que havia alugado.
— Quem foi que achou que seria uma boa idéia colocar essas coisas na rua?
— Maior sempre é melhor. — Sawyer foi para o banco do passageiro, e Luther
para o traseiro. — É o jeito americano de ser.
Eu não quis pegar um tanque de guerra amarelo como um táxi, então o nosso era
de um tom bege cintilante, que deveria se camuflar no deserto, mas não o faria. Qualquer
coisa daquele tamanho ia se destacar, como um...
— Leão em um palheiro — murmurei. Aquela frase estava pegando.
Saí do estacionamento e fomos para o oeste.
A reserva Navajo se espalhava por Utah, Arizona e Novo México, com sua maior
parte no Arizona. Sawyer morava perto do Monte Taylor, uma das quatro montanhas
sagradas que marcavam as fronteiras de Dinetah. De acordo com meu passeio pela
cabeça de Jimmy, a casa de Summer devia ser perto do Monte Taylor também, mas do
lado mais distante.
Eu não sabia quando Summer tinha se mudado para a reserva, mas sabia por quê.
Ela fora enviada para espionar Sawyer.
— Você sabe onde Summer mora? — perguntei.
Os olhos de Sawyer estavam fechados, a cabeça recostada no apoio do banco.
Luther, estendido no banco traseiro, já dormia profundamente.
Naquele carro enorme, os dois pareciam tão pequenos... Eu me sentia como em
um daqueles filmes de ficção científica: A Incrível Líder da Luz que Encolheu. Tinha de
me esticar para poder segurar o volante, e virar o retrovisor bem para baixo. As únicas
pessoas que poderiam ficar à vontade naquela coisa monstruosa eram Shaquille O'Neall
ou Oscar, o Mão Santa.
— Você não sabe? — provocou Sawyer.
— Só a essência — respondi. — Mas e se ela espalhar seu glamour em tudo, de
novo?
Sawyer abriu um olho.
— É o que ela vai fazer.
— Então talvez você devesse abrir os dois olhos e me dizer para onde virar.
Em vez disso, ele os fechou.
— Fique nesta estrada. Acorde-me daqui a uma hora.
O silêncio se instalou entre nós, e o ritmo firme e igual da respiração de ambos me
aclamou. Pensei em ligar o rádio, mas tive medo que não tivesse nenhuma música, só
notícias, e já tinha ouvido o bastante.
O que eu precisava era passar algum tempo sossegada, me preparando para o
que viria. Estava tudo bem dizer que eu faria o que precisasse, mas quando as coisas
apertassem, eu seria capaz de ir até o fim? De fazer Jimmy me tornar igual a ele? Seria
capaz de lutar com a mulher de fumaça e vencer?
A resposta a todas essas perguntas era: eu tinha de conseguir.
Saímos de Albuquerque cozinhando no sol do verão em direção às planícies
áridas, em tons de salmão e cobre. Em algum momento, surgiram montanhas ao fundo,
pontilhadas com elevados pinheiros Ponderosa. À distância, cânions, cercados por altas

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
rochas pontiagudas, guerreavam com planícies de rocha vermelha, uma paisagem
imortalizada nos filmes clássicos de faroeste.
Uma hora depois, estendi a mão para o ombro de Sawyer para sacudi-lo, mas
antes que eu o tocasse, ele abriu os olhos e se afastou de mim.
Casas pequeninas pontilhavam o horizonte, e a montanha assomava por trás delas
como uma grande pirâmide. Milhões de anos antes, o Monte Taylor fora um vulcão ativo.
Às vezes, eu ainda esperava ouvi-lo trovejar.
Os Navajos se referiam a ele como a montanha sagrada do Sul ou a montanha
turquesa. As lendas dizem que ele foi lançado do céu como uma faca de pedra afiada,
salpicada de turquesa.
Toquei a pedra ainda pendurada em meu pescoço junto com o crucifixo de Ruthie.
— Você achou isto no Monte Taylor? — perguntei.
— Sim.
Pensei que isso podia ser muito bom. Existia algo mágico naquela montanha,
sempre existira.
— Não o tire — lembrou Sawyer.
A turquesa evitara que a mulher de fumaça tocasse em mim. Se pudesse capturar
a essência má de Jimmy, a força que me permitiria lutar com ela, e contra a qual ela não
poderia revidar, então eu venceria.
O que me deixava bastante nervosa. Eu não era muito velha, e poderia nunca
chegar a ser, do jeito como as coisas caminhavam, mas tinha aprendido, fazia um bom
tempo, que, quando algo parecia muito fácil, era melhor me preparar, porque a
probabilidade era de ser exatamente o contrário.
— Talvez você deva tirar o crucifixo — sugeriu Sawyer.
Não gostei. O crucifixo havia sido de Ruthie. Era tudo o que me restara dela,
tirando a voz na minha cabeça, sua presença em meus sonhos e seu poder em minha
alma. Ainda assim, se tudo funcionasse, e eu me transformasse em trevas ao virar uma
vampira, o crucifixo iria queimar um buraco em mim. Eu me curaria, mas se pudesse
evitar a dor, melhor.
Estacionei no acostamento, tirei-o da corrente e o entreguei para Sawyer, antes de
recolocar a turquesa no pescoço e voltar à estrada.
Poucos minutos depois, Sawyer avisou:
— Entre na próxima estrada.
Dirigi para fora da estrada asfaltada, passando para a trilha poeirenta. Os buracos
e solavancos acordaram Luther.
— Já chegamos? — perguntou, esfregando os olhos. Sorri para ele, pelo espelho
retrovisor.
— Logo. Acho que você deveria ficar no carro.
Ele baixou a mão, levantou a cabeça e seu cabelo ondulado se agitou.
— O diabo que vou! Eu posso ajudar. Sou um leão!
— Filhote — corrigiu Sawyer.
— Tente me impedir — o garoto resmungou.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Eu não preciso tentar, filhote.
— Ei! — interrompi. — Estamos do mesmo lado, ou não?
Tudo que eu precisava era que b leão e o... tigre, lobo, puma, águia, seja lá o que
fosse, começassem a brigar. Alguém ia sair machucado, e eu sabia quem seria.
Precisávamos de Luther, e de mais dois milhões como ele.
— Você vai ficar no carro — falei. Não queria que ele visse o que eu poderia me
tomar.
Ele se acalmou, resmungando baixinho, soando mais como um leão adulto do que
um filhote, mas achei que ele ia obedecer. Achei que ficaria.
— Ali — Sawyer indicou. Pisei no freio.
— Onde? — Eu não via nada.
— Aqui é a casa da fada.
— Onde? — perguntou Luther.
Pelo menos, ele também não via. Sawyer saiu do carro e andou pela grama seca.
Parou, pôs a mão no bolso, e depois, levantando as mãos para o sol escorchante, cantou.
Saí também e o segui, lançando para trás um último olhar de "fique aí", na direção
do garoto. Sawyer terminou o que estava cantando e baixou os braços.
— Ainda não vejo nada — falei.
Ele fez um gesto, e algo seco e poeirento girou em um vento repentino. As
partículas pareciam absorver e refletir todas as cores ao nosso redor — amarelo, bege,
marrom, ocre.
O pó fez uma pausa e flutuou, demorando-se como se estivesse pensando, talvez
ouvindo. Então o vento morreu, as partículas caíram e onde elas tinham estado, agora
surgia uma casa.
— O que você lançou? — questionei.
Sawyer apenas sorriu.
A construção parecia estranha, na frente da montanha reverenciada pelos Navajos.
Parecia ainda mais estranha quando comparada às outras espalhadas pelo local. Tendas,
as moradias tradicionais dos Navajos, abundavam.
As estruturas redondas, feitas de troncos e terra, não tinham janelas e
apresentavam só uma porta, voltada para leste, em direção ao sol nascente. Perto da
maioria das tendas, havia moradias mais modernas: trailers, casas de fazenda, alguns
chalés. Mas em nenhum lugar havia um chalé irlandês feito de pedra.
— Aquilo é de verdade? — murmurei. — Ou é como as colinas verdes e a névoa
irlandesa?
Nada disso estava visível naquele dia.
— Verdadeiro o suficiente — respondeu Sawyer, e, vendo minha exasperação,
elaborou: — A casa muda de acordo com o humor dela. Já vim aqui e encontrei uma casa
de fazenda, um rancho completo, com cavalos, uma casa de praia e um bangalô em uma
floresta cerrada, que nunca cresceria em um lugar como este.
— As pessoas daqui não estranham? — Caminhei pela calçada de pedra, e
Sawyer veio atrás.
— Não acho que as pessoas daqui cheguem a perceber que ela está aqui. Se

