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Literatura infantil

Kátia Maria Capucci Fabri


Luciana Góis Barbosa
Carolina Molinar Bellocchio
© 2019 by Universidade de Uberaba

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser


reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico
ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de
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Reitor
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Pró-Reitor de Educação a Distância


Fernando César Marra e Silva

Coordenação de Graduação a Distância


Sílvia Denise dos Santos Bisinotto

Editoração e Arte
Produção de Materiais Didáticos-Uniube

Editoração
Patrícia Souza Ferreira Rosa

Revisão textual
Erlane Silva Nunes

Diagramação
Jessica de Paula

Ilustrações
Rodrigo de Melo Rodovalho
Depositphotos. Acervo Uniube

Projeto da capa
Agência Experimental Portfólio

Edição
Universidade de Uberaba
Av. Nenê Sabino, 1801 – Bairro Universitário

Catalogação elaborada pelo Setor de Referência da Biblioteca Central Uniube

Fabri, Kátia Maria Capucci.


F114l Literatura infantil / Kátia Maria Capucci Fabri, Luciana Góis Barbosa, Carolina
Molinar Bellocchio. – Uberaba: Universidade de Uberaba, 2019.
148 p. : il.
Programa de Educação a Distância – Universidade de Uberaba.
Inclui bibliografia.
ISBN

1. Literatura infantojuvenil. 2. Livros para crianças. 3. Literatura infantojuvenil – Crianças –


Desenvolvimento. I. Barbosa, Luciana Góis. II. Bellocchio, Carolina Molinar. III. Universidade
de Uberaba. Programa de Educação a Distância. IV. Título.

CDD 808.899282
Sobre as autoras
Kátia Maria Capucci Fabri

Doutorado e mestrado em Estudos Linguísticos pela Universidade


Federal de Uberlândia (UFU). Especialização em Língua Portuguesa
pelas Faculdades Integradas de Uberaba (FIUBE). Especialização em
Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Graduação em Pedagogia Administração Escolar / Orientação pela
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ituverava (FFCL). Graduação
em Letras Português-Inglês pela Faculdade de Filosofia Ciências e
Letras “Santo Tomás de Aquino” (Fista). Professora do curso de Letras
(EAD) na Universidade de Uberaba (Uniube). Experiência na área de
Letras, com ênfase no ensino de Produção de Leitura e Escrita, atuando,
principalmente, com os seguintes temas: ensino de gramática, ensino de
produção de leitura e escrita, linguística textual, semântica e análise do
discurso.

Luciana Góis Barbosa

Mestre em Educação pela Universidade de Uberaba (Uniube).


Especialista em Avaliação Educacional pela Universidade Federal
de Uberlândia (UFU). Graduada em Letras-Português-Inglês pela
Universidade de Uberaba (Uniube) e Pedagogia pela mesma
universidade. Professora na Educação Básica, no Ensino Fundamental,
e no Ensino Superior. Foi professora do Centro de Ensino Superior de
Uberaba (CESUBE) até 2010. Gestora dos Cursos de Licenciatura em
Letras e Secretariado da Universidade de Uberaba (Uniube).

Carolina Molinar Bellochio

Doutorado pela Universidade de São Paulo (USP) no Programa de


PósGraduação em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em
Francês. Mestrado em Teoria Literária, pela Universidade Federal de
Uberlândia (UFU). Graduação em Letras – Português-Inglês por esta
universidade. É pesquisadora associada ao Réseau International Roland
Barthes e, também, membro do Grupo Criação & Crítica, além do grupo
de pesquisa Escritor plural: estudos pluridisciplinares da obra de Roland
Barthes.
Sumário
Apresentação.............................................................................................................. VII

Capítulo 1 Literatura infantil.................................................................... 1


1.1 Panorama geral da Literatura Infantil....................................................................... 3
1.1.1 As fábulas: origem, história e características ................................................ 6
1.1.2 A origem do conto de fadas ......................................................................... 10
1.2 A Literatura Infantil no Brasil .................................................................................. 16
1.3 O que é Literatura Infantil ..................................................................................... 21
1.4 A importância da Literatura Infantil para o desenvolvimento da criança ............... 27
1.5 Conclusão............................................................................................................... 33

Capítulo 2 Um breve estudo sobre Monteiro Lobato........................... 37


2.1 Para o Brasil, uma literatura infantojuvenil em português do Brasil...................... 38
2.2 Monteiro Lobato e o equilíbrio da literatura infantojuvenil brasileira ..................... 43
2.3 Conclusão .............................................................................................................. 55

Capítulo 3 O universo literário infantil: uma viagem sem limites.......... 59


3.1 A literatura e os estágios psicológicos da criança.................................................. 61
3.2 Literatura infantil: arte literária ou área pedagógica?............................................. 70
3.3 O papel da literatura na escola .............................................................................. 73
3.4 O livro em sala de aula .......................................................................................... 74
3.5 A leitura: o que perceber, o que discutir... .............................................................. 77
3.6 Propostas de leituras para diferentes fases do desenvolvimento do leitor ........... 78
3.7 Análise literária: Felizbrim, um amiguinho cheio de luz... ..................................... 90
3.8 Conclusão ............................................................................................................ 106

Capítulo 4 As múltiplas possibilidades de leitura do livro FLICTS..... 109


4.1 Reflexões sobre o ato de ler ................................................................................111
4.2 A leitura literária: uma interação prazerosa ........................................................ 119
4.3 FLICTS: um livro inovador ................................................................................ 120
4.4 O personagem FLICTS e a idealização do real................................................. 129
4.5 Um breve olhar para as formas e as cores do livro FLICTS .......................... 132
4.3 Conclusão ......................................................................................................... 137
Apresentação
Prezado(a) aluno(a), seja bem-vindo(a).

Este livro apresenta ao leitor, inicialmente, um panorama da Literatura


Infantil, que teve sua origem com narrativas orais. Com o passar
do tempo, elas foram compiladas, reescritas e revisitadas com
formato de fábulas e contos de fadas por autores da Antiguidade.
Na contemporaneidade, essas narrativas continuam sendo fonte de
inspiração para muitos escritores.

Em todos os capítulos, reflexões são mobilizadas no que diz respeito


à importância da Literatura Infantil como agente de transformação e
criação, durante o desenvolvimento psicológico e emocional das crianças.

Reforça-se, também, a ideia de que a leitura literária é capaz de conduzir


o leitor à sua autonomia, fazendo-o ler pelos seus próprios olhos. Esse
trabalho, na escola, é de responsabilidade do professor mediador, que
deverá estabelecer relações dialógicas entre os pequenos leitores e o
livro. Juntos, haverá um encontro de desejos para que a entrada no
universo literário seja realizada por meio da fantasia, do encantamento.

Diante disso, espera-se a construção de um leitor ativo, que ao se


surpreender com as histórias, seja capaz de ler também o que não
está posto, revelado no texto, podendo encontrar na tessitura dessas
narrativas as suas próprias experiências.

Todo esse percurso é proposto para ser realizado em obras literárias que
contemplem a linguagem verbal e/ou a linguagem visual, imagética, e
ambas dialogando no mesmo nível, com o mesmo valor significativo na
composição da narrativa.
VIII UNIUBE

O livro foi planejado em quatro capítulos, reservando para cada um deles


aspectos teóricos compartilhados com reflexões, propostas práticas,
vivências possíveis de serem aplicadas na sala de aula.

No capítulo 1, uma visão geral é apresentada acerca da Literatura Infantil


com suas primeiras narrações e, também, seu desenvolvimento no Brasil
e sua importância na evolução cognitiva e emotiva da criança.

Já no capítulo 2, o leitor compreenderá a relevância da produção literária


de Monteiro Lobato na distinção de sua singularidade em relação às
obras anteriores e posteriores a ele.

No terceiro capítulo, “O universo literário infantil: uma viagem sem


limites”, amplia-se a visão do valor que se deve dar à adequação das
escolhas literárias feitas pelo professor, tendo em vista cada estágio do
desenvolvimento psicológico e emocional da criança. Há ainda, nesse
capítulo, o debate sobre a literatura como arte e como ação pedagógica
e propostas para o trabalho com a poesia na sala de aula.

O livro apresenta, no capítulo 4, reflexões sobre o ato de ler e como


os estudos atuais progrediram ao trazer concepções desse ato que
ultrapassam a decodificação e levam o leitor a perceber os sentidos
do texto, não só a partir do texto verbal e verbo-visual, mas também
relacionados a eventos sociais, culturais, históricos, políticos. Nessa
perspectiva, faz-se uma análise do livro FLICTS de Ziraldo, reconhecendo
esse autor como um dos mais importantes representantes brasileiros no
desenvolvimento da Literatura Infantil, a partir do século XX. Por meio
de um projeto gráfico inovador, esse autor modificou a visão de leitura,
trazendo a conexão entre diferentes recursos imagéticos e o texto verbal.

Espera-se, portanto, que este material possa contribuir para a construção


de novos conhecimentos, acompanhados de reflexões e de práticas
acerca da Literatura Infantil.

Deseja-se, também, que esse caminho invadido pelas surpresas,


pelos simbolismos, pelas transformações que o livro infantil é capaz de
possibilitar, conquiste, você, caro(a), leitor(a).
Capítulo
Literatura Infantil
1

Kátia Maria Capucci Fabri


Luciana Góis Barbosa

Introdução
O capítulo introdutório do livro de Literatura Infantil busca
apresentar a visão da literatura destinada às crianças e a
sua importância como formadora de um leitor infantil criativo,
participativo e encantado por livros. Por muito tempo destinava-
se apenas à transmissão de normas e valores do mundo adulto,
totalmente distanciada do deleite e da fruição. Essa postura
atribuiu aos textos literários uma função exclusivamente educativa,
afastando-se das bases da Literatura Infantil que a fundamenta
como fenômeno de linguagem e arte.

Para que essa visão seja bem compreendida por você,


identificamos os primeiros gêneros literários lidos por diferentes
gerações, adaptados do acervo popular, de tradição oral que
perduram até a nossa atualidade. Essas histórias certamente
embalaram nossos sonhos, durante o período da infância, ao som
da voz de alguém que nos traz boas lembranças ou quando nos
arriscamos nas primeiras leituras. Para isso, fazemos um breve
panorama dos primeiros autores que destinaram suas obras ao
público infantil, a partir da necessidade de educar e instruir.

