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Núcleo de Educação a Distância

LETRAS 1
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Núcleo de Educação a Distância

Créditos e Copyright

AGAZZI, Giselle Larizzatti.

Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Giselle Larizzatti


Agazzi. Santos: Núcleo de Educação a Distância da UNIMES,
2013. (Material didático. Curso de Letras).

Modo de acesso: www.unimes.br

1. Ensino a distância. 2. Letras. 3. Literatura. I. Título

CDD 800

UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

PLANO DE ENSINO

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CURSO: Licenciatura em Letras

COMPONENTE CURRICULAR: Literatura Africana de Língua Portuguesa

SEMESTRE: 6º

CARGA HORÁRIA TOTAL: 80h

EMENTA

Estudo de obras literárias (prosa e poesia) de países africanos de língua oficial


portuguesa, em seus aspectos nacionais diferenciais e traços constitutivos
semelhantes. Literatura, colonialismo e engajamento. A literatura africana de língua
portuguesa no macrossistema literário: aproximações possíveis.

OBJETIVO GERAL

Proporcionar um olhar mais amplo e aprofundado sobre os modelos de história


literária e o cânone, a partir da reflexão sobre asliteraturas africanas de língua
portuguesa.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

UNIDADE I- Contextualização das literaturas africanas de língua portuguesa:


uma perspectiva comparada.

Ler e analisar textos representativos das estéticas estudadas.

UNIDADE II-Angola e a formação da literatura africana. A práxis literária.

Oferecer subsídios teóricos e práticos para a compreensão das produções literárias


do Realismo à contemporaneidade.

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UNIDADE III-Moçambique e a Literatura na rota do oriente. A práxis literária.

Oferecer subsídios teóricos e práticos para a compreensão das produções literárias


do Realismo à contemporaneidade.

UNIDADE IV- Outras literaturas: Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné
Bissau.

Oferecer subsídios teóricos e práticos para a compreensão das produções literárias


do Realismo à contemporaneidade.

Bibliografia Básica

ABDALLA JUNIOR, B. De voos e ilhas. São Paulo: Ateliê Ed., 2003.

AMÂNCIO, Iris Maria da Costa. Literaturas africanas e afro-brasileira na prática


pedagógica. Belo Horizonte, Autêntica, 2008.

SANTILLI, M. A. Paralelas e tangentes entre literaturas de língua


portuguesa. São Paulo: Arte&Ciência, 2003.

Bibliografia Complementar

AGAZZI, G. L. “O romance em Angola: ficção e romance em Pepetela”. Revista


Imaginário. v.12, n.13. (disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo. Acesso
fevereiro de 2014.

CANDIDO, Antonio. A Literatura e a Formação do Homem. Ciência e Cultura. São


Paulo, v.24, n.9, 1972.

CANIALDO, B. J. Percursos pela África e por Macau. São Paulo: Ateliê Ed., 2005.

GOMES, S. C. Cabo Verde: literatura em chão de cultura. São Paulo: Ateliê. Ed.,
2008.

SANTOS, B. de S. Pela mão de Alice. 13ª ed. São Paulo: Cortez Ed, 2010.

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Webgrafia:

CAETANO, Marcelo José. Itinerários Africanos: do colonial ao pós-colonial


nas literaturas africanas de língua portuguesa. Revista de História e Estudos
Culturais, v. 04, 2007, http://www.revistafenix.pro.br/PDF11/Dossie.artigo.6. Acesso
em julho de 2013.

CHAVES, Rita. “A pesquisa em torno das Literaturas Africanas de Língua


Portuguesa: pontos para um
balanço”.http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/07. Acesso em agosto de
2013.

METODOLOGIA

As aulas serão desenvolvidas por meio de recursos como: videoaulas, fóruns,


atividades individuais, atividades em grupo. O desenvolvimento do conteúdo
programático se dará por leitura de textos, indicação e exploração de sites,
atividades individuais, colaborativas e reflexivas entre os alunos e os professores.

AVALIAÇÃO

A avaliação dos alunos é contínua, considerando-se o conteúdo desenvolvido e


apoiado nos trabalhos e exercícios práticos propostos ao longo do curso, como
forma de reflexão e aquisição de conhecimento dos conceitos trabalhados na parte
teórica e prática e habilidades. Prevê ainda a realização de atividades em momentos
específicos como fóruns, chats, tarefas, avaliações à distância e Presencial, de
acordo com a Portaria da Reitoria UNIMES 04/2014.

Sumário
Unidade_I: Contextualização..................................................................................................................8
Aula 01_Literaturas africanas e relações literárias...............................................................................10

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Aula 02_Primeiras publicações.............................................................................................................14


Aula 03_Diáspora e Negritude..............................................................................................................17
Aula 04_Nacionalismo e Independência..............................................................................................20
Aula 05_Literatura e Resistência..........................................................................................................23
Aula 06_Formação de professor e as literaturas africanas de língua portuguesa................................25
Aula 07_Lei 11.645/08 na sala de aula.................................................................................................27
Aula 08_Olhares comparados..............................................................................................................32
Resumo_Unidade I...............................................................................................................................37
Unidade I: referências..........................................................................................................................38
Unidade_II_Literatura Angolana e outras discussões...........................................................................39
Aula 09_Os intelectuais e o poder........................................................................................................40
Aula 10_Movimentos literários angolanos...........................................................................................44
Aula 11_Literatura e sociedade............................................................................................................47
Aula 12_Da poesia ao conto angolano.................................................................................................51
Aula 13_Luandino Vieira......................................................................................................................55
Aula 14_Pepetela, uma trajetória inquieta..........................................................................................62
Aula 15_Agualusa, Ondjaki e a literatura contemporânea...................................................................70
Aula 16_Caminhos cruzados: as literaturas de língua portuguesa.......................................................73
Resumo_Unidade II..............................................................................................................................76
Unidade III_Literatura Moçambicana e outras discussões...................................................................77
Aula 17_Gêneros literários e tradição oral...........................................................................................78
Aula 18_José Craveirinha e a africanidade...........................................................................................82
Aula 19_Noémia de Sousa e outras paisagens.....................................................................................86
Aula 20_Mia Couto...............................................................................................................................89
Aula 21_Narrativas curtas e vastos mundos.........................................................................................94
Aula 22_Paulina Chiziane e a condição do feminino............................................................................97
Aula 23_A literatura infanto-juvenil.....................................................................................................99
Resumo_Unidade III...........................................................................................................................102
Aula 24_Caminhos cruzados...............................................................................................................103
Unidade IV_Entre Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau e outros temas. Práticas
pedagógicas........................................................................................................................................105
Aula 25_Claridade e Certeza: momentos decisivos da literatura cabo-verdiana................................106
Aula 26_Entre a utopia e a melancolia: o desejo de evasão e a necessidade de resistir....................109

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Aula 27_Modernismos africano e brasileiro.......................................................................................111


Aula 28_Jorge Amado e Graciliano Ramos entre os escritores de língua portuguesa........................113
Aula 29_Outras literaturas: Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe em perspectiva.............................115
Aula 30_As poéticas das literaturas africanas....................................................................................120
Aula 31_Por uma renovação do olhar: a questão do cânone e das histórias literárias......................124
Aula 32_Práxis literária.......................................................................................................................127
Resumo_Unidade IV...........................................................................................................................130

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Unidade_I: Contextualização

Contextualização das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa: uma


perspectiva comparada

Objetivos:

Na primeira unidade, os objetivos são os de procurar contextualizar as justificativas


apresentadas em nossa “aula inaugural” e acrescentar questionamentos inúmeros,
indicando as perspectivas adotadas ao longo do componente curricular.

Plano de Estudos

Para isso, a Unidade I propõe o seguinte Plano de Estudo:

Aula 01: As literaturas africanas de língua portuguesa e as relações literárias com o


Brasil

Aula 02: Primeiras publicações em África de Língua Portuguesa e o Romantismo


brasileiro

Aula 03: A diáspora africana e o movimento da Negritude

Aula 04: Nacionalismo e Independência: um problema para as literaturas. A Língua


como “categoria identitária” (Maria Aparecida Santilli)

Aula 05: Literatura e sociedade nas letras resistentes: Antonio Candido e Rita
Chaves

Aula 06: A proposta de um componente curricular universitário e a formação inicial


docente: leitura de textos africanos de língua portuguesa

Aula 07: Lei 10.639: na sala de aula

Aula 08: Literatura comparada: Portugal, Brasil e África.

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Aula 01_Literaturas africanas e relações literárias

As literaturas africanas de língua portuguesa e as relações literárias com o Brasil

O processo de independência nas colônias africanas se inicia em meados dos anos


de 1950 e se estende em alguns países por mais de vinte anos. Moçambique e
Angola passaram por mais de vinte anos em guerrilhas, que encontraram o seu fim
oficial (e não real) em, respectivamente, 1975 e 1976.

Os longos e terríveis anos de imperialismo, as constantes guerrilhas, os conflitos


étnicos entre as diversas comunidades instituíram o caos, aprofundado ainda mais
com a guerra civil que se sucedeu entre os movimentos independentistas. O
contexto internacional agravava as crises nacionais, cujo esteio móvel e minado se
encontrava na Guerra Fria: de um lado, estavam os movimentos ligados à antiga
União Soviética, e de outro, os financiados pelos Estados Unidos.

Ricos em matérias primas, os países africanos de língua portuguesa sofreram as


consequências dos anos de dominação e exploração. Em Angola, por exemplo,
depois da independência, iniciou-se a Guerra Civil Angolana, entre os movimentos
libertários. Ela durou até 2002 e causou milhares de mortes.

Esse brevíssimo olhar histórico sugere o quão complexas eram as relações


estabelecidas em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo
Verde. E o quão violentas. Histórias arrasadas pela ação humana hostil não se
recompõem em curtos espaços de tempo. São anos, décadas e às vezes séculos
para que a reconstrução dos vínculos seja possível.

Querendo negar o colonizador, a voz buscada é a do Brasil, país que se formou a


partir de intensa miscigenação e cujas marcas da negritude e africanidade se
espalham por todas as manifestações culturais.

Não é possível dizer que há uma identidade comum a todos os países de língua
portuguesa, mas, dada a sua formação, é possível aproximá-los. As nações
africanas foram criadas na célebre “Conferência de Berlim”, realizada entre 19 de
novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885. Nessa Conferência, houve a criação

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de regras para a ocupação da África pelas várias potências mundiais de modo a


atender os interesses de cada uma e sem respeitar a história das comunidades
originárias.

Por isso, a importância de construir um imaginário comum em torno do qual os


colonizados pudessem reconhecer alguma ligação para afrontar a exploração e a
violência dos povos colonizadores.

É dentro dessas fraturas sociais que se deve olhar, caso se queira adentrar
as literaturas africanas de língua portuguesa. As relações entre as literaturas e a
história são definidas dentro dos contornos da resistência à violência. Esta a
moldura para a formação das literaturas africanas de língua portuguesa, muito bem
construída por Agostinho Neto em “Medo no ar!”:

Em cada esquina

sentinelas vigilantes incendeiam olhares

em cada casa

se substituem apressadamente os fechos velhos

das portas

e em cada consciência

fervilha o temor de se ouvir a si mesma

A história está a ser contada

de novo

Acontece que eu

homem humilde

ainda mais humilde na pele negra

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me regresso África

para mim

com os olhos secos.

A voz do oprimido é, pois, atualizada, entoando canções muito próximas às que se


ouvem em Castro Alves, poeta brasileiro que tecia textos para que fossem
memorizados e declamados. Também essa a intenção de muitos escritores
africanos; afinal, a palavra escrita era acessível a poucos, o que contradizia a
intenção primeira deles, de se espalhar pelo povo. Afinando as intenções,
asliteraturas africanas de língua portuguesa fazem ressoar o papel do Brasil no
imaginário dos escritores

Este poema de Jorge Barbosa (Cabo Verde, 1902-1971) faz ressoar alguma
produção poética brasileira? Leia-o em voz alta e confira a musicalidade do texto:

PRELÚDIO

Quando o descobridor chegou à primeira ilha

nem homens nus

nem mulheres nuas

espreitando

inocentes e medrosos

detrás da vegetação.

Nem setas venenosas vindas do ar

nem gritos de alarme e de guerra

ecoando pelos montes.

Havia somente

as aves de rapina

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de garras afiadas

as aves marítimas

de voo largo

as aves canoras

assobiando inéditas melodias.

E a vegetação

cujas sementes vieram presas

nas asas dos pássaros

ao serem arrastados para cá

pelas fúrias dos temporais.

Quando o descobridor chegou

e saltou da proa do escaler varado na praia

enterrando

o pé direito na areia molhada

e se persignou

receoso ainda e surpreso

pensa n´El-Rei

nessa hora então

nessa hora inicial

começou a cumprir-se

este destino ainda de todos nós.

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Aula 02_Primeiras publicações

O autor José Maia divulgou a verve romântica dos escritores brasileiros,


reconhecidamente de Gonçalves Dias, como se pode identificar no seu poema “À
minha terra”, publicado em 1849:

“De leite o mar - lá desponta

Entre as vagas susurrando

A terra em que scismando

Vejo ao longe branquejar!

É baça e proeminente,

Tem d'Africa o sol ardente,

Que sobre a areia fervente

Vem-me a mente acalentar.

Debaixo do fogo intenso,

Onde só brilha formosa,

Sinto n'alma fervorosa

O desejo de a abraçar:

É a minha terra querida,

Toda d'alma, - toda - vida, -

Qu'entre gozos foi fruída

Sem temores, nem pesar.

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Bem vinda sejas ó terra,

Minha terra primorosa,

Despe as galas - que vaidosa

Ante mim queres mostrar:

Mesmo simples teus fulgores,

Os teus montes tem primores,

Que às vezes falam de amores

A quem os sabe adorar!

(...)”

O poema africano é escrito logo que José Maia regressa do Rio de Janeiro.
Chegando às terras brasileiras, o poeta não se cansa de ler e procurar entender a
literatura nacional, a fim de produzir a sua própria obra, com características
africanas. Para realizar seu intento, estabelece os diálogos intertextuais e, olhando
para o continente latino-americano, trata de negar Portugal. O nacionalismo, a busca
da identidade, a história do povo emergem:

“É em José da Silva Maia Ferreira que se indica uma certa consciência regional,
condição primeira para uma consciência nacional” (FERREIRA, 1977, p.9)

As publicações de José Maia inspiraram outros escritores a lerem a literatura


brasileira e apontam para uma nação que, dada a história, parecia guardar mais
identidade do que o colonizador português.

Deste momento em diante, o Brasil se consolida como nação especular no que diz
respeito à vida literária das últimas colônias portuguesas a conquistarem a
independência. Os escritores de Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-
Bissau e Cabo Verde reconhecem a profunda influência dos escritores brasileiros,
que vão desde o romântico Gonçalves Dias até os modernistas. Carlos Ervedosa,
em Roteiro da Literatura Angolana, analisa esse fenômeno:

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“Desenvolvia-se um fenômeno original, no âmbito das literaturas de


expressão portuguesa, ativado por um conjunto de jovens talentosos
e cultos espalhados por Luanda e pelos centros universitários de
Lisboa e Coimbra (...). Até eles havia chegado, nítido, o ‘grito do
Ipiranga’ das artes e letras brasileiras, e a lição dos seus escritores
mais representativos, em especial Jorge de Lima, Ribeiro Couto,
Manuel Bandeira, Lins do Rego e Jorge Amado, foi bem assimilada”
(ERVEDOSA, s/d, p.84)

Na origem das literaturas africanas de língua portuguesa reverbera, pois, a tradição


literária brasileira, como os próprios críticos africanos observam. Em um curtíssimo
período, cada nação africana foi definindo uma voz literária própria, que trazia as
vozes antigas dos povos africanos, contados nos contos tradicionais. Reconhecê-las
e reconhecer o vigor de cada um dos imaginários enfeixados no registro escrito é,
pois, o nosso desafio.

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Aula 03_Diáspora e Negritude

Os questionamentos sobre as condições em que se originaram as literaturas


africanas de língua portuguesa são muitos e multiplicam-se, quando se pensa na
diáspora africana. A escravidão impôs ao continente algo jamais visto na história
mundial: a mutilação das comunidades, cujas partes, espalhadas pelo mundo,
sofreram as misérias físicas e morais e não seriam mais as mesmas.

Espelhados pelos mundos, os negros foram tratados como “raça inferior”, o que
arrasou gerações e gerações das populações africanas. Como se não bastasse,
pensando no continente africano, as fronteiras entre os territórios foram impostas
segundo interesses econômicos das potências e não segundo a identidade entre as
diversas comunidades ali existentes.

As consequências de tão terrível evento histórico se sentem, e os números mostram


que a população negra está entre a maioria dos pobres. Em 2013, houve a primeira
Conferência Ministerial sobre a Diáspora Africana, que, por motivos diferentes,
permanece. O caos e as péssimas condições de vida em que muitos países se
encontram justificam a imigração dos africanos em busca de melhores condições de
vida.

Nesse contexto, Rita Chaves (1999) observa que a perda da “harmonia” então
existente nas comunidades traz problemas que vão do relacionamento entre as
pessoas até os modos de expressão. O silêncio imposto pela colonização, pela
violência cotidiana, será substituído pelas palavras, mas que terão de ser
reinventadas. Em sociedades ágrafas, em que o registro escrito não se fazia
necessário, é urgente forjar novas formas de narrar. Mais do que isso, é preciso
descobrir quais “estórias” serão narradas em um mundo em que a ‘árvore’ perde seu
valor simbólico:

“Que tipo de palavra ganhará a atenção daqueles que já não se sentam à volta da
fogueira, mas guardam do gesto uma funda saudade? Que elementos substituiriam
a árvore, a comida, a música? Que sinais terá deixado nas ‘estórias’ de hoje a

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tradição tão fortemente evocada? Ou seja como, por que e por quem se dá o ato de
narrar?” (CHAVES, 1999, p. 19)

Impulsionadas por esse “ato de narrar”, as nações africanas assistem a um forte


movimento internacional de valorização da raça negra. Aimé Césaire, um dos poetas
negros mais populares da América Latina, nascido na Martinica, foi o criador do
termo “negritude”. Com ele, Césaire procurava incitar os povos da África espalhados
pelo mundo a valorizarem a cultura negra. Em 1934, os estudantes negros em Paris
lançam a revista L étudiant oir (o Estudante Negro), que procurava combater a
política de assimilação dos negros à cultura europeia.

O movimento da “Negritude” foi fundamental para fortalecer os movimentos de


independência dos países africanos ainda colônias nos anos de 1960, denunciado
os abusos e as violências praticadas pelos colonizadores contra os colonizados.
Mais adiante, nos estudos relativos a José Craveirinha e a africanidade, o assunto
será retomado, a fim de evidenciar como a questão do “ser negro” influenciou a
literatura dos países africanos de língua portuguesa.

Para refletir, vale ler o poema de Agostinho Neto (1922-1979), eleito o primeiro
presidente negro de Angola livre:

Voz do sangue

Palpitam-me

os sons do batuque

e os ritmos melancólicos do blue

Ó negro esfarrapado do Harlem

ó dançarino de Chicago

ó negro servidor do South

Ó negro de África

negros de todo o mundo

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eu junto ao vosso canto

a minha pobre voz

os meus humildes ritmos.

Eu vos acompanho

pelas emaranhadas áfricas

do nosso Rumo

Eu vos sinto

negros de todo o mundo

eu vivo a vossa Dor

meus irmãos.

Entre movimentos sociais mais ou menos intensos, a negritude acompanhou os


movimentos revolucionários do período. Nos Estados Unidos, por exemplo,
consagrou nomes importantes, que vieram a representar a luta dos povos africanos
pelo reconhecimento do valor da raça.

Pense nisto: Embrenhar-se na história do jazz e conhecer os confrontos entre


brancos e negros pelo mundo é uma maneira de se aproximar da história e da
literatura dos países africanos de língua portuguesa. Ética e estética se misturaram
e geraram surpreendentes manifestações artísticas.

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Aula 04_Nacionalismo e Independência

Nacionalismo e Independência: um problema para as literaturas. A Língua


como “categoria identitária” (Maria Aparecida Santilli)

Com um olho na nação do lado de lá do Atlântico e outro na África, os esforços para


a libertação das colônias coincidia com a tentativa de construir uma identidade. A
busca passava necessariamente pela cultura, pela literatura. E a literatura, como se
sabe, não se pode fazer sem a língua. Não se pode esquecer que os países foram
formados à revelia das comunidades pertencentes ao território do continente
africano. As fronteiras foram decididas e muitas línguas, etnias, costumes foram
agrupados. Como se pode ler, por exemplo, em Atlas da Língua Portuguesa na
História e no mundo, em Angola havia 11 grupos linguísticos e em Moçambique,
pelo menos 8 línguas bantas; em São Tomé e Príncipe, dois crioulos; em Cabo
Verde, a língua portuguesa e o crioulo.

A luta pela independência nos dois lados do Atlântico traz um problema crucial para
as nações. Trata-se da íntima relação entre a modernização do Estado e a liberdade
das pátrias. Conquistar a independência do colonizador implicava em assumir um
posicionamento crítico diante das problemáticas internas e da própria noção de
pátria. Como não ver corrompida a perspectiva nacionalista-ufanista de terras que
maltratavam seus povos? Entretanto, ao não idealizar a pátria e vê-la dentro de uma
perspectiva crítica, como construir uma identidade entre as várias comunidades que
habitavam os países africanos de língua portuguesa e então forjar instrumentos de
luta contra a colonização?

Era urgente superar as diferenças e divergências entre os povos e construir uma


identidade que os unificasse – mesmo se temporariamente - em torno do objetivo
comum. Ao intelectual, que não podia se eximir dos problemas que atravessavam a

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nação, coube a tarefa de engendrar o espírito de nação, divulgando visões da


africanidade portuguesa.

Quem somos? O que temos em comum? Qual a pátria que deve ser liberta? Qual o
inimigo comum?

A língua nacional reflete a herança étnico-cultural, vindo a representar a consciência


de um povo sobre si mesmo e sua história. No caso dos países de língua
portuguesa da África, os escritos seguiram a língua do colonizador, mas procuraram
incorporar as diversas línguas nacionais. Como se vê em Portugal, há línguas
nacionais que coincidem com as línguas oficiais, mas em tantos outros países os
falantes das línguas nacionais superam o da língua oficial. Por isso, é impossível
ignorar a força política, econômica, social e cultural das línguas nacionais.

Esse é o quadro de boa parte dos países ora estudados, o que se pode confirmar
por uma estratégia muito usada por diversas editoras, que acrescentam no final do
livro glossários explicativos. Como quer Maria Aparecida Santilli, a língua é uma
“categoria identitária”, porque veicula valores e culturas.

Vivendo os profundos dilemas, o escritor é chamado a responder às questões


expressas, a fim de contribuir para o movimento de independência:

“Para vós carrascos

O perdão não tem nome.