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
percebessem, seriam forçados a fazer alguma coisa.
— Porque pensariam que ela é uma bruxa — falei. Sawyer não respondeu. Não
precisava.
— O que fariam?
— A prática mais comum é amarrar a bruxa, sem comida ou água, até que
confesse.
— E se não confessar?
— Carvão em brasa nas solas dos pés no quarto dia.
— E depois?
Sawyer deslizou o dedo lentamente sobre o próprio pescoço.
— Se ela confessar?
Ele fez o mesmo gesto, na direção oposta.
— Não parece justo.
— Desde quando a vida, ou a morte, ou mesmo a justiça, já que estamos falando
nisso, foi justa?
Mas que visão otimista e alegre da vida! Infelizmente, Sawyer tinha razão.
— Acho que o método Navajo não é melhor nem pior do que a prova da Inquisição
para as bruxas — refleti. — Se você sobreviver ao afogamento, é uma bruxa e será
queimada, Se se afogar, opa... desculpe, sinto muito!
Sawyer parou e me fitou, impassível.
— Duvido muito que um membro da Inquisição dissesse "opa".
— E eu duvido que eles chegassem a pedir desculpas.
Por um instante, quase me esqueci de onde estávamos e do que eu estava prestes
a fazer, e sorri para ele. Pelo canto do olho, vi algo se mover,'brilhar e se transformar.
Girei rapidamente a cabeça naquela direção para descobrir que a charmosa casa
de pedra tinha se transformado numa prisão de pedra, completa, com um muro alto
encimado por arame farpado.
— Ela sabe que nós estamos aqui — presumi. Torreões enfeitavam os cantos dos
muros, povoados por... Espantei-me com as figuras enormes e desajeitadas. Algumas
tinham corpo humano e cabeça de animal. Outras eram parte leão, parte touro, parte
falcão, talvez, com asas imensas assomando de seus ombros.
— Aquilo são gárgulas? Sawyer assentiu.
— Achei que fossem só estátuas nos prédios.
— A maioria das gárgulas pode virar pedra para evitar ser detectadas, e depois se
transformar de novo em quimera quando quiserem.
— O que é uma quimera?
— Dois animais em um.
— Então, todas as gárgulas em todos os prédios no mundo todo podem ganhar
vida?
Sawyer abriu as mãos. Quem sabe?
— Eles são Nefilins? — Ele negou. — Híbridos?
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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Não. As gárgulas eram animais que ajudaram as fadas quando elas tinham
acabado de cair para a Terra. Estavam perdidas. Não sabiam como sobreviver aqui.
Subitamente, eram humanóides. Precisavam comer, dormir, se proteger dos elementos, e
não sabiam como.
— Os Grigori tinham seus amantes humanos para ajudá-los — concluí.
— Os Grigori foram lançados no Tártaro tão rápido que não tiveram tempo de
entrar em pânico.
— Vou aceitar sua palavra nisso — falei. — Então, certos animais ajudaram as
fadas, e em troca...
— Receberam humanidade.
— Aquilo é humano? — murmurei. As recompensas celestiais por aqui eram um
pouco... enfim.
— Eles têm a inteligência dos humanos, com os atributos de suas feras,
combinados com os dons de voar e mudar de forma. São mais que humanos — explicou
Sawyer. — Assim que as fadas se estabeleceram, que conseguiram lidar com tudo, as
gárgulas foram encarregadas de proteger os fracos e desavisados dos ataques
demoníacos. Quanto mais humanos salvavam, mais humanos se tornavam.
Olhei para os torreões. Isso explicava as misturas entre humanos e animais.
— O que elas fazem aqui? — perguntei.
Sawyer contemplou as torres, e as gárgulas, tão imóveis quanto pedras, nos
contemplaram. A única coisa que as fazia parecer reais era a cor de sua pele, os cabelos,
pelos ou asas, e o leve subir e descer de seus peitos. Seus inexpressivos olhos negros
me lembravam das estátuas que se tornavam, e me fizeram pensar se seriam capazes de
alguma misericórdia.
— Summer deve tê-las alistado para proteção — falou Sawyer. — As gárgulas e as
fadas são muito próximas.
Paramos no meio da calçada de seixos, que era agora de cimento. Quando
começamos a seguir em frente, o ar se encheu do bater lento e metódico de asas
gigantescas. Meu olhar se ergueu. As gárgulas tinham alcançado o ar.
Praguejei, mas Sawyer continuou andando,
— Ei! — Apressei-me para alcançá-lo. — Elas vão proteger este lugar de um
ataque de demônios.
Ele levantou à mão, fazendo seu gesto de guarda de trânsito, e o muro da prisão
implodiu.
— Não sou um demônio — afirmou Sawyer, e entrou.
Sawyer fizera um buraco imenso no muro de pedra cinzenta. Summer ia ficar
furiosa.
Olhei para as gárgulas. Elas continuavam sobrevoando, como se esperassem uma
ordem. Atacar ou recuar?
Talvez elas não pudessem atacar, se não fôssemos demônios. Talvez não
conseguissem decidir o que éramos. Diabos, eu mesma tinha lá minhas dúvidas.
Passei pelo buraco, meus sapatos estalando sobre os pedaços de concreto.
Partículas de poeira brilhavam ao sol na porta improvisada. Franzi a testa para o sol. O
ângulo estava errado.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Rapidamente, olhei para trás. A calçada de pedra parecia se estender por
quilômetros. A Hummer, estacionada, tinha o tamanho de um pequinês. O sol tinha
descido muito mais do que deveria, pelo tempo que achei que tínhamos percorrido.
— Há quanto tempo estamos andando? — perguntei, Sawyer, que observava uma
escadaria de pedra que levava a um segundo andar sombrio, se virou, encolhendo os
ombros.
— E isso importa?
Eu me sentia à deriva, confusa e deslocada, que era provavelmente o objetivo de
Summer.
— Ela bagunça o tempo e o espaço?
— O que você acha? — Ele gesticulou para a escada que não deveria existir em
Uma pequena casa irlandesa.
— Por quê?
— Porque ela pode, mas deveria poupar sua magia para alguém que ligasse para
isso. Não vai nos fazer fugir aos gritos.
— Vocês nunca o encontrarão. — Enquanto a voz dela ecoava pelas sombras do
segundo andar, a prisão pareceu se mover, ficando maior, mais alta. — Eu não vou
deixar.
Agora havia pelo menos mais quatro andares, e meia dúzia de salões nos
afastavam da entrada. Porta após porta, centenas, talvez milhares, apareceram.
— Eu não vou embora — falei baixinho, sabendo que ela me ouviria. — Você não
pode me forçar.
Summer apareceu no quarto andar.
— Pois olhe só — disse, e pulou.
Tomei um susto, depois lembrei que ela podia voar. Ela flutuou com suavidade,
vindo pousar na minha frente. Usando seu jeans justo costumeiro, botas e uma frente-
única, tinha deixado o chapéu de caubói lá em cima. Seus cabelos dourados brilhavam,
angelicais, embora seus olhos chispassem com fúria quase demoníaca.
— Summer, ouça... — comecei.
Ela soprou uma porção de poeira de fada, e eu engasguei.
— Vá embora — ela ordenou. — Nunca mais volte aqui. Eu me virei e fui em
direção à porta.
— Phoenix — murmurou Sawyer, mas eu não liguei.
Tinha de partir. Naquele instante. Nunca mais iria voltar. Nem deveria ter ido ali.
— Onde está Sanducci? — exigiu Sawyer.
— Quem é Sanducci? — resmunguei.
Summer riu enquanto eu saía pelo buraco e era atingida pela luz do sol poente. As
gárgulas circulavam, bizarramente desenhadas contra o céu. A Hummer não mais parecia
do tamanho de um pequinês. Não estava nem um pouco distante. Eu estaria lá em
segundos. Luther e eu iríamos para casa. Eu realmente queria ir, do fundo do coração.
Entretanto, eu mal tinha dado alguns passos quando a ouvi gritar, e a compulsão
de partir me deixou tão rápido quanto a chuva sobre o solo ressecado.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Entrei. Summer e Sawyer se encaravam. Pelo grito dela, imaginei que ele tivesse
lhe feito algo violento, mas ela não tinha nenhum arranhão, só um trevo preso nos
cabelos.
— Por que sua magia subitamente começou a funcionar em mim? — perguntei.
— Você não está em uma missão misericordiosa — respondeu ela, me lançando
um olhar maldoso.
Arregalei os olhos.
— Salvar o mundo não é misericórdia?
— Você vai danificá-lo. Permanentemente.
— Como você sabe o que estou planejando? — Eu não havia falado com ela
desde antes de encontrarmos Xander Whitelaw.
Ela indicou a própria cabeça, querendo dizer que fora por meio de uma visão.
— Summer, eu não tenho escolha.
— Vá transar com um demônio. Deixe Jimmy em paz.
— É perigoso demais — disse Sawyer. — Embora eu odeie admitir, Sanducci é o
melhor caminho.
— Ele está sofrendo por ser o que é. Forçá-lo a torná-la a mesma coisa... — Seus
olhos encontraram os meus. — Vai destruí-lo.
Ela provavelmente tinha razão.
— Pare de puni-lo por algo que não foi culpa dele.
— Isso não é sobre punir... — comecei, depois parei. — O que não é culpa dele?
— Ele e eu. — Ela baixou a cabeça. — Aquilo foi Ruthie quem fez.
— Eu sei. — O queixo de Summer se ergueu, e eu indiquei minha cabeça. — Eu vi.
— Então, como você pode...
— Por que eu preciso! — gritei. — Jimmy vai entender.
— É o que você pensa — disse Summer, ao mesmo tempo que Sawyer
resmungava:
— Duvido muito.
Abri minha boca e tornei a fechá-la. A despeito da compreensão dele, ou não, eu
ainda iria fazer isso.
— Onde ele está?
Ela mostrou a língua para mim.
— Ah, muito maduro...
Mostrou o dedo. Ainda melhor. Olhei para Sawyer.
— Pode fazer alguma coisa?
— Já gastei todas as opções de magia, — ele respondeu. — A erva-de-são-joão
nos mostrou o lugar. E eu usei tudo o que sabia para nos trazer até aqui.
Então não tinha como fazer a prisão voltar ao que era originalmente.
— Para que serve aquilo?