Diante do vasto repertório dos contos de fadas é importante que o


professor conheça as diferentes versões dessas histórias, a fim de
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construir significados amplos e profundos no leitor. É necessário,


também, valorizar e explorar o texto em sua totalidade para
que possam fluir boas reflexões a partir das diferentes versões
existentes, incidindo, assim, no desenvolvimento afetivo e cognitivo
da criança.

A fim de desenvolvermos este estudo, discutiremos, ainda,


neste capítulo, os conhecimentos sobre a Literatura Infantil, e
especificamente, a brasileira, apontando as fases da produção
literária nacional. Também apresentamos algumas obras infantis
que buscaram romper com a estrutura socialmente construída e
aceita por séculos.

Por fim, a partir de todos esses elementos, essencialmente,


relacionados entre si que a narrativa oferece, propusemos
algumas reflexões sobre a importância da Literatura Infantil para o
desenvolvimento da criança. Desse modo, esperamos que a leitura
deste capítulo aponte os aspectos fundamentais da literatura como
caminho de beleza, prazer e transformação.

Objetivos
Ao final dos estudos deste capítulo, esperamos que você seja
capaz de:
• Explicar a relação entre a sociedade e o desenvolvimento da
criança;
• Reconhecer os primeiros gêneros textuais destinados às
crianças;
• Discorrer sobre a Literatura Infantil e, especificamente, sobre
a brasileira;
• Refletir sobre a importância da Literatura Infantil para o
desenvolvimento da criança.
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Esquema
1.1 Panorama geral da Literatura Infantil
1.1.1 As fábulas: origem, história e características
1.1.2 A origem dos contos de fadas
1.2 A Literatura Infantil no Brasil
1.3 O que é Literatura Infantil?
1.4 A importância da literatura para o desenvolvimento da criança
1.5 Conclusão

1.1 Panorama geral da Literatura Infantil

A reflexão acerca da literatura infantil mobiliza informações sobre a


criança, referentes às principais características da infância. Nesse
sentido, ressaltamos que nesta fase de desenvolvimento, a criança é
circundada por um universo pautado na educação, que lhe é garantida
por lei, amparada pela família, escola e sociedade em geral. Entretanto,
nem sempre foi assim, essa visão veio consolidar-se somente no século
XX tornando-se uma categoria social revestida de importância.

De acordo com Philippe Ariès (1981), a infância, e por extensão


a adolescência, é entendida como uma criação da era moderna,
resultante das modificações na estrutura da sociedade. Antes disso,
fala-se mesmo de um silêncio histórico sobre ela, devido à ausência de
problematização acerca de sua presença e de sua função social. O fato
é que há inexistência de um discurso sobre a infância. Corazza (2002,
p.81) explica:
[...] essa sociedade via mal a criança e pior ainda o
adolescente. A duração da infância era reduzida a seu
período mais frágil, enquanto o filhote do homem ainda
não conseguia bastar-se; a criança, então, mal adquiria
algum desembaraço físico, era logo misturada aos adultos,
e partilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha
pequena, ela se transformava imediatamente em homem
jovem, sem passar pelas etapas da juventude [...]. (ARIÈS,
1981, p. 4 apud BELLOCHIO, 2018, p. 3).
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Segundo o autor, o cenário e as condições em que a criança se


desenvolvia aponta que, ao fim da Idade Média, não respeitava-se
essa fase tão importante para a formação social. Com o crescimento de
oferta de novas escolas, que iniciamente eram destinadas ao ensino de
crianças e jovens pobres, instalados nas próprias abadias e monastérios,
percebe-se que o ensino nessa época preocupava-se, principalmente,
em proteger as crianças e jovens dos vícios da sociedade. Assim,
garantiam a elas uma vida honesta, oferecendo-lhes, porteriormente,
uma formação moral baseada em um sistema autoritário e hierárquico.

Bellocchio explica que aos poucos essa visão se altera quando os


mestres passam a vislumbrar a criança como um sujeito, que possui
particularidades que as distinguem dos jovens e adultos e inclusive entre
crianças de diferentes idades. (BELLOCCHIO, 2018).

Ariès (1981) apresenta um outro aspecto fundamental para a tomada


de consciência da infância e da juventude, a saber, a noção de um
núcleo família que em cenários passados, vinculava-se a graus de
parentecos mais distantes. Já nos séculos XVI e XVII, nota-se a
crescente valorização dos membros centrais da família: pai, mãe e filhos,
apresentada como modelo de família conjugal moderna. Esse sentimento
concorre fortemente para uma maior valorização da criança.

Desse modo, a paceria entre escola e família, ainda que de modo


incipiente, contribuiu para a consolidação de noção de infância. Na
verdade, com essa valorização progressiva do infans e o seu ingresso
na escola, surgem, os modelos de internatos, nos quais os pais sentiam-
se afastados de seus filhos. Para resolver essa ausência, uma outra
alternativa, destinada apenas para famílias que pertenciam a uma
classe social mais elevada, surge um modelo de educação praticada
pelo preceptor.
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SAIBA MAIS

Você já ouviu falar de preceptor? Sabe quem é e o que fez esse profissional?
A figura do preceptor teve bastante importância nos séculos mencionados
nesse item, porque foi ele o responsável pelo ensino e formação de crianças
e adolescentes. Os preceptores eram mestres que geralmente habitavam
na mesma residência que seus aprendizes, participando da vida doméstica
e sendo responsáveis pela instrução geral do aluno a ele confiado. Pode-se
afirmar que o preceptor é o precursor do professor. (BITTAR & FERREIRA
JÚNIOR, 2002 apud BELLOCCHIO, 2019).

É nesse cenário, pois, que a emergência da figura da criança, perante os


olhos da sociedade e de necessidade de sua instrução, que se inscreve o
nascimento de uma literatura deliberadamente destinada para tal público,
conforme afirma Nelly Novaes Coelho:
Ligada desde a origem à diversão ou ao aprendizado
das crianças, obviamente sua matéria deveria ser
adequada à compreensão e ao interesse desse
peculiar destinatário. E como a criança era vista como
um “adulto em miniatura”, os primeiros textos infantis
resultavam da adaptação (ou da minimização) de textos
escritos para adultos. Expurgadas as dificuldades
de linguagem, as digressões ou reflexões que
estariam acima da compreensão infantil; retiradas as
situações ou os conflitos não exemplares e realçando
principalmente as ações ou peripécias de caráter
aventuresco ou exemplar...as obras literárias eram
reduzidas em seu valor intrínseco, mas atingiam o
novo objetivo: atrair o pequeno leitor/ouvinte e levá-lo a
participar das diferentes experiências que a vida pode
proporcionar, no campo do real ou do maravilhoso.
(COELHO, 2000, p. 30).

Nota-se pelas palavras da autora que a Literatura, vista como um


gênero secundário, associava-se a algo pueril, sendo comparada a um
brinquedo, ou proveitosa à aprendizagem da criança, como um recurso
para mantê-la intretida e quieta.
6 UNIUBE

As histórias contadas para as crianças retratavam o domínio quase


absoluto da exemplaridade, por meio de personagens com perfis rígidos
que impunham limites entre certo/errado e bom/mau. Assim, “devido
a essa função básica, até bem pouco tempo, a literatura infantil foi
minimizada como criação literária e tratada pela cultura oficial como um
gênero menor”. (COELHO, 2012, p. 29).

Diante disso, antes de aprofundarmos nos estudos acerca do que


é a Literatura Infantil e a sua importância para o desenvolvimento da
criança, é necessário conhecer os primeiros autores que destinaram
suas histórias ao público infantil, sendo que suas obras foram realizadas
a partir de diferentes concepções sobre a infância. Cabe, assim, indagar
sobre o começo da literatura infantil:

Quais marcas que ela carrega?

Na sequência, conheceremos os primeiros autores que a partir da


necessidade de educar e instruir, e também da compreensão de que
existem particularidades no mundo infantil, destinaram suas obras
à criança e, arquitetando livros que tinham em sua origem contos
populares.

1.1.1 As fábulas: origem, história e características

Nascida no Oriente, as Fables [Fábulas] eram textos orais narrados


às pessoas em situações de informalidade, por isso sua definição
etimológica tem origem no latim, cujo significado de fari = falar e gr.
phaó = dizer, contar algo, trata-se de narrativa de natureza simbólica
(COELHO, 2012, p. 165).

Mas, afinal, você sabe o que é uma fábula?


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A fábula é uma composição literária em prosa, com caráter moralizante e,


de maneira geral, bastante breve. Os personagens desse gênero textual
são animais, vegetais, objetos que se personificam, ou seja, adquirem
características dos seres humanos.
Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/redacao/fabula.htm. Acesso
em 01 de maio de 2019.

Esse gênero possui uma peculiaridade que o distingue dos demais textos
que é a presença do animal, colocando-o em uma situação tipicamente
humana e quase sempre exemplar como o leão representa a força, o
poder; a raposa é o símbolo da astúcia; o lobo, por sua vez retrata a
dominação, o poder etc.

Assim, utilizando fábulas de animais que sejam engenhosos e também


inocentes esperava-se que as crianças aprendessem de modo
descontraído a moral das histórias narradas.

Como foi uma das primeiras espécies narrativas a surgir, logo foi
reinventada no Ocidente pelo grego Esopo (sec. VI a.C.) e aperfeiçoada
séculos mais tarde pelo escravo romano Fedro (séc. I a. C). No séc. XVI,
ela foi descoberta e recriada por Leonardo da Vinci, mas sem grande
repercussão. (COELHO, 2012).

Um dos grandes escritores de fábulas, no séc. Jean de La


Fontaine (1621-
XVII, é Jean de La Fontaine (1621-1695), poeta 1695)
e fabulista francês que reinventou o gênero, Foi poeta e
fabulista francês.
introduzindo-a na literatura ocidental. Ele é autor Suas fábulas mais
da fábula, “A Lebre e a Tartaruga”, entre outras conhecidas são: A
Lebre e a Tartaruga,
que retratam pequenas narrativas baseadas nas o Leão e o Rato, o
Lobo e o Cordeiro
fábulas de Esopo. e a Cigarra e a
Formiga.
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EXEMPLIFICANDO!