A justiça vai soar

O sangue das vidas caídas

Nos matos da morte

Clamando justiça

É a chama da humanidade

Cantando a esperança

Num mundo sem peias Onde a liberdade é a pátria dos homens”

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(Alda do Espírito Santo)

É exatamente ao longo das lutas pela libertação dos países africanos de língua
portuguesa que se consolidam as literaturas desses países, cujos olhos se voltaram
para o Brasil, na procura de modelos literários. Os problemas do Romantismo
brasileiro, reconhecidos no embate entre o nacionalismo-ufanista e a libertação da
pátria, contribuíram para os africanos pensarem sobre as questões vividas no século
vinte. Para além dos anos de 1976, com o último país africano de língua portuguesa
tendo conquistado sua independência, os diálogos literários entre Brasil e África só
se aprofundaram.

A independência de Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e


Guiné- Bissau evidentemente não repetiu a História Brasileira. Assim como
as literaturas africanas de língua portuguesa também não copiaram as letras
brasileiras. Mas se aproximaram, e muito, projetando inclusive problemas comuns.
Tecendo o imaginário da pátria de todos os povos colonizados, os escritores
encontraram na literatura o terreno fértil para que se fortalecessem as identidades
nacionais.

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Aula 05_Literatura e Resistência

Com a independência e apesar do prolongamento das crises sociais, as nações


africanas de língua portuguesa buscaram se afirmar dentro do continente e para o
mundo, enquanto buscavam a paz e a reconstrução social. Nesse contexto,
surgiram alguns movimentos intelectuais que afirmavam a necessidade de se
construir uma literatura nacional. É a partir dos anos de 1950 e ao longo das guerras
pela independência, que as colônias portuguesas da África conhecem o início da
formação de suas literaturas. Registros literários anteriores já tinham sido
publicados, mas ainda não se reconhecia o que crítico literário Antonio Candido
chama de “sistema literário” e que configura o início de uma literatura vigorosa:

“Entendo aqui por sistema a articulação dos elementos que


constituem a atividade literária regular: autores formando um
conjunto virtual, e veículos que permitem o seu relacionamento,
definindo uma ‘vida literária’: públicos, restritos ou amplos, capazes
de ler ou ouvir as obras, permitindo com isso que elas circulem e
atuem; tradição, que é o reconhecimento de obras e autores
precedentes, funcionando como exemplo ou justificativa daquilo que
se quer fazer, mesmo que seja para rejeitar.” (CANDIDO, 1998, p.
06)

A consolidação dos “sistemas literários” das cinco nações se firma ao longo das
lutas pela independência, imprimindo as várias vozes nacionais. As literaturas
africanas de língua portuguesa seguem percursos próprios depois da
independência, apesar de também guardarem inúmeras similaridades. Como
também as guardam na sua origem e mesmo contemporaneamente com a formação
da literatura brasileira, conforme nos ensina Rita Chaves, ao analisar a literatura
angolana (1999). A formação dasliteraturas africanas de língua

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portuguesa acontecia, segundo a professora, paralelamente às lutas pela


independência. Buscando uma inflexão nacional própria, os países africanos
começam a procurar por outras referências. O Brasil, nesse contexto, é quase uma
escolha natural.

A aproximação das literaturas africanas de língua portuguesa à literatura brasileira


se dá desde a origem daquelas. As informações históricas sobre as relações
literárias entre o Brasil e o império português na África datam já do século XIX,
quando o poeta José da Silva Maia Ferreira, autor de Espontaneidades da minha
alma: Às senhoras africana (1850), esteve no Rio de Janeiro entre os anos de 1834-
1845. É este considerado o primeiro livro africano publicado.

Daquele ano em diante, os escritores brasileiros foram se consolidando como


referência importante para as produções africanas de língua portuguesa. Por que
não olhar para a Europa, continente mãe das artes? A pergunta poderia ter resposta
fácil para um olhar incauto: negar o colonizador português, que insistiu no Império a
despeito de todas as crises econômicas, sociais, humanas.

Mas a resposta não é assim tão imediata, quando se têm em perspectiva os


intrincados históricos dos países africanos da Comunidade de Língua Portuguesa.
Para além da questão da independência, há outra ainda mais premente. Trata-se da
formação de uma literatura nacional, que veicule temática e esteticamente valores
nacionais. Como resgatar e construir um olhar para o que é “próprio da terra”
constitui o desafio que se impõe. O homem que escreve, o intelectual, é chamado a
desempenhar um papel de arqueólogo: por entre os escombros dos terrores vividos,
é preciso encontrar e iluminar o que pode identificar os homens dentro da mesma
nação.

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Aula 06_Formação de professor e as literaturas africanas de língua


portuguesa

As literaturas africanas de língua portuguesa se desenvolveram com mais vigor


depois da independência. O novo contexto impulsionou a construção de novos
componentes curriculares (disciplinas), antes vistos sob o rótulo de “literatura
ultramarina”.

Os cinco países de língua portuguesa criaram condições para a constituição de


tendências diferentes, ainda que similares. Em cada território era preciso fortalecer o
sistema literário proposto por Candido, cujo tripé – autor, obra, público – dependia
da aceleração da alfabetização na língua literária, forjada a partir da língua oficial (e,
não, das línguas nacionais, apesar de essas se mesclarem nas obras).

A produção teórica e crítica se constituirá em diálogo com a tradição crítica europeia,


mas também brasileira. Muitos foram os professores e estudiosos de Portugal e do
Brasil que contribuíram para a formação da literatura nacional. Dentre tantos críticos,
há que se destacar o trabalho desenvolvido na Universidade de São Paulo, com a
professora Maria Aparecida Santilli, responsável por divulgar importantes escritores
africanos. Desde os anos de 1980, a estudiosa reclamava a “descolonização” dos
currículos brasileiros no sentido de que pudessem abarcar as origens do povo
brasileiro, notadamente, nos povos africanos colonizados por Portugal.

Com a adesão de professores como Benjamin Abdala Júnior e Rita Chaves, os


estudos sobre as literaturas africanas de língua portuguesa conquistaram seu
espaço. A tradição crítica se construiu a partir da perspectiva crítica de Antonio
Candido, pautada na valorização da cultura nacional e da busca do profundo diálogo
entre o nacional e o universal, nas relações entre literatura e subdesenvolvimento,
entre dependência cultural e tradição e no reconhecimento da formação dos
sistemas literários dentro de contextos dinâmicos.

Benjamin Abdala, por sua vez, propõe um novo modo de abordar a história da
literatura, o qual tem como força propulsora romper com a maneira canônica de
tratar as obras literárias. Como? A partir da leitura de textos literários significativos

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para o público alvo. Encontrar tais letras é, pois, segundo Benjamin, o desafio do
professor.

As literaturas africanas podem significar a possibilidade de o docente aproximar os


seus alunos dos textos literários, uma vez que os contrapontos entre os diversos
países de língua portuguesa são bastante produtivos.

A professora Rita Chaves deu sua contribuição ao publicar textos sobre as obras de
Angola e de Moçambique. Sua palavra significou uma seleção dentre tanto material
publicado e uma orientação segura para os que se interessavam pelas literaturas de
língua portuguesa. Além disso, a crítica publicou A formação do romance angolano,
livro que consolidou o Brasil entre os países que melhor interpretavam os percursos
literários africanos.

Longe de conhecer esses estudos, o docente, até meados dos anos de 1990, via as
literaturas africanas como algo exótico e distante da cultura brasileira. Foram
necessários congressos, encontros, publicações, aulas para que se pudesse
conceber a formação inicial do professor dentro de uma perspectiva mais ampla.
Afinal, pensar nas literaturas de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e
São Tomé e Príncipe significa mudar a noção de cânone, de estudos literários e da
própria história da literatura.

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Aula 07_Lei 11.645/08 na sala de aula

É de se estranhar um país com a História que tem o Brasil precisar de um conjunto


de leis para afirmar uma ação social contra o racismo nas escolas. O fato é que o
ambiente escolar depende do repertório cultural e da concepção de sociedade da
comunidade que o frequenta, a qual, surpreendentemente, perpetuou durante anos
as mais diferentes formas de discriminação e de opressão social.

A Lei nº 10.639/03, depois transformada com algumas alterações no texto na Lei nº


11.645/08, estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da história e cultura
afrobrasileiras e africanas nas escolas públicas e privadas do ensino fundamental.
Ao ser sancionada a Lei, o Estado assumiu a sua responsabilidade em contribuir
para um conjunto de ações, vistas como indutoras de uma política educacional
voltada para a afirmação da diversidade cultural e da concretização de uma
educação das relações étnico-raciais nas escolas.

Nesse mesmo contexto, em 2009, foi aprovado o Plano Nacional das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2009).

Os indiscutíveis avanços no que diz respeito à legislação precisam ser garantidos


pela prática pedagógica dos professores das escolas públicas e privadas. Todavia,
para que a ação pedagógica se transforme, é preciso alterar o imaginário
pedagógico, que deriva da formação docente inicial e continuada e, mais do que
isso, da própria concepção de cultura e das relações sociais que os professores em
formação possuem.

Não se trata, pois, de disseminar planos de aulas, mas de construir uma perspectiva
que rompa com as anteriores, porque incorpora novos parâmetros

Quais as consequências dessa transformação para o ensino da literatura?

Elas são radicais. Primeiro, porque o professor em formação deverá abandonar os


manuais e a tradição fundada em torno da literatura europeia; segundo, porque esse
mesmo aluno, aspirante a docente, deverá priorizar a leitura ou dos contos
tradicionais africanos, ou das modernas literaturas africanas, ou mesmo das

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manifestações literárias afrodescendentes; terceiro, porque os dois primeiros


aspectos quebram com a concepção tradicional de cânone literário e de história
literária.

Em poucas palavras, a Lei 11.645/08, se levada a sério, como deve ser levada,
instaura uma nova concepção de ensino de literatura.

O professor em formação precisa estar preparado para romper e propor. Para tanto,
é necessário ler os textos africanos e afrodescendentes. Somente depois, sim, ler o
que se tem publicado em termos de planos de aula, propostas pedagógicas,
sequências didáticas.

A Lei não deve, nesse sentido, levar o docente a repetir os modos antigos de
ensinar literatura. Mas deve levá-lo a defender o ensino da literatura a partir da
leitura dos textos africanos. Somente assim os alunos poderão dialogar
genuinamente com os valores, a ética, a estética africana e afrodescendente.

Benjamin Abdala Júnior (2002) em seu “História Literária e o Ensino das Literaturas
de Língua Portuguesa” afirma:

“A história literária faz-se de impactos sobre o leitor, de forma análoga aos motivos
de sedução do canto épico. Sensibilizam aqueles que têm ouvidos e que aceitam o
desafio. Nessa viagem, estão organicamente ligados o herói e seus marinheiros
(...)”. (2002, p. 37)

O impacto a que se refere o professor Benjamin advém do próprio texto literário. As


literaturas africanas podem significar, para o docente em formação e já formado, a
revalorização dos estudos literários, da educação literária nas escolas, uma vez que
o universo dos países de língua portuguesa da África dialogam com o universo
literário do Brasil sob inúmeros pontos de vista.

Quais seriam essas aproximações? E as diferenças? Para aguçar os sentidos,


seguem fragmentos do belíssimo poema do cabo-verdiano Jorge Barbosa:

Você, Brasil

(para o poeta Ribeiro Couto)

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Eu gosto de você, Brasil,

porque você é parecido com a minha terra. (...)

E o seu povo que se parece com o meu,

que todos eles vieram de escravos

com o cruzamento depois de lusitanos e estrangeiros.

E o seu falar português que se parece com o nosso falar,

ambos cheiros de um sotaque vagaroso,

de sílabas pisadas na ponta da língua,

de alongamentos timbrados nos lábios

e de expressões terníssimas e desconcertantes.

É a alma da nossa gente humilde que reflete

A alma da sua gente simples,

Ambas cristãs e supersticiosas,

sortindo ainda saudades antigas

dos sertões africanos,

compreendendo uma poesia natural,

que ninguém lhes disse,

e sabendo uma filosofia sem erudição,

que ninguém lhes ensinou.

E gosto dos seus sambas, Brasil, das suas batucadas.

dos seus cateretês, das suas todas de negros,

caiu também no gosto da gente de cá,

que os canta dança e sente,

com o mesmo entusiasmo

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e com o mesmo desalinho também...

As nossas mornas, as nossas polcas, os nossos cantares,

fazem lembrar as suas músicas,

com igual simplicidade e igual emoção.

Você, Brasil, é parecido com a minha terra,

as secas do Ceará são as nossas estiagens,

com a mesma intensidade de dramas e renúncias.

Mas há no entanto uma diferença:

é que os seus retirantes

têm léguas sem conta para fugir dos flagelos,

ao passo que aqui nem chega a haver os que fogem

porque seria para se afogarem no mar...

Eu gosto, de Você, Brasil (...)

Eu gostava de ver de perto um lugar no Sertão,

d de apertar a cintura de uma cabocla — Você deixa? —

e rolar com ela um maxixe requebrado.

Eu gostava enfim de o conhecer de mais perto

e você veria como é que eu sou bom camarada.

Havia então de botar uma fala

ao poeta Manuel Bandeira

de fazer uma consulta ao Dr. Jorge de Lima

para ver como é que a poesia receitava

este meu fígado tropical bastante cansado.

Havia de falar como Você

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Com um i no si

— “si faz favor —

de trocar sempre os pronomes para antes dos verbos

— “mi dá um cigarro!”.

Mas tudo isso são coisas impossíveis, — Você sabe?

Impossíveis”.

Ao fim da leitura, fica a pergunta: o que este poema comunica hoje? Aliás, ele
comunica algo?

Se a resposta for positiva, o professor não precisa titubear, pode propor a


leitura em sua sala de aula. Ou um aluno do nono ano não acessaria os
sentidos poéticos? Ele não conseguiria perceber diálogos possíveis com sua
realidade?

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Aula 08_Olhares comparados

O privilégio do olhar comparado não é gratuito. Vem pautado nas aproximações


entre os países cuja língua oficial é a portuguesa e deriva dos diálogos intertextuais,
visto nas aulas anteriores. Para além, também há que se privilegiar a prática de ler
os textos segundo os contrapontos possíveis, porque essa prática significa uma
transformação no modo canônico de tratar a literatura, como nos mostra Benjamin
Abdala Júnior (2002).

Como visto anteriormente, as literaturas africanas têm no Brasil um modelo


exemplar, mas que não anula a influência dos autores e obras portuguesas. Ao
contrário, não se pode esquecer que muitos escritores africanos foram estudar em
Portugal ou eram filhos de portugueses, o que garantia um dialogo íntimo entre as
culturas.

Dentro desse contexto, é inevitável procurar compor uma perspectiva crítica que
abarque os países de língua portuguesa desde a consolidação dos sistemas
literários mais jovens, a saber, os africanos. Pode-se refletir sobre possibilidades de
trabalho com as literaturas de língua portuguesa a partir da colonização. Do período
colonial, pode-se pensar na produção feita nas primeiras décadas do século XX na
África, quando as literaturas de língua portuguesa começaram a ser produzidas de
modo mais sistematizado.

O poeta Rui Noronha (de Moçambique) foi, ao lado de Costa Alegre (de São Tomé e
Príncipe), um dos fundadores da poesia africana de língua portuguesa. Expressando
de um modo ainda bastante “colonizado” e “assimilado” a sua dor diante do
espetáculo da opressão, o poeta vive suas contradições:

Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.

Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo…

O progresso caminha ao alto de um hemisfério

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E tu dormes no outro o sono teu infindo...[…]

Desperta. Já no alto adejam negros corvos

Ansiosos de cair e de beber aos sorvos

Teu sangue ainda quente, em carne de sonâmbula...

Desperta. O teu dormir já foi mais que terreno...

Ouve a voz do Progresso, este outro Nazareno

Que a mão te estende e diz: — Africa, surge et ambula!

Suas poesias, todas concebidas em Portugal, revelam - também quando escondem


– as relações entre as literaturas. Para tanto, basta pensar na forma soneto,
escolhida pelo poeta. A atualização de uma forma clássica e até mesmo do latim
entre os versos aponta para as primeiras produções brasileiras, por exemplo, do
período do Arcadismo.

Esse período da história literária brasileira impulsiona outras reflexões, agora,


relacionadas às relações entre os intelectuais, os artistas e o poder. O empenho dos
escritores em causas como a Independência lhes custou o sacrifício de diversos
projetos pessoais, quando não da própria vida. O escritor brasileiro Tomás Antonio
Gonzaga, acusado de conspirar contra o Império português, foi obrigado, em 1789, a
se exilar em Moçambique. O que de início foi um degredo depois se tornou opção: o
poeta casou-se e constituiu família.

Um dos principais escritores moçambicanos escreveu sobre tão inesperado


acontecimento histórico

Do Arcadismo ao Romantismo, há entre inúmeros paralelos, por exemplo, entre a


poesia de Castro Alves e José Craveirinha, em cuja obra a oralidade marca a poesia
para ser declamada. A ‘invasão’ da linguagem falada no plano literário é um aspecto
importante para pensar o Romantismo e a construção do imaginário romântico do
período. Para além dessa aproximação, há a própria formação do romance africano

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de língua portuguesa como ponte para reflexões sobre a consolidação das


narrativas longas nos países colonizados

Como se pode notar, há inúmeras possibilidades de reflexão em torno dos


exercícios de comparação.

Para aguçar os sentidos, fica a proposta de leitura e análise dos textos publicados
por dois autores cabo-verdianos lidos, em sua nação, como antagonistas no que diz
respeito ao lugar que ocuparam nas lutas pela independência e pela construção de
Cabo Verde:

“Pedirei

Suplicarei

Chorarei

Não vou para Pasárgada

Atirar-me-ei ao chão

e prenderei nas mãos convulsas

ervas e pedras de sangue

Não vou para Pasárgada

Gritarei

Berrarei

Matarei

Não vou para Pasárgada.”

(Ovídio Martins)

Itinerário de Pasárgada

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Saudade fina de Pasárgada...

Em Pasárgada eu saberia

onde é que Deus tinha depositado

o meu destino...

E na altura em que tudo morre...

(Cavalinhos de Nosso Senhor correm no céu;

a vizinha acalenta o choro do filho rezingão;

Tói Mulato foge a bordo de um vapor;

o comerciante tirou a menina de casa;

os mocinhos da minha rua cantam:

Indo eu, indo eu

a caminho de Viseu...)

Na hora em que tudo morre,

esta saudade fina de Pasárgada

é um veneno gostoso dentro do meu coração.

(Baltasar Lopes)

A leitura dos poemas é incompleta sem uma cuidadosa análise de “Vou-me embora
pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira. O curioso é que, uma vez que se tem contato
com os textos poéticos cabo-verdianos, a interpretação do poema brasileiro ganha
novos contornos e formas. Sem dúvida, a grandeza do trabalho comparado se
evidencia ao leitor que não perde a prática de investir na sua própria educação
literária.

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Resumo_Unidade I

Nessa Unidade, procurou-se contextualizar as literaturas africanas de língua


portuguesa segundo a perspectiva comparada e a partir dos textos teóricos,
publicados por Antonio Candido, Maria Aparecida Santilli, Benjamin Abdala Jr e Rita
Chaves.

Objetivou-se evidenciar como os estudos das literaturas africanas de língua


portuguesa podem significar uma mudança radical no ensino da literatura, uma vez
que rompem com os modos tradicionais de tratar a literatura e com as obras
canônicas.

A incorporação das literaturas de Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e


Príncipe e Guiné-Bissau nas práticas pedagógicas dos professores de língua e de
literatura significa a possibilidade de formar leitores entre o público jovem,
interessados e envolvidos, pois que as obras e os autores muito têm a comunicar ao
público brasileiro.

Por fim, a discussão em torno da Lei 10.639/08 apontou para a busca da


compreensão da necessidade de ensinar e de aprender as culturas que fazem parte
da nação brasileira. Ao fim, a ênfase é a de instigar os professores em formação
inicial a conhecerem e se aprofundarem nos estudos literários africanos de língua
portuguesa, a fim de que tenham condições para continuarem a pesquisar e a
praticar planos de aula significativos para seus alunos.

LETRAS 38
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Unidade I: referências

Referências bibliográficas

ABDALA Jr., Benjamin. “Utopia e dualidade no contato de culturas: o nascimento da


literatura cabo-verdiana”. In: LEÃO, Ângela Vaz (org). Contatos e
ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte, PUC
Minas, 2003, pp.209-236).

___________________. “História Literária e o Ensino das Literaturas de Língua


Portuguesa”. In: De Vôos e Ilhas. Literatura e Comunitarismos. Ateliê Editorial, São
Paulo, 2002, pp. 33 a 48.

CHAVES, Rita. Formação do romance angolano. São Paulo, Via Atlântica, 1999.

____________. “O Brasil no Imaginário Nacionalista Africano: O trânsito das Letras


e o roteiro das utopias”. In: MENEZES, Jaci M. F. Relações no Atlântico Sul. História
e Contemporaneidade. Salvador, UNEB, 2003, p.p. 39-48.

SANTILLI, Maria Aparecida. Africanidades. São Paulo, Ática, 1986.

SANTO, Alda do Espírito. É nosso o solo sagrado da terra. Poesia de protesto e de


luta. Lisboa, Ulmeiro, 1978.

Webgrafia

http://www.portaldaliteratura.com/livros.php?livro=3591#ixzz1XxHpunIo

FERREIRA, Manuel; Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Lisboa,


ICALP, 1977. Disponível em
http://www.instituto-camoes.pt/cvc/bdc/eliterarios/006/bb06.pdf, consultado em junho
de 2013.

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Unidade_II_Literatura Angolana e outras discussões

UNIDADE II

Angola e a formação da literatura africana. A práxis literária.

Objetivos:

Na segunda unidade, os objetivos são desenvolver habilidades e competências


leitoras, a fim de promover a educação literária nas letras angolanas; refletir sobre
as relações entre literatura e subdesenvolvimento e literatura e sociedade.

Plano de estudos:

Para tanto, a Unidade II propõe o seguinte Plano de Estudo:

09. Os intelectuais e o poder na África de Língua Portuguesa.

10. A Casa do Império, a geração de 50, a União dos Escritores Angolanos e a


modernidade literária em Angola.

11. Literatura e resistência: uma geração de escritores políticos ou de políticos


poetas e ficcionistas

12. Da poesia ao conto “A Menina Vitória”, de Arnaldo Santos. Os “signos da


identidade” e a luta contra todas as formas opressão.

13. O musseque como matriz: narrativa de José Luandino Vieira.

14. Pepetela: uma trajetória inquieta.

15. José Eduardo Agualusa, Ondjaki e a literatura contemporânea.

16. Caminhos cruzados: as literaturas de língua portuguesa.

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Aula 09_Os intelectuais e o poder

A formação dos países africanos de língua portuguesa foi pautada por conflitos
intensos, vividos desde a escravidão, passando pelos os processos de colonização
de exploração, até a profunda guerra civil que se seguiu às independências e que
alguns países conheceram. Angola foi um deles. A luta armada, estimulada pelas
duas potências da época, Estados Unidos e antiga União Soviética, penetrou no
tecido social, gerando inúmeras consequências.