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Um trevo de quatro folhas bloqueia a influência dela.
— Ela não pode encantar ninguém com seu pó mágico?
— Exatamente.
— Ela não pode simplesmente arrancá-lo? Sawyer me lançou um olhar de
desprezo.
— Por favor, uma demonstração.
Summer fez uma tentativa e sibilou de dor, como se a coisa estivesse presa em
seu crânio, e não em seu cabelo.
— Quem tem de removê-lo sou eu — informou Sawyer, levantando uma
sobrancelha para Summer. — Portanto, é melhor ser boazinha.
Ela mostrou o dedo para ele também. Realmente, tinha convivido tempo demais
comigo.
— Se você está bloqueando a influência dela, por que este lugar está assim? —
Levantei o olhar. A prisão continuava a crescer, sala após sala, escadaria somando-se a
escadaria.
— São duas coisas diferentes... magia inata e feitiços. Para a primeira, existe o
trevo. Para a outra... — Ele mostrou a mão vazia.
— Erva-de-são-joão, que não temos no momento. — Sawyer assentiu. — Por que
você estava carregando essas coisas, afinal?
— Existem muitas fadas, Phoenix, e eu raramente sou misericordioso.
Olhei para Summer, que estava muito ocupada tentando se livrar do trevo para
comentar. Ela iria arrancar todos os cabelos se não parasse.
— Onde você consegue os remédios antifadas?
— No Wal-Mart.
— Tudo bem, entendo que eles tenham a erva-de-são-joão, muita gente usa isso
na cozinha. Mas trevo de quatro folhas? Duvido.
— A benandanti tinha — disse ele, simplesmente.
Aquilo fez Summer parar.
— A benandanti morreu.
— Como foi? — A voz de Sawyer não demonstrava nenhuma emoção além de
uma ligeira curiosidade.
— Ela foi para o submundo lutar com os Grigori. E perdeu.
— Então eles estão à solta? — perguntei.
— Ainda não. Suponho que haja mais alguns passos no processo.
Olhei para Sawyer.
— Não sei quais são — ele falou.
Não era por isso que eu estava olhando para ele. Achei que talvez ele estivesse
aborrecido, ao menos um pouquinho, por uma mulher com quem ele dormira
recentemente estar morta. Do jeito que ele estava se comportando, ninguém diria que
eles tinham se conhecido.
Pensei em Carla como a vi da última vez, jovem e forte de novo, graças a Sawyer.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Mesmo assim ela perdera a luta, e nós estávamos um passo mais perto do Apocalipse, do
Armagedom.
— Preciso ver Jimmy — deixei escapar.
— Boa sorte. — Summer indicou os corredores cinza, ainda a se multiplicarem, e a
escadaria sem fim.
Peguei-a pelos dois braços, planejando sacudi-la até que a verdade saísse, mas
assim que a toquei, vi o caminho que levava ao quarto-cela de Jimmy.
Toque algo que ele tocou. Funcionava quase toda vez.
Corri para o salão mais próximo. Summer veio atrás, me seguindo bem de perto. O
que era de se admirar, considerando minha velocidade. Mas ela também podia voar, e o
fez, pairando sobre mim, falando como uma matraca para tentar me convencer a não
fazer aquilo.
— Ele está melhor — ela falou. — Não fará o que você está querendo.
Não apontei o fato de que se isso fosse verdade, ele não estaria trancado, e ela
não estaria se esforçando tanto para me impedir de encontrá-lo.
Alcancei a porta dourada, bastante óbvia, e os pés de Summer tocaram o chão,
enquanto Sawyer chegava. Tentei a maçaneta. Trancada. Olhei para Summer, que
levantou uma sobrancelha e cruzou os braços sobre o peito. Não iria abri-la, e eu não
tinha como forçá-la.
Analisei o que parecia ser uma estrutura de ouro maciço, tão sólida quanto um
cofre de banco, com uma fechadura de segredo, em vez de chave. Coloquei minha mão
sobre a cabeça de Summer, procurando pelo segredo, mas dessa vez ela estava
preparada, e tudo o que vi foi uma cena de Jimmy e ela rolando nos lençóis.
Puxei rapidamente a mão, enquanto ela sorria afetadamente. Eu tinha certeza de
que aquilo fora recente.
— Aqueles que espiam mentes sem nenhum convite merecem o que encontram —
falou. — Você me disse para fazer qualquer coisa.
Eu não tinha falado para ela fazer sexo com ele, mas... Dei de ombros. Qualquer
coisa que funcionasse. Quem era eu para jogar pedras na vidraça alheia? Voltei minha
atenção para a porta, bati e chamei:
— Jimmy?
Minha resposta foi um rosnado sem nenhum resquício humano, depois algo bateu
no outro lado, tão forte que o prédio todo tremeu.
Olhei para Summer.
— Chama isso de melhor?
— Eu lancei um feitiço — ela admitiu. — Que subverte o vampiro.
Inclinei a cabeça, lembrando-me do termo que ouvira no sonho.
— Subverte como?
— Canaliza o demônio. — Summer levantou as mãos, apertando-as como se
estivesse fazendo uma bola de neve. — Ele luta e luta...
— O que quer dizer que o demônio fica cada vez mais forte, porque ele não o
libera — falou Sawyer. — É como barrar um riacho. A água tem de ir para algum lugar.
— Então ele alaga as margens — murmurei. — Ou ultrapassa a barragem.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Quando ele está programado, para explodir? — perguntou Sawyer.
Como resposta, Jimmy rosnou de novo, e dessa vez, quando atingiu a porta, a
marca de um punho ficou impressa do lado de fora.
— Eu diria que bem agora — murmurei. Sawyer franziu a testa.
— Talvez você devesse esperar antes de entrar.
— Não.
— Amanhã seria melhor, mesmo — concordou Summer.
Se ela queria que eu esperasse, eu sabia que tinha de entrar.
— O que acontece amanhã? Sawyer encarou Summer, pensativo.
— Plenus luna malum — murmurou, e os olhos de Summer se estreitaram,
enquanto as mãos se cerravam em punhos. Ela realmente queria acertá-lo, e não podia.
— Algo em latim sobre a lua — arrisquei.
— A tradução é "mal da lua cheia" — explicou Sawyer. — Ela canalizou as
tendências vampíricas dele para a noite de lua cheia. Em todas as outras, ele fica normal.
Ou tão normal quanto Sanducci pode ser. Mas quando a lua está cheia, ele fica...
Jimmy socou a porta outra vez.
— Droga... — resmunguei. — Suponho que esta seja a noite de lua cheia.
— Você acha?
Eu odiava quando Sawyer revidava meu sarcasmo, mas como Ruthie sempre dizia,
você colhe o que planta, e eu definitivamente tinha plantado aquilo.
Havia vezes em que nada dava certo, um incidente após o outro me fazendo achar
que era amaldiçoada. E havia momentos, como aquele, em que a boa sorte me fazia
achar que tudo ocorria mesmo por um motivo, e que no fim as forças do bem venceriam.
Podia ser coincidência que Jimmy fosse um vampiro só na lua cheia, e que nós por
acaso tivéssemos chegado ali exatamente naquela noite?
Talvez. Mas eu achava que não.
Contemplei a porta mais um pouco, mordendo o lábio, tentando descobrir um jeito
de entrar.
— Ele vai fazer você em pedaços — advertiu Summer.
Eu não acreditava que isso fosse me matar, embora não estivesse ansiosa para
descobrir.
— Sou rápida e forte.
— Mas não como ele, quando está... — Ela afastou os lábios, apontando para seus
incisivos e sibilando.
— Vou ficar bem.
— Ele vai sugar todo o seu sangue.
Dei de ombros. Ele já fizera isso antes, e eu não tinha morrido.
— Quando ele descobrir o que eu quero — falei —, vai aceitar. O pensamento de
me transformar, a líder da luz, em uma força das trevas... Quando ele está assim, não
será capaz de resistir.
— E quando voltar a si, vai sofrer — sussurrou Summer.
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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Se eu arruinei o Juízo Final, ele vai ficar feliz.
— Mesmo que vença, ainda será uma vampira. Isso não vai sumir.
Parei, imaginando o que me tornaria. Conseguiria ir até o fim?
Lembrei da mulher de fumaça, o que ela fizera a Sawyer, seu pai e tantos outros.
Pensei em tudo o que vira no curto mês em que estivera ciente de viver em um mundo
paralelo ao nosso, um mundo mau, cheio de coisas malignas, e soube a verdade.
— Não importa o que aconteça comigo. — Olhei nos olhos de Sawyer, e ele
assentiu. Ele faria o que fosse preciso quando tudo aquilo terminasse.
— Alguma idéia? — Indiquei a porta com um gesto. Summer deu um passo à
frente. Sawyer levantou a mão e a jogou de costas. Seus olhos cinza a encaravam como
o brilho da lua.
— Se você der mais um passo, vou prendê-la com sorveira.
— Sorveira mata uma fada — falei.
— Sim, de um jeito ou de outro, — Sawyer não pareceu preocupado.
— Não acho que isso seja necessário.
No passado, eu desejara ver Summer morta em várias ocasiões, mas agora... nem
tanto.
— Não me faça nenhum favor, Phoenix — disse Summer. — Vendi minha alma
para protegê-lo...
— Você fez o quê? — perguntei, suavemente.
— Modo de dizer — ela resmungou. — Se eu tivesse ido para o lado das sombras,
não acha que já estaria sabendo?
Difícil dizer. Ruthie estivera suspeitamente silenciosa. Será que eu a estava
bloqueando, inconscientemente, agora que descobrira sua traição? Achava que não. Nem
mesmo sabia se seria capaz disso.
— Não a mate — ordenei a Sawyer.
— Se fizer isso, vai acabar com ele — murmurou Summer.
— Acha que vou ligar de estar morta, se isso acontecer?
A culpa surgiu, mas eu a afastei. Era uma fraqueza que eu não podia me permitir.
— Como eu entro?
Sawyer ainda mantinha um braço erguido para afastar Summer. Ele estendeu a
outra mão para mim, com o indicador apontando para um espaço estreito entre o piso e a
parte de baixo da porta. A princípio, eu não entendi, mas então meu olhar pousou sobre a
tarântula em seu antebraço.
— Tome cuidado — pediu.
Summer gritou e tentou se levantar. Ele a esmagou de volta com um giro do
polegar.
— Não importa o que ouça, ou o que eu diga, não abra a porta.
— Phoenix — falou ele, exasperado —, se eu pudesse abrir a porta, não haveria
motivo para fazer o que estamos fazendo. — Ele ergueu o braço, encorajadoramente. —
E nós dois sabemos que você cortaria a própria língua antes de admitir que não deveria
ter entrado aí.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Não me siga — falei.
— Nem pensei nisso
— Estou falando a sério.
— Eu também.
Aproximei o rosto do dele e dei-lhe um beijo rápido na boca. Podia ser que eu
nunca mais fosse a mesma, mas naquele momento era, e precisava que ele soubesse de
algo.
— Obrigada.
Tirei as roupas, cobri a tarântula com a mão e abri minha mente para a essência da
criatura. Uma luz clara e fria me consumiu, seguida por um calor repentino. Caí tão rápido
que minha mente girou; a estreita faixa de luz vinha do outro lado da porta, e eu me
apressei naquela direção.
Surgiu o perigo. A sombra de um pé, vindo para cima de mim. Outra pancada,
como um corpo atingindo a parede, e tudo ficou parado; o turbilhão sumiu, e eu escapuli,
a salvo, por baixo da porta da prisão.
Assim que estava do outro lado, me imaginei humana, e o calor se tornou um
calafrio. Minha visão do mundo, já que possuía oito olhos, era imensa; quando mudei, ela
se estreitou. Minhas presas se retraíram, e meus membros extras sumiram.
Eu tinha sete centímetros de altura, passei para noventa, depois um metro e
setenta e cinco. Não precisei olhar para o quarto para reconhecê-lo. Já estivera ali. Agora
entendia por que o lugar era tão feio e vazio. Prisões são assim.
Jimmy estava na janela, tão nu quanto eu, olhando para a noite que surgia. No
chão, junto à cama, estava uma camiseta de seu vasto sortimento. Esta tinha a estampa
"Tom Petty — Turnê Mundial".
Era um sinal de status entre aqueles cujas imagens agraciavam tablóides e capas
de CDs ter o grande Sanducci usando uma camiseta com seu nome ou marca. Se
Sanducci vestia sua camiseta, tinha tirado sua foto, e você tinha chegado ao sucesso. Eu
duvidava que Jimmy ligasse para isso, mas tinha certeza de que o seu pessoal ligava.
Ouvi dizer que dúzias de camisetas chegavam por correio, todo mês. Ele doava
aquelas enviadas por gente que nunca fotografara para um abrigo de sem-teto e colocava
as verdadeiras em sua mala. Gostava de usá-las com jeans e jaqueta, dos quais não
havia sinal no chão da cela.
Peguei a camiseta e a vesti. O tecido tinha o cheiro dele, e resisti ao desejo de
esfregar meu rosto ali.
Algum movimento ou som de minha parte fez Jimmy olhar para a porta. Ele
suspirou e baixou a cabeça.
— Você está aqui de verdade?
Ele parecia pior do que no sonho — mais pálido, se isso era possível, exausto,
emaciado, triste e derrotado.
Cruzei o quarto e pus a mão em seu ombro. Ele se encolheu.
— Ei — falei. — Sou eu.
Ele não perguntou como eu tinha entrado. Sabia do que eu era capaz.
— Mude de novo, e saia. Talvez não soubesse, afinal.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Não posso mudar sozinha.
Jimmy praguejou e, com um movimento rápido demais, agarrou meus braços e me
sacudiu.
— Sai daqui! — rugiu.
— Ah, isso vai ajudar muito. — Mantive minha voz calma. Seria inútil os dois
perderem a cabeça.
— Você não entende. — Os dedos dele ainda estavam enterrados na minha carne,
causando hematomas que iriam desaparecer tão depressa quanto surgiram. — Não pode
ficar aqui. A lua está chegando. Eu posso... — ele engoliu em seco, fechou os olhos e
estremeceu — ...sentir o cheiro.
— Você pode sentir o cheiro — repeti.
— Ouvir, sentir. Como a maré, ela arrasta.
Pus a mão em sua testa. Ele se afastou, em um pulo.
— Não estou doente.
— Como a maré, ela arrasta? Você está recitando poesia, e isso não é do seu
feitio. — No passado, a idéia que Jimmy fazia de poesia era declamar letras de Britney
Spears.
Ele puxou o cabelo.
— Está sussurrando...
— A lua?
— Sssiiim...
O jeito como ele sibilou a palavra enviou arrepios para meu corpo todo.
— Ela me diz para...
Ele fez uma pausa e seu olhar sombrio deslizou pelo meu pescoço, meus seios, a
junção das minhas coxas, mal cobertas pela sua camiseta reserva "Faça Coisas
Incríveis". Ele passou á língua pelos lábios, e eu tive uma rápida visão das presas.
Quando a lua terminasse de sussurrar, quando ele virasse a fera em que seu pai o
transformara, ele iria querer me machucar da pior maneira possível. Porque quando ele
era um vampiro, era tão Nefilim quanto o resto deles.
Não podia dizer a ele por que eu estava ali, que queria que ele bebesse de mim, e
que eu tinha que tomar dele. Porque mesmo se tornando outra coisa quando vampiro, ele
ainda se lembrava de tudo, e se soubesse por que eu queria me tornar como ele, faria de
tudo para que isso não acontecesse.
Era necessário tato, que nunca foi meu ponto forte.
— Vai dar tudo certo — murmurei, e afastei seu cabelo molhado de suor do rosto.
Ele me lançou um olhar rápido, desconfiado... eu nunca fui de mimos, talvez por
não ter sido mimada... e coloquei sua mão em minha testa.
— Você, doente? — perguntou ele, e eu tive que sorrir ante sua tentativa de
humor. Ainda era o meu Jimmy, pelo menos até a lua aparecer.
Entrelacei nossos dedos, e quando ele puxou, eu não o soltei. Tinha uma idéia.
Já que ele ainda era Jimmy, por enquanto, o melhor jeito de convencê-lo a fazer o
que eu queria era dar a ele o que sempre quis.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Eu.
Sabia, pelo modo como olhava para minhas pernas, meus seios e meu pescoço,
que ele ainda me queria. Sempre queria. A despeito de por quanto tempo estávamos
separados, quanto brigávamos, o que ele fizera, ou eu, aquilo era uma coisa que nunca
tinha mudado.
Ele lutaria contra me fazer o mesmo que ele; podia até vencer. Que tivesse
conseguido manter o seu lado sombrio distante por tanto tempo, que não tivesse matado
ninguém desde que se transformara, revelava o quanto ele era forte.
Para fazer isso, eu teria de escorregar por suas defesas e seduzi-lo, mente, corpo
e o que restara de sua alma.
Deslizei mais para perto, roçando meus seios soltos contra seu peito nu, só um
pouco, como se por acaso, e Jimmy apertou os lábios e fechou os olhos; seu rosto ficou
tão tenso quanto o corpo.
Para um vampiro, sexo e violência, sangue e luxúria, estava tudo misturado. Se eu
o fizesse perder o controle de alguma forma, ele estaria impotente para controlar as
outras. Nos espasmos da paixão, no meio do orgasmo, me morderia. Já tinha feito isso
antes.
De novo, surgiu a culpa, e de novo a afastei.
— Tenho andado tão preocupada... — Minha mão livre desceu pelo seu antebraço;
me inclinei e deixei meu hálito soprar sobre seu pescoço. Vi a pele de seu ombro se
arrepiar, e o lambi, depois mordisquei.
— Lizzy, pare.
Ele agarrou meus ombros e me afastou, mas não conseguiu evitar que seus olhos
descessem, parando onde meus mamilos deviam estar empurrando o tecido fino e gasto
da camiseta. Implorando para serem tocados, chamando para que ele os tocasse.
— Por favor — ele murmurou. — Não me faça fazer isso.
Então, como se estivesse hipnotizado, suas mãos deslizaram pelos meus braços,
escorregaram para dentro e se encaixaram em meus seios, apertando, acariciando, os
polegares circulando a carne túrgida.
Minha cabeça se inclinou para trás quando ofereci meu pescoço, meu sangue,
tudo. Ele enterrou o rosto nos montes macios, seus lábios se fechando sobre mim,
sugando a pele e o tecido. O calor, a pressão, eram ao mesmo tempo prazer e dor.
Minhas mãos se enroscaram em seu cabelo, trazendo-o mais para perto, instando-o a
prosseguir.
Eu precisava sentir sua pele contra a minha, então peguei a barra da camiseta,
puxando-a para cima. O tecido ficou preso no rosto dele, que me soltou, para acabar de
tirar a peça.
Mas aquele breve instante foi o meu erro. Assim que sua boca me soltou, ele
voltou a si e se afastou.
— Não — grunhiu.— Não podemos.
— Desde quando? — Eu o segui. — Isso sempre foi a única coisa que sempre
pudemos fazer. E muito bem.
— Vou perder o controle...
Eu peguei sua mão e a trouxe para minha boca, dando um beijo na parte de