Vejamos um exemplo da fábula “A cigarra e a formiga”, de La Fontaine, na


tradução de Milton Amado e Eugênio Amado, citada por Souza (2008). A
obra aparece como a primeira do volume de Fábulas de La Fontaine:

A CIGARRA E A FORMIGA
A cigarra, sem pensar em guardar,
a cantar passou o verão.
Eis que chega o inverno e, então,
sem provisão na despensa,
como saída, ela pensa
em recorrer a uma amiga:
sua vizinha, a formiga,
pedindo a ela, emprestado,
algum grão, qualquer bocado,
até o bom tempo voltar.
─ “Antes de agosto chegar,
pode estar certa a Senhora:
pago com juros, sem mora.”
Obsequiosa, certamente,
a formiga não seria.
─“Que fizeste até outro dia?”
perguntou à imprevidente.
─ “Eu cantava, sim, Senhora,
noite e dia, sem tristeza.”
─ “Tu cantavas? Que beleza!
Muito bem: pois dança, agora...”
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Analisando a fábula, observamos os aspectos de uma narrativa com


personagens do mundo animal. A cigarra é um personagem imprudente
por ter passado o verão cantando “sem pensar em guardar” uma provisão
que lhe desse sustento no inverno.

Nota-se que a cigarra é apresentada ao leitor de forma depreciativa, o


mesmo não se pode afirmar em relação à formiga. A fábula apresenta
duas e únicas ocorrências em que a cantora, cigarra, reporta-se à
operária como “Senhora”, pronome de tratamento grafado em letra
inicial maiúscula. Assim, a cigarra parece reconhecer nesse diálogo sua
situação de desvantagem em relação à formiga, o que lhe faz nutrir um
respeito servil pela operária. (SOUZA, 2008).

É possível inferir, inclusive, que a cantora ao levar uma vida de festa, não
conseguiu obter alimentos para nutrir-se e, assim, encontrava-se “sem
provisão na despensa”. Tal situação de pobreza é apresentada como
resultado de uma atitude impensada. Nessa condição precária submete-
se a um empréstimo de qualquer alimento a ser pago em curto prazo e
com juros, sem qualquer exigência quanto à qualidade e/ou quantidade
do produto. A narração apresenta, assim, uma moral, ou seja, quem só
diverte deve padecer e ainda suportar a zombaria de quem trabalha.

Enfim, é justamente o caráter moralizante e de instrução que as fábulas


se encerram. Assim, por meio de animais e de outros seres, a quem dá
a voz, e de suas ações, ensinam-se os mais variados comportamentos.
Observe que não há, pois, nenhum herói ao modo épico, as narrativas
aqui têm heróis que tornam a história “irreal mas de valor”. Cigarras
e formigas, raposas e cegonhas, carvalhos e ratazanas são todos
personagens a quem cabem mostrar o mundo ao leitor, assim como
ensiná-lo sobre suas condições. (BELLOCCHIO, 2019).
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Passemos a seguir, aos contos de fadas, outro gênero textual destinado


ao universo infantil que também tiveram suas origens na tradição oral.
Eles foram compilados por Charles Perrault, Irmãos Grimm e Hans
Christian Andersen, em uma ordem cronológica.

1.1.2 A origem do conto de fadas

O que são contos de fadas?


Quando e onde teriam nascido essas histórias maravilhosas
conhecidas como Literatura infantil clássica?
Quem as teria inventado e lido de geração em geração?
Quem deu vida à Cinderela? À Branca de Neve? Ao Patinho feio?

Contos de fadas são narrativas em que aparecem seres encantados,


mágicos, pertencentes a um mundo imaginário, maravilhoso. São histórias
antigas que eram transmitidas oralmente e passadas para várias gerações.
Sabemos que os contos de fadas apresentam elementos das narrativas
orais de um tempo distante, quando não havia a preocupação com a
formação das crianças.
https://brasilescola.uol.com.br/literatura/historia-dos-contos-fadas.htm

A primeira coletânea de contos infantis surgiu no século XVII, na França,


foi organizada por Charles Perrault (1628-1703), um importante escritor
francês, autor de grande número de contos infantis, entre eles, A Bela
Adormecida, O Gato de Botas, Chapeuzinho Vermelho e O Pequeno
Polegar. O autor “é responsável pelo primeiro impulso à literatura infantil,
o qual irá incorporar, retroativamente, a obra de La Fontaine (Fábulas) e
de Fénelon (As aventuras de Telêmaco)” (LAJOLO E ZILBERMAN, 1999
apud HILLESHEIM E GUARESCHI).

Charles Perrault publicou em 1697 Contos de Mamãe Gansa, tendo


como título original “Histórias ou narrativas do tempo passado com
moralidades”. Nessa obra, o autor escreve a partir de oito narrativas
comuns ao conhecimento popular, geralmente contadas por amas
UNIUBE 11

aos filhos dos nobres. Perrault evidencia suas intenções: “seus contos
pretendem conter uma moralidade louvável e instrutiva, mostrando
que a virtude é sempre recompensada, e o vício é sempre punido,
estabelecendo uma relação direta entre a obediência e a possibilidade
de uma boa vida” (TATAR, 2004).

EXEMPLIFICANDO!

O Gato de Botas

Um moleiro não deixou para os três filhos nada além de seu moinho, de seu
burro e de seu gato.
Imediatamente fez-se a partilha dos bens, sem ser preciso chamar o
advogado e o tabelião, que logo teriam devorado todo o pobre patrimônio.
O mais velho ficou com o moinho e o segundo com o burro, restando ao
mais novo apenas o gato.
Este último, incapaz de se consolar com a modesta parte que lhe coubera,
dizia:
– Os meus irmãos, trabalhando juntos, poderão ganhar a vida honestamente;
mas eu, depois que tiver comido o meu gato e fizer com o pelo dele um
rolinho para esquentar as mãos, irei morrer de fome [...].
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MORAL

Por maior que seja a bonança


De gozar de uma grande herança
Que aos filhos vem dos próprios pais,
Pra quem é jovem, geralmente,
Ser só capaz e diligente
Vale mais que os bens ancestrais.

Assim percebemos que o tom moralizante mantém-se também nos contos


de fadas, o que era comum para um período histórico carregado de
repressões. Nesse conto observamos que o dinheiro e a fortuna herdados
podem desaparecer, entretanto, o aprendizado é permanente.

PESQUISANDO NA WEB

Leia o texto na íntegra, dentre outros contos do livro Contos da Mamãe


Gansa, em: https://drive.google.com/file/d/1s6qi59NXTdaYZ_6nxGIQb0V
GuAJ6DbA9/view

PONTO-CHAVE

A escrita de Perrault de contos populares possibilitou o ingresso em


uma cultura letrada, tendo como consequência a discussão do status da
literatura infantojuvenil. Ao longo dos séculos é que seus contos foram sendo
direcionados ao público infantil, devido a seu caráter pedagógico, formativo
e divertido. (BELLOCCHIO, 2018, p. 13-14).
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Nesse contexto, a Literatura Infantil nasceu


Irmãos Grimm
com Charles Perrault. Mas somente cem anos
depois, na Alemanha do século XVIII, e partir das Nascidos em
Hanau, os
pesquisas linguísticas realizadas pelos Irmãos irmãos Grimm
estudaram Direito
Jacob Ludwing Carl Grimm (1785-1863) e Wilhelm junto ao seu pai,
mas começaram
Carl Grimm (1786-1859), ela seria definitivamente a se dedicar
integralmente
constituída e teria início sua expansão pela à literatura e
Europa e pelas Américas. acabaram deixando
a advocacia de lado.
No ano de 1830,
ambos ingressaram
Os irmãos Grimm dedicaram-se ao estudo em uma
universidade alemã
das antigas narrativas, lendas e sagas que como professores.
Estudiosos
permaneciam vivas, transmitidas de geração incessantes do
para geração, pela tradição oral. Em meio à idioma alemão,
atuaram em
imensa massa de textos que lhes servia para os campos como
História e Filologia.
estudos linguísticos, os Grimm foram descobrindo Porém, a grande
marca dos Grimm
o fantástico acervo de narrativas maravilhosas, era a excelência
narrativa.
que, selecionadas entre as centenas registradas Disponível em:
pela memória do povo, acabaram por formar a https://www.
infoescola.com/
coletânea que é hoje conhecida como Literatura biografias/irmaos-
grimm/. Acesso em
Clássica Infantil. Entre os contos mais conhecidos 01 de maio de 2019.

dos Irmãos Grimm destacam-se:

A Bela Adormecida;
Branca de Neve e os Sete Anões;
Chapeuzinho Vermelho;
A Gata Borralheira;
O Ganso de Ouro;
Os Sete Corvos;
Os Músicos de Bremem;
A Guardadora de Gansos;
Joãozinho e Maria;
O Pequeno Polegar;
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As Três Fiandeiras;
O Príncipe Sapo e dezenas de outros. (COELHO, 2012)

Quando comparamos a literatura dos Irmãos Grimm à de Perrault,


nota-se uma redução nos resquícios de vulgaridade nos contos de
Grimm. Em contrapartida, às obras de Perrault, os irmãos Grimm ainda
baseavam-se em cenas violentas, nas sucessivas edições, nas quais
castigos e registros de angústia e sofrimento infligidos aos personagens
fracassados ou maus ficaram mais explícitos.

EXPLICANDO MELHOR

Pensemos juntos no conto Cinderela. Na edição original, de Perrault, as


irmãs da jovem princesa têm sua visão preservada, na edição seguinte
seus olhos são picados por pombos e elas são punidas com a cegueira por
serem tão malvadas e falsas. Em outra versão de Perrault, Cinderela é mais
piedosa, perdoando os maus-tratos sofridos e, ainda, instalando as irmãs no
palácio real. (HILLESHEIM E GUARESCHI, 2006). Hillesheim e Guareschi
(2006) afirmam que no conto:

Chapeuzinho Vermelho, os irmãos Grimm omitem


os detalhes eróticos que aparecem na narrativa de
Perrault, e também modificam o final: a menina é
resgatada pelo caçador, que, ao encontrar o lobo
adormecido, abre a sua barriga com uma tesoura e
a enche de pedras, salvando Chapeuzinho e a avó.
Nessa versão, o lobo morre devido ao peso das
pedras em sua barriga. A história também termina
com uma moral: nunca se desvie do caminho e
nunca entre na mata quando sua mãe proibir.
(HILLESHEIM E GUARESCHI, 2006, p.113)

De fato, a partir da comparação de um mesmo conto de Perrault e dos


Grimm podemos perceber poucos avanços nas formas de entender a
infância e na relação estabelecida entre adultos e crianças. Havia uma
preocupação mais intensa com a educação nos séculos XVIII e XIX.
UNIUBE 15

Nesse aspecto, com o tempo, os contos dos irmãos Grimm fortaleceram


a desassociação entre assuntos adultos e infantis. Logo, as referências
sexuais explícitas nos contos deixam de ser consideradas adequadas
ao universo infantil.