Em contextos em que a opressão é permanente, como afirma Antonio Callado, o


“intelectual não tem o direito de se eximir”. E não tem por quê? Porque, como
continua Callado, há muito o que fazer pelo povo, pela nação, pela organização
social. E não pode se eximir de quê? Da construção da história, ou melhor, da
consecução e preservação de um mínimo de justiça, da projeção de uma imagem de
país viável, da busca de minimizar as violências mais brutais.

O longo período de exploração do continente africano e da raça negra deixou


marcas profundas. Entre a língua do colonizador e a língua do colonizado, a
distância era enorme. Poucos dominavam plenamente a língua portuguesa e menos
ainda sabiam ler e escrever. É até contraditório pensar em “taxas de analfabetismo”
nas comunidades de Angola, se se pensar que elas eram predominantemente
ágrafas.

A independência foi conquistada e por muitos intelectuais, filhos de portugueses ou


nascidos em Portugal, todos pertencentes à elite e que foram estudar na colônia. A
maior parte dos livros do pré-independência até pelo menos o final dos anos de
1990 foram escritos com a preocupação de forjar a cultura nacional.

Agostinho Neto, primeiro presidente de Angola, expressou em versos as relações


entre literatura e poder:

Medo no ar!

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Em cada esquina

sentinelas vigilantes incendeiam olhares

em cada casa

se substituem apressadamente os fechos velhos

das portas

e em cada consciência

fervilha o temor de se ouvir a si mesma

A historia está a ser contada

de novo

Acontece que eu

homem humilde

ainda mais humilde na pele negra

me regresso África

para mim

com os olhos secos.

Nascido em Catete, Angola, em 1922, Agostinho Neto faleceu em 1979. Fez seus
estudos em Angola, vindo a se licenciar em Medicina pela Universidade de Lisboa.
Vinculado às atividades políticas em Portugal, fundou a revista Momento. Como
outros escritores africanos, foi preso e desterrado para Cabo Verde, Tarrafal. Sua
biografia de vida, seu envolvimento político e literário, evidenciam as inextrincáveis
ligações entre literatura e resistência, arte e poder.

Em termos narrativos, estão entre os livros mais célebres da literatura angolana, o


belíssimo As aventuras de Ngunga (1973), de Pepetela. O livro foi escrito quando o
escritor percebeu que as crianças em fase escolar só tinham acesso aos livros do
colonizador, isto é, ao material que veiculava a ideologia de Portugal, distante,

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portanto, do imaginário angolano. O romance é icônico no que diz respeito à relação


entre o intelectual e a organização social, como o próprio escritor – depois vindo a
ocupar cargos políticos – explica:

O Ngunga não ia ser livro. Eu estava no Leste e estava a fazer um levantamento das
bases do MPLA, pela primeira vez ia-se saber quantas bases havia, quantos
homens havia, quantas armas...eu ia de base em base e ao mesmo tempo
acompanhava o ensino, dava uma ajuda aos professores com os manuais de
matemática que eram da Ex RDA, demasiado modernos, e os professores tinham
dificuldades com eles, comecei também a aperceber-me que os miúdos só tinham
os livros da escola para ler o português, conclui que era preciso fazer textos de
apoio, é aí que começa o Ngunga. Eram textos muito simples que pouco a pouco se
iam tornando mais complexos. Como ainda assim não era suficiente os textos eram
traduzidos para Mbunda e depois eu tentava dar-lhes regras gramaticais
reescrevendo o Mbunda, assim os miúdos podiam aprender a ler na sua língua e
recorrer a ela sempre que tivessem dificuldade nalguma palavra em português.
Quando acabei cheguei à conclusão que aquilo era uma estória, dei-lhe um fio
condutor e mais tarde decidimos publicá-lo.

O livro, construído para divulgar a cultura nacional, cumpre com o que Pepetela julga
ser fundamental:

Creio que a literatura nacional é elemento indispensável, tão


importante como outro qualquer, para a consolidação da
independência. É um fator que ajuda a aumentar a unidade nacional,
por ser veículo de situações, modos de vida e de pensar, dentro do
País, (...) Pode ser exagero – é caso para se discutir – mas afirmo
que não há, não pode haver, a criação dum país verdadeiramente
independente sem uma literatura nacional própria, que mostre ao
povo aquilo que o povo sempre soube: isto é, que tem uma
identidade própria (SALGADO, 2000, p. 303).

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A literatura angolana se forma dentro desse amplo contexto a que se refere


Pepetela, com a perspectiva de construir uma identidade própria, que unisse as
comunidades em torno de questões comuns. A língua, como se viu, é um problema,
seja por serem várias no período da independência, seja por significar o poder do
colonizador. Entretanto, esta é, talvez, a beleza maior da literatura angola, a busca
genuína de superação das dificuldades.

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Aula 10_Movimentos literários angolanos

Ao longo das lutas pela independência de Angola, muitos movimentos culturais


surgiram e em diversos locais. A Casa dos Estudantes do Império foi, sem dúvida,
uma das mais significativas agremiações, pois que reuniu diversos jovens dos
territórios ultramarinos, que estudavam na metrópole. Foi oficialmente fundada em
1944, por proposta do então ministro das Colônias, de Portugal, Vieira Machado.

Mal imaginava o ministro que a Casa seria um foco revolucionário de grande


repercussão. Vindo a publicar a revista Mensagem, o boletim mensal da Casa, o
grupo defendia a independência das colônias e afirmava a valorização da raça
negra. A partir dessa publicação, costuma-se pensar no surgimento e consolidação
da literatura de Angola.

Em 1950, eclode o movimento Novos Intelectuais de Angola, responsáveis por


fomentar a cultura e difundir a palavra literária, as quais tiveram importante papel na
superação do estatuto de colônia. Entre o colonizador e as comunidades angolanas,
os intelectuais evidenciam a tensão resultante da convivência entre os dois
universos em conflito. Luanda é a capital do Império e nela se desenvolvem os
movimentos culturais mais contestadores:

Luanda toma a primazia quanto à produção dos primeiros textos


literários com uma intencionalidade política determinada. São os
mesmos homens da revista Mensagem que encaminharão os seus
textos cada vez mais para uma reivindicação política. Dois factores
explicam, de certa maneira, este pioneirismo: a agudização da
repressão colonial e a necessidade de se enveredar pela luta
armada, daí resultante, assim como a existência na sociedade crioula
dum potencial público leitor. Quem diz potencial público leitor dirá,
perante tais circunstâncias, potenciais guerrilheiros. (1992, p. 24)

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O movimento cultural “Vamos descobrir Angola!”, formado por negros, brancos e


mestiços, iniciava em Luanda, capital do país, um clamor pela necessidade de
consolidação da cultura nacional (“Angolizar Angola” era a frase proclamada para
difundir as intenções do grupo). Esse movimento teve como nomes como os de
Agostinho Neto, Viriato da Cruz, António Jacinto e Mário António. O desejo era
construir uma literatura que se opusesse à portuguesa, pois que essa não
expressava as genuínas intenções do angolano. Também havia um esforço para
que a palavra literária se dirigisse ao povo, incorporando seus sentimentos, sua
natureza, suas dores, sua história.

O Brasil se apresenta como referência aos intelectuais, que buscavam conhecer o


mundo angolano. A literatura surge em permanente diálogo com os mais diversos
textos brasileiros, do Romantismo ao Modernismo. Os escritores buscam explorar as
condições ambientais, o homem e a terra de Angola. Nesse momento, o
Modernismo Brasileiro se apresentava como combativo, contra a alienação e pela
busca das raízes da cultura angolana.

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LETRAS 47
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Aula 11_Literatura e sociedade

Em “literatura e resistência”, a conjunção aditiva ‘e’ chama a atenção, porque, em


um primeiro momento, “literatura” parece estar bastante distante de “resistência”.
Entre a arte e a política, entretanto, os diálogos se firmam de diversas maneiras: a
arte da palavra e a ação prática no mundo se projetam para a relação entre estética
e ética.

Ao fim, a pergunta a ser formulada é como a literatura pode resistir? Aliás, resistir a
quê? Para cada contexto histórico, uma resposta.

Mas o ponto de partida para a reflexão pode estar em António Gramsci, no seu
célebre livro Os intelectuais e a organização da cultura (1982). Segundo o crítico
italiano, o intelectual deve procurar ser um elo de comunicação entre o povo e as
elites, por isso, ele deve estar atento às necessidades e às vozes populares.

Aproximar esta perspectiva dos países africanos de língua portuguesa contribui para
que o leitor compreenda ainda melhor as intenções que percorrem o texto de
Gramsci. Isso, porque a totalidade dos intelectuais nos movimentos pró-
independência tiveram que se posicionar de um ou outro lado, entre os
colonizadores e os colonizados, entre os portugueses e as comunidades. Diante da
tensão do momento histórico, não era possível àquele que sabia ler e escrever, que
conseguia interpretar as relações sociais e a história, calar-se. Como mostra Rita
Chaves em Formação do romance angolano, a literatura era meio de divulgar a
tradição e os valores da raçã, mas não só, porque acaba por ser um permanente
meio de instigar a organização social e as lutas contra o colonizador.

A relação dos escritores com a história dos seus países não é, entretanto, livre de
tensões. Esse percurso se deu grandemente pelo impulso vigoroso dado pela
imprensa, que rompe com o silêncio imposto pela colonização. É comum na
literatura da área se referir a dois grupos de escritores, um que defendia Portugal (e,
portanto, atacava os colonizados) e outro que defendia os africanos (e, portanto,
atacava os colonizadores). Entre esses dois grupos, entende-se que houve quatro

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fases distintas da literatura, a saber: a assimilação, a resistência, a afirmação e a


consolidação.

A assimilação se refere ao momento em que a literatura começa a se consolidar e


os autores reproduzem modelos, fundamentalmente, europeus. A resistência é o
momento em que o escritor procura valorizar o negro e os valores nacionais. A
afirmação é quando há a busca do artista de se ver independente dos de outros
lugares. Por fim, chega-se à consolidação, quando os escritores produzem uma
literatura autônoma.

Tais fases são também vistas em duas frentes, uma que se identifica com a
literatura europeia, em que os europeus são vistos de modo mítico, como se
tivessem chegado às terras selvagens e ajudado o povo local a se civilizar; e outra,
com a construção das literaturas nacionais, em que o europeu é visto como vil e
violento e o povo passa a ser o herói nacional.

Buscar o passado de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé


e Príncipe urge, porque a memória precisa ser construída e registrada. Uma vez que
se propagava a história dos portugueses, aos intelectuais estava a tarefa de
percorrer os becos nacionais e registrá-los em palavra artística. Um país foi
influenciando o outro, mas os que se destacaram, talvez por seu tamanho, foram
Angola e Moçambique

Não à toa, os termos regionais eram incorporados ao plano literário, esses também
significando resistência e possibilidade de romper com os códigos do invasor, antes,
entretanto, visto pelos intelectuais, como salvadores

Na literatura contemporânea dos países de língua portuguesa, o panorama mudou


substancialmente, como já afirmado anteriormente. Entretanto, essa mudança não
torna a literatura produzida até os anos de 1980 de menor qualidade. Ao contrário,
faz com que o leitor leia os textos da época e ainda consiga dialogar com a obra. E
aqui reside o espetáculo da arte: as crises geraram literaturas vigorosas:

Canto para Angola, de Jofre Rocha:

LETRAS 49
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Hei-de compor um dia

um canto sem lirismo

nem tristeza

digno de ti, ó minha terra.

Hei-de compor um canto

livre e sem regras

que de boca em boca vai partir

nos lábios de velhos e meninos.

Será o canto do pescador

com todos os sons do mar

com os gemidos do contratado

nas roças de São Tomé. (...)

Será o canto do povo

o canto do lavrador

e do estudante

do poeta

do operário

e do guerrilheiro

falando de toda Angola

e seus filhos generosos.

LETRAS 50
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O poema de Jofre Rocha como um canto único para todos os povos colonizados e
explorados expõe a necessidade de construir uma identidade comum. Sem dúvida, é
possível aproximar tal história da palavra resistente com a história do Brasil, quando
no Romantismo a nação se torna um valor maior.

LETRAS 51
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Aula 12_Da poesia ao conto angolano.

Da poesia ao conto “A Menina Vitória”, de Arnaldo Santos. Os “signos da identidade”


e a luta contra todas as formas opressão.

A literatura angolana alcança uma larga produção de poesias e de contos desde os


anos de 1950, trazendo em diversos textos uma confluência de gêneros. O escritor
angolano Ruy Duarte de Carvalho declara:

“E assim é que, quando me são postas questões sobre ‘uma


particular maneira’ de uma angolanidade projetada para a
universalidade e sobre uma modernidade ‘dialetizada por valores da
literatura oral’ eu só posso humildemente reconhecer que a poesia é
a minha maneira de estar no mundo.” (CARVALHO, 1990, p.107)

Essa maneira de estar no mundo a que se refere um dos grandes poetas angolanos,
Ruy Duarte de Carvalho, deriva também da importância da oralidade para os vários
gêneros literários, como veremos na aula 17.

A poesia de Angola passa por duas fases, a primeira, conhecida como “escrita
colonial”, e a segunda, como a “escrita moderna e nacional”. A revista Mensagem
marca essa poesia tida como moderna, porque há um distanciamento das formas e
dos modelos de Portugal. O poeta que melhor representa esta ruptura com o
colonizador é Arlindo Barbeitos, cujas experiências formais renovam as vozes
poéticas:

na

leveza do luar crescente

sobe

LETRAS 52
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a ilusão da felicidade

que

teu gesto distraído

me dá

como se

plumas vogando suaves

na brisa

fossem

vida de pássaro apodrecendo

na

leveza do luar crescente

O conto seguiu caminhos semelhantes aos da poesia, adquirindo nos anos de 1970
inflexões nacionais. Muitos são os escritores que alcançaram êxito em suas
produções como Arnaldo Santos, nascido em Luanda a 14 de março de 1935. Após
a independência de Angola, foi diretor do INALD (Instituto Nacional do Livro e do
Disco) e do IAC (Instituto Angolano do Cinema) e um dos fundadores da União dos
Escritores Angolanos (1975). Dentre sua produção, o conto “A Menina Vitória”
aponta para os problemas da formação da identidade angolana, vindo a explorar as
contradições experimentadas pelos naturais da terra.

A leitura e a análise de “A Menina Vitória”, disponível no ambiente virtual da


aprendizagem, são da maior importância, quando se pensa na formação dos
profissionais da educação. Isso, porque o conto discute o papel dual da educação na
sociedade.

Para refletir sobre os sentidos da narrativa, vale partir da reflexão do professor da


Universidade de São Paulo, Kabengele Munanga, sobre a ação violenta da
instituição escolar na vida dos países colonizados: o africano, visto como “um ser

LETRAS 53
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primitivo”, precisaria da ação dos colonizadores, a fim de se “civilizar”. A atitude é


muito parecida com o que Portugal teve em relação ao indígena brasileiro. Nesse
contexto, ainda seguindo Kabengele, a escola se constituiu como um importante
instrumento da colonização e de opressão:

“Convencidos de sua superioridade, os europeus tinham a priori


desprezo pelo mundo negro (...). A ignorância em relação à história
antiga dos negros, as diferenças culturais, os preconceitos étnicos (...)
mais as necessidades econômicas de exploração, predispuseram o
espírito do europeu a desfigurar completamente a personalidade moral
do negro e suas aptidões intelectuais.." (1985, p. 09)

O conto “A Menina Vitória” é um testemunho dessa escola de que fala Kabengele: a


personagem de nome Vitória é uma mestiça, que tinha ido estudar na Metrópole
(Portugal) e se tornado professora em Angola. Tendo assimilado de modo acrítico a
cultura do colonizador, ela incorpora a ideologia dominante, ignorando, como afirma
Kabengele, “a história antiga dos negros, as diferenças culturais, os preconceitos
étnicos”. Vitória, professora da 3ª classe, era uma “mulatinha fresca e muito
empoada”, que renovava o “pó-de-arroz” sempre que podia e evidenciava sua
predileção pelos alunos de cabelos aloirados, lisos. Vitória representa as relações de
poder e de violência, desprezando a língua dos alunos negros e evidenciando a sua
impaciência com eles, principalmente com Matoso e, depois, com Gigi, seu
verdadeiro antagonista:

“Quando o Matoso lia submisso a sua redação, onde pintassilgos


gorjeavam e debicavam cerejas amarelas (o Matoso explicara-lhe
num recreio que as cerejas eram as gajajas do puto), intimamente o
Gigi perguntava-se onde é que ele tinha descoberto tudo aquilo.
“Cada vez pior!...” – rezingava a menina Vitória, que não se
compadecia com os enganos. E continuava a erguer à volta do
Matoso, implacavelmente, um círculo intransponível de desprezo,

LETRAS 54
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onde ele já não se debatia, nem chorava. Apenas no rosto as suas


feições endureciam sob a pressão dos maxilares contraídos.
Exasperava-a.” (1981, p. 35)

O desfecho do conto é bastante simbólico e traz a necessidade da resistência contra


a assimilação acrítica.

LETRAS 55
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Aula 13_Luandino Vieira

Com olhar miúdo, Luandino redescobre o tempo do espaço angolano, ao observar


as pequenas manifestações naturais em um mundo invadido pelo código artificial do
colonizador. O engajamento do escritor, evidencia-se, assim, na tessitura de
narrativas que alcançam outro olhar e traduzem novas possibilidades de existência,
distantes da opressão colonial. Publicou Luuanda (1972); Velhas Estórias (1974); No
Antigamente, Na Vida (1974); A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1974); Vidas
Novas (1975); Nós, os do Makulusu (1975); Macandumba (1978); João Vêncio: os
seus Amores (1979); A Cidade e a Infância (1980); Lourentino, D. Antónia de Souza
Neto e Eu (1981); Kapapa, Pássaros e Peixes (1998); Nosso musseque (2003). O
espaço por excelência do qual flui e para o qual convergem as imagens
vincadamente angolanas das ficções de Luandino são os musseques, bairros
paupérrimos de Luanda, onde habitam, sobretudo, os africanos.

A importância dessa geografia ultrapassa a simples escolha de um pano de fundo


para atuarem os personagens, porque passa a representar o ícone maior do ser
angolano também observado por tantos outros autores angolanos como as Estórias
do musseque, de Jofre Rocha (1980), Baixa e musseques, de Antonio Cardoso
(1985). A pobreza e as carências que impregnam as cubatas (casas feitas de lata,
de entulho, madeira), as balas perdidas que matam os contratados (trabalhos em
regime quase de escravidão), os marginalizados, o medo nas ruas, os personagens
acuados no seu próprio meio, as prostitutas e as crianças largadas, os velhos
deslocados caracterizam os musseques, que ficam para além da fronteira, defronte
às cidades dos brancos. Não à toa, esse, que é o lugar dos discursos populares,
tornou-se das temáticas mais recorrentes na literatura angolana, configurando o que
Tania Macêdo identifica como “prosa do musseque”:

“O fato de convergir para os musseques (...) a atenção dos


ficcionistas angolanos a partir da segunda metade dos anos 1950,
elaborando-se com base nesse espaço imagens artisticamente

LETRAS 56
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trabalhadas de afirmação nacional e de luta pela libertação, que se


integram em um sistema articulado que, por essa razão, influem na
elaboração de outras obras, em outros momentos, leva-nos a
qualificar como decisivo para o sistema literário de Angola o conjunto
de textos que nomeamos de ‘prosa do musseque’”.(MACÊDO, Tania
Celestino de. Da fronteira do asfalto aos caminhos da liberdade
(imagens do musseque na literatura angolana contemporânea). Tese
de doutoramento apresentada em São Paulo, USP, 1990.

Luandino Vieira, cujo nome evidencia sua proximidade com a terra de Angola,
nasceu em Lisboa e, como ele mesmo afirma, foi “criado à vontade nos velhos
musseques da Luanda antiga”, onde construiu sua identidade de escritor africano.
Participou da geração de Cultura e comprometeu-se ativamente com a luta de
libertação nacional. É preso em 1959 e, depois, novamente em 1961, quando
condenado a 14 anos de prisão. Em 1964, é transferido para o Campo de
Concentração do Tarrafal, onde passou, junto a tantos outros presos políticos, oito
anos e onde diz ter escrito mais da metade da sua obra. Depois, em 1972, é
mandado a Lisboa, onde reside desde então, vindo a publicar sua primeira obra,
Luuanda, no qual evidenciará tantos dos aspectos recorrentes da sua obra, como a
denúncia social, a construção da ordem do dever-ser e a negação da ordem
estabelecida, tecidos segundo uma nova língua literária e a ética de vocação
coletiva, da liberdade, justiça e igualdades sociais

Ao lado de nomes como Pepetela, Agualusa, Boaventura Cardoso, a escrita


reinventada das narrativas, que mistura as línguas bantas à portuguesa, inaugura o
terreno fértil da criação de uma dicção própria, cuja inflexão contesta a ideologia do
colonizador (veiculada, evidentemente, pela própria língua) e nacionaliza, no terreno
da prosa, a cultura letrada. Incorporando à palavra escrita a força da oralidade
angolana, Luandino cria nova sintaxe, além de novo vocabulário, percorrendo a
mitologia africana, que pulsa dos aglomerados de gente e de cubatas, nos subúrbios
centrais de Angola. Matriz onde bebem os escritores nacionais, os musseques
geram e guardam antigas tradições e modernas estórias. No mesmo conto de
Luuanda, “Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos” (Luuanda, 1a ed., São Paulo, Ática,

LETRAS 57
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1982.), o autor valoriza a aliança do homem com a natureza, que é rompida,


entretanto, pela violência do europeu que invade a terra e os seres:

“Mas vavó não sente esse barulho da vida à volta dela. Tem o soprar
do vento, o bater dos zincos; nalguns sítios, o cantar da água a
correr ainda e, em cima de tudo, misturando com todos os ruídos, o
zumbir das vozes das pessoas do musseque, falando, rindo, essa
música boa dos barulhos dos pássaros e dos paus, das águas,
parece sem esse viver da gente, o resto não podia se ouvir mesmo,
não era nada. Tudo isso é para vavó muito velho, muito antigo,
sempre a vida dela lhe conheceu todos os anos, todos os cacimbos,
todas as chuvas; e agora, nessa hora, a barriga estava lhe doer, a
cabeça cada vez mais pesada, o corpo com frio. Vontade para ir
dentro da cubata também já não tem; deixa-se ficar assim mesmo,
sentada, as moscas pousadas nos panos pretos, a boca respirando
com força o ar novo que está soprar, os olhos quase fechados…”

Desorganizando os ciclos da vida, o colonizador é o responsável pelas miseráveis


condições de vida, outrora, desconhecidas, que empurrou as pessoas para os
musseques e os escravizou no próprio corpo, ‘com frio’ de tanta chuva e fome. A
imagem do abandono denuncia o descaso da metrópole com o povo e com o
desenvolvimento das colônias: enquanto a mais-velha debate-se para reencontrar
possibilidades de vida, o mais-novo nega-se a se submeter à ordem exploratória e
humilhante do colonizador. Ambos definham no espaço do musseque, que
contamina e é contaminado pela humanidade esgarçada daqueles que o habitam.