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
dentro, passando a língua no centro dela, depois prendendo o pulso com meus dentes
enquanto pressionava o ventre nu contra sua ereção.
— Eu gosto quando você perde o controle.
Ele puxou a mão é se afastou para o outro lado do quarto, olhando para a porta
como se tentasse imaginar um jeito de fugir.
— O que está fazendo, Lizzy?
Jimmy era esperto demais, e tinha muita força de vontade. Mas eu não podia
desistir.
— Vou fazer você se sentir melhor.
— Vou fazer você se sentir morta — ele resmungou.
— Não pode me machucar, Jimmy. Vamos lá... — Baixei minha voz. — Você sabe
que quer.
— Não fiz nada além de machucar você — ele disse, os olhos grandes e a voz
cheia de desespero. — Eu... eu dormi com Summer de propósito. Sabia que você veria.
— E eu sei que mandaram você fazer isso. Ele ficou rígido.
— Quem disse?
Claro que não se lembraria de meu passeio em seus sonhos.
Era como funcionava. A vítima podia pensar que tinha sonhado com você, mas não
se lembrava quando, nem o quê, nem por quê. Entretanto, Jimmy também caminhava nos
sonhos, e sabia o que estes traços de lembrança significavam. O entendimento se
estampou em seu semblante, e ele praguejou.
— Viu na minha cabeça. Também viu onde eu estava. Dei de ombros. O que eu
podia dizer?
— Você foi à beira da morte só para me encontrar?
— Você precisava de mim — menti. O que era mais uma mentira em uma longa
fila?
— Ah, querida, não... — ele murmurou, e eu quase desabei e fugi.
Mas não tinha para onde, nem como, então fiquei e menti mais um pouco.
— Vou ficar com você a noite toda. Sou a única que pode fazer isso. — Isso era
verdade. — Se lutar contra a sede de sangue sob a lua cheia e vencer, talvez ela se vá
para sempre.
Ele inclinou a cabeça.
— Isso é possível? Duvidoso, pensei.
— Tudo é possível — falei.
Eu era um Judas. Jimmy suspirou.
— Você me perdoou por ter ficado com Summer?
— Não há nada para perdoar. — Considerando-se o que eu estava prestes a fazer,
a traição com Summer era brincadeira de criança. Literalmente. — Você fez aquilo por
mim, Jimmy. Só faz de você um herói aos meus olhos.
— Droga — ele murmurou. — E Manhattan? Quando fiz de você minha escrava?
Quando a mantive prisioneira e bebi de você até quase matá-la? Fui um herói, também?

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Foi uma vítima, tanto quanto eu. O strega era o culpado, não você.
Embora fosse Jimmy me machucando noite após noite, ou algo que se parecia
muito com ele. Eu ainda acordava às vezes e o via em cima de mim, os olhos vermelhos,
as presas aparecendo enquanto ele violava meu corpo, mente e alma.
— Se você ficar aqui, vou fazer o mesmo que fiz naquela época. Provavelmente,
até pior.
Eu estava contando com isso.
— Não sou um herói, e você sabe disso — ele continuou.
Eu não sabia de nada. Ambos fomos usados por forças muito maiores que nós.
Fomos jogados de um lado para o outro como peças de xadrez nesta luta para salvar o
mundo, e com isso fomos machucados. Diabos, fomos mortos... não que essa fosse uma
condição permanente para nenhum de nós.
— Eu matei por você — ele murmurou.
Eu lhe dei uma rápida olhada. Nunca tivera certeza do que havia acontecido
naquela noite.
— Se quer me chamar de herói — prosseguiu ele, — precisa saber tudo o que fiz.
— Não importa — falei.
— Importou para o sr. Nix.
O nome fez minha mente voltar dez anos. Eu tinha ficado depois das aulas para
entrar para o clube de ginástica. Estava tão empolgada em fazer parte de algo, qualquer
coisa. Estava zumbindo quando tranquei meu armário e me virei para ir para casa.
Meu coração saltou, quase me sufocando, quando uma sombra apareceu e
bloqueou minha passagem. Embora a vizinhança fosse tranqüila, e as escolas decentes,
ainda estávamos próximos de uma cidade grande, com um alto índice de criminalidade, e
vamos encarar... Coisas ruins aconteceram. Eu só esperava que finalmente tivessem
parado de acontecer comigo.
Meu olhar desviou-se para a esquerda, direita, procurando uma . rota de fuga;
então a luz atingiu o rosto do homem, e eu quase desmaiei de alívio.
— Sr. Nix. O senhor me assustou.
— Elizabeth — ele murmurou, seu sotaque alemão fazendo meu nome soar
diferente. — Por que está aqui tão tarde? — Ele sorriu. — E tão sozinha?
A pele de minha nuca se arrepiou, enquanto meu instinto de autopreservação
perguntava: o que um professor de matemática está fazendo no vestiário feminino?
Eu não queria me virar, nem desviar os olhos dele. Quando ele me agarrasse... e
iria me agarrar, eu não precisava ser paranormal para saber disso... eu tinha de estar de
frente para ele. O pensamento de ter aquelas mãos grossas e duras me pegando por trás
me deixou enjoada.
Eu não deveria ficar tão assustada. Já tinha sido assediada antes, várias vezes. Já
tinha sido apalpada por novos "irmãos", "pais", e até mesmo uma "irmãzona", uma vez.
Tudo o que sempre precisei era recitar um segredinho que eu pescasse em suas mentes,
e não só eles me soltavam rapidinho, mas também se asseguravam de que eu não
morasse mais com eles.
Mas o Sr. Nix era um professor, e ainda que tivesse me deixado nervosa algumas
vezes, olhando para mim com muita freqüência e demoradamente, eu tinha imaginado

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
que ele só estivesse curioso com meu histórico. Muitas pessoas ficavam. Nunca tinha
imaginado nada assim.
Para um homem grande, pelo menos um metro e noventa e cento e vinte quilos,
ele se moveu rápido, e quando me agarrou, não tive tempo nem de pensar, menos ainda
de correr.
Quando sua pele tocou a minha, ouvi música. Alta, estranha, estrangeira. Não era
uma polca... eu tinha vivido em Milwaukee, já tinha ouvido isso... pelo menos, nenhuma
que eu conhecesse, mas parecia. Os mesmos instrumentos, mas num ritmo diferente.
Em seguida ao som, vieram as imagens: tanques, lagos, riachos e rios. Garotas e
mais garotas, flutuando mortas naquelas águas, e visões do que ele tinha feito com elas
antes de jogá-las fora.
Ele rasgou minha camiseta ao meio com uma mão enorme, carnuda. Eu era uma
adolescente de treze anos bem desenvolvida, e meus seios quase estouravam do sutiã
que, um mês antes, servia perfeitamente.
— Posso brincar um pouquinho — murmurou ele, seus olhos azuis leitosos se
arrastando sobre minha pele. — Brincar, brincar, brincar.
Ele passou dois indicadores pálidos sobre os seios, até os mamilos, que beliscou
com força. Dei uma joelhada tão forte que seu membro subiu para a garganta.
Em vez de cair, seu nariz se inflou como o de um búfalo, e seus braços se
estenderam em minha direção pára um abraço de urso. Eu me abaixei, e ele deu de cara
com um armário.
Pensando em como ele tinha sido rápido para me agarrar, eu não achei que
conseguiria fugir. Mas não era do meu temperamento simplesmente ficar ali, esperando.
Assim que ele me soltou, corri.
— Quem você pensa que é? — ele gritou, a voz gutural, o sotaque ainda mais
pronunciado por causa da dor. — Não viu nada. Ninguém nunca... Vou matar você
primeiro, e transar depois. É melhor assim.
Saí correndo do vestiário e tropecei em Jimmy.
Gritei, e ele colocou a mão sobre minha boca. Pela sua expressão, tinha ouvido
pelo menos a última parte. Estava furioso, e por um instante achei que ele iria entrar com
tudo no vestiário e...
Sei lá o que ele faria. Aos treze anos, Jimmy ainda não tinha crescido à sua altura
atual. E nunca seria tão grande quanto o sr. Nix. Se confrontasse o homem, sairia
machucado, talvez até morresse, por minha causa. E embora eu dissesse a ele em várias
ocasiões "tomara que você morra" e coisas do tipo, não queria realmente que isso
acontecesse.
— Venha — ele falou e tomou minha mão.
Com raiva ardendo nos olhos, ele me arrastou para a porta mais próxima e para a
noite.
Estremeci, e não só porque minha camiseta estava em frangalhos, ou mesmo
porque meu professor de matemática tinha acabado de me molestar. Era primavera em
Milwaukee, e a neve ainda se acumulava nas bordas das calçadas, dos quintais, nos
cantos das estradas. Aqui e ali, narcisos forçavam passagem pela terra meio congelada,
suas pétalas amarelo-vivo ainda mais destacadas pelas poças de branco remanescentes.
Tive um relance do canivete segundos depois da arma de pura prata aparecer na