Em contrapartida, a mortificação, a amargura e o calvário dos


personagens são narrados em detalhes, podendo-se associar esses
trechos à disciplina rígida imposta nas escolas neste período, inclusive
com castigos físicos, como uma marca de obediência aos princípios
morais e educativos.

Neste contexto surge o dinamarquês Hans


Hans Christian
Christian Andersen, sintonizado com os ideiais Andersen (1805-
1875)
românticos da exaltação, da sensibilidade, da
fé cristã, dos valores populares, dos ideais da um escritor
dinamarquês
fraternidade e da generosidade humana. Ele nascido na
em Odense,
se torna a grande voz que fala às crianças a Dinamarca, no dia
2 de abril de 1805.
linguagem do coração transmitindo-lhes o ideal Filho de um humilde
sapateiro, que
religioso que vê a vida como o “vale de lágrimas” lutou nas guerras
que cada um tem que atravessar para alcaçar o napoleônicas e
voltou gravemente
céu. Seus contos em sua grande maioria possuem doente à sua terra
natal morrendo
um final triste e trágico. (COELHO, 2002). pouco depois. Ficou
órfão de pai com
apenas 11 anos.
Precisou abandonar
Convidamos você a conhecer uma de suas obras os estudos e
para saber um pouco mais do estilo do autor, começou a escrever
contos e pequenas
para isso, assista ao vídeo da história A pequena peças teatrais.
Disponível em:
Vendedora de Fósforos. https://www.saraiva.
com.br/autor/hans-
christian-andersen.
Acesso em 01 de
maio de 2019.
16 UNIUBE

PESQUISANDO NA WEB

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZxwDXMVevJk. Acesso


em 01 de junho de 2019.

Após essa breve revisão do princípio da literatura infantil no mundo ocidental,


passamos para o desenvolvimento dessa literatura no Brasil.

1.2 A Literatura Infantil no Brasil

Nesta parte, apresentamos como a Literatura Infantil difundiu-se


em terras brasileiras. Além disso, apontamos as fases pelas quais
convencionou-se a compreender a produção literária nacional, desde os
primeiros momentos, no século XIX, até a contemporaneidade.

Reproduzindo o modelo de consumo europeu, os brasileiros, mesmo


antes da chegada da Família Real ao Rio de Janeiro em 1808 – fugida
da invasão napoleônica em Portugal –, tinham na literatura francesa sua
fonte de referências. Os preceptores franceses, alemães e ingleses em
sua maioria preferiam utilizar livros de leitura em suas línguas de origem,
sendo o próprio livro em Português, desconsiderado. Com isso, a língua
francesa era o idioma comum nas casas de fazendas brasileiras e nas
classes dominantes. (SANDRONI, 1987).

Nesse contexto, verifica-se que as manifestações literárias brasileiras,


absolutamente novas e esparsas, além de uma imprensa e tipografia
incipientes, foram supridas pelo sólido acervo europeu da época. Assim,
o início da edição de livros no Brasil pode ser notado de modo tímido no
século XIX, fase inicial da Literatura Infantil, sendo que apenas no século
XX de fato se percebe um sistema mais articulado para a produção de
livros infantis em nosso país (LAJOLO; ZILBERMAN, 1991, p. 21 apud
BELLOCCHIO, 2018, p. 38).

No século XIX, surge Figueiredo Pimentel (1869-1914) que reservou-


se às produções para a infância, publicando em 1894 os Contos da
UNIUBE 17

Carochinha. Nessa obra, reuniram-se contos estrangeiros traduzidos


e adaptados da tradição oral de variadas origens. O sucesso diante
do público infantil foi imediato, de forma que logo outras obras foram
publicadas, totalizando dez títulos de acordo com o levantamento de
Gilberto F. Pimentel apontado por Arroyo (2011): Histórias da Baratinha,
Histórias da Avozinha, Histórias de Fadas, Contos do Tio Alberto,
Álbum de crianças, Os meus brinquedos, Histórias do Arco da
Velha, O livro das crianças, Teatrinho infantil e Castigo de um anjo.

Em Contos da Carochinha, no primeiro volume da coleção, o autor


registra na dedicatória:
São histórias para crianças, mas todas têm um fundo
moral, muito proveitoso, ensinando que a única
felicidade está na Virtude, e que a alegria só vem de
uma vida honesta e serena. [...] Lembra-te que a vida
de família é a única feliz, que o lar é o único mundo
onde se vive bem, onde a Mulher, boa, santa, pura,
carinhosa, impera como rainha. (SANDRONI, 1978, p.
36).

Outro tradutor de destaque, do século XIX foi Carlos Jansen, que se


dedicou à tradução de obras clássicas de Literatura Infantil. O autor
adaptou obras importantes como As Viagens de Gulliver (1888), de D.
Quixote de La Mancha (1901). Publicou também um volume de histórias
das Mil e Uma Noites (1882), Robison Crusoe (1885), As aventuras
Pasmosas do Celebérrimo Barão de Münchhausen (1891). (SANDRONI,
1978).

Podemos citar ainda nesse contexto literário, Justiniano José da Rocha,


que traduziu dentre outras, uma Coleção de Fábulas de Esopo e
de La Fontaine em (1852) adaptadas. Em 1915, Arnaldo de Oliveira
Barreto encarregou-se da organização de uma Biblioteca Infantil que
se inicia com O Patinho Feio, de Andersen. A coleção revolucionou o
mercado gráfico, contendo ilustrações e cores de qualidade, impressão
e acabamento primorosos.
18 UNIUBE

Também, no século XIX, foi publicado o livro Contos Infantis de Júlia


Lopes de Almeida e Adelina Lopes Vieira e no início do século XX é
editado Contos pátrios (1904) de Olavo Bilac e Coelho Neto.

Ainda que a Literatura Infantil tenha alçado novos rumos, nota-se nos
livros marcas infantis de domínio quase absoluto de exemplaridade,
carregadas de moralidade, de aspectos religiosos e atribuição exclusiva
à mulher quanto ao funcionamento ideal da família. E, com isso, todos
os preconceitos do adulto estavam presentes nas contos “morais e
educativos”, dessa época.

Leia a seguir, a introdução da história O casamento de Dona Baratinha


recontada por Ana Maria Machado, que, após encontrar uma moeda
de prata, decide se casar e recebe várias propostas de diversos
pretendentes.

A origem da clássica história de Dona Baratinha é incerta. O registro mais


antigo é de 1872, intitulado “Histórias da Carochinha”. A história tratava-
-se de uma crítica às mulheres solteiras que procuravam pretendentes
endinheirados.

O casamento da Dona Baratinha

Era uma vez uma barata chamada Dona Baratinha. Dona Baratinha era
uma barata muito limpinha, que gostava de tudo bem ajeitadinho, por
UNIUBE 19

isso vivia limpando e arrumando a sua casinha.


E limpa que limpa, arruma que arruma, achou uma moeda de ouro. Dona
Baratinha ficou felicíssima. Pensou que estava rica e já podia se casar.
Colocou um vestido branco, arrumou um belo laço de fita na cabeça e
foi-se debruçar na janela, onde pôs-se a cantar:
“Quem quer casar com a Dona Baratinha que tem fita no cabelo e
dinheiro na caixinha. Quem quer casar com a Dona Baratinha que tem
fita no cabelo e dinheiro na caixinha.”[...]

Quer saber o final dessa história, então, acesse-a na íntegra em:


Disponível em: https://semect.files.wordpress.com/2010/05/historia-da-
dona-baratinha.pdf. Acesso em 04 de maio de 2019.

A seguir indicamos a leitura de um blog intitulado Mulher e Literatura,


que contempla um espaço de publicação de textos literários de escritoras
e, também, da crítica literária feminista.

Disponivel em: http://mulhereliteratura.blogspot.com/Acesso em 09 de


julho de 2019.

Assim, na fase de transição ocorrida em meados do primeiro decênio do


século XX a 1960, surge José Bento Monteiro Lobato. Neste momento
os escritores nacionais “começam a se preocupar com a adequação
do texto para a criança e, em consequência, com o abrasileiramento
da linguagem. O autor destacou-se devido às suas inovações não só
com relação às temáticas, até então concernentes ao leitor adulto, mas
também à literariedade, como marca de sua escrita, e sua posição de
divulgador do livro infantil como mercadoria.” (SOUZA, 2006, p. 13 apud
BELLOCCHIO, 2018, p.40).
20 UNIUBE

Quem foi Monteito Lobato?

A Lobato deve muito o Brasil. Em primeiro lugar o


exemplo magnífico e raro do intelectual que não se
vende e não se aluga, não se coloca a serviço dos
poderosos ou dos sabidos (...) Depois, foi ele um
homem de ação e um descobridor. Devem-se a ele a
campanha do livro e a campanha do petróleo. Foi ele o
criador da nossa literatura infantil.
Oswald de Andrade

SAIBA MAIS

Monteiro Lobato (1882-1948) foi um escritor


e editor brasileiro. “O Sítio do Pica-pau
Amarelo” é sua obra de maior destaque na
literatura infantil. Criou a “Editora Monteiro
Lobato” e mais tarde a “Companhia Editora
Nacional”. Foi um dos primeiros autores de
literatura infantil de nosso país e de toda
América Latina. Metade de suas obras é
formada de literatura infantil, que destaca-se
pelo caráter nacionalista e social. O universo
retratado em suas histórias são os vilarejos
decadentes e a população do Vale do
Paraíba, quando da crise do café. Situa-se
entre os autores do Pré-Modernismo,
período que precedeu a Semana de Arte
Moderna.
Disponível em: https://www.ebiografia.com/monteiro_lobato/. Acesso em 05
de maio de 2019.

A partir de 1960, a publicação de livros infantis ganha fôlego, com o


desenvolvimento de um comércio especializado. Nessa corrente chegam
Ziraldo, Lygia Bojunga, Ana Maria Machado, Ruth Rocha e muitos outros
autores inspirados em Monteiro Lobato.
UNIUBE 21

SAIBA MAIS

Sobre Monteito Lobato e suas obras acessando o link a seguir.


Disponível em http://www.monteirolobato.com/literatura/infanto-juvenil.
Acesso em 02 de maio de 2019.
Na sequência deste capítulo, apresentamos reflexões sobre o que é a
Literatura Infantil.