A avaliação de Antonio Candido sobre O cortiço de Aluísio Azevedo pode ajudar a


pensar nos musseques de Luandino Vieira:

“Na composição, o cortiço é o centro de convergência, o lugar por


excelência, em função do qual tudo se exprime. Ele é um ambiente,
um meio, físico, social, simbólico -, vinculado a certo modo de viver e

LETRAS 58
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condicionando certa mecânica das relações. Mas além e acima dele


o romancista estabeleceu outro meio mais amplo, a ‘natureza
brasileira’, que desempenha papel essencial, como explicação dos
comportamentos transgressivos, como combustível das paixões e até
da simples rotina fisiológica.” (CANDIDO, O discurso e a cidade, p.
117).

Os muitos contos de Luandino sobre os musseques permite-nos afirmar que


também na obra do autor (e não só, como atesta a tese de Tania Macedo) esse é
um ambiente “um meio, físico, social, simbólico -, vinculado a certo modo de viver e
condicionando certa mecânica das relações”. Espaço vigiado, povoado pela
violência, pela dor, pelas prostitutas e marginalizados de todos os tipos, o musseque
abriga, em sua maioria, os africanos. Daí o espaço apresentar-se também como o
foco de resistência, mesmo quando invadido, estuprado, maculado. No conto “Dina”,
a dimensão da degradação espacial combina, responde, abriga a dimensão da
degradação humana:

“Estes casos passaram no Santa Rosa, em Maio de 61.

Dina estava lá, nessa hora do fim da tarde, quase sem sol já, sentada na porta da
cubata, coçando as pernas. As moscas não lhe largavam na ferida, e nas mãos já
sabiam mesmo o jeito de lhes enxotar. Pelas areias fora, como ainda a luz do dia, as
pessoas voltado no serviço iam-se escondendo, guardar sua tristeza ou alegria nas
cubatas pequenas e escuras, e nas portas e quintais os monas brincavam só (...)

Mas também alegrar como então nesses dias assim, nessas horas de confusão das
pessoas e das coisas, tiros dentro das noites, muitas vezes gritos de cubatas
invadidas, choros e asneiras e mais tiros e depois ainda o fugir de passos, o correr
de jipes com soldados de metralhadora disparando à toa, nas sombras e nas luzes,
nos gatos e nas pessoas?”. (VIEIRA, “Dina”, Vidas novas, p. 13)

Em meio ao fim da tarde, cresce a melancolia de Dina, a protagonista, prostituta,


que a madrinha Mabunda insiste em lhe animar para melhor prestar serviço aos
portugueses, que vigiavam noite e dia o musseque “que mijavam a luz amarela nas
areias vermelhas dos musseques, despindo a luz amarela nas areias vermelhas dos

LETRAS 59
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musseques”. O aperto do lugar, em pequenas cubatas, mimetiza o aperto da alma


de Dina, que não consegue entender que bicho lhe rói o peito, quando tem de deitar-
se com os “gajos” brancos, que matam e oprimem seu povo. Entre as sombras, as
metralhadoras são parte da construção dos musseques, que vieram com a
colonização portuguesa e a formação da cidade de Luanada, sem projeto de
desenvolvimento. Observando as pessoas que chegam do trabalho, “O musseque
apresenta-se sobretudo como o mundo do trabalho, de luta pela sobrevivência, local
de onde homens, mulheres e crianças partem cotidianamente para enfrentar a vida”
(MACÊDO, p. 144). E também dos desempregados, como o neto Zeca, que não
encontra trabalho para sustentar a avó.

A luta de classes invade, assim, os musseques e daí surge para povoar a Baixa,
como no conto “Muadiê Gil, o Sobral e o barril” (In: Velhas estórias), em que os
pedreiros da Construção Gilafo exige que se cumpra a tradição da ‘bandeira’, ou
seja, o patrão deveria entregar-lhes um barril de bebida para que eles
comemorassem o término do trabalho em mais um prédio construído. O conflito
gerado é, também, o conflito entre dois espaços culturais, os vindos do musseque e
os assimilados, portugueses, vindos da cidade Baixa. Entre os dois discursos, a
exploração do dono do capital expressa a conhecida imagem de que os colonizados
são preguiçosos, razão pela qual a civilização não evolui. Os trabalhadores ganham
a disputa, não pela argumentação, mas porque Gil fica com medo, quando ouve
uma lata de café cair. Amedrontado, cede.

A alegria dos trabalhadores em oposição ao medo do dono da empresa, mestre Gil,


ilustra as contradições: “Os primeiros, dando o caráter de seu serviço, dão margem
a reflexões sobre as contradições do sistema, pois, morando em casebres de adobe
no musseque, ajudam a construir prédios de tijolo e cal da Baixa nos quais nunca
irão habitar.” (1990, p. 145)

A apreensão do espaço pelo discurso narrativo, povoado do léxico quimbundo,


nacionaliza o espaço, mas não o naturaliza, dado que o estado de exceção é a regra
da vida dos africanos habitantes do mundo periférico. Vindos do serviço, não
encontram o espaço protegido. Ao contrário, Dina testemunha o assassinato de um
velho pela PIDE, com uma picareta no peito, saindo em sua defesa, enquanto todos

LETRAS 60
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os outros correm para esconderem-se. Presa no camburão, surrada, cuspida, decide


que não mais se deitará com os polícias. Sua decisão, saída da dor de mais uma
cena experimentada no musseque, condensa a imagem desse espaço, a um só
tempo, local de agressão, de opressão, e de resistência. É aí que a afilhada de
Mabunda, mesmo sem perceber, forma a ética de vocação coletiva, que a
impulsiona a defender o velho dos colonizadores, o negro e a sua dignidade.

Segundo a professora Vima Lia de Rossi:

“(...) a história de Dina não é uma história qualquer. Ela pode ser a
história de todas as pessoas que, indignadas com a sua realidade,
podem ser sujeitos de uma história transformadora. O saber
apresentado pelo narrador encontra eco, assim, no saber
demonstrado pela jovem protagonista. Ela é portadora de um senso
moral que, por se referir a valores e a decisões, pressupõe
autodeterminação, liberdade e responsabilidade.” (ROSSI, Cadernos
CESPUC de Pesquisa PUC Minas, 203).

Também em A cidade e a infância, quando Luandino opta pela narração em primeira


pessoa, identifica-se “com o espaço histórico-sociocultural e compromete-se com o
seu discurso”. No romance Nós, os do Makulusu, o musseque surge, mais uma vez,
como o espaço por excelência de morte e de resistência. Em linguagem
transgressiva, por meio de personagens igualmente contestadores, o espaço do
musseque transgride a si mesmo e aos que o habitam continuamente, em um jogo
mussecal (termo utilizado por Luandino Vieira na estória “Candungos, verdianos,
santomistas, nossa gente”, In: Macandumba, p.100), que evita a possibilidade de
estagnação, de estratificação neste lugar que também abriga amores e paixões, o
convívio dos mais-velhos e mais-novos, importante espaço nas lutas nacionalistas.

Espaço sempre em movimento, como as areias de que são feitos os musseques, a


agitação incessante é a responsável pela degradação do lugar, das pessoas, e
também pela projeção de outros devir. Torna-se, assim, moradia de estudantes,

LETRAS 61
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desempregados, prostitutas, pedreiros, mais-velhos e mais-novos, e da coragem, da


resistência, da mudança, afinal, da utopia.

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Aula 14_Pepetela, uma trajetória inquieta

As narrativas de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, depois batizado de


Pepetela nas frentes de guerrilha, respondem a essa perspectiva ao percorrer os
meandros históricos de Angola. Nascido em Benguela, a 29 de outubro de 1941,
publicou – e ainda está a publicar - diversos romances, peças teatrais e contos,
alguns dos quais já bastante divulgados e lidos. Representante de uma geração
comprometida com a luta pela independência do país e pela construção de uma
sociedade igualitária, compartilha do projeto intelectual vislumbrado por
personalidades - como a do primeiro presidente de Angola livre, Agostinho Neto -
que entendem a cultura poder projetar e provocar transformações sociais. Em
entrevista, Pepetela afirma:

“Creio que a literatura nacional é elemento indispensável, tão


importante como outro qualquer, para a consolidação da
independência. É um fator que ajuda a aumentar a unidade nacional,
por ser veículo de situações, modos de vida e de pensar, dentro do
País, (...) Pode ser exagero – é caso para se discutir – mas afirmo
que não há, não pode haver, a criação dum país verdadeiramente
independente sem uma literatura nacional própria, que mostre ao
povo aquilo que o povo sempre soube: isto é, que tem uma
identidade própria.” (SALGADO, 2000, p.303).

Ao buscar a afirmação dos valores nacionais, os livros de estreia de Pepetela


debruçaram-se sobre as muitas identidades angolanas. Contando com mais de uma
dezena de romances até o momento, o escritor parece confirmar a tese de Bakhtin
de que a ossatura do romance enquanto gênero ainda está longe de ser consolidada
(BAKHTIN, 1998), dado que seus últimos títulos adotam a ironia como eixo
estruturador, afastando-se do realismo histórico das primeiras publicações. O
resultado, a partir dos anos de 1990, é a construção de romances que parodiam as

LETRAS 63
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relações sociais angolanas, as utopias revolucionárias dos anos pré- independência,


as intermináveis disputas de poder, os tipos corruptos e, ao fim, até algumas das
narrativas que publicou (já que essas projetavam imagens que serão corrompidas
pela ironia aguda do autor).

De dentro da ação revolucionária (participou ativamente da guerra pela


independência de Angola, vindo a assumir posteriormente importantes cargos
políticos) e do universo literário, Pepetela faz ressoar as vozes dos angolanos
através das quais procura construir, ao lado de outros intelectuais, uma literatura
autônoma, cuja existência de escritores, de um conjunto de receptores e da obra
formam o que Antonio Candido definiu como “sistema”:

“O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação


interhumana, a literatura, que aparece sob este ângulo como um
sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do
indivíduo se transformam em elementos de contacto entre os
homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade.”
(CANDIDO, 1997, p.23).

E é como sistema simbólico que seus livros acompanham os anos pré e


pósindependência de Angola, em 1975, e descrevem o movimento que vai da utopia
revolucionária à profunda melancolia da geração que entreviu a formação de uma
sociedade plenamente autônoma. A percepção crescente de que as projeções do
passado não vingaram determina as escolhas ficcionais de Pepetela, que
gradativamente troca o olhar sobre a construção do revolucionário de esquerda pelo
olhar crítico sobre os compatriotas, que aprenderam os modos imperialistas de ser e
de agir.

Ganhador de prêmios como o Camões (1997) pelo conjunto de sua obra, entre os
romances de Pepetela estão As aventuras de Ngunga (1973), Muana Puó (1978),
Mayombe (1980), Yaka (1988), A geração da utopia (1992), O desejo de Kianda
(1995), Parábola do cágado velho (1996), Jaime Bunda, agente secreto (2001). Seu
tom cada vez mais crítico à realidade nacional evidenciou-se a partir dos anos de

LETRAS 64
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1990, quando já forjava o olhar atento e vigilante dos que ocuparam o poder no pós-
independência. O último romance publicado, Predadores (2005), em tom de farsa,
debocha da elite política, econômica e intelectual angolana, e aponta para a
continuidade dos mecanismos de opressão no país.

A renovação da sua obra parece acompanhar a contínua reconstrução da


perspectiva crítica desse intelectual interessado em percorrer os meandros
históricos de Angola. Buscando iluminar como se degradou o imaginário utópico dos
anos revolucionários, seus personagens mais recentes, em oposição aos dos
primeiros romances, experimentam a corrosão das relações interpessoais, da
comunidade e dos meios de comunicação imersos que estão na própria
individualidade e em atos de corrupção.

A primeira narrativa de inesperado sucesso de Pepetela, que atuava nas frentes de


combate do Movimento de Libertação de Angola à época das lutas pela
independência ao mesmo tempo em que elaborava dois de seus romances, é um
curto texto, As aventuras de Ngunga, cujo cunho pedagógico evidencia o
comprometimento do autor com a causa angolana. Escrito para servir de texto às
crianças e adultos em alfabetização nas escolas do MPLA das zonas libertadas, o
livro apresenta capítulos breves e linguagem simples e acessível ao público-alvo

Conhecendo a mentira, a falsidade, o jogo de interesses, o protagonista, o pequeno


Ngunga, avalia o comportamento dos adultos e escolhe seu próprio caminho,
buscando afirmar-se em um mundo pautado por ações injustas, vindas, tantas
vezes, também de alguns companheiros revolucionários, corrompidos pela ação
colonial ao longo dos séculos. A história do menino órfão - que conhece vários tipos
de pessoas e diversos lugares, passa por inúmeras dificuldades, supera obstáculos,
nega a corrupção e a luta pelo poder - narra a formação do genuíno revolucionário
de esquerda, comprometido com a ética de vocação coletiva:

“Se Ngunga está em nós, que esperamos então para fazer crescer?
Como as árvores, como o massango e o milho, ele crescerá em nós
se o regarmos. Não com água do rio, mas com ações. Não com água

LETRAS 65
UNIVERSIDADE
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do rio, mas com o que Uassamba em sonhos oferecia a Ngunga: a


ternura.” (PEPETELA, 1983, p. 58)

A criança torna-se um herói nacional e preconiza o que deveria ser o novo homem
angolano, comprometido com a construção de relações sociais justas, pautadas na
transformação dos vínculos opressores, do preconceito racial e de quaisquer formas
de violência, inclusive as herdadas da própria tradição nacional. Ngunga é, assim,
uma espécie de ícone dos anseios revolucionários. Construir a identidade nacional
exige esforços, dos quais derivam os textos iniciais de Pepetela, que buscam
recompor a memória do povo ora contando a história contemporânea ao próprio
momento da escrita ora resgatando o passado como o faz Yaka. Nesse romance, o
autor percorre os conflitos vividos por várias gerações de colonos portugueses, que
tentam, entre 1890 e 1975, a ascensão econômica enquanto assistem à gradativa
desagregação do núcleo familiar. Para tanto, muitos símbolos são construídos e
retomados como a imagem já tradicional na literatura angolana do idoso que se
encontra à margem da família, sendo completamente alijado do contexto do qual
participa (também a literatura moçambicana com autores como Mia Couto faz
inúmeras referências ao abandono do idoso, que vem a representar a rejeição dos
aspectos da cultura tradicional pelas novas gerações).

Mas é no início dos anos de 1990 que Pepetela, com A geração da utopia, inicia um
balanço crítico do movimento revolucionário e da condução política do país,
apontando para os impasses dos que fizeram a independência sem, entretanto,
mudar significativamente as relações de poder existentes antes de 1975:

“- Tens razão – disse o Sábio. – O mais importante para uma


geração é dar qualquer coisa de bom à seguinte, um projeto, uma
bandeira. No fundo, é o pai a deixar uma herança para o filho. E é
triste sentir que a nossa geração, que vos deu apesar de tudo a
independência, logo a seguir vos tirou a capacidade de a gozar.
Como o pai que, ao oferecer um brinquedo ao filho, o monopoliza, só
ele brinca com ele, com o pretexto de que o filho o vai estragar. Não

LETRAS 66
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é mesmo tragica absurdo? - Vocês são demasiado negativos em


relação a tudo – disse Sara. – Está bem, houve erros. Mas nem tudo
foi mau, como agora se diz. E não nos deixaram fazer o que
queríamos, houve sempre pressões externas impeditivas. Dum lado
ou doutro, é preciso que diga.” (PEPETELA, 1995, p.304).

Impossibilitado de fazer um pacto nacional de paz entre os vários grupos nacionais,


o MPLA passou a abrigar disputas internas pelo poder e distanciou-se do discurso
revolucionário, utópico, das décadas anteriores o movimento. É Sara que, diante dos
rasgos melancólicos que pontuam as falas dos personagens, denuncia o que tenta
ocultar-se de modo grosseiro: as consequências da Guerra Fria, da política sul-
africana, enfim, das pressões internacionais e imperialistas sobre o país. Entre
tantas contradições históricas, A geração da utopia desenvolve-se segundo as vozes
testemunhais que analisam lucidamente os fatos, procurando encontrar os nexos
causais que levaram a nação ao caos social e político. De todos os lados, os
personagens tentam compreender os fatos passados:

“Começa a ser tempo de se fazer a História disto tudo – disse


Orlando. – Como uma geração faz uma luta gloriosa pela
independência e a destrói ela própria. Mas parece que a gente da
sua geração não é capaz de a fazer. E a minha geração, a dos que
agora têm trinta anos, não sei. Fomos castrados à nascença. Eu
tinha treze anos quando Luanda se mobilizou em massa para
receber os heróis da libertação. Vivíamos para aquilo. (...) E depois
quiseram enquadrar-nos. Disseram, devem marchar como os
soldados, vocês são frutos dos soldados. (...) Liquidaram a
imaginação, em nome duma moral militarista, de disciplina de
caserna ou de convento, não sei, já não se podia criticar, dizer o que
se pensava, tinha de se pensar antes de se dizer. Houve lutas
internas, golpes de palácio que ninguém entendia, afastamentos de
tipos que para nós eram heróis, outros iam parar à cadeia. E a minha
geração, jovem e entusiasmada, foi perdendo o entusiasmo (...)”
(PEPETELA, 1995, p.304).

LETRAS 67
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O leitor de Pepetela conhece, assim, a história de uma geração de angolanos, a


partir do ponto de vista dos que iam então vencidos até os anos de 1970 e que
acreditaram terem alterado o curso da História com a independência, passando a
vencedores. De fato, houve a independência e o MPLA assumiu o governo.
Entretanto, o que os romances de Pepetela mostram é que, em alguns anos, os
revolucionários reconheceram que as ações não foram suficientes para tornar a
nação autônoma.

A utopia que motivara o processo revolucionário mostra-se, assim, vazia de sentido


em um contexto em que o vencido permanece sendo o povo, que, aliás, aprendeu a
reproduzir as redes de corrupção na sua própria comunidade. Apreendendo, cada
vez com ironia mais aguda, o que Pepetela chama de “modos de vida e de pensar”
da sociedade angolana, seu trabalho de arqueólogo ilumina as origens dos traumas
históricos para, fazendo-os conhecidos, redimi-los.

Ao remexer incansavelmente nas ruínas da história, o autor também encontra a


força e integridade do povo angolano, soterrada por anos de opressão e violência,
como nos mostra Nacib, único entre os personagens de Predadores (2005) que
contraria a tendência dominante ao manter os vínculos com seu grupo social de
origem e negar qualquer tipo de corrupção apesar de ter ingressado na nova
burguesia angolana.

O protagonista de Jaime Bunda, romance publicado em 2003, veicula o imaginário


exatamente oposto ao que contemplaria o “desaparecimento da moral individual
burguesa”. Anti-herói por convicção, Jaime é um estagiário tido como inútil,
reconhecido por sua “bunda portentosa”, que lhe atrasa os movimentos e atrai a
curiosidade alheia. Diante de um crime a ser desvendado, ou melhor, encoberto, ele
é chamado a ter sua primeira atuação como detetive do chefe Bunker, homem
misterioso que ninguém conhece, mas a que todos temem. O Bunda deve descobrir
quem é o assassino de uma menina de quatorze anos. Enquanto procura pistas,
conhece outros crimes (lavagem de dinheiro, favorecimentos, vinganças pessoais),
todos são, ao final, ignorados, a fim de que se mantenha o pacto das relações de
poder e de corrupção, das quais o estagiário passa a fazer parte.

LETRAS 68
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Mais uma vez, o crime maior não é contra uma pessoa, mas contra a nação: o povo
é a vítima das várias formas de opressão que as elites locais exercem junto a
aqueles que elas cooptam dentre a população ávida por poder. Os homens
incriminados não são dois inocentes, mas não são os verdadeiros assassinos; e o
detetive que conduz as investigações é o criminoso, o Estado constituído. O jogo de
peças trocadas denuncia, seguindo a tradição dos romances de Pepetela, a
completa ausência de ética nas relações, determinadas por disputas por poder e
dinheiro: “Jaime Bunda, o verdadeiro herói da noite, encheu o peito. Cada vez se
sentia mais perto do Poder, aquele que cria e espezinha tudo à sua volta.”
(PEPETELA, 2003,p. 296).

“O pai de Jaime (...) repetia sempre tenho vergonha de dizer que sou
primo deste ou daquele para conseguir qualquer coisa, obtendo
porque valho, senão recuso, era um intelectual, no fundo o teu pai
era um intelectual embora sem tantos estudos assim, gostava de ler
e de saber coisas, se contentava com o emprego sem futuro onde foi
cair no tempo colonial (...) ficou conformado, chupando o cachimbo e
lendo os seus livros, será que ele escrevia? Jaime Bunda não sabia,
nunca tinha visto o pai com algum caderno onde apontasse poemas
ou outra coisa, gostava era mesmo de ler e lhe passou o hábito, mas
Bunda foi ficando pelos policiais. Tinha no quarto alguns livros do pai,
enciclopédias e romances, no entanto tinha desistido deles, muito
cansativos, melhor eram mesmo os policiais americanos, os seus
grandes mestres.” (PEPETELA, 2003, p. 61).

O anti-herói, assimilado, defensor do ideário capitalista, de índole violenta, não “suja


as mãos”, porque não gosta de bater nos outros, mas não está distante dos que
gostam, porque tem prazer em ver os outros apanharem e não hesita em contratar
um matador para o marido da sua amante.

De ética tão volúvel quanto individualista, o narrador abandona o leitor à deriva,


impedindo-lhe o conforto de identificar-se com quaisquer dos personagens. Até
mesmo o pai de Bunda, já morto, que fora abandonado na periferia de Luanda e

LETRAS 69
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perseguira uma postura ética e alinhada com a revolução, exime-se de contribuir


efetivamente com a luta pela independência. Entre os extremos da passividade e da
atividade corrupta, o romance não apresenta outra possibilidade de inserção social.

Assim, em Jaime Bunda – agente secreto, a utopia não vibra. Tampouco a


melancolia. O que se lê é o completo ceticismo diante de uma realidade que só pode
ser contada pela paródia se se quiser alcançar os movimentos dos grupos de poder
internacionais, que praticam políticas neoliberais criminosas, embora se coloquem
como vítimas do processo histórico.

Desse estado letárgico, ainda assim, surge o esforço do escritor na sua intensa
busca de captar pela linguagem os desvios que nos conduzem a repetir as práticas
criminosas em nosso cotidiano. É urgente conhecer os intrincados aspectos
históricos e os jogos de interesses de um país que caiu no esquecimento das
grandes mídias exatamente por expor de modo brutal o estado de barbárie
contemporâneo.

Pepetela continua publicando e se fazendo ouvir. Isso, por si só, evidencia que as
letras empenhadas do escritor ainda têm muito a comunicar para o público.

LETRAS 70
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Aula 15_Agualusa, Ondjaki e a literatura contemporânea

Como vimos nas aulas anteriores, a literatura angolana pode ser compreendida em
três fases: até a independência (1975), o pós-independência e a
contemporaneidade. Essa divisão é para efeitos didáticos, para introduzir o leitor no
universo literário e artístico de Angola. De certo modo, essa periodização é afirmada
pelos próprios escritores, como se pode testemunhar, quando ouvimos ou lemos as
reflexões que os autores fazem sobre suas obras. É comum eles se referirem à
geração das lutas revolucionárias, a geração atual e a intermediária.