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
mão de Jimmy. Levantei meu olhar da faca, brilhando alegremente à luz de um poste
distante, para o rosto de Jimmy. O que vi ali me fez estremecer ainda mais.
Ficamos nas vielas, quintais, nas sombras. Não ouvi nenhum som de
perseguição... O sujeito não podia ser tão estúpido, podia? Claro que ele não sabia de
Jimmy e sua faca de estimação.
Alguns cachorros latiram, poucas luzes se acenderam enquanto nos sacudíamos
através de quintais, mas meia hora depois entramos na cozinha vazia de Ruthie. Eu
esperava subir as escadas, tomar um banho bem quente, queimar minhas roupas e fingir
que nada tinha acontecido. Mas assim que a porta se fechou, Jimmy gritou:
— Ruthie!
— Você está maluco?
Ele baixou os olhos para onde eu segurava minha camiseta rasgada sobre os
seios.
— Não, e você?
Ruthie entrou, deu uma olhada para minhas roupas esfarrapadas, para os
arranhões que marcavam minha pele, então me envolveu em seus braços e me apressou
para cima. Assim que ia sair da sala, me voltei, mas Jimmy já tinha sumido.
Implorei para Ruthie não chamar a polícia. Era a minha palavra contra a dele. Eu
sabia como as coisas funcionavam. Ruthie também sabia. Ela assentiu, lentamente, e me
colocou na cama.
No dia seguinte, o sr. Nix não foi para a escola. Nem no outro. Nem nunca mais.
— Você o matou — falei, — O sr. Nix.
Jimmy encolheu os ombros, os músculos se movendo sedutoramente sob a pele
nua e macia.
— Ele tocou você.
— Jesus, Jimmy! — repreendi. — Você precisaria matar uma porção de caras, por
esse critério.
— E matei — resmungou ele. — Uma porção de caras. Meus olhos se estreitaram
em seu rosto rígido.
— Quantos eram humanos, de fato?
— Poucos.
— E o sr. Nix? O que ele era?
— Um Nix é um metamorfo alemão. Cavalo, cobra, peixe ou sereia.
— Sereio — corrigi, distraidamente.
— Que seja. As lendas dizem que eles fazem sexo com suas vítimas, depois a
arrastam até o curso d'água mais próximo para afogá-las.
Acho que isso explicava o que eu vira ao tocá-lo. Muitas garotas mortas na água. E
se não fosse por Jimmy, eu teria me juntado a elas.
Ouvi de novo o som da lâmina de prata.
— Você o matou — falei —, e ele virou cinzas.
— Explicaria seu sumiço.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Você não viu?
— Eu o apunhalei e corri. Não sou burro. O sujeito era enorme. Franzi a testa.
— Você não sabia?
— Que ele era metamorfo? Não, na época.
O que significa que Jimmy pensou que tinha matado um homem. Molestador, é
verdade, mas humano. Jimmy viu a compreensão cruzar meu rosto.
— Ele fez o que não devia e morreu. Fim da história.
Eu não sabia o que responder. Nix era um demônio, que Jimmy não soubesse
disso quando o matou não mudava o fato, ou o que ele fizera a mais garotas além de
mim, e o que faria a incontáveis outras, se não fosse por Sanducci.
— Por que você não sabia? Nem Ruthie?
— Videntes não conseguem ver todos os demônios. Ficariam loucos.
Não tinha certeza de que não éramos.
— Eles são muitos — afirmou Jimmy. — Fazemos o melhor que podemos.
Ficamos em silêncio. Mas não por muito tempo.
— Você me odeia agora? — Jimmy perguntou, Eu o odiara por anos, mas não por
isso.
— Nix era um demônio — falei.
— Eu não sabia.
Cheguei mais perto dele, envolvi sua cintura com os braços, capturando-o antes
que pudesse fugir, embora não houvesse para onde, depois recostando minha bochecha
contra seu peito e ouvindo o ritmo familiar do seu coração.
— Soube que você o matara anos atrás, Jimmy, e também achava que ele era
humano.
Aquilo o calou.
— Eu toquei você, te amei; me entreguei, e sabia o tempo todo o que você tinha
feito.
— O sr. Nix tinha sumido. Você não sabia de nada.
— Sabia, sim.
Ele se afastou um pouco e levantou minha cabeça para me fitar nos olhos.
— Você viu?
— Não.
Espantosamente, eu não tinha visto o que acontecera ao sr. Nix em nenhuma das
vezes que tocara Jimmy, e isso queria dizer que matar um homem não o incomodara
tanto assim. Ele não pensara a respeito, não sonhara com aquilo, nem sofrerá pelo que
havia feito. Nem eu. O sujeito merecia morrer. Alguns mereciam.
— Então, como...
— Posso somar dois e dois — respondi. — Você, uma faca, Nix. Ponto-final.
Não contei a ele que houve momentos, quando o tocava, em que cheguei a ter
algumas visões de seu passado, vira rostos de outras vítimas, descobrira coisas que ele
havia feito. Não importava.
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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Claro que a polícia apareceu. Como cidadão pagador de impostos, e Nix tinha sido
isso também, além de demônio, Nix não podia sumir sem que algumas perguntas fossem
feitas. Então eles interrogaram todo mundo, especialmente nós que morávamos com
Ruthie, mais exatamente Jimmy Sanducci.
Jimmy tinha sido preso uma vez. Fora para um reformatório, é verdade, mas uma
cadeia, mesmo assim. Algum incidente com uma faca, que nunca consegui fazê-lo me
contar, com palavras ou lembranças, mas o bastante para deixar os policiais
desconfiados.
Houve outros incidentes, tanto antes de Jimmy ter chegado à casa de Ruthie
quanto depois. Coisas que Ruthie, de algum jeito, fez sumir. O que explicava por que eu
pegava apenas trechos rápidos quando o tocava.
Na época, pensei que Nix fosse um tipo de assassino em série. Como ele
desaparecera, e eu tinha uma pista consistente de como, mantive a boca fechada.
Aprendi cedo a não falar das coisas que eu "via". Estava feliz em "manter tudo em
família", como Ruthie aconselhava.
Agora que eu sabia o que ele tinha sido, tinha algumas perguntas.
— Ele estava atrás de mim por causa de quem eu ia ser? Jimmy refletiu a respeito,
depois balançou a cabeça.
— Nenhum Nefilim soube sobre Ruthie até... — Ele se interrompeu.
Até que Jimmy virou um infiltrado. Eu não deveria ter tocado nesse assunto.
— Parece coincidência demais que um demônio tentasse me matar menos de um
ano depois de minha chegada — observei.
— Mesmo que Nix soubesse, de alguma forma, esse conhecimento morreu com
ele. Senão, teríamos uma fila de Nefilins na vizinhança, esperando pára matar você.
— Que reconfortante!... Ainda assim, você não acha estranho?
— Infelizmente, não. A maioria dos canalhas do mundo são Nefilins. Assassinos
em série, pedófilos, terroristas.
— Pastores televisivos — murmurei.
— Muito engraçado — ele disse, sem rir. Em vez disso, olhava para a janela, e
parecia assustado. — Você precisa sair agora.
— E como você sugere que eu faça isso? — Gesticulei para a porta, que não tinha
nem maçaneta do lado de dentro.
Jimmy bateu nela com os punhos de novo, colocando mais duas marcas em uma
estrutura já denteada.
— Summer! — gritou. — Tire-a daqui!
— Ela está um pouco enrolada — murmurei. Jimmy virou-se para me encarar.
— Você trouxe Sawyer?
— Achou que eu não fosse trazer?
Ele se recostou na porta, novamente derrotado.
— Lizzy, você não sabe o que está fazendo.
Mas eu sabia. Estava fazendo o que precisava ser feito.
Tomei-o pelo braço, levei-o para a cama, depois me sentei a seu lado. Uma fina

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
camada de suor cobria toda a sua pele. A lua estava chegando, e ele estava lutando
contra a mudança.
Eu me aproximei, deixando meus seios roçar em seu braço enquanto eu esfregava
suas costas, fingindo confortá-lo.
— Vamos lutar contra isso juntos. Você e eu. Como quando éramos crianças.
— Você e eu contra o mundo — ele murmurou.
— Você è eu pelo mundo — corrigi, mas ele não pareceu me ouvir. — Jimmy?
Ele levantou a cabeça, e seus olhos tinham um brilho vermelho no centro. Ele
estava perdendo a batalha. Baixei minha mão reconfortante de seus ombros para a
cintura, continuando a acariciar, deixando aponta dos dedos deslizar sobre o início da
curva das nádegas. Ele estremeceu.
— E se eu a fizer igual a mim? — Ele lambeu os lábios, o olhar fixo na curva do
meu pescoço.
— Posso tomar conta de mim mesma.
— Não quando estou daquele jeito. — Ele me agarrou pelos braços de novo, me
arrastando para ele. — É a condenação, Lizzy. Para nós dois.
Talvez. Mas alguns sacrifícios são necessários. Condenação para nós significaria a
salvação para todos os outros. Eu estava pronta para correr o risco.
— Esta escuridão é pior que a morte — ele disse.
— Não vou deixar você, Jimmy.
— Você deveria me matar.
— Já matei, e não funcionou. Ele me soltou.
— Não desisti de você naquela época para transformá-lo em algo mau agora.
— Por que abriu mão de mim?
— Pelo seu próprio bem.
Que era a razão para eu estar fazendo isso agora. O bem dele. O meu. Do mundo
todo.
Jimmy fechou os olhos e sussurrou:
— Você vai acabar comigo.
Coloquei a mão em seu braço. Não sabia bem o que ele queria dizer com aquilo,
talvez nada, ou tudo, mas um brilho prateado passou pela janela, sobre o rosto dele, o
meu, e seus olhos se abriram de repente. Fogo reluzia no meio deles. A lua tinha subido;
Jimmy se fora.
Eu tinha de fazê-lo acreditar que estava preocupada demais em ficar com ele para
perceber que devia estar ajudando-o a lutar. Ele beberia de mim; eu beberia dele, e
então...
Não queria pensar nisso. Por enquanto, apenas apreciaria a pressão de sua boca,
o toque de suas mãos. Jimmy sempre fora um sábio sexual. Quando me tocava, eu
derretia. Não podia evitar.
Mesmo no antro do strega, quando Jimmy tinha dito e feito coisas terríveis, se ele
se calasse, apagasse as luzes e me tocasse, era como se tivéssemos dezessete anos de
novo.

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E ainda falava de acabar com alguém. Em Manhattan, ele quase acabara comigo.
Ele estava rude, faminto, e para mim, tudo bem. Quanto mais rápido ele me
tomasse, mais rápido perderia o controle e faria o que eu queria que fizesse.
Abri a boca e recebi sua língua, sugando-a de leve. Ele grunhiu e me puxou mais
para perto, esmagando meus seios em seu peito, remexendo-se para frente e para trás,
criando fricção.
Meu corpo estava torcido em um ângulo estranho, então passei minha perna sobre
seu colo, montando sobre ele. Jimmy estava rígido, e eu me esfreguei naquela rigidez o
suficiente para deixá-lo louco.
Ele separou a boca da minha, deixando um rastro de beijos sobre meu rosto, meu
pescoço, brincando com os bicos dos meus seios com a língua.
— Mais forte — gemi. — Mais... E ele me pegou entre seus dentes.
Eu puxei seu cabelo, e ele se moveu contra mim, a pressão contra o centro de
minha feminilidade, agora escorregadia e inchada, era ao mesmo tempo deliciosa e
excruciante.
A lua se derramava sobre nós; a fria luz prateada parecia queimar minha pele nua.
Meus dedos deslizaram sobre ele, as unhas arranhando suas costas, seu peito.
Os olhos de Jimmy estavam completamente vermelhos agora, suas presas
crescidas. Eu conseguira o que planejava, seduzira-, o para que esquecesse a luta.
Ele flexionou o quadril, pressionando-se contra mim, escorregando só um pouco
para dentro. Eu me levantei e o deixei mergulhar. Inclinei a cabeça para trás e me agarrei
em seus ombros enquanto me ajustava ao redor dele.
— Seu sangue é como vinho — sussurrou ele contra meus seios. — Posso sentir o
poder pulsando por baixo da pele. O que eu poderia fazer com você junto a mim? O que
poderíamos nos tornar, juntos?
O que havia de errado com esse povo do mal? Você dá um braço, eles pegam todo
o resto... ou tentam, pelo menos.
Ele se arqueou, pressionando-se para dentro de mim enquanto puxava meu quadril
no sentido contrário. Eu já não conseguia pensar, só sentir a pressão, a dor, as
possibilidades.
O que poderíamos fazer, juntos?
Balancei minha cabeça até doer. Concentração! Jimmy precisava beber meu
sangue, eu o dele, e então...
Shazam! Eu seria um vampiro. Ou coisa parecida.
Eu tinha de seguir com o plano, e sabia exatamente como.
— Talvez essa não tenha sido uma boa idéia — murmurei. — Eu deveria...
Voei para o lado quando ele me jogou na cama, me seguindo de perto, deslizando
para dentro de mim outra vez, enquanto capturava minhas mãos e as levantava, acima da
cabeça.
— Agora é tarde — ele disse, os olhos queimando os meus, enquanto começava a
se mover.
Dentro e fora, escorregando, uma rigidez quente.
— Mas...