1.3 O que é Literatura Infantil?

A frase Era uma vez... é ancestral e ainda nos dias de hoje tem a função
de despertar o desejo de conhecer uma boa história, não é mesmo?
Ao ouvi-la nossos sentidos imediatamente se aguçam, ficamos mais
curiosos, alegres, emocionados, completamente envolvidos pelo
novo, seduzidos pelas palavras, e, assim, rapidamente embarcamos
no mundo imaginário da Literatura Infantil. Essa literatura, como arte
verdadeiramente genuína, é, sem dúvida, uma porta aberta para a
construção da consciência-de-mundo dos pequenos leitores. É no ato
de ler e ouvir histórias que eles compreendem o seu contexto e como
ele se organiza.

É importante destacar que o homem pré-histórico já buscava formas


de manifestar suas viviências e registrar os acontecimentos cotidianos.
Essas expressões eram feitas em cavernas por meio de pinturas, que
retratavam uma forma autêntica de ler e registrar as relações entre seus
semelhantes e a natureza.

Assim, destacamos que entre todas as formas utilizadas pelos nossos


ancestrais para registrarem suas experiências a literatura foi a mais
significativa, uma vez que dispõe de infinitos recursos expressivos.
Isso é evidente no momento em que a palavra, por exemplo, permite
uma distinção clara entre o homem e os demais seres do reino animal.
(COELHO, 2000)
22 UNIUBE

Tanto na forma oral quanto na escrita, a literatura passou a influenciar e


a difundir os modos de convivência, que definiram formas de pensar e
agir da sociedade ao longo dos séculos. Esses modos de vida sofreram
transformações significativas no decorrer da história, permitindo, assim,
a abertura e a formação de novas ideias na sociedade contemporânea.
Dessa forma, nota-se que os estereótipos de gênero, de raça/etnia,
de beleza, entre outros, estão sendo, cada vez mais, discutidos e
questionados, alterando a perspectiva das pessoas sobre os temas e
ampliando a visão de mundo.

IMPORTANTE!

Hoje, longe de ser vista como um “gênero menor” em relação à área


global da literatura, a infantil é reconhecida como um gênero literário e,
também, como verdadeiro ponto de convergência das realizações, valores,
desvalores, ideias ou aspirações que definem a cultura ou a civilização de
cada época. A forma como cada indivíduo deve se situar para conseguir ou
não sua própria realização está expressa (ou deve estar) na literatura que
os adultos destinam aos mais jovens, para que estes conheçam tal “código”
desde cedo e o incorporem (uma vez que ele é a base, é o fundamento que
sustenta toda a construção social). (COELHO, 1984, p. 5)

Alçar um olhar cauteloso e crítico sobre a literatura oferecida às crianças


é fundamental, pois as escolhas que fazemos carregam, implicitamente,
crenças baseadas nas ações e nos perfis físicos ou psicológicos dos
personagens, na linguagem literária e nos temas propostos. A Literatura
aponta “caminhos” em direção à nova mentalidade, transformando
a educação das crianças e dos jovens. Dessa forma, é essencial que o
professor esteja apto a realizar uma leitura atenta às obras a fim de detectar
o que é realmente uma boa Literatura Infantil.
UNIUBE 23

VAMOS PENSAR JUNTOS!

Os tradicionais contos de fada criaram na sociedade estereótipos de beleza


e padrões a serem seguidos. As princesas sempre retratadas como moças
brancas, dos cabelos longos e loiros, dos olhos azuis e corpos esculturais
apresentam um ideal quase inalcançável para a maioria das crianças e
jovens. Ademais, a falta de representatividade da figura negra é evidente
nessas histórias, quando presente, ocupa posições subalternas em relação
aos demais personagens. Com isso, uma parcela considerável de pequenos
leitores não se reconhece nesse espaço excludente, gerando insatisfações
internas, problemas de autoestima e bullying por parte dos colegas.

Em contrapartida, nos dias de hoje, livros, que rompem com essa estrutura
socialmente construída e aceita por décadas, têm se popularizado no
mercado literário. Sob esse viés, convido-lhe a conhecer a história de uma
menina negra chamada Lelê, personagem principal do livro “O cabelo de
Lelê” da autora Valéria Belém com ilustrações de Adriana Mendonça, 2007.
Vale a pena conhecer a obra na íntegra, disponível no youtube.

Vamos conhecer a história de Lelê? Acesse o link: https://pt.slideshare.


net/naysataboada/o-cabelo-de-lele ou https://www.youtube.com/
watch?v=RriQiWMnDXU Acesso em 20 de maio de 2019.

Inicialmente, a persongem enfrenta dificuldades para aceitar o seu cabelo


repleto de cachinhos e revela aos leitores sua tristeza por não saber lidar
com eles. Acompanhe um trecho da história:

“Lelê não gosta do que Vê.


__ De onde vêm tantos cachinhos?, pergunta, sem saber o que fazer.
Joga pra lá,
Puxa pra cá.
Jeito não dá,
Jeito não tem.”
(Belém, 2012, p.5)
24 UNIUBE

No fragmento do livro, torna-se evidente que a garota sofre por não


aceitar sua origem e tenta de várias maneiras modificar seu cabelo
para adequar-se aos estereótipos impostos pela sociedade. Cansada
e desesperançosa, Lelê encontra um livro sobre a história dos países
africanos que enaltece a beleza da mulher negra e, a partir da leitura,
ela passa a se aceitar. Veja como a obra foi fundamental no processo
de autoaceitação da criança que, ao se sentir representada, percebeu
a pluralidade entre as pessoas e alterou, assim, sua perspectiva do que
é o belo. Faremos agora, uma breve análise do livro “O cabelo de Lelê”
(2012).

A história, narrada na terceira pessoa, trata de uma criança


afrodescendente, que se interessa em saber a origem dos cachinhos
de seu cabelo, pois, ao tentar movimentá-lo, ele não se mexe, não fica
bom como Lelê gostaria.

Conforme Gomes (2003 apud Gonçalves e Moura, 2016), um dos


aspectos que fazem parte da identidade negra é o cabelo. Entretanto, a
personagem Lelê vive em uma sociedade que tende a ver as diferenças
entre as pessoas com olhar preconceituoso.

Para ser aceito em seu grupo, às vezes, o negro usa de diferentes


técnicas no cabelo, transformando-o de acordo com o que é estabelecido
pela sua comunidade.

No decorrer da história Lelê pensa:

“Toda pergunta exige uma resposta


Em um livro eu vou procurar!
Pensa Lelê, no canto a cismar”.
(Belém, 2012, p. 10)
UNIUBE 25

Assim, ela
Fuça aqui
Fuça lá
Mexe e remexe até encontrar
O tal livro muito sabido que
Tudo aquilo pode explicar.
(Belém, 2012, p.13)

Dessa forma, a menina, ao ler o livro “Países Africanos”, começa


a compreender a história da África e “imersa nessa trama de medo,
guerras, sonhos e amor pelo cabelo, ela reconhece todo o simbolismo
e a origem de seus cachinhos.” (GONÇALVES e MOURA, 2016, p. 6).

Qual, então, a importância da discussão sobre esse tema


com as crianças?

Sabemos que nossos alunos, em fase de desenvolvimento, constroem a


sua identidade, e a aula de literatura é um caminho para ajudá-los nesse
construção. Pelo lúdico, pela magia é possível discutir em sala de aula
questões que afligem as relações entre as crianças.

A história da Lelê aciona a história dos povos africanos, que aciona a


história de muitas outras crianças.

Essas narrativas fazem parte do dia a dia do mundo infantil e discuti-las


pela fantasia pode ajudar na aproximação com a realidade de forma
divertida e menos dolorosa.

Em Gomes (2001 apud Gonçalves e Moura, 2016), encontramos uma


reflexão acerca da identidade de raça, quando na história Lelê diz que
“já sabe que em cada cachinho existe um pedaço de sua história”. Essa
26 UNIUBE

fala da personagem reforça a ideia de que o cabelo negro possui uma


memória ancestral e, por isso mesmo, ele deve ser valorizado.

Os cachinhos representam a etnia de Lelê, assim como os cabelos louros,


lisos, castanhos, negros, avermelhados identificam outras diferentes
grupos étnicos. Todos devem se orgulhar de suas particularidades e
essas devem ser respeitadas.

Na continuação da história, a personagem passa a admirar seus


cachinhos. Vejamos:

Lelê gosta do que vê!


Vai à vida, vai ao vento
Brinca e solta o sentimento.
(Belém, 2012, p.19)

Descobre a beleza de ser como é


Herança trocada no ventre da raça
Do pai, do avô de além-mar até
(Belém, 2012, p. 23)

Diante disso, a encantadora história possibilita encontros:

O negro cabelo é pura magia


Encanta o menino e a quem se
Avizinha
(Belém, 2012, p. 24)

Ao final da narrativa, uma bela imagem apresenta o encontro amoroso


entre a personagem e meninas de diferentes etnias.

Belém (2007, p.29) conclui o livro, convidando o leitor a refletir sobre as


relações cotidianas que podem gerar encontros e desencontros, e esse
UNIUBE 27

fato é apresentado no livro tanto pelas palavras quanto pelas imagens.


Essas duas linguagens dialogam, propiciando ao leitor a entrada no
universo infantil de forma mágica, sensível, emotiva.

Lelê ama o que vê! E você?

Nesse encontro ocorrido pela leitura ou pela contação da história “O


cabelo de Lelê”, é de responsabilidade do professor mediar reflexões,
promovendo atividades geradoras de um final feliz como ocorrido no
livro de Belém (2012).

PARADA PARA REFLEXÃO

Você percebe a importância da literatura como agente transformador das


mentes em formação?

Quais são os valores e estereótipos retrados na obra “O cabelo de Lelê?


Você já parou para pensar que as escolhas literárias que fazemos para o
público infantil impactam diretamente no amadurecimento da criança?

Na sequência, deste capítulo, trazemos contribuições a respeito da


relevência da Literatura Infantil na infância.