O que caracteriza cada um dos períodos literários pode ser interpretado da própria
trajetória de Pepetela, que vai de uma produção empenhada em divulgar o
imaginário revolucionário, passa pelo questionamento da consolidação de Angola
livre e chega à desilusão com a realidade vivida. Esse movimento se revela também
na palavra artística.

José Eduardo Agualusa é um dos mais conhecidos e respeitados escritores da


literatura contemporânea. Nascido em Huambo, Angola, em 1960, tem romances e
peças teatrais traduzidos em mais de vinte idiomas. Usufruiu de condições muito
propícias para escrever, recebendo, inclusive, bolsas de incentivo por meio das
quais escreveu, por exemplo, Nação Crioula, 1997, Um estranho em Goa, 2000.

Vivendo entre Lisboa e Luanda, Agualusa é muito conhecido no Brasil, onde,


inclusive, já viveu (Recife e Rio de Janeiro). Ele tem orgulho de se autodenominar
um afroluso-brasileiro (seu pai era brasileiro, sua mãe de origem portuguesa) e não
esconde que é um escritor profissional. No livro O ano em que zumbi tomou o Rio,
Agualusa faz um retrato bastante crítico dos morros cariocas, tomados pelo tráfico
de drogas e sob a liderança de um angolano. Segundo o próprio autor, o Brasil ainda
não se descolonizou e não enfrentou o problema da participação dos negros, não
chegando sequer a constituir uma elite negra. As influências que sofreu da cultura
brasileira vão da música (Chico Buarque, Caetano Veloso) à literatura.

LETRAS 71
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Ondjaki é outro dentre os escritores angolanos muito lidos no Brasil. Não é exagero
dizer que ele chega a ser “festejado” entre nós, sendo figura marcada nas festas
literárias que acontecem nos diversos cantos do Brasil. Nascido em 1977, em
Luanda, é talvez o representante de maior alcance da atual literatura de Angola no
Brasil. Poeta e prosador, publicou diversos livros e recebeu outros tantos prêmios.
Como Agualusa, o escritor também firmou residência no Brasil, desde 2007, vindo a
publicar ora por editoras angolanas (ainda é membro da União dos Escritores
Angolanos), ora por editoras brasileiras.

Os de minha rua, publicado em 2007, é um livro representativo das principais


tendências desse escritor, que, apesar de muito jovem, já tem uma larga e
reconhecida produção. Trata-se de uma coletânea de vinte e duas narrativas curtas,
que trazem a memória do narrador sobre sua infância, vivida em Luanda entre os
anos de 1980 e 1990. O tom intimista da obra se mistura com a perspectiva
histórica, que se projeta em músicas, eventos, familiares e até novelas, como a
conhecidíssima “Roque Santeiro” (que também deu nome a um importante mercado
de rua em Angola).

São contos em que desfilam personagens com lastro na vida real, que, entretanto,
ganham outras vidas na cifra da imaginação com que o narrador, sempre em
primeira pessoa, busca recordar os velhos tempos, o antigamente. Entre a poesia e
a prosa, os textos de Ondjaki são plenos de lirismo:

“Uma pessoa quando é criança parece que tem a boca preparada


para sabores bem diferentes sem serem muito picantes de arder na
língua. São misturas que inventam uma poesia mastigada tipo
segredos de fim da tarde. Era assim, antigamente, na casa da minha
avó. No tempo da Madalena Kamussekelle (ONDJAKI, 2007: p.79)”

“Trouxeram sal nas mãos bonitas em concha com cheiro assim duma
praia secreta. O Paulinho tinha um canivete e cortou as mangas aos
bocadinhos. Cada um pegava um pedacito de manga verde,
misturava com o sal e comia devagar. Entre gargalhadas
pequeninas, íamos dividindo o momento e a tarde, os olhares e os

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arrepios, os sons gulosos e as sujidades das mãos que pingavam


esquebras de suco para as formigas beberem. (ONDJAKI, 2007:
p.81)”

Essa confluência de gêneros, que anuncia novas passagens, marca a perda de uma
Angola que viveu o sonho revolucionário e anuncia um novo país, ainda a se
construir, das misturas possíveis a se fazerem. A literatura angolana, como anuncia
Ondjaki, é ainda jovem, como o é o país, mas já tão promissora pelos frutos
colhidos.

É difícil pensar em uma única tendência dessa literatura que emerge com força e
com vigor. Os autores são diversos, os da ‘velha’ geração, como Pepetela,
continuam a produzir e a publicar obras surpreendentes, os da geração
‘intermediária’, como Ana Paula Tavares, não se eximem de compor as mais
perfeitas imagens poéticas, e os mais novos escrevem a nova literatura,
reconhecendo a profunda influência da tradição literária.

Não à toa, como afirma Eduardo Assis, os estudos acadêmicos sobre as literaturas
africanas têm superado inclusive os estudos sobre a literatura portuguesa. Também
o mercado editorial parece ter descoberto este filão. Para nós, leitores, os ganhos
são enormes, porque se desdobram as possibilidades de novas viagens literárias em
letras tão comuns quanto estranhas:

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LETRAS 74
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Aula 16_Caminhos cruzados: as literaturas de língua portuguesa.

Eu venho de muito longe e trago aquilo que eu acredito ser uma


mensagem partilhada pelos meus colegas escritores de Angola,
Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe. A
mensagem é a seguinte: Jorge Amado foi o escritor que maior
influência teve na gênese da literatura dos países africanos que
falam português.

E se Obama fosse africano? Mia Couto (2011)

As aulas anteriores apontaram para os íntimos diálogos entre as literaturas de língua


portuguesa, fundamentalmente, entre Portugal, os países africanos e o Brasil.
Pensar nos contrapontos possíveis é enriquecedor de qualquer ponto de vista, mais
ainda, quando se reconhece que as similaridades evidenciam as diferenças.

A começar pelos vínculos entre Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e


São Tomé e Príncipe, países que sofreram a escravidão, o Brasil, como nação
colonizada por Portugal, é tão mais íntimo dos africanos do que, sob certos
aspectos, dos latino-americanos. A história é longa e vale permanecer pesquisando,
pois que esta aula se constitui tão somente como estímulo para os estudos.

Diversas são as revistas que publicam sobre a área em questão, Estudos


Comparados. Na grande maioria, os textos são disponibilizados online, caso de
Atlântica, revista dos pós-graduandos da área, FFLCH-USP. Também os eventos se
multiplicam em função da qualidade das literaturas de língua portuguesa do
continente africano.

Se tentássemos voltar às primeiras referências das literaturas, teríamos que voltar à


aula 01, quando dos primeiros textos publicados em Angola. De lá para cá, os
diálogos apenas se intensificaram. Como a discussão caminhou para a literatura
contemporânea, o caso, agora, é fazer referência a algumas influências presentes.

LETRAS 75
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Falemos de Jorge Amado, para dizer com Mia Couto, quando aponta para a sua
influência em todas as literaturas de África de língua portuguesa. Mas também de
Manoel de Barros, reconhecidamente um poeta muito lido por Ondjaki, que a ele se
aproxima pelo lirismo prosaico, nos seus textos, feito às avessas, por seu prosaísmo
lírico, como vimos nas aulas anteriores.

Mas é preciso também inserir a literatura portuguesa nesses entrecruzamentos. E


não é pouco pensar, por exemplo, nos diálogos estabelecidos em torno dos
processos de colonização. O português António Lobo Antunes, com Os cus de
Judas, publicado em 1980, traz o olhar do português sobre Angola colônia: o
protagonista, um médico, vê sua vida despedaçada ao ser forçado a partir para as
terras ultramarinas; os “Cus de Judas”, a que o título faz referência, é o fundão da
floresta do país. Por ocasião do lançamento do livro, Lobo Antunes foi acusado de
“desleixado”, mais, teve de ler que escrevia como “um brasileiro” (!). No fundo, a
questão é que o romance tocava em questões traumáticas da história de Portugal.

Apesar de muito diferentes e até contrastantes, Saramago, como se sabe, não fez
diferente. Seus romances nunca deixaram para trás a fina ironia contra a nação
colonizadora. E, para dizer pouco, renovando a sua prosa, reinventava a palavra
literária. Em Angola, tantos foram os escritores que se aproximaram dessa ironia e
desse olhar de profunda renovação estética, Luandino Vieira foi um deles.

Para arrematar os estímulos para a reflexão sobre as literaturas, vale lembrar de


Luanda Beira Bahia, de Adonias Filho, publicado em 1997. Esse romance traz o
povo de Salvador, de Moçambique e de Angola como protagonistas de uma história
de amor, entre jovens que acabam por sucumbir à história.

Se até 2000, via-se uma ascendência maior da literatura brasileira sobre as


africanas e da portuguesa sobre a brasileira, hoje, os caminhos são outros. Em
mãos duplas e que se entrecruzam, fica difícil estabelecer a tradição literária de
maior influência na construção das literaturas nacionais.

Apesar disso, não é possível dizer que há uma literatura lusófona, como alguns
parecem propor. Ao contrário, cada país tem particularidades demarcadas, que se

LETRAS 76
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dirigem para dentro do ser regional e para o universal mais do que para uma
possível lusofonia.

LETRAS 77
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Resumo_Unidade II

Na unidade II, vimos a formação da literatura de Angola e como ela acabou por
influenciar a formação das outras literaturas de língua portuguesa do continente
africano. Também procuramos mostrar que cada uma das literaturas tem a sua
especificidade e que não é possível falar da África em sentido genérico, já que cada
país tem a sua formação, as suas etnias, os seus falares regionais, costumes,
culturas...

A exploração da literatura angolana partiu de uma discussão sobre as relações entre


literatura e poder, já que, como procuramos mostrar, os intelectuais tiveram que se
posicionar criticamente nas lutas pela independência de Angola. Para a organização
dos escritores e a proposição de uma literatura vigorosa, algumas agremiações e
publicações foram fundamentais, como a Casa do Império, a revista Mensagem –
bem como alguns movimentos como o Vamos descobrir Angola!

Entre os ventos culturais, discutimos a formação da geração 50 e a modernidade


literária em Angola, com a criação, inclusive, da União dos Escritores Angolanos,
que até hoje é bastante ativa e responsável pela promoção e difusão da literatura de
Angola.

As relações entre literatura e sociedade foram exploradas pela análise do conto “A


Menina Vitória”, de Arnaldo Santos. Também vimos o “musseque” como metáfora
poderosa que imprime sentidos à literatura de José Luandino Vieira, esse, um dos
escritores de maior expressão da literatura angolana. Também tivemos a
oportunidade de discutir a obra de Pepetela e de passear pelas letras de José
Luandino Vieira, esse, um dos escritores de maior expressão da literatura angolana.
Também tivemos a oportunidade de discutir a obra de Pepetela e de passear pelas
letras de José Eduardo Agualusa, Ondjaki, Ana Paula Tavares e chegar até a
literatura contemporânea.

LETRAS 78
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O enfeixar das discussões se deu nos “caminhos cruzados” das literaturas de língua
portuguesa, a fim de motivar os alunos-leitores a buscarem seus próprios caminhos
literários.

Unidade III_Literatura Moçambicana e outras discussões

UNIDADE III

Moçambique e a Literatura na Rota do Oriente. A Práxis Literária

Objetivos:

Na terceira unidade, os objetivos são refletir sobre as especificidades da literatura de


Moçambique e desenvolver habilidades e competências leitoras, a fim de promover
a educação literária nas letras moçambicanas.

Plano de estudos:

Para tanto, a Unidade III propõe o seguinte Plano de Estudo:

17. Gêneros literários e tradição oral nas literaturas africanas de língua


portuguesa.

18. José Craveirinha e os conceitos de africanidade na literatura.

19. Noémia de Sousa e outras paisagens.

20. Mia Couto e a narrativa contemporânea moçambicana.

21. Narrativas curtas e vastos mundos: Mia Couto, Guimarães Rosa e


Luandino Vieira.

22. Paulina Chiziane e as construções do feminino.

23. A literatura infanto-juvenil produzida nos países africanos de língua


portuguesa.

LETRAS 79
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24. Caminhos cruzados na literatura infanto-juvenil de língua portuguesa.

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Aula 17_Gêneros literários e tradição oral

“Sou nómada. Atravesso o deserto em busca de água e onde encontrar paro


com o gado. Boi, deserto, água e onde encontrar paro com o gado. Boi,
deserto, água e onde encontrar paro com o gado. Boi, deserto, água, o
triângulo que eu falo. Mas posso transmitir ao poeta escrito o pensamento a
partir do qual ele transformará as palavras em texto. Eu sou o poeta escrito e
faço a comunicação. Da oratura à escrita. De uma língua a outra, já interferida
para uma semântica nova: a da minha identidade.(...) E mesmo que registre o
texto oral para estruturas diferentes – as da escrita – a partir do momento em
que o escreva e procure difundi-lo por esse registo, quase assumo a morte do
que foi oral: a oratura sem griô (...) Cadáver quando escrita a oratura para um
texto novo, literário, quase intransformável pela pausa, a linguagem gestual de
cada griô, a reformulação, a sinopse, a memorização especificamente criadora
para a versão individual.” (RUI, Maunuel, 1981, p. 29)

É o poeta Manuel Rui que fala na VI Conferência dos Escritores Afro-Asiáticos


através da construção de dois tempos, que se desenvolvem paralelamente, tocando-
se e mesclando-se em um terceiro tempo, esse, o do registro escrito, de onde
emerge o lugar em que a voz e a letra se encontram. O título da comunicação “Entre
mim e o nómada – a flor” anuncia o que o intelectual angolano vê surgir da repetição
desse movimento “da oratura à escrita”, a identidade de um povo.

O nômade, figura tradicional popular, conta sua história e, ao fazê-lo, atualiza a


cultura do colonizador, figura moderna estrangeira dentro da história dos povos
africanos. Migrando entre os dois polos, de início incomunicáveis, o escritor abre a
brecha para que se entreveja a utopia possível sintetizada na criação da afirmação
da identidade sem os nacionalismos românticos que outras nações, como a
brasileira, reivindicaram um dia. Tratase da formação da identidade coletiva como
produto das mesclas entre as muitas e diversas culturas nacionais e a estrangeira,
ademais da interferência daquele que assume para si a responsabilidade de fazê-la
signo escrito. A força simbólica da imagem desse entrecruzar de discursos e

LETRAS 81
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caminhos se explicita na construção desse terceiro, o da identidade do homem


letrado, que não se rende ao conhecido fenômeno da assimilação e que afirma o
particular do lugar do seu discurso.

O que se lê são os impasses diante do mundo da cultura letrada de sujeitos que,


indiretamente ou não, sofreram com a ação violenta da mesma. Refletir sobre as
relações entre gêneros literários e tradição oral nas literaturas requer, assim, a
reflexão sobre o lugar do homem letrado em comunidades, primeiro, ágrafas, depois,
analfabetas.

Como se posicionar diante de tal condição é a questão que se impõe, trazendo


consigo, ao fim, uma questão de dimensão ética: de que modo apropriar-se da
cultura da metrópole sem fortalecer os mecanismos de opressão social e sem
reproduzir o imaginário da colonização, que se sustentava na suposta superioridade
cultural europeia? Se antes a literatura oral encontrava nos griots tradicionais a
possibilidade de eternizarem-se, a modernidade a corrompe. As primeiras recolhas
das histórias orais marcam, assim, a acelerada perda e degradação do tecido social
no confronto com os novos modos de vida como explica Walter Benjamin, em O
narrador, ao explorar as consequências dos atritos entre as comunidades e a
modernidade tecnológica burguesa.

Alguns intelectuais documentaram tal processo nos países africanos de língua


africana. Segundo Maria Aparecida Santilli, Heli Chatelain, missionário suíço que
chega a Angola em 1885, publica cinquenta histórias em Contos populares de
Angola, 1894, e Óscar Ribas, angolano, edita, entre 1961 a 1964, três volumes,
respectivamente: 26 contos, mais quinhentos provérbios; a psicologia dos nomes,
comidas, bebidas, desdéns, passatempos; finalmente, adivinhas, canções, súplicas,
prantos por morte e instantâneos da vida africana (SANTILLI, Estórias Africanas). De
Cabo Verde, Manuel Ferreira alerta o público para a riqueza perdida do patrimônio
oral das literaturas africanas de língua portuguesa mesmo com tantas recolhas,
como é o caso da que fez Elsie Clews Parsons, que reuniu em dois volumes 133
contos em duas versões, crioulo e inglês, provérbios, ditados e adivinhas, publicados
em 1923. Também traz histórias da Guiné, dando relevo à contribuição do
guineense Marcelino Marques de Barros para a tentativa de construir a memória

LETRAS 82
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histórica do imaginário das comunidades tradicionais. Da literatura oral


moçambicana, Orlando Mendes, que considera a literatura africana em suas
múltiplas manifestações, faz o esforço de assinalar seu caráter evolutivo, “em
oposição ao conceito equivocado de que ela se repetia e firmava-se sobre formas
cristalizadas”.

A oralidade no plano literário e no registro escrito se torna um dos instrumentos mais


utilizados pelos escritores, para fundar o espaço-tempo das nações africanas de
língua portuguesa. Mia Couto, como veremos, é exemplo maior das vozes populares
que invadem as literaturas, recriando gêneros e hibridizando as formas de narrar e
de fazer poesia.

As literaturas de língua africana, com mais ou menos ênfase, incorporaram as


tradições orais, do angolano Ondjaki ao moçambicano José Craveirinha, a palavra
dita é também escrita. Na delicadeza poderosa de Ana Paula Tavares, escritora
angolana de grande influência nas literaturas africanas, a evocação da língua oral,
do “provérbio”, da “voz” da mãe, é uma tentativa de restaurar um tempo de paz, de
harmonia, há muito perdido, mas ainda presente na memória antiga. Da
possibilidade de experimentar essa memória ancestral emerge a resistência,
guardada e acalentada no “cacimbo”:

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Aula 18_José Craveirinha e a africanidade

Nascido em 1922 na antiga Lourenço Marques, agora conhecida como Baía de


Maputo, José Craveirinha é filho de pai português e mãe africana. A condição de
mulato o colocará logo cedo diante do dilema de ser negro para os brancos e branco
para os negros. A pátria e a africanidade se tornam, no contexto colonial
moçambicano, sua luta e opção.

Autodidata, entre 16 e 17 anos começa a frequentar a Associação Africana onde


descobre o gosto por jazz, estende seu convívio com mulatos e negros e participa
do grupo Mocidade e do jornal O Brado Africano. Esse periódico marcará a história
de toda uma geração que lutou pela independência, veiculando textos sobre e dos
africanos, sobre “aquela faixa da população que vivia nos subúrbios, que mais
desprotegida, mais necessitada de solidariedade.” (CHABAL, p. 92). Sob o lema “Em
defesa dos naturais”, foi no jornal que Craveirinha publicou seus primeiros textos
projetando-se como o poeta dos africanos.

A africanidade dos seus textos é reconhecida não só na sua defesa pela libertação
dos povos, pela reconquista da dignidade e pelo espaço dos negros espalhados em
todas as partes do mundo, mas também na tentativa de construir uma poesia que
saltasse do mundo letrado para alcançar os africanos em sua maior parte
analfabetos. Essa busca da palavra oralizada, da poesia em ritmo e melodia,
estrutura a produção de Craveirinha, libertando a palavra do texto impresso. É o que
se lê em um dos poemas mais conhecidos de moçambicano:

Quero ser tambor

Tambor está velho de gritar

ó velho Deus dos homens

deixa-me ser tambor

corpo e alma só tambor

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só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

E nem flor nascida no mato do desespero.

Nem rio correndo para o mar do desespero.

Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero.

Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra.

Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra.

Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra!

Eu!

Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala.

Só tambor velho de sangrar no batuque do meu povo.

Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Ó velho Deus dos homens

eu quero ser tambor

e nem rio

e nem flor

e nem zagaia por enquanto

e nem mesmo poesia.

Só tambor ecoando a canção da força e da vida

só tambor noite e dia

dia e noite só tambor

até à consumação da grande festa do batuque!

Oh, velho Deus dos homens

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deixa-me ser tambor

só tambor!

Ao lado da musicalidade como meio para evocar os “naturais”, as imagens de


“Quero ser tambor” se desdobram em direção à realidade do país: do grito do “Eu!” à
coletividade, o povo assume a força que faz retumbar o tambor, metáfora da
consciência do que é ser moçambicano no contexto colonial, capaz de afirmar vida
onde predomina a morte.

Ao lado de Noémia de Sousa, Jorge Viegas, Sebastião Alba, Luís Carlos Patraquim
e Mia Couto, Craveirinha migra por diversas paisagens, indo do realismo
nacionalista até a negritude, passando por temáticas sociais, culturais, políticas e até
intimista. Seus livros têm perfis bastante particulares como Cela 1 (1980), em que há
a predominância das experiências subjetivas, e Xigubo (1980) em que o poeta narra
aspectos exteriores à sua intimidade em tom épico.

Antes mesmo da ideia de nação tornar-se a realidade de Moçambique, José


Craveirinha evoca valores e modos de pensar do povo colonizado. O fascínio pelas
gentes e histórias do povo e a proximidade com as culturas locais levam sua larga
produção poética a fundar em Moçambique, ao lado de outros nomes, o que ao final
da segunda grande guerra definiu-se como ‘africanidade’. Como afirma o ensaísta
Patrick Chabal:

“A literatura é uma componente central da identidade cultural de


todos os estados-nação, apesar de evidentemente ser muito mais do
que isso. (...) Nos países colonizados (como Cambodja, Vietnam,
mesmo a Índia) com uma tradição cultural ‘nacional’ muito antiga (...)
é possível ver o vínculo entre literatura e nação. Mas noutras partes
do mundo colonizado (tal como a América Latina e África), onde não
havia congruência óbvia entre as culturas indígenas e as nações que
emergiram do colonialismo, é muito mais difícil falar de literaturas
‘nacionais’ separadamente da experiência colonial. Nestas partes do
mundo não havia ‘nações’, embora existissem grupos étnicos, raciais

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ou outros, com uma língua e cultura reconhecíveis, antes do


estabelecimento das colónias que se transformaram nos atuais
estados-nação”(CHABAL, 1985: 15 e 16)

A ‘africanidade’ não se limita, pois, à África. Nas palavras de Chabal, ela atravessa
as fronteiras modernas para recompor a unidade perdida. Entre o real e o mítico,
surge a possibilidade da construção de uma identidade que se oponha à do branco
colonizador

Movido também pelo forte empenho político, Craveirinha foi o primeiro jornalista
oficialmente sindicalizado em Moçambique. Em 1963, com Ricardo Rangel, Ilídio
Rocha, depois Rui Knopfli, Eugénio Lisboa entra no jornal A tribuna, periódico
considerado de esquerda e que passa a ser alvo especial de censura.

Ganhador do Prêmio Camões de 1991 e avesso a entrevistas, Craveirinha evitou


rótulos para definir a sua poesia, exibindo seu orgulho por ser mestiço, africano e
moçambicano. Entre o sentimento profundo da ‘africanindade’ e os dilemas da
colonização, há a urgência de afirmar o que caracteriza a terra de Lourenço
Marques.