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Quieta, Elizabeth.
Jimmy nunca me chamava assim. Mas o demônio, sim.
Ele me manteve prisioneira com suas mãos, suas pernas, o peso de seu corpo. Eu
lutei um pouco, para fazer um pouco de cena, e ele riu... O riso de seu pai. Sempre odiei
aquela risada.
— Tomei seu sangue de tantas maneiras diferentes. Qual foi minha favorita? Aqui?
— E lambeu meu pescoço. — Ali? — Mordiscou meu ombro. — Talvez aqui? — Ele se
levantou, e seu polegar deslizou pelo interior da minha coxa.
Eu me encolhi, o movimento fazendo meus seios balançar, e ele sorriu, baixando a
cabeça, me tocando de leve.
— Tão bonitos... Tão redondos, suaves... — Ele lambeu preguiçosamente um
mamilo, depois soprou sobre a trilha de umidade que tinha deixado, fascinado com o
arrepio que provocou.
Em perfeita sincronia com o ritmo das penetrações, ele sugou. Eu acompanhei
cada um de seus movimentos, esquecendo o que planejava, me importando apenas com
o que se seguiria.
Subitamente, ele ficou tenso e jorrou, quente. Eu enrosquei minhas pernas em sua
cintura, puxando-o mais para perto, buscando meu prazer, mas incapaz de encontrá-lo.
Até que suas presas morderam meu seio. A dor fez meu corpo se arquear, me
esmagando contra ele e me fazendo explodir com tanta ferocidade que eu teria gritado, se
conseguisse respirar.
Seu sugar rítmico pareceu despedaçar primeiro minha barriga, depois mais para
baixo. Fiquei tonta pela perda de sangue. Apesar do orgasmo, ele continuava duro dentro
de mim e se movendo. Então ele levantou a cabeça; com a ponta da língua, retirou a
última gota de sangue de seus lábios, e eu não senti nojo. Estava intrigada.
Sangue era, ao mesmo tempo, vida e morte. Qual seria o gosto do meu? E do
dele?
Jimmy se aproximou, me afundando mais no colchão, enquanto murmurava meu
próprio feitiço de volta para mim,
— Faça. Você sabe que quer.
Primeiro, achei que ele queria dizer outro orgasmo; ah, como eu queria! E quando
ele pareceu ficar ainda maior, crescendo dentro de mim, esticando a peleja sensibilizada,
eu tive outro. E então eu fiz. Mordi. Porque ele tinha razão.
Eu queria.
Ele tinha sabor de vinho, bem como tinha dito, profundo e rico. Fiquei embriagada
dele; não podia parar. Não precisei. Porque Jimmy não morreria por causa disso, como eu
também não.
A combinação emocionante de sexo e sangue fluiu através de mim, me
fortalecendo. Juntos, terminamos o que havíamos começado, estremecendo em um
orgasmo compartilhado e completando minha transformação para as trevas.
Quando penso nessas coisas agora, me assusto. Eu segui em frente, fazendo o
que era necessário. Que escolha eu tinha? Mas se tivesse pensado um pouco mais, teria
imaginado: uma vez que estivesse possuída pelo mal, por que diabos eu iria querer lutar
contra a Naye'i e impedir o Apocalipse que se aproximava?

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Mas eu quis. No instante em que me tornei uma vampira, fui consumida pela
necessidade de matá-la. Como eu tinha pensado apenas alguns instantes antes, por que
toda criatura do mal quer dominar o mundo? E assim que fui uma criatura do mal, eu
soube.
Porque eu podia.
Era mais forte que todos os outros. Escolhera aquilo. A escolha me dava força e
ambição.
O mundo todo parecia diferente. Com os poderes de dampiro, eu podia ver mais,
correr mais, ouvir mais. Mas como vampiro, tudo se ampliava. As cores flamejavam,
agonizantemente brilhantes e surreais. Os sons me alcançavam muito antes do que
deveriam, alterando minha noção de tempo e espaço.
Desembaracei-me do abraço de Jimmy, nossa junção tão completa que eu podia
literalmente ouvir os pelos de sua perna sussurrar. O sangue correndo por suas veias
zumbia como uma música.
Quando ele falou, eu me encolhi por causa do barulho.
— Gostou?
— Humm... — ronronei.
Ele pegou minha mão e me levou até o espelho em cima da penteadeira. Aquela
história de vampiros não terem reflexo? Tolice. Eu podia ver a nós dois, nossos olhos
chamejantes e presas brilhantes. Era uma visão interessante.
Passei os dedos na turquesa de Sawyer. Agora eu era tão forte quanto a mulher de
fumaça, e enquanto usasse aquele amuleto, ela não poderia me tocar.
Eu ri, um som profundo, rouco e totalmente demoníaco. Gostei tanto que ri de
novo.
Uma brisa quente soprou pela janela. O hálito do mal, cheirava a enxofre, e o sorvi
como se fosse ambrosia.
A brisa me chamava; espiei através das grades, para o topo da montanha. A lua
cheia brilhava, atravessando a névoa que surgia. A chuva caía, mas apenas na
montanha, e o vulcão adormecido trovejou.
A chuva é uma mulher, Whitelaw dissera.
As antigas lendas Navajo eram verdadeiras.
— A mulher de fumaça — murmurei. Ela estava lá, e à minha espera.
— Como vamos sair? — perguntou Jimmy. Relutantemente, tirei os olhos da
montanha, que tinha começado a trovejar meu nome.
— Phoenix — ela dizia. — Venha para mim...
Jimmy estava de pé em frente à porta dourada, usando um jeans preto e uma
camiseta da Hannah Montana. Em minha outra vida, teria achado aquilo hilário. Nesta,
tudo em que pensava era como devia ser doce o sangue de uma criança.
Nem pensei em vestir alguma roupa. Essas ninharias já não significavam nada
para mim.
— Eles não vão abrir — falei, me juntando a ele. — Sawyer não consegue.
— E Summer não quer.
Tão perto da saída, o calor do metal fazia cada milímetro de minha pele arder,

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
como uma queimadura de sol. Só de pensar em tocá-la, meus dedos pinicavam.
— Como você planejava sair? — ele inquiriu.
Eu não tinha planejado, só segui em frente. Realmente, precisava parar de agir
assim. Minha pele é meu robe.
A voz de Sawyer veio do passado. Afastei-me do calor pulsante da porta dourada e
voltei para a janela, que era a única saída. Além dela, ficava a montanha, onde ela
esperava por mim. Se eu fosse um pássaro...
Inclinei minha cabeça, compreendendo de repente o que Sawyer queria dizer.
Encarei Jimmy.
— Você tem uma faca?
Jimmy puxou seu canivete de dentro do bolso.
Pergunta estúpida.
Peguei a arma e desenhei um morcego em meu antebraço. A imagem lembrava o
símbolo do Batman, um morcego de adesivos, no máximo, eu nunca fui uma artista... mas
estava confiante de que seria o suficiente.
O corte começou a se curar quase imediatamente. Nunca pensei que desejaria
distância de minhas habilidades de cura, mas naquele momento, foi o que aconteceu.
— Que diabos? — grunhiu Jimmy, enquanto o sangue pingava de meu antebraço
para o piso. Ele se aproximou, a língua surgindo entre seu lábios, os olhos ainda
brilhando, presos ao sangue que fluía.
— É o único jeito. — Estendendo a mão, removi a turquesa do pescoço e a
coloquei no parapeito da janela.
— Como eu vou sair? — ele perguntou.
— Não vai. — Pressionei a mão contra o morcego que se curava rapidamente em
me braço.
Segundos depois, peguei a turquesa com a boca, batendo minhas asas negras
mais forte para contrabalançar o peso da pedra, enquanto me dirigia para cima, para a lua
cheia prateada que se erguia sobre o Monte Taylor.
Jimmy gritou algo, mas eu não estava ouvindo. Não queria ninguém a meu lado
quando encontrasse a mulher de fumaça. Sempre soube que, quando chegasse a hora,
seria entre mim e ela.
Em vez disso, o sonar que viera com minha mudança, a habilidade dos morcegos
de ver pelo som, dominou.
Agora que eu era um morcego, percebi que não se tratava de ouvir, mas de sentir.
Uma percepção do que me rodeava, de onde voava um mosquito, na frente, havia uma
árvore, e logo, muito em breve, eu chegaria à montanha e ao meu destino.
O brilho da lua tornava a névoa que rodopiava no topo do Monte Taylor
luminescente. Á chuva tinha parado, e eu circulei, incapaz de enxergar o chão logo
abaixo, mas em algum lugar daquela névoa eu a senti.
Desci pelas nuvens, fazendo uso de meus sentidos para evitar as árvores, rochas e
uma bruxa má Navajo. A alguns metros da terra, busquei dentro de mim, e me tornei
humana de novo, pousando em um pulo agachado, que me permitiu pegar a turquesa e
colocar a corrente em meu pescoço. Bem a tempo.
Nua como eu, a mulher de fumaça saiu da névoa.
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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Um morcego — murmurou. — Que clichê.
Uma desgraçada, miserável, espírito do mal. Também não é nada original.
— Isto será uma luta até a morte — ela avisou.
— Que será, será...
A Naye'i pareceu confusa. Acho que nunca tinha ouvido falar de Doris Day.
Desde o primeiro momento em que a vira, como um espírito de fumaça no deserto,
e depois no bar Murphy's, soube que era perigosa. Quanto mais conhecia sobre ela, mais
a odiava. Mas a odiava como humana. Um ódio patético e inútil, indigno do nome.
Como um espírito das trevas, eu compreendia o ódio, recebi de braços abertos o
desejo de criar o caos, machucar e matar apenas pelo prazer do ato, e vi por que
precisava me tornar como ela para vencer.
A Naye'i não tinha humanidade, compaixão, limites. E agora, eu também não.
Nós nos cercamos como lutadores profissionais, esperando por uma abertura. Eu
não estava preocupada. Ainda podia sentir o gosto do sangue de Jimmy; a força que
compartilháramos pulsava em mim; um poder sobrenatural repousava em meus dedos, e
a turquesa evitaria que ela pusesse as mãos em mim.
A palavra "dança" passou pela minha cabeça, e a Naye'i sorriu. Aquele sorriso me
fez parar. Era o sorriso de quem tinha um segredo.
A mão da mulher de fumaça moveu-se como uma cobra e se fechou sobre meu
pescoço. Pisquei, chocada.
— O que... — consegui dizer, antes que ela me levantasse do chão, retirando todo
o ar.
Em qualquer lugar que seus dedos me tocassem, explodia a dor, mas não a
queimadura de frio que tinha ocorrido da última vez que sua pele tocara a minha. Algo
havia mudado.
Minhas pernas afrouxaram, meus braços também. Estendi a mão para a turquesa,
mas ela se adiantou.
— Você pensou que isso a protegeria. — Ela quebrou a corrente com um puxão e
a jogou para longe. — Não mais.
Eu não conseguia respirar, o que dificultava o raciocínio. Mesmo quando ela me
largou no chão, fiquei ofegando como um peixe na praia.
— A turquesa marcava você como sendo dele, mas você escolheu outro — ela
sussurrou, seu hálito de enxofre banhando meu rosto, fazendo minha pele queimar. — E
ao escolhê-lo, a pedra virou só uma pedra.
Droga. Isso seria muito mais difícil do que eu imaginara. Mas acho que se ela fosse
fácil de matar, alguém já o teria feito.
Sentei, e a Naye'i me deu um tapa com as costas da mão, tão forte que eu rolei
pelo chão, pedrinhas espetando meu traseiro. Uma das presas feriu meu lábio, e o
sangue fluiu.
Sua risada ecoou no trovejar da montanha.
— Você achou que seria simples, tornar-se trevas e me engolir inteira. Mas eu sou
as trevas. — Ela levantou as mãos para a noite tingida de prata, e um raio caiu. — E é
você quem vai morrer.