1.4 A importância da Literatura Infantil para o


desenvolvimento da criança
Se queremos despertar nas crianças o desejo e o encantamento pela
leitura é imprescindível oferecer a elas boas histórias e bons livros muito
antes que saibam ler. A educação literária pode ser iniciada até mesmo
na fase da gestação. O bebê, ao ouvir a voz de sua mãe, já está sendo
estimulado a ser um leitor. Nesse momento mágico, ocorre uma espécie
de conexão entre mãe e filho, estabelecida pela cadência das palavras
que fluem como uma canção.
28 UNIUBE

Ouvir boas histórias é o início da formação literária, portanto, é


fundamental que haja momentos dedicados à leitura com as crianças.
Não é somente na escola que essa formação deve ocorrer, muito pelo
contrário, é importante que os pais assumam esse papel em casa,
antes de os filhos ingressarem nos espaços escolarizados. Cabe-nos
aqui citar as palavras de Tatiana Belinky, autora de mais de 250 livros
destinados ao público infantil, que enfatiza a ideia de que “Se queremos
formar leitores, espalhemos livros pela casa e leiamos para as crianças!”.
(BELINKY, apud MELLO, 2016, p. 43)

Os dizeres da autora nos permitem uma compreensão de que para


despertar no leitor o prazer de ouvir histórias é necessário seduzi-lo pelas
palavras e também pelas imagens, como se fosse um tempo para a
diversão. Nesse momento vale lançar uma música de fundo, um cenário
para criar um clima favorável na tentativa de conquistar a atenção das
crianças. Isso pode ser feito em diversos espaços e contextos, ora num
fim de tarde, próximo a uma janela, num dia frio e chuvoso, no escurinho
da sala, ao acordar, em momentos de aconchego e descontração. Ler
para crianças é um ato de afeto e doação, a voz da pessoa amada
encantará o pequeno que, certamente, será seduzido para o mundo
imaginário das palavras.

Outro aspecto importante da fala de Tatiana Belinky refere-se ao objeto/


livro. Se queremos despertar o prazer pela leitura é indispensável que o
pequeno leitor tenha intimidade com uma variedade de livros infantis. Os
espaços onde a criança costuma ficar com fequência devem ser repletos
de livros na altura dos olhos ou das mãos, porque, consequentemente,ela
desenvolverá o gosto pela leitura. Na perspectiva de Coelho (2000),

A Literatura Infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor,


é arte; fenômeno de criatividade que representa o Mundo,
o Homem, a Vida, através da palavra. Funde sonhos
e a vida prática; o imaginário e o real; os ideias e a sua
possível/ impossível realização. (COELHO, 2000, p.27)
UNIUBE 29

Em outras palavras, a literatura não se iguala a nenhuma outra atividade


humana pela possibilidade de impulsionar nossos pensamentos para um
mundo repleto de sentimentos, emoções, paixões e desejos. É como se
num passe de mágica pudéssemos ser transportados para outro planeta
e lá conhecêssemos pessoas e lugares povoados de magia.

Como lembra Abramovich (1989) tanto o professor quanto os demais


mediadores, ao lerem histórias para crianças, podem sorrir, gargalhar,
gesticular, alterar a voz, trazer humor e descontração. É momento de
brincar, suscitar o imaginário, buscar respostas para tantas perguntas,
reconhecer nos personagens situações de conflitos e impasses que todos
nós vivenciamos. Nesse momento, a mediação do adulto poderá estreitar
os laços da criança com o mundo letrado. Ele assume, assim, o papel
articulador entre o texto e o leitor.

Para Vigotski (1997 apud Barbosa, 2016), é importante que a


aprendizagem da língua oral e da escrita seja oferecida aos alunos por
meio de ações repletas de significados, pois não se deve, por exemplo,
propor a leitura de um livro, de modo simplista: é preciso que, durante o
processo de instrução escolar, o professor propicie mecanismos para o
desenvolvimento dos processos psíquicos, como a atenção voluntária,
a memória lógica, a abstração, a comparação e a diferenciação. Caso
contrário, o professor conseguirá apenas uma “assimilação irreflexiva
de palavras, um simples verbalismo” [...] (Vigotski, 1997, p. 185 apud
Barbosa, 2016, p. 76), ou seja, dessa forma, a criança não formará
conceitos, mas apenas sequências de palavras, assimilando mais com
a memória do que com o pensamento, manifestando-se impotente
mediante os conhecimentos apreendidos.

Em essência, para Vigotski, a criança precisa ser afetada pela


experiência da leitura e pelo objeto/livro, para que haja de fato, uma
transformação interna. Segundo Ruth Rocha (2009), em seu livro “A
30 UNIUBE

fantástica máquina dos bichos”, as histórias devem entrar na vida das


crianças pelo caminho mais efetivo: o caminho afetivo.

Dialogando com essas ideias, com o passar do tempo, os estudos


advindos da Psicologia Experimental revelaram que as crianças possuem
capacidades cognitivas e intelectuais que podem ser desenvolvidas
desde a infância até o período da adolescência, conforme indica (Mello,
2016)
a criança aprende socialmente, com o outro, o prazer
de ler cria para si a necessidade da leitura com a
vivência do próprio ato de ler do outro. Nesse processo,
internaliza, reproduz para si individualmente, o prazer
que o outro expressa ao ler e, com isso, ler vai se
tornando uma necessidade dela – uma necessidade
aprendida socialmente. (MELLO, 2016. p. 46)

De acordo com Mello, é justamente neste encontro entre pares que


emerge um novo leitor capaz de compreender a intenção de quem
escreve e se deleitar com a leitura. Assim, faz-se necessário apresentar
à criança o texto literário como um exercício de liberdade e possibilidades
que a língua oferece. Com isso, suas funções psíquicas superiores vão
se formando de acordo com as experiências vividas. Vigotski esclarece
ainda que, durante esse desenvolvimento, a ajuda e a participação de
um adulto são singulares no processo de instrução. [...] (VIGOTSKI 1997,
p. 183 apud BARBOSA, 2016, p. 89).

EXEMPLIFICANDO!

Para elucidar as ideias anteriores, com relação à aprendizagem e ao


desenvolvimento dos processos psíquicos podemos analisar a obra de
Tatiana Belinky, “O grande rabanete” (2002), que possibilita diferentes
formas de aplicação em sala de aula, despertando o interesse da criança
pela leitura.
UNIUBE 31

PESQUISANDO NA WEB

Convidamos você para apreciar essa bela história contada pelo grupo TIC
TIC TATI no link a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=R_0wb38we_w.
Acesso em 20 de maio de 2019.

Esse livro possui vários aspectos que permitem uma leitura envolvente,
dentre eles, destacamos as ilustrações ricas em cores e expressividade,
o enredo que acumula as ações dos personagens. Acompanhe no trecho
a seguir:

O vovô quis arrancar o rabanete para comer no almoço.


Então o vovô chamou a vovó pra ajudar a puxar o rabanete.
A vovó segurou o vovô, o vovô segurou o rabanete.
Puxa –que -puxa e nada do rabanete sair da terra.
Então a vovó chamou a neta pra ajudar a puxar o rabanete.
A neta segurou na vovó, a vovó no vovô, o vovô no rabanete.
Puxa –que -puxa e nada do rabanete sair da terra.
Disponível em: http://1historiacadadia.blogspot.com/2013/05/o-grande-
rabanete.html.

Disponível em: http://naescolaagenteaprende.blogspot.com/2013/02/plano-de-


trabalho-o-grande-rabanete.html. Acesso em 20 de maio de 2019.
32 UNIUBE

O desfecho é carregado de reflexão acerca da importância do trabalho


em equipe e da alegria de partilhar com o outro independentemente de
quem seja.

Vejamos:

Então, o vô disse que é a união que faz a força e juntos comeram o


rabanete, que era tão grande que deu pra todos, e ainda sobrou um pouco
pra minhoca que passava por ali. Disponível em: http://1historiacadadia.
blogspot.com/2013/05/o-grande-rabanete.html.

Desse modo, a partir de todos esses elementos que a narrativa oferece,


o mediador, que é o responsável por contar a história ao público infantil,
tem a oportunidade de criar e recriar o texto por meio de diferentes
estratégias.

Para introduzir o livro às crianças é ideal que o professor fomente a


curiosidade e o interesse do leitor. Que tal levar uma mala antiga ou uma
caixa decorada para surpreender e seduzir os pequenos antes mesmo
de iniciar a leitura? E se, nesse momento, você utilizar um instrumento
musical para estabelecer um clima de atenção e concentração na turma?
Pronto! O ambiente já está preparado para dar início à contação.

VAMOS ENCENAR A HISTÓRIA?

Agora é a hora de convidar todos, aos poucos, para assumirem os papéis


do avô, da avó, da neta, do cachorro, do gato e até mesmo do convecido
rato e, então, dar vida à história. Cada um pode se caracterizar de acordo
com os personagens e viver as ações praticadas por eles.

A partir dessa sugestão, observamos que o papel do professor mediador


é de suma importância no processo de instrução e desenvolvimento
da função cognitiva, responsável pela compreensão, interpretação
UNIUBE 33

e assimilação do texto como um todo. Além disso, há o despertar


das funções emocional, crítica e criativa, estimulando as crianças a
inventarem novas histórias.

1.5 Conclusão

Buscamos nesse capítulo fornecer uma visão geral acerca da Literatura


Infantil, considerando alguns aspectos fundamentais para os estudos
desse assunto. As reflexões acerca literatura para crianças buscaram
dar a dimensão da importância de compreender as particularidades dessa
fase que muito de se dintinguem dos adolescentes e adultos.

Apresentamos, também, os primeiros autores que destinaram suas obras


ao universo infantil, arquitetando livros que tinham em sua origem contos
populares. Dentre eles, destacamos as fábulas de Esopo (sec. VI a.C) e
Jean de La Fontaine (1621-1695) com histórias de cárater moralizante e
de instrução, narradas por meio de animais e outros seres personificados
como humanos.

Atentando-se para a natureza da literatura destinada às crianças, vemos


que sua essência pertence à área do maravilhoso, do fantástico, por se
comunicar facilmente com o pensamento mágico infantil. É o caso, por
exemplo, dos contos de Charles Perrault (1628-1703); os Irmãos Grimm
(1785-1863) e Hans Christian (1805-1875), criados há tanto tempo e que
continuam sendo lidos, encenados, contados, pelos adultos e, acima de
tudo, encantando as crianças.

É evidente que, com o passar dos anos e a transformação dos valores


humanos, sociais, éticos, políticos etc, perdeu-se as circunstâncias
de uma época que impactou diretamente na criação dessas histórias
originais. Entretanto, tais valores continuaram presentes e vivos na
linguagem imagística ou simbólica que os expressou em arte. E mesmo
34 UNIUBE

com essa distância na linha do tempo, ainda provocam a imaginação e


podem ser frequentemente atualizados. (COELHO, 2002, p. 44).

Nessa breve reflexão, confirmamos a importância do educador, como


mediador do texto na sala de aula, seja um leitor de diferentes histórias,
assim como um pesquisador da Literatura Infantil. Dessa forma ele poder
fomentar as discussões nas escolas a respeito de uma educação literária
reconhecida como arte. Assim, enfatizamos que as escolhas literárias
que fazemos, a reflexão sobre o texto e a apreciação pessoal apontam
caminhos em direção à formação da atitude leitora, transformando a
educação das crianças por meio da arte literária.