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Aula 19_Noémia de Sousa e outras paisagens

Escritora moçambicana, nascida a 20 de setembro de 1926, em Lourenço Marques,


hoje Maputo, morreu em 04 de dezembro de 2002, em Portugal. Poetisa, Noémia de
Sousa reinventou a palavra poética, surgindo na literatura já com vinte e dois anos.
Com profunda consciência histórica e social, sua poesia é marcada pela busca das
questões relacionadas à identidade nacional, mas, mais do que isso, à negritude.

A crítica literária reconhece no trabalho literário dessa moçambicana a exaltação ao


continente africano e o seu pioneirismo no que diz respeito a uma produção a um só
tempo regional (porque ligada à África), mas universal (porque liga às questões do
homem). Sua poética se volta para uma linguagem acessível e os poemas são de
fácil memorização, quase como se fossem feitos para serem declamados. Esse
fenômeno, entre os brasileiros, é visto, por exemplo, em Castro Alves, e pode ser
interpretado como o desejo de que a voz literária se espalhe entre todos,
alfabetizados ou não. Em um país como Moçambique, em que, à época (mas ainda
hoje), as taxas de analfabetismo atingiam índices altíssimos, é bastante significativa
essa busca. Assim também é, como se viu na aula anterior, com a poética de José
Craveirinha.

O esteio sobre o qual repousa a poética de Noémia de Sousa é a dicotomia entre


“eu” e “você”, “nós” e “outros”, que faz clara referência aos “naturais de
Moçambique” e “os estrangeiros”, ou seja, entre os “colonizados e violentados” e os
“colonizadores e violentadores”. Essa oposição é retratada de modo tenso e
agônico. Leia atentamente o poema abaixo e procure perceber se as marcas desse
“eu”, sofrido, aparece em confronto com o “outro”, explorador:

Se me quiseres conhecer (1949)

Se me quiseres conhecer,

estuda com os olhos bem de ver

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esse pedaço de pau preto

que um desconhecido irmão maconde

de mãos inspiradas talhou e trabalhou

em terras distantes lá do Norte.

Ah, essa sou eu:

órbitas vazias de possuir a vida,

boca ragada em feridas de angústia,

mãos enormes, espalmadas,

erguendo-se em jeito de quem implora e ameça,

corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis

pelos chicotes da escravatura...

Torturada e magnífica,

altiva e mística

África da cabeça aos pés,

-ah, essa sou eu:

se quiseres compreender-me

vem debruçar-te sobre minha alma de África,

nos gemidos dos negros no cais

nos batuques frenéticos dos muchopes

na rebeldia dos machanganas

na estranha melancolia se evolando

LETRAS 90
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duma canção nativa, noite dentro...

e nada mais me perguntes,

se é que me queres conhecer...

Que não sou mais que um búzio de carne,

onde a revolta de África congelou

seu grito inchado de esperança.

As imagens do poema acima são intensas e evidenciam o impacto procurado pela


poesia, que visa acusar e combater a voz do colonizador. Daí, os sons ásperos,
provocados pelo uso e abuso das consoantes, que podem ser conferidos em uma
leitura em voz alta. Vale ainda refletir sobre o encadeamento desses significantes
(sons) e o quanto eles podem significar (sentidos). O “eu” é, ao fim, aquele “nós”, o
indivíduo se revela na coletividade e, por isso, “se me quiseres conhecer” significa
“se quiseres conhecer os africanos, a África” (“altiva e mística/África da cabeça aos
pés,/-ah, essa sou eu”). É importante perceber também os termos moçambicanos
que permeiam e reinventam a língua portuguesa, esse não mais a do colonizador,
porque já transformada e adulterada.

Propor a leitura de Noémia de Sousa em sala de aula, para alunos de quinze a


dezoito anos, pode ser um bom início para os estudos africanos. O tom provocativo
dos seus versos e a necessidade revolucionária que eles espalham afirmam a
necessidade de mudança e de transformação. O chamado é para que o povo
avance de modo coletivo, em direção a um futuro melhor, mais humano e fraterno.

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Aula 20_Mia Couto

Nascido em Beira, em 5 de julho de 1955, Mia Couto não esconde o incômodo de ter
crescido em meio ao preconceito racial e a toda sorte de violência do colonizador
contra o colonizado:

“Era um ambiente muito racista, ao mesmo tempo que sucedia este


contacto, ou talvez até por causa disso mesmo. Os brancos da Beira
eram profundamente racistas (...) havia quase apartheid em certas
coisas. Não podiam entrar negros nos autocarros, só no banco de
trás...Enfim, era muito agressivo. No Carnaval os filhos dos brancos
vinham com paus e correntes bater nos negros...” (CHABAL, 1994,
p.276)

Sua obra reverbera de modos variados os confrontos não só raciais, seguindo e


formando uma tendência da literatura contemporânea moçambicana lida por
Francisco Noa segundo o que designa por “dimensão escatológica”, ao comparar o
autor com Ungulani Ba Ka Khosa:

“A escatologia deve ser vista, aqui, na sua dupla significação.


Primeiro, enquanto discurso da irreversibilidade do destino e do
esvaimento da própria existência, individual e colectiva. No caso
presente, inscreve-se não só a prosa de Mia e de Ungulani, mas
também a de outros escritores moçambicanos colocados perante a
estigmatização e flagelação física e moral do seu espaço vital.
Estamos perante o peso de uma verdadeira mitologia escatológca
que aponta para a necessidade, mesmo não explicitada, de
transformação do seu círculo existencial, conspurcado e
dessacralizado.” (NOA, 1998, p.12)

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Em narrativas compostas a partir da tradição oral popular, a língua portuguesa é


reinventada em outra ordem sintática e morfológica, que vem a romper com a
ideologia da antiga metrópole para propor, a partir das fissuras abertas pelo
confronto aberto entre colonizadores e colonizados, representados nos confrontos
linguísticos, um terceiro modo de contar histórias. Opera-se, assim, a
transculturação narrativa, termo que o crítico uruguaio cunhou para referir-se às
literaturas latino-americanas que construíram, como Mia Couto, Ungulani, obras com
inflexões próprias.

É dessa autonomia literária, já inserida em um sistema nacional, que surge a


escatologia a que se refere Noa, dado que, ao operar a linguagem, portadora de
ideologias completamente distintas, uma, do opressor, outra, do oprimido, o autor
evidencia a “flagelação física e moral do seu espaço vital”. A crítica moçambicana
Fátima Mendonça chama a atenção para o fato de que a burguesia africana, a que
teve acesso à cultura letrada

“necessita, para sobreviver, de se adaptar aos desígnios do Estado colonial.

Esta necessidade de adaptação é que marca o ponto de tensão que se instaura –


prolongando-se com várias ‘nuances’ até hoje – no universo cultural produzido pela
assimilação, ponto do conflito emergente da tentativa de conciliação entre dois
universos em confronto violento (...)” (MENDONÇA, p. 13)

É esse ponto de conflito que reverbera nos textos de Mia Couto e de outros
ficcionistas, que fundaram a tradição narrativa em Moçambique, país que
desenvolveu larga literatura antes da independência através da poesia, fenômeno
que se repetiu em outros países africanos de expressão portuguesa.

As histórias de Mia Couto, entre contos e romances, catalisam tais tendências ao


lado de uma constante afirmação da necessidade de o escritor criar livremente. Para
ele, parte da sua geração está indelevelmente marcada pela violência que
antecedeu a independência nacional e a que se sucedeu.

Mia Couto publicou, entre outros títulos, os livros de contos Vozes Anoitecidas em
1986, Cada Homem é uma Raça em 1990, Estórias Abensonhadas em 1994,
Contos do Nascer da Terra em 1997, Na Berma de Nenhuma Estrada em 1999, O

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Fio das Missangas em 2003; algumas de suas crônicas em Cronicando em 1988, O


País do Queixa Andar em 2003, Pensatempos em 2005; e os romances Terra
Sonâmbula em 1992, A Varanda do Frangipani em 1996, Mar Me Quer em 1998
(contribuição para o pavilhão de Moçambique na Exposição Mundial EXPO98 em
Lisboa), Vinte e Zinco em 1999, O Último Voo do Flamingo em 2000, O Gato e o
Escuro em 2001, Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra em 2002
(que neste momento? está sendo rodado em filme, pelo português José Carlos
Oliveira), A Chuva Pasmada em 2004, Ed. Njira. Em 1999, Mia Couto recebeu o
Prêmio Virgílio Ferreira pelo conjunto da sua obra.

Em entrevista ao poeta moçambicano Nelson Saúte, Mia Couto admite que “nem
sequer acredito na fronteira entre poesia e prosa (SAÚTE, 1998, p.228). Como não é
novidade, essa mescla pontua todas as obras do autor, divididas em romance,
conto, poesia, crônica e até reportagem apenas para efeitos didáticos. Desse lirismo
prosaico, ou do prosaísmo da lira, o efeito “escatológico” da obra transborda a
referencialidade imediata, que é identificada na degradação das relações humanas e
da ordem social, para conquistar significados junto à própria natureza violenta do ser
humano, provocadora dos atritos entre raças, etnias e até gerações.

Como se lê no conto “Noventa e três”, em que os conflitos se multiplicam em torno


de um ancião que está na sua festa de aniversário, mas não se sente integrado aos
familiares, que desprezam o que sente e pensa. O velho, visto pelos seus como
“vidente invisual”, busca afeto no menino de rua Ditinho e num gato silvestre, seus
companheiros do jardim público. A marginalidade do ancião evidencia a segregação
do mais velho, como também em outro conto de Mia, “Sangue da avó manchando a
alcatifa” (in: Cronicando, p.22), em que a anciã é levada de sua cidade natal para
viver na casa dos parentes da capital como mais um objeto dos burgueses
moçambicanos. Negando o estado letárgico a que fora relegada, como o velho de
“Noventa e três”, retorna aos seus, não sem deixar uma marca de sangue na
alcatifa, perene:

“A mancha colara-se ao soalho com tal sofreguidão que só mesmo


arrancando o chão. Chamaram o parecer do feiticeiro. O homem

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consultou o lugar, recolheu sombras. Enfim, se pronunciou. Disse


que aquele sangue não terminava, crescia com os tempos,
transitando de gota para rio, de rio para oceano. Aquela mancha não
podia afinal, resultar de pessoa única. Era sangue de terra, soberano
e irrevogável com a própria vida.” (p.28)

Sondar o insondável, conhecer o que se esconde, é o mote de outros textos de Mia


Couto como o do romance O último voo do flamingo, em que, na pequena vila de
Tizangara, um rapaz negro é nomeado tradutor oficial a fim de recepcionar um
italiano, integrante das forças de paz da ONU, depois da guerra de independência e
dos anos de guerrilha. Investigando os motivos que levaram soldados a explodirem
inexplicavelmente, o estrangeiro Massimo Risi esforça-se para compreender os
contraditórios depoimentos. Em meio à exuberância narrativa própria deste escritor,
abrem-se as brechas para que o leitor entenda os crimes ocultos daqueles que
semearam as guerras posteriores à independência. Os traumas desse período,
somados aos do período colonial, pesam sobre o homem moçambicano, que,
ademais das violências a que foram submetidos, divide-se ainda mais sob as
pressões da Guerra Fria. Fala a testemunha da morte de um dos soldados,
traumatizado com a imagem do pênis que pairou sobre sua cabeça como membro
amputado do corpo do homem explodido:

“Agora, no distrito, só se ouvem estórias, contadeirices. O povo fala


sem nenhuma licença, zunzunando sobre as explosões. E dizem que
a terra está para arder, por causa da culpa dos governantes que não
respeitam as tradições, não cermimoniam os antepassados. Eles
falam assim, citado e recitado. Que posso fazer? São pretos, sim,
como eu. Contudo não são da minha raça. Desculpe, Excelência,
pode ser eu seja um racista étnico. Aceito. Mas esta gente não me
comparece. Às vezes, até me pesam por vergonha que tenho neles.
Trabalhar com as massas populares é difícil. Já nem sei como
intitular-lhes: massas, povo, populações, comunidades locais. Uma

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grande maçada, essas maltas pobres, se não fossem elas até a


nossa tarefa estaria facilitada.” (p.95)

A fragmentação do universo do personagem, que nega suas origens e admite ser


um “racista étnico”, convive com o discurso moderno, esse também deslocado e
incoerente, expresso na multiplicidade de tratamentos como “massa, povo,
populações, comunidades locais”, nomes que mascaram as guerras entre as tribos,
animadas pelas potências representantes dos blocos capitalista e socialista.
Evidencia-se a disputa de poder que se estendeu ao longo dos anos entre os muitos
grupos armados que disputavam o poder, animados por forças internacionais.

O tema da morte, do sobrenatural, da comunicação entre os muitos grupos, da


fragmentação, do “velho”, do conflito e do respeito às gerações passadas são temas
importantes da obra de Mia Couto, que se desdobram em uma linguagem que faz
escola em Moçambique, em Angola, em Portugal, no Brasil. A reinvenção da língua
literária é, pois, sua marca.

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Aula 21_Narrativas curtas e vastos mundos

“Quando me vieram chamar, nem acreditei:

- É Zuzézinho! Está caindo do prédio.

E as gentes, em volta, se depressavam para o sucedido. Me juntei às


correrias, a pergunta zaranzeando: o homem estava caindo? Aquele
gerúndio era um desmando nas graves leis da gravidade: quem cai,
já caiu.

Enquanto corria, meu coração se constringia. Antevia meu velho


amigo estatelado na calçada. Que sucedera para se suicidar,
desabismado? Que tropeção derrubara a sua vida? Podia ser tudo:
os tempos de hoje são lixívia, descolorindo os encantos. Me
aproximava do prédio e já me aranhava na multidão. Coisa de
inacreditar: olhavam todos para cima. Quando fitei os céus, ainda
mais me perturbei: lá estava, pairando como águia real, o Zuzé Neto.
O próprio José Antunes Marques Neto, em artes de aeroanjo. Estava
caindo? Se sim, vinha mais lento que o planar do planeta pelos céus.
Atirara-se quando? Já na noite anterior, mas o povo só notara no
sequente dia. Amontara-se logo a mundidão e, num fósforo, se
fabricaram explicações, epistemologias. Que aquilo provinha de ele
ter existência limpa: lhe dava a requerida leveza. Fosse um político e,
com o peso da consciência, desfechava logo de focinho. Outros se
opunham: naquele estado de pelicano, o cidadão fugia era de suas
dívidas. Ninguém cobra no ar.” (In: O fio das missangas, Companhia
das Letras, 2009).

A leitura do fragmento acima nos faz passear entre novas sintaxes, palavras,
imagens. Assim posto, sem autor, pode-se pensar na tradição fundada por
Guimarães Rosa? Luandino Vieira? Sim, mas não, porque é de Mia Couto, e
algumas marcas são evidentes da sua escrita, como o pairar entre a realidade e o

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mundo mágico. Imaginem, um homem que se joga do prédio e que “está caindo”
desde a noite anterior é algo, no mínimo, in-crível. Essa, que é uma de suas marcas
– vista também, apenas para dar um exemplo, em O último voo do flamingo,
publicado em 2000 – é mais acentuada do que o ambiência igualmente mítica de
Rosa.

É lugar comum aproximar o moçambicano Mia Couto do brasileiro, Guimarães Rosa,


autor do Grande Sertão: Veredas, e do angolano Luandino Vieira, autor de Nós, os
do Makulusu. Essa aproximação é tão mais rica se for possível colocar um trecho de
cada autor, um ao lado do outro, a fim de refletir sobre as “invencionices” dos
autores.

Rosa foi muito lido entre os intelectuais africanos de língua portuguesa, assim, como
muitos dos modernistas brasileiros. Se pensamos na construção desse trecho e a
colocarmos ao lado de um pequeno fragmento do conto “Famigerado”, de
Guimarães Rosa, é possível compreender por qual motivo se reconhece a tradição
roseana nas letras africanas:

“Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem
pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo
tranqüilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela. Um grupo de
cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha
porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a
cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O
cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo.
Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem,
para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu
cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi
grande dúvida.” (In: Primeiras estórias, 1988)

Sobre Luandino Vieira, sua busca era compor uma língua portuguesa que não fosse
portuguesa. Como? Recriando-a. Ele mesmo admite que sua literatura deveria ser
revolucionária, para combater a exploração e a violência, para se opor à dicção do

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colonizador. Ao conhecer Guimarães Rosa, Luandino entende o que deveria fazer:


recriar a língua do opressor povoá-la com vozes orais, com ditados populares, com
ritmos e sons da terra. E é assim que surge Luanda, livro escrito enquanto estava
preso no Tarrafal, Cabo Verde. Publicado em 1963, este livro se povoa de nomes
em quimbundo, o dialeto predominante de Angola, e de um linguajar que se anuncia
completamente novo. São três estórias sobre a fome, as carências, a dificuldade de
sobrevivência, contadas como pela voz de um griot. Uma dos contos que o compõe
é “A Estória do Ovo e da Galinha”, por seu valor simbólico. A história, apesar de
parecer banal, é uma alegoria política: duas vizinhas brigam por causa de um ovo,
colocado pela galinha de uma, mas no quintal da outra, que alimenta o animal. Com
quem deve ficar o ovo por direito? A estória dá um desfecho que aponta para uma
perspectiva utópica: a fraternidade entre os homens.

Ao descobrir Guimarães Rosa, Luandino Vieira também se descobre e o mesmo,


para Mia Couto. Embrionariamente e cada qual com suas intenções, o fato é que se
pode dizer de uma tradição literária de língua portuguesa que funda um espaço, o da
reinvenção linguística.

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Aula 22_Paulina Chiziane e a condição do feminino

Nascida em 1955, na província de Gaza, Paulina Chiziane fez Letras, Linguística, na


Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo. Ela começa sua vida de escritora bem
antes de saber escrever. Com sua avó, diz ter aprendido a arte de contar histórias, o
que a levou a publicar seus contos em jornais anos mais tarde. A oralidade, para
Chiziane (como para tantos e tantos outros autores africanos, como temos
estudado), é fonte da sua arte, nutrida pelos discursos populares, pelas construções
linguísticas, pelas histórias tradicionais, pelas experiências coletivas.

Foi a primeira escritora, mulher, a publicar romances em Moçambique. Suas


histórias trazem vivências de tempos difíceis, de conflitos, da corrupção das
comunidades locais com a chegada dos portugueses; mas também mostram a
esperança, o amor, a possibilidade de superação da violenta realidade nacional.

Os temas são variados, mas o impacto da presença “do outro” – no caso, do


colonizador - persiste na maior parte dos seus textos, que procuram iluminar as
razões dos traumas históricos que ainda perduram no país. Também a condição do
feminino em Moçambique, sua terra natal, é frequentemente explorada na
construção de personagens que se debatem com a realidade para entender o seu
papel nas novas organizações sociais e para conquistar seus direitos.

Paulina é conhecida por A Balada de Amor ao Vento (1990), Ventos do Apocalipse


(1993), O Sétimo Juramento (2000) e, principalmente, por Niketche. Uma História de
Poligamia (2002), em que narra, por meio da protagonista, Rami, a opressão em que
vivem as moçambicanas, causada em grande parte pela perda do equilíbrio da vida
das comunidades, quando da chegada do colonizador.

Para além dos temas complexos que Paulina explora, há ainda um cuidadoso
trabalho com a linguagem, cujo resultado é uma prosa permeada por momentos de
intenso lirismo:

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“O desconhecido cumprimenta-me. Agrada-me aquela saudação.


Agrada-me aquela cabeça jovem com alguns cabelos brancos.
Agrada-me aquela voz masculina e aquele sorriso. Agrada-me ainda
mais o calor do novo abraço. Fecho os olhos.

Seguro nos meus pulmões este grão de ar, delicioso mistério do


sopro. Viajo no espaço. Do céu inteiro caem gotas de chuva sobre o
meu corpo e varrem todas as chamas que me devoram. Os
sentimentos de angústia, de rejeição, bóiam como detritos na
corrente de mel. Sou de novo um rio, escuto em silêncio o marulhar
suave das ondas do meu sangue. Viajo no alto, sou estrela, sou luz,
eu brilho. Sou arco-íris, tenho todas as cores da sensualidade, estou
no espaço, estou na lua. A minha voz solta acordes doces e leves
como o sopro do mel. Olho para o mundo do alto. A terra é um
planeta de espinhos, e o beijo roubado é a mais preciosa relíquia,
não há mulheres belas nem feias quando o amor se faz no escuro,
nem mulheres frias quando o fogo existe.” (2002, p. 84).

As imagens da natureza, recuperadas para descrever o estado de êxtase da


protagonista, traz a força da mulher, que resiste a todas as violências, negando-se a
ser ela também mais um elemento de opressão. O feminino se torna, na prosa
poética de Paulina, a fonte de vida e de regeneração, capaz de transmutar a dor em
amor, a violência em compreensão.

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Aula 23_A literatura infanto-juvenil

É certo que rotular um livro de “infantil” ou “infanto-juvenil” é sempre um equívoco, já


que a literatura, como se sabe, é o terreno da liberdade e, portanto, não aceita
limites de quaisquer ordens. Ainda assim, para efeito didático, faremos esse recorte,
a fim de discutir a relação do público infantil e juvenil com a literatura. Mas é bom
observar que esse olhar não implica em dizer que um livro é isto ou é aquilo.

As aventuras de Ngunga, como vimos na aula dedicada a Pepetela, foi o primeiro


livro escrito com o intuito de chegar aos mais novos. Tendo que cumprir uma missão
revolucionária, Pepetela se incomodou ao ver que as crianças e os jovens liam uma
literatura que em nada dialogava com o mundo africano e angolano. Desse desejo
de apresentar a própria história, o povo, o linguajar da terra, em 1973 surge este que
deu origem à tradição da literatura conhecida como infanto-juvenil em Angola.

Em busca do registro escrito, muitos escritores se puseram a escrever depois da


independência. Manuel Rui foi o primeiro a escrever e publicar para as crianças na
Angola independente. Seu livro, A Caixa, conta a história de Kito, um menino que
fugiu da guerra, em que o pai morrera, indo se refugiar em um bairro suburbano de
Luanda., junto com a mãe. Aí, Kito convive com outras crianças e aprende as
primeiras lições de solidariedade, amizade, amor e de política.