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Se não me movesse, eu morreria mesmo. Levantei-me com dificuldade; seu sorriso
desdenhoso dizia que ela me deixaria fazer isso. A fúria voltou, gelada e quente ao
mesmo tempo, Iria me banhar em seu sangue; usaria seus ossos como palitinho. Quando
estivesse morta, dançaria sobre seu cadáver.
Isso! Já parecia mais com minha nova personalidade.
Tentei lhe dar uma rasteira, mas ela pulou para escapar do golpe e flutuou sobre
mim.
Pulei, em um movimento como os de Matrix, e tentei um chute alto. Ela se inclinou,
e meu pé passou direto. A força do meu golpe me lançou para o chão tão rápido que
quase caí antes de conseguir colocar as mãos à frente do corpo.
— Como matar um vampiro — ela meditou.
Com minhas costas expostas, me virei, ao mesmo tempo que ela golpeou. Uma
estaca de madeira surgiu em suas mãos, e enquanto ela lançava a coisa, eu rolei. A
estaca se espetou no chão, no lugar onde estivera meu coração.
O fogo ondulou ao meu redor. Além das chamas, a Naye'i parecia dançar.
— Vou matar você de todos os jeitos que existem para se matar um vampiro.
Pouco a pouco, você vai morrer, depois, farei tudo de novo. E quando você não for nada
além de uma pilha de sangue e pele vazia, sem Sawyer, sem robe, sem nenhum jeito de
mudar e se curar, então aí os portões do inferno serão abertos, e eu vou dominar cada
demônio nesta Terra.
— Matar-me vai abrir o Tártaro? — perguntei. Ela deu de ombros.
— Mal não vai fazer.
— Você sabe como fazer?
Pulei através do fogo, os lugares que ele queimou se curando quase
instantaneamente.
A Naye'i parecia ter acabado de chupar um limão.
— Acha que eu lhe contaria?
— Perguntar não vai fazer mal.
— Mas isto vai — ela falou, e abrindo os braços, os dedos bem abertos, fez um
gesto de varrer com os dedos em minha direção.
Rochas voaram, centenas delas, de todos os formatos e tamanhos, chovendo
sobre mim, me esmagando no chão, empilhando-se sobre mim até me enterrar. Quando
as coisas pararam de silvar sobre a pilha de rochas, empurrei, derrubando tudo.
— Que diabos foi isso? — perguntei.
— Cubra a cova de um vampiro com pedras, e ele nunca se levantará.
— Não estou morta — falei.
— Tem razão. — Ela girou o pulso, e algo pequeno, afiado e brilhante voou,
espetando-se em minha têmpora antes que eu pudesse impedir.
— Ai! — Retirei um prego de sete centímetros, e a Naye'i uivou sua fúria para os
céus.
— Por que você não morre?
— Por que não morre você? — retruquei.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Ela estava tentando me matar, cada uma das minhas habilidades... uma cura
comum. Eu mesma tinha tentado isso com Jimmy, mas não conseguira nada. Mas matar
uma vampira, dampira ou skinwalker seria um truque difícil. Não que ela não fosse
conseguir, se eu continuasse deixando-a tentar. Mais cedo ou mais tarde, ela chegaria a
algo que funcionasse contra um vampiro, e passar daí para a próxima fase seria fácil. Eu
precisava tomar sua magia, e graças a Whitelaw, sabia como fazer isso,
— Odeio ficar chamando você de desgraçada psicótica do inferno! — falei. —
Embora combine bastante.
Ela girou o pulso, e uma arma surgiu. Antes que pudesse apontá-la para mim, tirei-
a de sua mão, e ela quicou pelo chão com um som metálico, Quando ela, previsivelmente,
tentou agarrar meu pescoço, eu segurei aquelas mãos e murmurei:
— Qual é o seu nome?
Era um truque velho, mas era bom. Ela não teve tempo de me bloquear, de pensar
em outra coisa, ou mesmo de perceber o que eu estava fazendo. Quando a toquei, ela
pensou: Lilith.
— Lilith? — Deixei que a força do golpe dela passasse direto por mim, e quando a
soltei, ela caiu no chão. — Não a Lilith?
A mulher de fumaça girou para ficar de frente.
— Você não pode ser aquela Lilith.
Seus olhos se arregalaram quando ela percebeu o que eu pretendia fazer. Seu
braço começou a se levantar, sem dúvida para lançar alguma magia mortal em mim, mas
eu terminei o feitiço, repetindo pela última vez:
— Lilith.
Ela gritou, mas em vez de um som, uma nuvem de poeira brilhante preta subiu de
sua boca, girando no vento e desaparecendo na noite.
— Ah! Acho que aquilo era a sua magia... Que pena — falei, e golpeei.
Eu tinha a força de um vampiro; ela voou três metros, lutou para ficar de pé outra
vez, e eu a acertei de novo.
Ela tinha vantagem, como a bruxa má que era, mas sem a parte bruxa, era só má.
O que perfazia um total de duas de nós.
Ela pousou do lado mais distante da arma, que estava no meio do caminho entre
nós. Com minha velocidade de vampiro, peguei a coisa antes que ela pudesse arrastar-se
naquela direção, depois pressionei o bocal em sua têmpora.
A mulher de fumaça congelou; seus olhos negros chamejantes encontraram os
meus, e ela desdenhou:
— Vá em frente.
Tirei o dedo. A idéia de lhe estourar os miolos era muito atraente, mas algo me
impediu. Provavelmente o sorriso à espreita, sob o desprezo.
— Você vai simplesmente se curar — murmurei, e joguei a arma longe bem longe.
O sorriso apareceu, completo.
— Posso me curar de qualquer coisa.
— Cure isso — falei, e fiz como Jimmy: a parti em duas, como um osso de frango.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
Jamais conseguiria fazer isso se tivesse permanecido humana. Não apenas pela
força, mas porque era asqueroso. De qualquer forma, naquele estado, achei o jato de
sangue maravilhoso.
A tentação de deixar que ele me banhasse, sentir o calor, a vida e a energia contra
minha pele era quase excessiva, Eu provavelmente o teria feito, se o corpo não tivesse se
levantado e estendido as mãos para mim.
— Ah, o que é isso?! — Fui para trás, e o que restava da mulher de fumaça me
seguiu.
— Me dê minha cabeça!
Olhei para baixo. Eu ainda segurava o crânio em uma das mãos, e ele estava
falando. Minha vida era um filme do Tim Burton.
O corpo continuava se aproximando; as mãos não buscavam a mim, e sim à
cabeça. Uma vez que a recuperasse, será que a colocaria de volta no pescoço
arrebentado, e a ferida se curaria?
— Como eu acabo com ela? — resmunguei, e minha mente procurou cada detalhe
do que eu havia escutado, cada coisa que tinha aprendido.
Ela já não possuía nenhuma magia, tudo o que restara fora o espírito do mal. Tinha
Ouvido algo sobre isso...
A verdade me atingiu como um holofote. A lembrança do que vira no sonho de
Sawyer quando andara por lá, palavras da cor do sangue fresco, escritas contra o teto
impecavelmente branco.
— Espalhar o mal pelos quatro ventos — sussurrei.
— Não! — berrou a mulher de fumaça.
O que me convenceu de que espalhar seria uma boa idéia.
Joguei a cabeça, ainda berrando, para o norte, com toda a minha força, depois
terminei minha tarefa lançando os braços para o leste, as pernas para o oeste e o resto
para o sul.
Um silêncio bem-vindo se espalhou pela montanha, mas não durou. Primeiro, achei
que ela estivesse voltando, porque o grito que tinha desaparecido enquanto ela era
espalhada aos quatro ventos ficou cada vez mais alto, até me rodear. Um oceano de som
retumbava em meus ouvidos supersensíveis, me levando ao chão com as mãos
pressionadas contra a cabeça.
Mesmo com os olhos fechados, senti as alterações de claro e escuro cruzando
meu rosto, e me forcei a olhar para a lua. Sombras fantasmagóricas dançavam sobre a
superfície, rápido demais para eu determinar o que eram.
— Isso não pode ser bom — murmurei, enquanto algo dentro de mim se alegrava e
murmurava: Eles estão livres.
Acordei com o brilho do sol em meu rosto. Ou talvez fosse a sensação de estar
sendo observada. Porque abri meus olhos e me descobri cercada.
Rosnei e dei um pulo para trás, pousando meio agachada. Senti o rosnado
retumbando em minha garganta. Toda aquela bondade fazia minha cabeça doer.
Na brilhante luz da manhã, as cores me pareciam exageradas. As jóias da coleira
na mão de Sawyer quase me cegaram.
— O que há de errado com ela?

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
O garoto... Luther, me lembrei... parecia horrorizado. Ergui o lábio superior e dei a
ele uma bela vista de minhas presas, então me vi sendo distraída pelo pulsar da veia em
seu pescoço. Podia ouvir o coração de cada um deles bater, o correr do sangue por suas
veias era um murmúrio sedutor. Dei um passo à frente e Jimmy bloqueou meu caminho.
— Ela virou vampira — ele falou, e sua voz estava tão cheia de dor que a inspirei.
Quase pude sentir o gosto de suas lágrimas.
— Você disse que podia curá-la — Luther sussurrou. Hum... O tremor em sua voz,
o medo no vento. Adorei aquilo.
— Não curá-la — murmurou Sawyer. — Pelo menos, não ainda.
— Coloque a coleira nela — Summer ordenou. — Senão, ela vai fazer com a gente
o mesmo que fez com a mulher de fumaça.
Lembrei-me da fonte de sangue. Queria ver aquilo de novo. Meu olhar passou
pelos quatro.
— Uni-duni-tê... — falei, e parti para cima da fada.
A mão de Sawyer se moveu, me mandando de volta pelo ar tão forte que minha
cabeça bateu no chão.
— Ah, meu Deus — murmurou Jimmy.
— Pare de choramingar — repreendeu Sawyer. — O que está feito, está feito.
Temos de seguir adiante. Me ajude aqui.
Minhas pernas estavam presas, assim como meus braços. Gritei de raiva, e à
distância, algo respondeu. Sawyer praguejou cm voz baixa.
Eu podia derrubá-los separadamente. Mas juntos, eles eram mais fortes, o que só
me fez grunhir, rosnar e lutar contra o que me prendia.
Bati nas mãos de Sawyer enquanto ele deslizava a coleira em meu pescoço. Ele
socou meu nariz como se eu fosse um cachorro mal-educado, e meus olhos se encheram
de água. Assim que a coleira foi presa, eu parei. Os olhos de Sawyer encontraram os
meus.
— Está melhor?
Assenti, e eles me soltaram, depois se afastaram tão rápido que eu recuei também,
pela reação deles, e pela lembrança do que eu havia dito, feito e sido.
Precisava de um banho, uma esponja grossa e meio quilo de sabonete. O sangue
da mulher de fumaça estava grudado em meu corpo inteiro; minhas mãos e antebraços
pareciam ter sido pintados de vermelho, e a crosta sob minhas unhas estava tão grossa
como se eu tivesse passado uma semana escavando um jardim.
Uma pilha de roupas estava aos meus pés. Vesti aquilo rapidamente, não mais
confortável com minha nudez, mesmo que cinqüenta por cento dos presentes já a tivesse
visto antes.
A camiseta com a inscrição Black Sabbath — Turnê Reunion era obviamente de
Jimmy, mas alguém tinha revistado minha bolsa e encontrado minha última muda de
lingerie limpa e um short.
Olhei para Jimmy, mas ele não conseguia me encarar. Luther ficou tenso, como se
esperasse que eu fosse atacá-lo a qualquer segundo. Summer queria me socar, ainda
tínhamos isso em comum. Só Sawyer parecia o mesmo que da última vez em que o vira.
Meus dedos roçaram a coleira.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— O que é isso?
— Enfeitiçada — ele respondeu. — Enquanto a usar, você é você.
Levantei minha mão, toquei meus dentes. As presas tinham sumido, junto com o
desejo de rasgar a garganta de todo mundo. Mas eu ainda não achava que estivesse
recuperada. Lá no fundo, o demônio ainda rugia.
— Enfeitiçada por quem? — perguntei, e Summer levantou a mão. — Você tinha
que enfeitiçar uma coleira de cachorro? A magia não funcionaria em uma corrente bonita
de prata?
Sua boca se curvou em um sorriso.
— Mas aí, onde estaria a graça?
Quase sorri de volta, então me lembrei dos gritos na noite, das estranhas formas
sobre a face da lua, o rugido à distância em resposta ao meu chamado.
— O que aconteceu? — Sawyer perguntou.
— Acabei com ela, depois espalhei seus pedaços aos quatro ventos.
Sawyer franziu a testa.
— Isso é um velho ditado Navajo.
— Que eu ouvi de um velho Navajo.
Ele ergueu a sobrancelha, e eu dei de ombros.
— Mundo dos andarilhos dos sonhos.
— Interessante — ele resmungou. — Sempre achei que fosse só um provérbio. Só
um jeito curto de dizer para o povo como ter uma boa vida. — Ele gesticulou, indicando o
céu. — Figurativamente, devemos espalhar o mal para longe.
— Funcionou muito bem literalmente também.
— Fascinante — comentou Sawyer. — Você encontrou esse velho provérbio na
minha mente, e nem sabia que iria precisar dele.
— É, foi bom. — Eu realmente não queria mais falar sobre isso. Embora tivesse
aproveitado o sangue correndo na noite passada, esta manhã ele me deixava meio
enjoada.
— Uma vez que você a jogou, o que aconteceu? — quis saber.
Eles estão livres.
— Algo escapou.
Sawyer, Summer e Jimmy trocaram olhares. Luther tinha se afastado para olhar
para a escura trilha de terra onde eu tinha derramado o sangue da Naye'i. Aquilo
provavelmente não era saudável.
— Garoto! — chamei. — Volte aqui.
Luther parecia querer me dizer para ir me danar. Em vez disso, encolheu os
ombros e foi para o lado de Summer, que tomou sua mão. Eu franzi a testa ao ver isso,
mas parecia mais uma coisa para reconfortá-lo, então deixei passar.
— O que está livre? — perguntei.
— Os Grigori — disse Sawyer.
Abri a boca para praguejar, captei um relance da expressão de Luther e mordi a