Referências

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SOUZA, Elaine Hernandez de. Os Discursos do Trabalho na Fábula “A Cigarra e


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TATAR, Maria (Org.). Contos de fadas. Edição comentada &


ilustrada. Rio de Janeiro: Jorge ZAHAR Editor, 2004.
Capítulo
Um breve estudo sobre
Monteiro Lobato
2

Carolina Molinar Bellocchio

Introdução

As condições particulares em que se encontrava o país no início do


século XX, com o modelo republicano um tanto quanto estável, mão
de obra se deslocando em direção aos centros urbanos – além da
constante chegada da imigração europeia e oriental – e o acesso
aos bens de consumo aumentando significativamente, concorreram
para que a alfabetização passasse a figurar como um dos alvos a se
concentrar. Ora, a população brasileira, visando tanto a uma certa
ascendência social quanto a uma qualificação mínima, começou a
identificar a educação e, mais especificamente, a alfabetização, como
um dos elementos que tanto poderiam lhe conferir prestígio quanto
fortalecimento cultural.

Nesse sentido, surgem campanhas pela instrução, pela alfabetização


e pela escola, que dariam também condições de dotar o Brasil de
uma literatura infantil nacional. Marisa Lajolo e Regina Zilberman
relatam que críticos como Silvio Romero e José Veríssimo eram
de opinião de se produzir literatura especialmente para a escola
brasileira. Tal clamor foi feito e ouvido (LAJOLO; ZILBERMAN,
1991, p. 28), sendo que escritores e editores, vinculados a setores
governamentais responsáveis pela adoção de livros didáticos no país,
passaram a produzir material pedagógico.
38 UNIUBE

Objetivos
Ao final dos estudos deste capítulo, você deverá ser capaz de:
• mostrar em que consistiu a fase de transição da literatura-
juvenil no Brasil, considerando a sua diferença em relação
à Fase inicial – estudada no capítulo anterior – da produção
literária nacional;
• explicar como o nacionalismo e o desejo de uma língua
nacional estiveram na base da produção literária desse
momento;
• apresentar as relações entre literatura infantojuvenil e escola,
tendo em mente os aspectos pedagógicos, moralizantes e
autoritários que perpassaram a produção literária desse
período;
• caracterizar a importância da produção literária infantojuvenil
de Monteiro Lobato, distinguindo sua singularidade em
relação às outras produções contemporâneas.

Esquema
2.1 Para o Brasil, uma literatura infantojuvenil em português do
Brasil
2.2 Monteiro Lobato e o equilíbrio da literatura infantojuvenil
brasileira
2.3 Conclusão

2.1 Para o Brasil, uma literatura infantojuvenil em português


do Brasil

Um dos motivos que contribuiu para o início de produção literária


infantojuvenil nacional foi a preponderância de material nitidamente
estrangeiro. Os clamores nacionalistas e pedagógicos denunciavam a
UNIUBE 39

ausência de obras que estivessem ligadas às questões da brasilidade,


assim como às questões da variação linguística brasileira. Isso se deve
ao fato de que ainda que muitos livros portugueses chegassem aqui, o
português de Portugal há muito se distanciara do falar local. As crianças
e jovens, inclusive, sentiam menos intimidade ainda que os pais com
tal variedade, o que dificultava a compreensão e a fluência da leitura
(LAJOLO; ZILBERMAN, 1991).

EXPLICANDO MELHOR

O trecho seguinte exemplifica bem e justifica a necessidade de uma


produção essencialmente brasileira:
De noite, na mesa de jantar, à luz do lampião belga que pendia do teto, eram
frequentes estas conversas:
-- Papai, que quer dizer palmatória?
-- Palmatória é um instrumento de madeira com que antigamente os
mestres-escola davam bolos nas mãos das crianças vadias...
-- Mas aqui não é isso.
O pai botava os óculos, lia o trecho, depois explicava:
-- Pelo assunto, neste caso, deve ser castiçal. Parecido, não? Como
um ovo com um espeto!
Minutos depois, a criança interrompia novamente a leitura.
-- Papai, o que é caçoula?
-- Caçoula, que eu saiba, é uma vasilha de cobre, de prata ou de
ouro, onde se queima incenso.
-- Veja aqui na história. Não deve ser isso...
O pai botava os óculos de novo e lia, em voz alta: “O bicho da
cozinha deitou água fervente na caçoula atestada de beldroegas, e asinha
partiu na treita dos três mariolas...”.
Depois de matutar sobre o caso, o pai tentava o esclarecimento:
-- Caçoula deve ser panela...Parecido, não?
E a mãe, interrompendo o crochê:
-- Afinal, por que não traduzem esses livros portugueses para as
crianças brasileiras?

Afonso Schmidt (CAVALHEIRO apud LAJOLO; ZILBERMAN, 1991, p. 31).


40 UNIUBE

O hiato existente entre a realidade linguística dos leitores brasileiros e


a realidade dos textos que chegavam a eles foi certamente um ponto
fundamental para a defesa de uma produção literária genuinamente
brasileira (LAJOLO; ZILBERMAN, 1991). Além disso, o tom patriótico, não
só transvestido pelo amor à língua nacional, se mostra evidente. Olavo
Bilac, Coelho Neto e Julia Lopes de Almeida lançam livros nessa direção.
Os ensinamentos pátrios e o respeito aos mais velhos são elementos
centrais em Contos pátrios (1904), dos dois primeiros e Histórias de
nossa terra (1907), da última, por exemplo (LAJOLO; ZILBERMAN,
1991).

Ainda que o procedimento da imitação tenha se concentrado na fase


inicial, em que autores brasileiros se baseavam em contos e fábulas
europeias e as adaptavam para o público brasileiro, podemos identificar
esse modo de criação também nessa fase de transição e em relação
aos romances. Duas narrativas europeias que tinham a tônica do
nacionalismo, Le tour de la France par deux garçons [A volta na França
por dois garotos] e Cuore [Coração], respectivamente de G. Bruno e De
Amicis, serviram de base para uma adaptação brasileira feita por Olavo
Bilac e publicada em 1910. Intitulada Através do Brasil, a obra do poeta
brasileiro, em conjunto com Manuel Bonfim, se valia do mote do primeiro
romance, a saber, a viagem através do país por duas crianças – lá a
França, aqui o Brasil –, para distribuir lições de “geografia, agricultura,
história, higiene” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1991, p. 35) etc. Do romance
italiano, Bilac se valeu sobretudo do tom patriótico que empenha o
protagonista infantil durante a consolidação da unificação italiana e que
serve de imagem lapidar para as crianças leitoras de tal obra.

Além desse tom patriótico e pedagógico que acaba por contagiar as


narrativas infantojuvenis dessa época, portanto, ambas as histórias
trazem uma lição/ modelo para as obras de literatura infantil, a saber, a
presença de uma criança como protagonista.
UNIUBE 41

EXEMPLIFICANDO!

Como afirmam Marisa Lajolo e Regina Zilberman, a “presença de uma


protagonista criança é um dos procedimentos mais comuns da literatura
infantil.” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1991, p. 34). Ora, a partir de tal protagonista
tem-se um modelo de comportamento recuperado em sua imagem com a
qual os leitores podem se identificar. Por meio dessa estratégia, espera-
se que o leitor se identifique, reconheça e possa aderir mais facilmente à
narrativa e às questões que ela apresenta.

No caso específico de Através do Brasil, as grandes lições de civismo,


patriotismo e brasilidade são as esperadas em relação aos leitores,
que acompanham os irmãos Carlos e Alfredo pelo Brasil. O caráter
pedagógico que as fundamenta é a aposta dos autores e também do
meio em que tais obras eram apresentadas aos alunos: a escola (Figura
1). Como dissemos, a escolarização e o desenvolvimento de uma
literatura infantojuvenil brasileira caminharam juntas.

Figura 1: A escolarização da literatura.


Fonte: Depositphotos. Acervo Uniube.
42 UNIUBE

Foi no âmbito escolar que muitas das obras começaram a circular e


integrar a vida dos alunos. Por esse seu caráter ambíguo, pois, os livros
já traziam consigo orientações de aplicação da obra em sala de aula,
como lemos na “Advertência e explicação” de Através do Brasil:
O nosso livro de leitura oferece bastantes motivos,
ensejos, oportunidades, conveniência e assuntos, para
que o professor possa dar todas as lições, sugerir todas
as noções e desenvolver exercícios escolares para boa
instrução intelectual de seus alunos. (BILAC E BONFIM
apud LAJOLO; ZILBERMAN, 1991, p. 35).

O texto literário se confunde assim, em sua raiz, com as propostas


de aprendizagem, comportamentos e valores que os seus produtores
imprimem a ele. Ainda que Através do Brasil tenha se constituído como
“leitura apaixonada e obrigatória de muitas gerações de brasileiros”
(LAJOLO & ZILBERMAN, 1991, p. 34), não se identifica nenhum
trabalho com a linguagem, nem mesmo uma exploração mais a fundo
das questões geográficas e culturais de modo criativo, como apontam
Marisa Lajolo e Regina Zilberman:
A diversidade brasileira limita-se ao nome das capitais
dos vários Estados [por onde os protagonistas passam]
e à paisagem fixada pela ilustração. Em momento
algum, quer na linguagem, quer na caracterização dos
personagens, quer na ação, as histórias incorporam
qualquer particularidade da região que as sediam.
São, por assim dizer, contos apátridas, marcados
pela preocupação moralista e pela exortação aberta
e redundante ao trabalho, ao estudo, à obediência,
disciplina, caridade, honestidade. (LAJOLO;
ZILBERMAN, 1991, p. 36).

Apátrida Nesse sentido, enquanto texto artisticamente


“Que ou aquele que, conformado pela força da unidade entre forma
tendo perdido sua
nacionalidade de e conteúdo, deixa-se a desejar. A manipulação
origem, não adquiriu do material verbal e a sua unidade atingida com
outra; que ou o
que se encontra a manipulação de uma forma, que é também
oficialmente sem
pátria.” (HOUAISS, sentido, é perdida. No final, o efeito obtido é
VILLAR, 2009, p.
155).
quase o oposto, uma vez que o tom apátrida
dos caracteres quase desmente a intenção de
UNIUBE 43

patriotismo. A não exploração estética dos materiais disponíveis pesa


no sentido contrário de composição da significação, comprometendo o
efeito do texto.

IMPORTANTE!