Gabriela Antunes, como Pepetala, diz que escolheu escrever literatura infantil,
porque não havia livros para as crianças, que falasse do seu universo, das gentes,
das belezas. Em 1990, este ainda é o seu diagnóstico, quando, no Seminário sobre
literatura angolana, apresenta o que pensa ser escrever para crianças:

"tema pode ser dado a uma criança: homens e bichos falando em


conjunto, flores que dançam e se comportam como crianças, viagens
fantásticas, sonhos, e o mar, a lua, a vida, a morte, o nosso mundo, o
mundo dos outros... tudo pode ser dado a uma criança, desde que
escrito numa linguagem simples, ilustrada e bem adaptada à idade
da criança que lê e à sua realidade. O desenvolvimento do tema

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deve ter em conta a faixa etária e os conhecimentos do pequeno


leitor, se quisermos que ele sinta prazer com o que lê (ou lhe
contam) e possa interessar-se pelo livro"
(http://www.ueangola.com/bio-quem/item/26-maria-gabriela-
antunescardoso-da-silva-antunes, consultado em julho de 2013)

Paralelamente, houve um esforço de recuperar, de recolher as histórias tradicionais


até então nunca registradas. É curioso notar que, às vezes, há uma ruptura das
fronteiras nacionais, quando o assunto são as histórias tradicionais. A própria
formação dos países africanos explica, ao terem sofrido divisões arbitrárias. A
comunidade de um lugar continua muitas vezes no país vizinho; às vezes, espelha-
se por parte do continente africano, já que muitos desses povos foram nômades
(ainda há alguns). Ainda assim, as melhores publicações com os contos africanos
são as que identificam de que povo é cada história, qual a sua origem. Há alguns
livros que trazem mapas das etnias e que identificam as regiões de que surgiram.
Um bom exemplo é o livro organizado pela entrevistada (vídeo-aulas) Contos
populares dos países africanos de língua portuguesa (2013), que contextualiza as
histórias coletadas.

Entretanto, a pesquisa das literaturas africanas de língua portuguesa não deve parar
aí. Escritores como Gabriela Antunes (Estórias velhas, roupa nova, 1988), Dario de
Melo (Queres ouvir, 1988) formaram a primeira geração de escritores para o público
jovem, em histórias que mesclam as tradições das estórias africanas com as
histórias infantis ocidentais. Essa mistura, para o público brasileiro, é muito sedutora,
uma vez que recria o olhar sobre as histórias entre nós já tão difundidas, mas com
conflitos históricos muito próximos aos vividos em países que ainda sofrem as
consequências das profundas desigualdades sociais.

Há, hoje, escritores por toda a África lusófona, que se dedicam à construção de
histórias para o público infanto-juvenil: Luandino Vieira, Mia Couto, Ondjaki,
Albertino Bragança, Boaventura Cardoso, Luís Bernardo Honwana, Odete Costa
Semedo são apenas alguns dos mais representativos autores contemporâneos da
África de língua portuguesa e que têm seus textos amplamente divulgados (a

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bibliografia da unidade III traz algumas referências), o que mostra o vigor desta
literatura que avança e, agora, também nos influencia.

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Resumo_Unidade III

Nessa unidade, apresentamos dois tópicos gerais (“Gêneros literários e a tradição


oral” e “Literatura infanto-juvenil”) e outros seis sobre a literatura produzida em
Moçambique.

Partimos da produção poética de José Craveirinha e a relacionamos com os


conceitos de negritude e de africanidade; posteriormente, abordamos a poesia de
Noémia de Sousa, uma escritora reconhecida por sua inflexão combativa contra
qualquer forma de opressão.

Em um segundo momento, exploramos um dos maiores escritores de todos os


tempos, reconhecido como um dos doze melhores escritores africanos, Mia Couto.
Intelectual atuante, seus textos têm percorrido mundo, sendo traduzido em mais de
vinte e cinco idiomas. Ao lado de seus romances, procuramos valorizar suas
narrativas curtas, de grande poder simbólico e intenso trabalho com a linguagem.

Intentamos também apresentar um olhar comparado entre Mia Couto, Guimarães


Rosa e Luandino Vieira, a partir do qual é possível aprofundar ainda mais os
conhecimentos sobre as literaturas moçambicana, brasileira e angolana.

Posteriormente, a discussão foi sobre Paulina Chiziane e a condição feminina; e, ao


fim, sobre a literatura intanto-juvenil, hoje bastante profícua nos países africanos de
língua portuguesa.

LETRAS 106
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Aula 24_Caminhos cruzados

Quando se pensa na comparação das literaturas de língua portuguesa,


automaticamente, pensa-se nos diálogos estabelecido ao longo dos anos pela
literatura tida como “adulta”. É certo que eles são fundadores e se multiplicam, assim
como ocorre com a literatura que pode ser lida pelo público infantil e juvenil. Há,
entretanto, aqui, uma perspectiva que se faz da África para o Brasil e para Portugal.

Isso se dá, porque a literatura chamada de “infanto-juvenil” africana de língua


portuguesa começa muito antes do registro escrito. As histórias orais, passadas de
geração a geração, povoaram o imaginário deste lado do Atlântico, seja pela
diáspora africana, seja pela história comum entre os países colonizados por
Portugal, seja pelas aproximações entre as infâncias dos dois lados do Atlântico,
seja pela presença do negro nas culturas dos países. Também os livros portugueses
guardam as tradições negras, dos países que colonizaram.

Os entrecruzamentos podem começar pelas histórias mais do que conhecidas entre


todos os públicos. Exemplo é o “Menina bonita do laço de fita”, da brasileira Ana
Maria Machado, que retoma as questões raciais de modo fabular, por meio de
metáforas que potencializam a valorização das diferenças. Também é possível
começar a discorrer sobre os encontros das literaturas de língua portuguesa na
figura mais do que tradicional do “velho sábio”, como se lê nos textos de Mia Couto,
de Guimarães Rosa. Há, ainda, a possibilidade de aproximar as fábulas produzidas
nos vários países, cuja ênfase na construção dos personagens evidenciam a
trajetória da aprendizagem dos personagens.

Ou então, pode-se ressaltar textos como os de José Saramago, “A maior flor do


mundo”, que exploram questões sociais e históricas, vistas nas outras literatura:

“E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura


obrigatória para os adultos?

LETRAS 107
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Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo


têm andado As histórias para crianças devem ser escritas com
palavras muito simples. Quem me dera saber escrever essas
histórias.”

Para além, o que se vê é que as literaturas de língua portuguesa permitem um


amplo trabalho com o público infantil e juvenil junto às questões raciais e étnicas. A
lei 10.639/08, posteriormente alterada pela 11.645, fortalece as iniciativas que
enfrentam os preconceitos contra a raça negra, propondo diretrizes curriculares que
apontam para o direito e a igualdade de acesso às fontes de cultura nacionais. A
escola é, nesse contexto, obrigada a repensar o seu papel, indicando leituras de
textos literários, voltados para a valorização do negro e da cultura africana.

LETRAS 108
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LETRAS 109
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Unidade IV_Entre Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau


e outros temas. Práticas pedagógicas.

Objetivos:

Na quarta unidade, os objetivos são refletir sobre as especificidades das literaturas


de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau, discutir os traços das poéticas
das literaturas africanas de língua portuguesa, avançar nas provocações com
relação à necessidade de romper com a visão tradicional que se tem dos cânones
literários. Por fim, pretende-se, como nas outras unidades, desenvolver habilidades
e competências leitoras e apontar para possíveis práticas pedagógicas nos anos do
ciclo básico (fundamental e médio).

Plano de estudos:

Para tanto, a Unidade IV propõe o seguinte Plano de Estudo:

25. Claridade e Certeza: momentos decisivos da literatura em Cabo Verde.

26 Entre a utopia e a melancolia: o desejo de evasão e a necessidade de resistir.

27. Modernismos africano e brasileiro. Ovídio Martins, Jorge Barbosa, Baltasar


Lopes.

28. Graciliano Ramos e Jorge Amado nas terras africanas.

29. Outras literaturas: Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe em perspectiva.

30. As poéticas das literaturas africanas.

31. Por uma renovação do olhar: a questão do cânone e das histórias literárias.

32. Práxis literária.

LETRAS 110
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Aula 25_Claridade e Certeza: momentos decisivos da literatura


cabo-verdiana

Cabo Verde nasce da mistura de povos, do cruzamento de exílios, resultantes de


deportações e da escravatura. Na Ilha do Sal, como ficou conhecido este
arquipélago, composto por dez ilhas de origem vulcânica, passa a ser uma terra de
fixação da população, ao se tornar independente a 5 de julho de 1975.

Até então, os fluxos migratórios eram resultados dos períodos da escravidão e da


colonização, quando os revolucionários (alguns ilustres como Luandino Vieira) eram
para lá mandados, a fim de cumprirem dez, vinte danos de prisão. O sentimento
nacional é algo, pois, que demora a se fixar entre os cabo-verdianos, vindo a se
constituir inclusive como um importante tema da literatura (como veremos na
próxima aula).

Entre a profunda mestiçagem cultural de Cabo Verde e o abandono a que o povo da


Ilha do Sal fora relegado por suas agrestes condições históricas e geográficas, surge
um grupo que viria a expressar o desejo de querer, nas palavras de Manuel Lopes,
“fincar os pés na terra”. Dos sulcos do solo árido e seco, pobre e miserável, a
colmatagem se inicia com os que fundaram a revista Claridade em 1936, cuja
publicação de periodicidade variável estendeu-se até os anos de 1960.

Para Manuel Ferreira, os claridosos, como ficaram conhecidos, definem o moderno


movimento cultural cabo-verdiano fundando a nova literatura das ilhas, definida,
então, pela ruptura com a condição de subalternidade cultural a Portugal. Seguindo
tal ensejo, meses antes da publicação do primeiro número de Claridade, um dos
seus fundadores, Jorge Barbosa (Praia, 1902 – Portuagal, 1971) publica
Arquipélago, vindo a lançar as bases de uma poesia moderna, que se consolidará
em torno da revista e dos outros fundadores, Manuel Lopes e Baltasar Lopes.

Amalgamando nas experiências literárias da cultura particularíssima dentre os


países africanos de língua portuguesa dada a quase impossibilidade de sobreviver
às catástrofes naturais, a transição para a década de 30 gera três dos poetas
nacionais que antecederão a geração nascente. José Lopes, Eugénio Tavares e

LETRAS 111
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Pedro Cardoso multiplicam as possibilidades de construção linguística das obras e


reforçam, assim, a tradição encetada já no século XIX de defenderem na imprensa e
na cultura a valorização do dialeto crioulo.

A produção desses e de outros escritores menos conhecidos (alguns nem


publicados) será o esteio de que partirão posteriormente escritores como Ovídio
Martins, que alargará as expressões líricas em protestos militantes, e Kaoberdiano
Dambará. Mas serão também as contradições inerentes principalmente à poesia de
José Lopes e Pedro Cardoso as que definirão o movimento em torno de Claridade. A
defesa do crioulo, inclusive para ser ensinado nas escolas, contrasta com o
classicismo de seus versos, ancorados no imaginário platônico e nas lendas da
Grécia antiga.

Essa convivência de opostos formula os paradoxos de forma e de conteúdo, vindo a


revelar a profunda divisão do homem de Cabo Verde entre a terra mãe e a pátria
colonial. É do atrito, cada vez mais intenso, que surgirá, depois de Claridade,
evidente referência ao iluminismo francês, a publicação de Certeza em 1944. Foi só
a partir desse periódico que a busca da nacionalidade cede à busca da
compreensão dos conflitos sociais das ilhas, avançando não só nas questões da
especificidade étnica, mas da própria luta pela independência.

Em um mundo marcado pela ascensão dos governos autoritários, fascistas, e pela


organização dos trabalhadores, os matizes ideológicos tornam-se bastante estreitos
para o mundo da cultura, que recebe Claridade sob inúmeras polêmicas,
sintetizadas na opinião de dois representativos intelectuais africanos.

Em 1947, Baltasar Lopes publica Chiquinho, importante romance que define o


empenho do grupo de tirar da história do povo ilhéu o motivo e o ritmo da literatura.

É o início da ruptura, que já começa a incomodar os imperialistas, preocupados com


as polêmicas discussões de Aimé Césaire, com o movimento da Negritude e com o
clamor crescente pela independência das nações. Mas é apenas com a segunda
geração de Claridade, enriquecida com a participação dos escritores de Certeza,
que o movimento se alarga, incorporando uma visão dinâmica do mundo, dada pelo
materialismo histórico.

LETRAS 112
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Organizada por Nuno Miranda e Arnaldo França, Certeza, como aponta Manuel
Ferreira, continua Claridade sob o ponto de vista da busca da caboverdianidade,
mas a ultrapassa sob o ponto de vista de que os aspectos regionais apontados eram
fruto da pressão ideológica. Alinhada ao neorrelaismo português, Certeza é uma
espécie de duplo complementar de Claridade, porque o que falta a uma, a outra
contempla. Não conseguindo ombrear com as conquistas estéticas da revista que a
precedeu, afirma o caráter revolucionário do grupo. Os jovens intelectuais
confrontam-se com a necessidade de intervir na história, escrevendo como Teixeira
de Sousa, em Da Claridade à Certeza, que explora a condição do estudante cabo-
verdiano, e Orlanda Amariles, que discute o papel da mulher no arquipélago.

As gerações que se sucederam não abandonaram as idéias afloradas em Claridade


e Certeza. Ao contrário, os novos escritores aí buscam, ainda hoje, os referenciais
para recompor as mesmas problemáticas cabo-verdianas em outras tonalidades. A
polaridade ir e permanecer não cristaliza a esperança em ideologias conservadoras,
mas movimentam a esperança vivaz, a utopia possível, que brota do esforço da
literatura participar da sociedade, transformando as intenções poéticas em gestos
possíveis. Nesse sentido, é possível encontrar O Arquipélago da Paixão, de Vera
Duarte, cujo título sugestivo não esconde sua profunda ligação com a terra, e nas
muitas vozes literárias cabo-verdianas o reclame da tradição fundada por Claridade
e Certeza.

LETRAS 113
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Aula 26_Entre a utopia e a melancolia: o desejo de evasão e a


necessidade de resistir

Cada país africano é uma nação, para parodiar as palavras escritas por Mia Couto.
As especificidades de Cabo Verde derivam da sua condição insular, dos
permanentes fluxos migratórios (dados seja pelas condições agrestes do
arquipélago, falta de emprego, dificuldade de produção de alimentos...) que
caracterizaram a sua formação.

As lutas pela libertação nacional se deram de modo bastante intenso, chegando a se


espalhar pelo continente e a Guiné-Bissau, para onde muitos cabo-verdianos foram.
Sofrendo carências de todos os tipos, a literatura se firma com um importante
espaço cultural para o registro dos acontecimentos da nação. Tema frequente da
nação é o desejo de partir e fugir do arquipélago e a necessidade de resistir. No
poema “Ecran”, Manuel Lopes expressa essa profunda contradição:

"Para além destas ondas que não param nunca...

... Há lutas que eu desejo

com a indomável ânsia dum cavalo preso à beira do caminho, todo o dia,

Por onde passam cortejos de promessas, tentações, miragem,

que acordam de tempos a tempos a longa monotonia

da paisagem..."

O reconhecer-se entre a “força de permanência, de integração, portanto, de


serenidade” e a “partida, a emigração, surgindo como fonte de inquietação” é o que
compõe as duas estruturas mentais de que derivam as expressões literárias da
insularidade caboverdiana. Ainda que os escritores de Claridade não evidenciassem
os conflitos, o fato é que, para Gabriel Mariano, ao reivindicarem conhecer o meio,
reivindicavam, em última instância, a identidade cabo-verdiana.

LETRAS 114
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O que se vê é um embate entre os escritores que se enfronham nos dramas da terra


e afirmam a resistência política, permanecendo, e os que confrontam as intensas
problemáticas – da fome às carências culturais – e sonham com a partida. Está aqui,
pois, formado o esteio sobre o qual se constrói as manifestações culturais cabo-
verdianas, o evasionismo e a permanência.

Os problemas nacionais do arquipélago geraram, a contrapelo, uma excelente


literatura, lida em autores como, por exemplo, Vera Duarte. Nascida em 1950, ela foi
uma das que saiu de Cabo Verde para estudar, mas voltou para atuar na terra e
transformar a realidade. Vendo a si mesma antes de tudo como uma combatente
contra as injustiças sociais, Vera Duarte é uma importante voz na política nacional,
chegando a ser conselheira da Presidência da República e vindo a participar de
diversas comissões de cunho político e cultural. O Arquipélago da paixão foi
publicada no Brasil, além de outras produções, o que tem rendido diversos estudos
acadêmicos sobre sua trajetória de romancista e poetisa:

LETRAS 115
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Aula 27_Modernismos africano e brasileiro.

Nos anos 1930, para usar uma expressão de Benjamin Abdala em Utopia e
dualidade no contado de culturas. O nascimento da literatura cabo-verdiana (2003),
a “consciência possível” dos intelectuais de Cabo Verde desenvolve-se em torno do
mote da busca da nacionalidade, centrada nas carências da população.

Lendo e recebendo as influências tanto de revista Presença, publicada em Portugal,


quanto dos modernistas brasileiros, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano
Ramos, Marques Rebelo, Amando Fontes, o movimento intelectual que se
desenvolve em torno de Claridade, visto na aula 25, consolida o sistema literário
cabo-verdiano, que contará com alfabetizados europeus e africanos visceralmente
ligados às questões das ilhas, batidas pela exploração e pelas secas periódicas.

Tendo o Brasil, nas palavras de Jorge Barbosa, o “irmão do Atlântico”, a nova


geração imagina a identidade cabo-verdiana em termos sociais como o fizeram os
escritores modernistas nordestinos, que serviram de modelo aos novos escritores. O
conto “O galo que cantou na baía”, de Manuel Lopes, recupera o tom dos
nordestinos, dos quais o próprio autor reconhece ter recebido influência. A estória é
sobre o contrabando de garrafas de grogue no porto de Mindelo por Tói, flagrado
pela figura contraditória do guarda alfandegário. Povoado por miseráveis que vivem
cotidianamente a luta pelo alimento, o texto aponta para as particularidades da ilha,
a morna (música típica do país), a decadência do porto abandonado e sonda a alma
carente, melancólica e amoral do cabo-verdiano.

Poeta e ensaísta, Manuel Lopes publica Chvua Braba (1956) e Os Flagelados do


Vento Leste (1960) e é na nota preliminar à segunda edição desse segundo
romance que explica ter procurado dar voz aos oprimidos cabo-verdianos sem
apontar o “dedo acusatório”, mas alardeando a condição daquele povo que
desafiava dia a dia as precaríssimas condições de vida.

A intenção de Manuel Lopes parece evidenciar-se ao longo das publicações, que,


principalmente depois da segunda grande guerra, procuram romper com os padrões
literários europeus. A foto do batuque da Ilha de Santiago, uma das tradições cabo-
verdianas mais combatidas pelo colonialismo, como capa do segundo número da

LETRAS 116
UNIVERSIDADE
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revista que edita, ilustra o projeto de encontrar no chão infértil os caminhos da gente
resistente.

Dentro dessa inflexão, a voz dos modernistas brasileiros ampliaram as


possibilidades de expressão dos cabo-verdianos. Mas não foram apenas os
modernistas nordestinos que influenciaram os escritores cabo-verdianos. A Semana
de 1922 teve um forte impacto na literatura nacional, como se lê nos poemas de
Ovídio Martins e Baltasar Lopes, que retomam “Vou-me embora para Pasárgada”,
de Manuel Bandeira, em novas releituras (como vimos nas primeiras aulas).

Ao assumir a proximidade com o Brasil e a cultura mestiça, os escritores evidenciam


a busca de um modo de se refletirem sobre si mesmos. Não é demais lembrar o
célebre poema “Você, Brasil”, de Jorge Barbosa, ou dos intensos diálogos com a
literatura de Jorge Amado e Graciliano Ramos, como veremos na próxima aula, ou
mesmo os diálogos com Guimarães Rosa que Luandino Vieira estabelece, como
declara em uma entrevista concedida ao Jornal de Letras (1982):

“Eu estava preso, estava na primeira esquadra, quando me chegou


às mãos Sagarana. Foi uma revelação. Eu sentia que era necessário
aproveitar literariamente o instrumento falado dos personagens que
era os que eu conhecia, que refletiam, quanto a mim, os verdadeiros
personagens a pôr na literatura angolana. Guirmarães Rosa ensinou-
me que um escritor tem a liberdade de criar uma linguagem que não
seja a que os seus personagens utilizam.”

Apesar das diferenças entre os territórios colonizados por Portugal, a representação


do Brasil, como afirma Rita Chaves, compõe um eixo do projeto de identidade
nacional que emergia: o discurso literário possibilitava a assunção de um sentimento
nativista fundamentado na recuperação das raízes.

LETRAS 117
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Aula 28_Jorge Amado e Graciliano Ramos entre os escritores de


língua portuguesa

Os vínculos com a escravidão lançaram raízes profundas entre Brasil e o continente


africano, mas não só, também a história de desigualdades sociais, a natureza
agreste, a exploração e as várias formas de violência social.

Jorge Amado foi e ainda é muito lido nos países africanos de língua portuguesa.
Seus personagens negros, mulatos, crianças miseráveis se aproximam das histórias
dentro da perspectiva de uma realidade cuja luta pela sobrevivência se sobrepõe
aos prazeres possíveis de uma vida tranquila. De certo modo, os africanos
entendem que fazem parte da formação da nação brasileira, o que se lê em
clássicos como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire.

Jubiabá, publicado em 1935, é apenas um dos exemplos da presença de Amado


nas literaturas africanas de língua portuguesa. O protagonista Antonio Balduíno
assume ao longo da narrativa consciência política e histórica, tornando-se um
revolucionário, símbolo do heroísmo dos negros, que se afirmaram pela resistência
contra a opressão e a violência. O negro Balduíno, ao fim, adquire consciência de
classe, porque percebe que negros, brancos, mestiços são todos explorados pelo
capitalismo.

Do outro lado do Atlântico, surge em 1947, o primeiro romance cabo-verdiano,


Chiquinho, escrito por Baltasar Lopes. A narrativa está dividida em três partes:
“Infância”, quando Chiquinho aprende a escrever e convive com a família na ilha de
São Nicolau; “São Vicente”, quando ele continua seus estudos e faz novos amigos,
vindo a fundar com eles um grêmio estudantil e a publicar um jornal que rememora a
revista Claridade; “As águas”, terceira e última parte em que Chiquinho volta para
sua ilha onde será professor e tentará lutar contra um dos mais graves problemas da
ilha, a seca:

“Eu nunca tinha visto aquilo. Era novo para mim esse espetáculo da vida que foge
imperceptivelmente dos homens e das coisas. Os lunaristas explicavam a fatalidade
cíclica da seca. De vinte em vinte anos era aquela falsia completa da chuva,

LETRAS 118
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desamparando as ilhas para outras paragens no meio do mar. Eu estava habituado


à face serena da vida rotineira da minha ilha. Até agora, tudo me parecia
impregnado de imobilidade. Veria até ao fim da vida as mesmas caras, a mesma
mediania, a mesma resignação perante o destino que Deus governou lá do alto. A
insuficiência de outros anos não me tinha preparado para aquela batalha cruel e
total. Por muito tempo que eu vivesse, mamãe velha havia de acompanhar
Chiquinho com as suas descomposturas e a sua solicitude grulhenta (LOPES, 1986,
p. 157)

O romance continua e Chiquinho cada vez mais se sente impotente diante de um


destino que se impõe brutalmente diante dos homens da terra. Não é difícil aqui
lembrar de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, quando a família de retirantes já não
suporta a fome e parte para o sul. Esse é também o destino de Chiquinho, que é
expulso da terra, indo cumprir o trajeto de tantos outros, que vão para outros países
em busca de melhores condições. Repetem-se os fluxos migratórios, repete-se o
exílio forçado, repetem-se as cenas de miséria e desolação.