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língua.
— Isso é impossível.
— Não, de acordo com Ruthie.
— Ruthie?
Vasculhei meu cérebro; não me lembrava de ter falado com ela recentemente. Mas
desde o momento entre a morte da Naye'i e quando acordei naquela manhã, havia um
branco, então quem sabe?
— Eu?
— Não — respondeu Sawyer. — Você provavelmente não vai falar com ela por um
tempo.
— Por quê?
— Ela está no céu. Proibida a entrada para demônios.
Nesse momento eu praguejei. Não pude evitar.
— Tire essa coisa de mim.
— Querida... — começou Jimmy, e eu lhe lancei um olhar maligno, que ele não viu,
pois ainda não estava me encarando. — Não há como tirar essa coisa.
— Confie, depois refine. Seja lá o que Summer fez com você, pode fazer comigo.
A fada engasgou. Olhei para ela e soube por quê.
— É um feitiço sexual. Ela deu de ombros.
— Você me disse para fazer qualquer coisa. Eu estava cansada de ouvir aquilo.
— Ótimo. Sawyer pode fazer, então.
— Não — ele disse.
— Não? Você nunca teve problema antes. Ele suspirou.
— Ruthie não quer.
— Você parece bem atualizado quanto ao que ela quer. Ela está falando com
você?
Sawyer meneou a cabeça, assim como Summer; até Jimmy negou, sem, em
momento algum, me encarar. Luther assentiu.
Minhas sobrancelhas se levantaram. Um desenrolar interessante.
— E o que ela diz?
Luther abriu a boca, mas foi a voz de Ruthie que saiu.
— Os portões do inferno foram mesmo abertos, garota. O problema não está
chegando, já está aqui.
— Isso é assustador — murmurei.
Não só o rapaz falava como Ruthie, mas agora também se movia como ela. Os
trejeitos, a inclinação da cabeça, até mesmo seus olhos tinham escurecido de dourados á
castanhos, se bem que isso poderia ser só a sombra do sol sobre a montanha, mas eu
não acreditava que fosse.
— Ele é o melhor receptor que já vi — Sawyer murmurou.
Receber, um jeito de falar com os mortos. Algumas pessoas, como eu, iam até
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eles. Outros, como Luther, aparentemente permitiam aos mortos falar através deles.
— Ele podia fazer isso anteontem? — perguntei. Sawyer abriu suas mãos,
alegando não saber.
— Lizbeth! — chamou Ruthie-Luther. — Os demônios estão à solta, e estes são
piores do que qualquer coisa que já esteve nesta terra desde a Queda.
— Como eles se libertaram? — perguntei. — Eu matei as trevas. Tudo deveria ter
voltado ao normal.
— Normal — bufou Ruthie. —E o que é isso? Você vai ter de achar o livro.
— A chave de Salomão? Ruthie-Luther negou.
— A chave diz que se matar as trevas, tudo dará certo. Mas não é verdade. Vamos
ter de dar uma olhada no outro lado.
— Ótimo — resmunguei.
— E você vai ter de continuar má.
— Como é? — Indiquei a coleira, que estava me enlouquecendo.
— O único modo de lutar contra os Grigori é com uma escuridão tão completa
quanto a deles. Você e Jimmy são nossa única esperança.
— Jimmy tem seu demônio preso à lua. Ele vai ter de soltá-lo novamente?
— Não — disse Jimmy, ao mesmo tempo que Ruthie murmurava:
— Sim. Droga.
— Tem de ser feito — disse Ruthie-Luther. — E você sabe disso.
Espiei Jimmy, inquieta, e ele continuava encarando o deserto abaixo de nós.
— Ele já está derrotado — resmungou Summer. — O que é mais um chute quando
você está caído?
As duas tinham razão. Tinha de ser feito, e ele já estava derrotado.
Suspirei e voltei minha atenção para Ruthie-Luther.
— Quando somos... — Eu imitei presas com os dedos e sibilei. — Não estamos
exatamente do lado da Justiça.
— Mas estão caçando. Summer e Sawyer usarão sua magia para libertar seu
poder na direção certa.
— Libertar — repeti. — Como um maldito cachorro.
— Daí a coleira — murmurou Summer.
— Acho que sou o tipo de cachorro que avança no próprio dono.
— Que sorte não ser eu quem vai segurar sua coleira. Seria Sawyer. Virei-me para
ele.
— Sabia que sua mã... — interrompi. — O nome da Naye'i era Lilith?
Ele balançou a cabeça.
— Não acho que ela era a Lilith.
— Não — disse Ruthie-Luther. — Era apenas uma Lilith. Demônios da tempestade.
Ela comandava a noite e o vento, e se movia com a chuva. Há um demônio Lilith em
todas as culturas.

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— Existem outras como ela por aí?
— Claro.
— Mas que inferno dos diabos! — resmunguei.
— Estou com fome — A voz de Luther tornou a soar como antes.
— Vamos voltar para a casa de Summer — sugeriu Sawyer. Começamos a ir
naquela direção, exceto Jimmy. Ele continuava de costas para nós, como se nem
soubesse que estávamos ali.
— Vamos logo em seguida.
— Eu não... — Summer começou a dizer, mas Sawyer a silenciou com um olhar.
Ela saiu pisando duro, as botas de caubói levantando nuvens de poeira ao redor de seus
pés. Luther foi com ela, depois de uma olhada.
Sawyer deu mais uma espiada.
— Você vai ficar bem?
— Desde que esteja usando isso — e indiquei a coleira. Ele deu uma espiada em
Jimmy, depois em mim.
— Não deixe que ele a faça se sentir culpada. Era o único jeito.
Minhas sobrancelhas se ergueram.
— Isso, vindo do homem que tentou me convencer a deixar todo mundo apodrecer.
— Sabia que você não faria isso.
Algumas vezes eu achava que Sawyer me conhecia melhor do que eu mesma.
Ele seguiu os outros, e me virei para Jimmy. Um dia ele me perdoaria? Com sorte,
mais rápido do que eu o perdoara.
Cruzei o chão de pedra, ignorando a dor em meus pés descalços, e fiquei de pé
atrás dele. Lá embaixo, a casa de Summer era novamente um chalé irlandês. Seu verde
gramado de primavera estava salpicado de estátuas de gárgulas. Suspeitei que eles
ficariam daquele jeito até que os demônios não estivessem mais ali.
— Eu... — Parei, incerta quanto ao que dizer em seguida. Não seria "sinto muito",
porque não estava arrependida.
— Eu lhe pedi que não fizesse, Lizzy. Implorei. Eu estava lá. Sabia o que tinha
acontecido.
— Você me deixou torná-la má por nada: Levantei a cabeça.
— Não foi por nada.
Ele se virou, o semblante furioso, os olhos tristes.
— Os Grigori estão à solta. Para que serviu tudo isso?
— A mulher de fumaça está morta.
— Você ouviu Ruthie. Existem outras como ela.
Eu ouvira Ruthie, mas ainda não acreditava que houvesse algo exatamente como
ela por aí.
— Ela tinha de morrer.
E eu era a única que podia matá-la.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)
— Você traiu minha confiança, Lizzy.
— Então, estamos quites.
— Querida — murmurou ele —, isso é algo que nunca estaremos.
Acho que ele seria tão compreensivo com minha traição quanto eu fora com a dele.
Aquilo magoou, mas eu mereci.
— Você não entende o que fez — ele falou. — Vai haver conseqüências.
— Sempre há.
— Não como essas.
Ele parecia tão triste e deprimido que eu não sabia o que fazer, exceto o que fazia
melhor. Seguir em frente.
— Você vai voltar comigo? — perguntei. Ou vou ter de obrigá-lo?
Seu olhar foi atraído na direção daquele estranho uivo que tinha respondido ao
meu chamado furioso, mais cedo. Havia alguma coisa lá. Várias coisas, na verdade.
— Sim — respondeu Jimmy. — Estou indo.
O trabalho era o que importava; Jimmy soubera disso muito antes de mim.
— Mas estou começando a pensar que...
Sua voz falhou; o que vi em seu rosto me assustou. Dei um passo à frente e pus a
mão em seu ombro. O que ele não havia dito passou pela minha cabeça e saiu pela
minha boca.
— Não importa o que façamos — murmurei. — O Apocalipse acontece.

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Lori Handeland - O Apocalipse pode Esperar (Bianca 914)

CELESTE BRADLEY é autora de treze romances históricos. Depois de morar em


oito estados. Celeste diz que a melhor coisa em ser escritora é poder relatar as
experiências acumuladas em suas andanças pelo país. Atualmente ela mora na
Califórnia.

Clássicos Históricos
Romances do Século XIX

Leia na edição 446

Desejo e Sedução

Inglaterra, 1813.
Ninguém imagina a situação de desespero que levou Collis Tremayne a se tomar o
mais habilidoso espião a serviço da Coroa. O único obstáculo em seu caminho é Rose
Lacey uma mulher astuta, que consegue ludibriá-lo com perspicácia e coragem. Rose é a
única mulher que não se deixa desarmar pelo sorriso irresistível de Collis. Ele gostaria de
nunca tê-la conhecido, com a mesma intensidade com que deseja possuí-la...
Rose batalhou muito para superar os desafios de se tornar espiã do Clube dos
Impostores, e se não fosse por Collis, que a deixa furiosa com sua arrogância e sem
fôlego com seu olhar sedutor, ela teria alcançado seu sonho. Agora, eles tem de trabalhar
juntos em uma missão secreta a fim de desmascarar uma trama perigosa, que ameaça a
segurança da Inglaterra. Armados com sagacidade e truques, eles precisam enfrentar
uma intriga mortal, inimigos ardilosos e uma paixão inesperada e inebriante...

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