De Cabo Verde para Angola, o belíssimo “A vida verdadeira de Domingos Xavier”,


publicado em 1961, conta a história de um trabalhador, tratorista em uma empresa
responsável pela construção de uma barragem no rio Kuanza. Domingos Xavier tem
dois colegas, o negro Sousinha e Silvestre, engenheiro de obras e branco. A trama
se estabelece e aponta para as questões da exploração econômica para além das
questões de raça e de etnia, mas é Domingos Xavier que se afirma como um
modelo a ser seguido: negro, pobre, perseguido, não trai os amigos e permanece
leal a eles na luta pelas igualdades sociais.

Os diálogos são inúmeros e profícuos. O importante é ler os textos africanos de


língua portuguesa, mergulhar neles e os descobrir; somente com essa trajetória,
com essa educação literária nas letras africanas de língua portuguesa é que se
colherá as belezas dos contrapontos entre os sistemas literários colocados em
questão.

LETRAS 119
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Aula 29_Outras literaturas: Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe em


perspectiva

Os sistemas literários de Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe tiveram caminhos


diferenciados, dada a dificuldade dos processos de independência e de autonomia
das nações em questão. Apenas para incitar as reflexões, vale lembrar que em
Guiné-Bissau, até 1983, 44% da população falava crioulos de base portuguesa,
enquanto apenas 11% falava o português. O restante da população falava inúmeras
línguas africanas. O crioulo daquele país continental possui dois dialetos, o de
Bissau e o de Cacheu, no norte do país. Em São Tomé e Príncipe, fala-se ainda hoje
as línguas locais, conhecidas como forro e monco. O português é falado e ainda
guarda algo do português arcaico.

As questões da língua são relevantes para entender a complexidade da formação do


país: cada língua, uma organização social. Como se sabe, parte dessas línguas está
se perdendo e alguns grupos se esforçam para registrá-las e mantê-las vivas.

Como a literatura dialoga com essa realidade, é o desafio para a reflexão.

São Tomé e Príncipe são duas ilhas no noroeste da costa africana. O tamanho das
ilhas é pequeno, mas há seus frutos literários, reconhecidos em Francisco José
Tenreiro, nascido em São Tomé, em 1921, em Francisco da Costa Alegre, nascido
em 1864, e em Alda do Espírito Santo, que está em todas as referências
às literaturas africanas de língua portuguesa. Os poemas dessa poetisa vão do tom
mais combativo ao mais lírico, guardando em comum o profundo sentimento da
nação emergente, que carece ainda de uma identidade que abrigue as diferenças.
Para além delas, Alda espalha as imagens da natureza nacional, recuperando as
imagens dos melhores românticos:

ILHA NUA, Alda do Espírito Santo (1926 a 2010)

Coqueiros e palmares da Terra Natal

LETRAS 120
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Mar azul das ilhas perdidas na conjuntura dos séculos

Vegetação densa no horizonte imenso dos nossos sonhos.

Verdura, oceano, calor tropical

Gritando a sede imensa do salgado mar

No deserto paradoxal das praias humanas

Sedentas de espaço e devida

Nos cantos amargos do ossobô

Anunciando o cair das chuvas

Varrendo de rijo a terra calcinada

Saturada do calor ardente

Mas faminta da irradiação humana

Ilhas paradoxais do Sul do Sará

Os desertos humanos clamam

Na floresta virgem

Dos teus destinos sem planuras...

Em Guiné-Bissau, a literatura se desenvolveu sob influência de Cabo Verde, que


teve forte presença por toda a história e desenvolvimento do país. É comum ver na
crítica uma aproximação de Guiné-Bissau a Cabo Verde, principalmente, quando se
pensa em escritores como Amilcar Cabral, que nasceu no continente e mudou-se,
aos oito anos, para a “Ilha do Sal”. Importante figura política, participou da fundação
do Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC), de
orientação marxista.

Os primeiros autores guineenses têm uma produção identificada com a dos


colonizadores, posteriormente, com os textos de combate à exploração dos
portugueses nas terras africanas e, por fim, com uma literatura mais independente e

LETRAS 121
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autônoma. Entre as publicações, Hélder Proença é um escritor de projeção


internacional e que conquistou seu público leitor pelo vigor da poesia empenhada
nas causas sociais e políticas:

Quando te propus

um amanhecer diferente

a terra ainda fervia em lavas

e os homens ainda eram bestas ferozes

Quando te propus

a conquista do futuro

vazias eram as mãos

negras como breu o silêncio da resposta

Quando te propus

o acumular de forças

o sangue nómada e igual

coagulava em todos os cárceres

em toda a terra

e em todos os homens

Quando te propus

um amanhecer diferente, amor

LETRAS 122
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a eternidade voraz das nossas dores

era igual a «Deus Pai todo poderoso criador dos céus e da terra»

Quando te propus

olhos secos, pés na terra, e convicção firme

surdos eram os céus e a terra

receptivos as balas e punhais

as amaldiçoavam cada existência nossa

Quando te propus

abraçar a história, amor

tantas foram as esperanças comidas

insondável a fé forjada

no extenso breu de canto e morte

Foi assim que te propus

no circuito de lágrimas e fogo, Povo meu

o hastear eterno do nosso sangue

para um amanhecer diferente!

Para ser pesquisada, lida e usufruída, há a obra de Odete Semedo, escritora que
estudou em Portugal, teve importantes funções políticas, ocupando o cargo de
Ministra da Educação, e publicou textos cuja marca é a recolha das histórias
tradicionais de Guiné-Bissau. Esse não é um feito simples em um país onde se fala
mais de 20 idiomas, além do guineense e do português (em 2010, estimava-se que

LETRAS 123
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apenas 10% da população falava português). O registro das histórias tradicionais em


língua portuguesa é por si só um impasse, uma vez que elas se espalham pelas
línguas orais. Entretanto, o que se lê é um esforço de preservar culturas ancestrais,
ainda vivas no cotidiano da sociedade guineense.

LETRAS 124
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Aula 30_As poéticas das literaturas africanas

Pensar nos modos de expressão literária e escrita dos países africanos de língua
portuguesa aponta para algo mais genérico, que aqui estamos chamando de
“poéticas das literaturas africanas”. Maria Nazareth Soares Fonseca, pesquisadora e
professora da PUC Minas, releva tal problemática ao discutir as expressões
“literatura negra” e “literatura afro-brasileira” para designar tipos de produções
artístico-literárias. Segundo a professora, elas podem estar relacionadas tanto com a
cor da pele dos autores como com a intenção das obras, dada por questões
específicas. Maria Nazareth aponta ainda para uma divisão – didática - em dois
grandes grupos: um primeiro caracterizado pelo forte enfrentamento social, contra o
preconceito e que procura interferir na história; outro grupo de escritores mais
voltados para a veiculação dos valores negros, procurando dar voz à tradição do
povo, cuja origem mestiça não pode apagar seus traços afrodescendentes. Entre as
duas tendências, continua a crítica, há muitas diferenças que devem ser valorizadas
sob pena de tornar homogêneas vozes em essência dissonantes
(http://www.letras.ufmg.br/literafro/data1/artigos/poesiaafrobrasileira.pdf). Entre os
dois olhares, há muitos tons e inúmeras outras formas literárias. Há até os que
negam a qualificação de literatura afrodescendente ou negra, afirmando que as
expressões artísticas não se prendem a etnia, opção sexual, grupos sociais...

Entrar nessa discussão pode interessar, mas é preciso que o estudioso e leitor
pesquisem para não incorrer em erros conceituas. A proposta das aulas, entretanto,
não é tomar partido de uma ou outra vertente, mas de ampliar o olhar para a
tradição que as literaturas africanas, produzidas em Angola, Moçambique, Cabo
Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, formaram no Brasil. Isso, porque, no
âmbito da crítica literária, estudou-se muito a influência dos escritores brasileiros na
África, agora, há uma tendência de percorrer as influências dos escritores africanos
no Brasil.

A se pensar em um autor como Mia Couto, por exemplo, os alcances da sua


literatura são nacionais. Vindo visitar com frequência o Brasil, seus textos permeiam

LETRAS 125
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os espaços acadêmicos, sendo estudado em praticamente todos os cursos de


Letras e em alguns de Pedagogia. Há outros ainda que fixaram residência
temporária ou definitiva entre nós, como os angolanos Agualusa e Ondjaki, e
circulam em diversos eventos, feiras, figurando em vários eventos.

Para além, há os escritores brasileiros negros e mestiços que remexem nas histórias
africanas, nas suas tradições e experiências, para dizerem em narrativas e poesias
sua força literária. Muitas são as antologias e os livros publicados e, apenas para
citar dois marcos importantes, ressalto a antologia de Zilá Bernd, do Rio Grande do
Sul, que procurou mapear, desde o século XIX, a produção negra no Brasil. Começa
com o abolicionista Luiz Gama, passa por Cruz e Sousa e chega ao período
contemporâneo, em que aponta para tendências da chamada “literatura e
resistência”, tomando escritores como Eduardo Oliveira, Abdias do Nascimento e
Solano Trindade, de quem traz os versos:

Eu canto aos Palmares

Sem inveja de Virgílio de Homero

E de Camões

Porque o meu canto

É grito de uma raça

Em plena luta pela liberdade!

Por fim, a crítica ainda traz a produção de alguns grupos como o Quilombo hoje, de
São Paulo, Negrícia, do Rio de Janeiro. Uma pesquisa rápida mostra na
contemporaneidade que os grupos se multiplicaram e que o movimento negro
avançou muito nas suas conquistas. Publicações importantes na área não deixam
margem para duvidar da qualidade dos textos literários em questão.

Com muita dificuldade, porque selecionar é sempre excluir (por isso, a insistência
para que esse material seja apenas um incentivo para as pesquisas dos estudantes

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interessados), outra obra que ressalto é o Quarto de despejo. Diário de uma


favelada, escrito por Carolina Maria de Jesus e publicado originalmente em 1960, o
que foi possível pela descoberta da autora por um jornalista, quando foi visitar a
favela em que ela morava:

“Sonhei que eu residia numa casa residivel, tinha banheiro, cozinha,


copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversário de minha
filha Vera Eunice... Sentei na mesa para comer. A toalha era alva ao
lirio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando
fui pegar outro bife despertei. Que realidade amarga! Eu não residia
na cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do Tietê. (JESUS,
2005, p. 35)

O livro é composto por páginas do diário de Carolina, uma catadora de papeis,


semianalfabeta, negra, pobre, favelada, que se torna autora, personagem e
narradora ao denunciar, por meio das suas reflexões, as condições miseráveis dos
que vivem às margens do rio Tietê. Ele representa um marco na produção feminina,
negra e na literatura brasileira, sendo já traduzido para treze línguas e tendo sido
objeto de estudo de muitos pesquisadores. As marcas da oralidade e a voz dessa
narradora formam um registro híbrido, entre o documental e a ficção, evidenciando
nesse trabalho um empenho ético e estético a ser interpretado pelos leitores. Sem
dúvida, esse romance tem grande interesse para o público em geral e pode ser
colocado ao lado de outros títulos como o Cidade de Deus, de Paulo Lins, ou o
Capão Pecado, de Ferréz, todos os três títulos brasileiros que fazem reverberar
vozes marginais.

Os traços das literaturas de origem negra são variados – poderíamos até mesmo
pensar no mulato Machado de Assis – mas confluem para um olhar crítico sobre a
realidade, que permeia os textos mesmo quando a distância entre literatura e
história parece ser larga. Os estudos literários alargaram os horizontes
substancialmente com a consolidação das vozes antes postas em segundo plano,
vindo a disputar o gosto de muitos leitores.

LETRAS 127
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O professor em formação inicial – e o que dirá na sua permanente busca pela


formação... - não pode se eximir da responsabilidade de conhecer um repertório
significativo das literaturas africanas de língua portuguesa, da literatura negra, da
afrodescendente. Se nós, professores, não nos dedicarmos a ler as obras literárias,
estaremos comprometendo toda uma geração de leitores, privando-lhes o direito de
desenvolver o prazer pelo texto literário. É esse chamado que nos leva a pensar na
próxima aula, a saber, a renovação do olhar sobre o cânone literário.

LETRAS 128
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Aula 31_Por uma renovação do olhar: a questão do cânone e das


histórias literárias.

A Lei 11.645/08 (antes Lei 10.639) se aprofunda nos impasses em torno do ensino
da literatura, também abre outras perspectivas para se pensar na formação do leitor
de textos literários. Isso, porque obriga o professor a repensar a seleção
tradicionalmente dada à escola, mas não só, valida, oficialmente, outras escolhas.
Para tanto, basta pensar em algumas defesas de mestrado em universidades tidas
como conservadoras como a USP. Por que tal “oficialização” de levar para a
academia textos e autores que nunca foram tratados dentro da academia dá força à
multiplicação de vozes literárias e de possibilidades de práticas pedagógicas?
Porque efetivamente aponta para o fato de que o cânone, como querem os que o
afirmam dentro do território do sagrado, é tão flexível e móvel como o é a própria
literatura.

É necessário quebrar definitivamente com os currículos nacionais, aceitando que há


sim flexibilidade seja nos Parâmetros Curriculares Nacionais, seja nas Orientações
Nacionais, ao deixar largas brechas para que as unidades escolares formem o seu
conteúdo. Se tal abertura dada pelo próprio MEC é real, por outro lado, há a questão
do material adotado pelo professor. Com os planos dos livros didáticos, os
professores se sentem pressionados a seguirem os livros, inclusive, porque algumas
vezes diretores, coordenadores, pais e até alunos têm a expectativa de que o bom
docente é o que usa o livro. Mas não atentam para o fato de que “usar” o livro não
quer dizer aproveitá-lo ou promover a aprendizagem.

Querendo, a escola pode selecionar um material mais próximo do seu público.


Querendo, o professor pode deixar claro para os alunos que o material didático é um
livro que deve se oferecer como terreno da liberdade e não da opressão. Muitos
conteúdos dos livros ficarão para que os alunos os explorem em ocasiões outras
que não dentro da sala de aula ou naquele ano letivo.

É preciso, pois, que o professor do Ensino Fundamental e do Ensino Médio adote


efetivamente o papel que lhe cabe na educação, de protagonista. Entretanto, para

LETRAS 129
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que isso ocorra, é fundamental que o professor tenha uma formação inicial capaz de
manter o espírito de curiosidade do docente, ampliar sua autonomia, suas
habilidades e competências de leitura e de escrita. É aqui que entra a necessária
discussão em torno do cânone junto aos alunos, futuros professores. São eles que
devem se apropriar desse problema e procurar sugerir soluções para a sua própria
formação. Entre os exames de avaliação de cursos, exames vestibulares, pais,
alunos, MEC, é necessário que a discussão em torno do cânone encontre a
discussão, essa sim, que vale a pena: a formação do leitor literário.

Se a discussão encontrar essas terras, seguramente, leis como a 11.645/08 deixam


de ser retóricas. Ora, estudar uma poetisa como Noémia de Souza ao lado de um
rapper brasileiro pode despertar a atenção dos adolescentes para o texto literário em
diálogo com a história.

Quando a lei entrou em vigor, ela deveria ter trazido uma mudança de olhar para o
Ensino da Literatura. Se se diz que é preciso incorporar tal literatura, está se dizendo
que as obras precisam ser mais diversas.

Há muito material disponível na internet. Uma pesquisa na Revista África e


Africanidades levará o interessado a uma seção específica, de literatura, que traz as
mais variadas temáticas, indo dos afrodescendentes à poesia de Guiné-Bissau, da
literatura angolana contemporânea aos poetas moçambicanos em atividade no país.
A questão é o professor ter clareza sobre o que ele mesmo espera com o seu
trabalho; depois, é preciso que ele aproxime as suas expectativas com as
expectativas dos alunos, afinal, as relações de ensino e de aprendizagem não se
dão em mão única.

O professor Benjamin Abdala Jr, um dos mais respeitados pesquisadores dos


estudos comparados, em “História literária e o ensino das literaturas de língua
portuguesa” afirma:

Se pensarmos no ensino, há uma forma de impacto sempre produtivo: o


necessário impacto no aluno. Para tanto, precisamos reformular a univocidade
que continua a embalar os discursos relativos à história da literatura. Ela não

LETRAS 130
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pode continuar a ser uma narrativa unilinear, construída exteriormente ao texto


literário.” (ABDALA Jr. Benjamin. “História Literária e o Ensino das Literaturas
de Língua Portuguesa”, 2003, pp. 39 e 40)

Esse impacto a que se refere Benjamin é o necessário para provocar o leitor a entrar
em um texto literário. Para tanto, adverte o crítico e professor, o movimento não
pode ser exterior ao universo do aluno, pois que deve ter sentido para ele, para sua
história, para o contexto em que vive. Daí, a urgência de nós nos dedicarmos a
pensar em outras veredas para a formação de leitores literários. As literaturas
africanas, sem dúvida, mostram-se como terreno fértil para a superação deste
desafio.

LETRAS 131
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Aula 32_Práxis literária

As africanidades no currículo escolar brasileiro detonaram inúmeras discussões nas


mais diversas áreas. No ensino da literatura, como se viu, elas representam um
encontro entre etnias e a educação para as relações raciais, além de contribuir de
modo decisivo para o olhar crítico sobre o ensino da literatura, desafiando os
professores a pensarem nos modelos de história literária, na questão do cânone, na
representação do negro e dos afrodescendentes nas literaturas.

O vigor das literaturas africanas de língua portuguesa poderia por si só justificar as


transformações necessárias no ensino de literatura. Mas então seria possível pensar
também nas literaturas latino-americanas, por exemplo. E não é o caso. O caso é o
quê permeia os documentos oficiais publicados pelo MEC, construídos em um
período histórico brasileiro em que se repensam as questões relativas à formação
miscigenada da nação. Com forte influência dos grupos sociais tidos como
minoritários, a partir do início do século XXI, houve a crescente necessidade de
amplificar e qualificar as várias vozes marginalizadas, o que, não apenas no Brasil,
significou valorizar as africanidades.

O processo de independência nas ex-colônias do império português se inicia, como


vimos, em meados dos anos de 1950 e se estende em alguns países por décadas,
dando início depois a longas guerras civis. Moçambique e Angola, por exemplo,
passaram mais de vinte anos em conflitos armados, cujo fim, respectivamente, em
1975 e 1976, não significou o início de tempos de paz. A situação pós-
independência de Angola, Moçambique, Guiné- Bissau, São Tomé e Príncipe e
Cabo Verde foi marcada pela violência e corrupção. Pensar na consolidação do
sistema literário nesses territórios é procurar fazer um esforço de imaginação, se se
pensa que em algumas das nações, como Guiné-Bissau, ainda hoje predominam as
línguas nacionais, altíssimas taxas de analfabetismo e profundas desigualdades
sociais, econômicas e culturais.

É dentro dessas fraturas sociais que temos de lançar nossos olhares, se quisermos
adentrar as literaturas africanas de língua portuguesa.

LETRAS 132
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Uma proposta das mais tradicionais seria retomar os primeiros encontros entre
Brasil e a África lusófona, como os que vimos na aula 02, quando o poeta José da
Silva Maia Ferreira, autor do primeiro livro africano de que se tem conhecimento -
Espontaneidades da minha alma: Às senhoras africanas, publicado em 1850 -
esteve no Rio de Janeiro.

Uma proposta das mais originais seria a de colocar em diálogo um rap brasileiro e
um poema de Noémia de Souza ou mesmo de José Craveirinha, cujo confronto
explícito contra os opressores se desdobra em forma e conteúdo.

A professora de Estudos Comparados da USP, Vima Lia de Rossi, propõe em seu


“Possibilidades de abordagem das literaturas africanas e afro-brasileira” (disponível
em
http://www.xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/anais/3/1306761720_ARQUIVO
_lusoafro2011.pdf. Acesso agosto de 2013) modos muito profícuos de abordar as
literaturas de língua portuguesa. A pesquisadora parte do Arcadismo –
evidenciando, inclusive, como a história da literatura pode ser ampliada -, passa pelo
Romantismo, pelo Modernismo e chega na literatura contemporânea.

Há, também, inúmeras revistas e publicações. Uma imperdível é A Revista Crioula,


uma publicação científica dos alunos de pós-graduação da Área de Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa do Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo. O periódico promove a
difusão da produção científica dos alunos e ex-alunos do Programa de Pós-
Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa bem
como de pesquisadores de outras universidades do Brasil e do exterior. Ela se
encontra disponível em http://www.revistas.usp.br/crioula e um breve olhar no
Sumário mostra a intensidade em que se desenvolvem atualmente os diálogos entre
os países de língua portuguesa

As literaturas africanas de língua portuguesa seguem percursos próprios depois da


independência, apesar de também guardarem inúmeras similaridades. As
possibilidades de leitura crítica são inúmeras.

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Uma sugestão importante é praticar rodas de cultura com o tema “Africanidades”.


Nessas, os alunos são chamados a participar, trazendo aspectos vários sobre a
cultura africana. O professor atento pode trazer para compartilhar textos literários,
iluminando os territórios literários do ponto de vista comparado.

Vamos tentar fazer uma roda de cultura virtual? Acesse no AVA (Ambiente
Virtual de Aprendizagem) e participe!

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Resumo_Unidade IV

Nessa unidade, discutimos a formação da literatura em Cabo Verde, relacionando-a


às problemáticas da terra e da gente. Entre o desejo de evasão e o da permanência,
a cultura revela as contradições da população, premida pelas necessidades do
lugar. Os escritores, nesse contexto, promoveram dois movimentos diferentes,
reunidos em torno de Claridade e o de Certeza, duas publicações que
impulsionaram a produção literária. A utopia revolucionária e a melancolia diante das
condições agrestes de vida permeiam boa parte das narrativas e das poesias até os
anos 1980. Mas não só. Para além, procuramos evidenciar os diálogos profícuos
entre a literatura cabo-verdiana e a brasileira, lidos nos diálogos entre escritores.

De São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau, discutimos os impasses da palavra escrita


em terras onde predomina a oralidade. Apesar disso e contra todas as expectativas,
os autores deram seus frutos, e fizeram reverberar a busca de uma literatura de
cunho nacional.

Outro aspecto que mereceu nossa atenção foram os traços das poéticas
das literaturas africanas de língua portuguesa de modo geral. Buscamos refletir de
modo mais amplo sobre as diferentes literaturas dentro de um viés crítico que
permitisse encontrar divergências e convergências entre os sistemas literários em
questão.

Também nos preocupamos em discutir os cânones literários, uma vez que é urgente
os professores alargarem os horizontes literários, a fim de que seja possível
trabalhar de modo instigante em sala de aula as literaturas em questão. Muitas são
as aproximações entre as literaturas do continente africano e o Brasil a começar
pela própria formação de nosso país. Como se não bastasse, a Lei 11.645 (antiga
10.639) não deixa margem para o desafio de que se reveja e se transforme o ensino
da literatura seja nos cursos superiores, médio ou fundamental. Por isso,
propusemos um momento dedicado ao que chamamos de “práxis literária”, ou seja,
ao que vemos como práticas pedagógicas viáveis para os alunos do ciclo básico.

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