Estando notadamente sujeita às determinações externas, a literatura


infantojuvenil foi absolutamente permeável nesse período. A vinculação
pedagógica, ao mesmo tempo em que propiciou um espaço e um impulso
para a produção literária em solo e com cor brasileiros, também a condicionou
a questões de feitio ideológico, pedagógico e moralizador. Nesse sentido,
ela se diferencia da literatura geral, que pode estrategicamente subverter as
pressões absolutamente alheias a ela, colocando-se de modo vanguardista,
autorreflexiva, enfim respondendo de modos infinitos às demandas que
tentam lhe subjugar.

2.2 Monteiro Lobato e o equilíbrio da literatura infantojuvenil


brasileira

O aspecto paradoxal dessa aliança entre escola e literatura infantojuvenil


caracteriza um dos pontos de discussão que se estende pontualmente
até hoje, mas que nesse momento de transição sobre o qual nos detemos
aqui representou uma força muito significativa. Tendo a escola um caráter
indiscutivelmente formador, e a literatura infantojuvenil sendo produzida
especialmente para esse ambiente, esta acabou por ser muitíssimo
permeável às suas demandas.

Nesse cenário de expectativas cruzadas, entra em cena um sujeito


cujo papel redimensionou a história da literatura infantojuvenil nacional,
conferindo-lhe uma certa autonomia e a equilibrada relação entre forma
e sentido, que compõe o objeto literário em si. Monteiro Lobato, figura
já conhecida no cenário literário brasileiro, de braços dados com a
modernização, assume importância tanto no aspecto autoral quanto
editorial brasileiro. Em 1921 publica Narizinho Arrebitado, que vem a ser
44 UNIUBE

o segundo livro de leitura para uso das escolas primárias. Constatando


a deficiência da produção infantojuvenil, que pecava por não produzir
histórias com linguagem que interessasse as crianças, Lobato se
envereda nesse projeto (LAJOLO & ZILBERMAN, Literatura infantil
brasileira: história e histórias, 1991, p. 45).

PESQUISANDO NA WEB

A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin é uma instituição que se compõe


de milhares de obras que o bibliófilo Mindlin reuniu, juntamente a sua
esposa, durante oitenta anos. Uma moderna construção na Universidade
de São Paulo abriga todo esse acervo, que pode ser acessado on-line em
grande parte.

Confira no link, a seguir, uma edição original de Narizinho Arrebitado.


Observe as ilustrações, a ortografia e todos os elementos absolutamente
atrativos que compõem esse clássico de Lobato.

https://digital.bbm.usp.br/view/?45000025027&bbm/7452#page/1/mode/2up
Depois, pesquise também outras obras.
Vale muito a pena!!!

Fascinado pelos aspectos do folclore nacional, com o interesse fulcral


no Saci, realizando pesquisa densa sobre ele, Lobato publica O Saci
naquele mesmo ano, obra também dedicada ao público infantojuvenil.
Com grande veia empreendedora, o escritor acaba por trabalhar nos
bastidores do livro, fundando editoras como a Monteiro Lobato e Cia e,
posteriormente a Companhia Editora Nacional e a Brasiliense. Atuando
em paralelo como escritor e editor, publica pelas suas editoras suas
obras, inclusive as relacionadas ao seu sucesso maior, as relacionadas
ao Sítio do Picapau Amarelo, que se estende até 1944.

De 1921 a 1944, portanto, estende-se o período em que o Sítio se


estabelece, se reinventa e se arquiteta. Precisamente nesse espaço,
situam-se os personagens que vão dar corpo à trama na série de
UNIUBE 45

livros que serão publicados. Já no primeiro


Viriato Correia -
deles, Narizinho Arrebitado, de 1921, figuram Manuel Viriato Correia
Baima do Lago Filho,
quase todos os personagens que vão compor nasceu em 1884, em
o universo do sítio. O Saci, em seguida, Pirapemas – MA, e
faleceu em 1967. Foi
é integrado a essa população inicial em contista, romancista,
jornalista, teatrólogo,
1931, quando Lobato remodela a história de escreveu crônicas
históricas e livros
Narizinho Arrebitado e adiciona a ela outros infantojuvenis.
elementos que vão, a partir daí, se estabilizar. Malba Tahan - Júlio
O resultado é Reinações de Narizinho que, César de Mello e
Souza, nasceu em
segundo Marisa Lajolo e Regina Zilberman, 1895, no Rio de Janeiro
e faleceu em 1974,
configura a “etapa mais fértil da literatura em Pernambuco.
Foi um educador,
brasileira, pois além do aparecimento de novos matemático, pedagogo,
conferencista e escritor
autores, como Viriato Correia (que concorre do modernismo
com Lobato na preferência das crianças, brasileiro, dedicando-
se inclusive para a
graças ao sucesso de Cazuza, de 1938) ou literatura infantojuvenil.

Malba Tahan, incorporam-se à literatura infantil


escritores modernistas que começavam a se
salientar.” (1991, p. 47).

O Sítio, no entanto, ganha em significação porque apresenta uma espécie


de paradoxo das ânsias de modernização e do aspecto rural com que
Lobato tanto se ocupou. Naquele espaço habitam Dona Benta, sua neta
Lúcia – a menina do Nariz arrebitado do título, isto é, Narizinho –, e a
cozinheira de tempos imemoriais, Tia Nastácia e Pedrinho – primo de
Narizinho. Também habitam naquele espaço seres mágicos e animais
falantes – como o Visconde de Sabugosa, Emília, Cuca, Porco Rabicó,
dentre uma série de outros que eventualmente compõem a trama. A
série de histórias se desenvolve de modo significativo, como vemos nas
obras abaixo:

Narizinho arrebitado (1921)


O Saci (1921)
46 UNIUBE

Reinações de Narizinho (1931)


Emília no país da gramática (1934)
O poço do Visconde (1937)
O Picapau Amarelo (1939)
O minotauro (1939)
A chave do tamanho (1942)
Os doze trabalhos de Hércules (1944)

A presença do núcleo inicial, Dona Benta, Narizinho


Idílico - “Relativo
a ou o que e Tia Nastácia, inserido em um espaço notadamente
tem caráter de
idílio.”(HOUAISS; rural, poderia indicar uma retomada do Brasil mítico e
VILLAR, 2009, p. idílico com que os românticos o representaram: uma
1043).
natureza fértil, topos tipicamente brasileiros em que
Idílio - “Poema
lírico de tema a riqueza e a nobreza indígena se encontram com
bucólico, pastoril.”
(HOUAISS; VILLAR, o heroísmo português. No entanto, Lobato foge da
2009, p. 1043).
atitude ufanista e representa o Sítio de modo quase
Saúva - Formiga modernista: quando são minimamente descritas
“encontrada em
todo Brasil, com as terras em que se encontram o sítio, estas são
cerca de 11 mm
de comprimento, “ordinariíssimas, onde só havia saúva e sapé.”
cabeça fosca e
coloração geral (LOBATO apud LAJOLO; ZILBERMAN, 1991, p. 56).
parda.” (HOUAISS;
VILLAR, 2009, p.
1716). A falta de idealização do espaço, em que figura
apenas “a casinha branca de Dona Benta”,
somada a essa deliberada omissão da terra como
espaço idílico ecoa o Brasil de Macunaíma, em que abundam saúva
e falta saúde. O sítio em terras muito ordinárias com “saúva e sapé”
escancara a posição intervalar e crítica de Lobato em relação ao atraso
brasileiro e à sua ânsia de modernização. Entre o Brasil idealizado e o
Brasil crítico, encontra-se o Sítio do Picapau Amarelo. Assim, o paralelo
entre o Brasil de Lobato e o explorado pelo romance de 30 é inegável,
sendo as ilusões postas de lado e os males do Brasil rural marcadamente
abordados (LAJOLO; ZILBERMAN, 1991).
UNIUBE 47

CURIOSIDADE

A expressão “abundam saúva e falta saúde” refere-se à famosa frase


de Mário de Andrade “Pouca saúde e muita saúva, as males do Brasil
são” (1988, p. 83), em que denuncia em forma lapidar as mazelas e os
desequilíbrios do país.

Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1991) apontam dois outros elementos


fundamentais em que se identifica essa atitude intervalar em relação ao
nacionalismo (incluindo a atitude purista em relação à língua portuguesa,
intocável símbolo de uma identidade nacional) e uma defesa de valores
modernos. O primeiro deles é a assunção de uma língua viva e mais
próxima dos falantes, como se vê a seguir:
A moda de Dona Benta ler era boa. Lia ‘diferente’ dos
livros. Como quase todos os livros para criança que
há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do
tempo do Onça ou só usados em Portugal, a boa velha
lia traduzindo aquele português de defunto em língua
do Brasil de hoje. Onde estava, por exemplo, ‘lume’,
lia ‘fogo’; onde estava ‘lareira’, lia ‘varanda’. E sempre
que dava com um ‘botou-o’ ou ‘comeu-o’, lia ‘botou
ele’, ‘comeu ele’ – e ficava o dobro mais interessante.
(LOBATO, 1956, p. 199).

Outro trecho que apresenta uma radicalidade de compreensão da língua,


e que vai além mesmo da postura de Dona Benta com o português
brasileiro apresentada acima, é a passagem, da obra Emília no país da
Gramática, em que Emília liberta, não só metafórica mais literalmente,
o personagem Neologismo pelo mundo assim como o Provincianismo
– considerado como vício de linguagem e materializado pela figura do
matuto:

____Não mexa, Emília – gritou Narizinho. – Não mexa


na Língua, que vovó fica danada...
____Mexo e remexo! replicou a boneca batendo o
pezinho e foi e abriu a porta e soltou o NEOLOGISMO,
48 UNIUBE

dizendo: ___Vá passear entre os vivos e forme quantas


palavras novas quiser. E se alguém tentar prendê-lo,
grite por mim, que mandarei o meu rinoceronte em seu
socorro.
[...]
Emília encaminhou-se para o último cubículo, onde
estava preso um pobre homem da roça, a fumar o seu
cigarrão de palha.
___E este pai da vida, que está aqui de cócoras?
Perguntou ela.
___Este é o Provincianismo, que faz muita gente usar
termos só conhecidos em certas partes do país, ou
falar como só se fala em certos lugares. Quem diz
NAVIU, MÉNINO, MECÊ, NHÔ, etc., está cometendo
PROVINCIANISMOS.
Emília não achou que fosse caso de conservar na
cadeia o pobre matuto. Alegou que ele também estava
trabalhando na evolução da língua e soltou-o.
(LOBATO, 1978,pp. 106-107 apud LAJOLO &
ZILBERMAN, 1991, p. 58)

A posição de Emília revela o caráter vanguardista de Lobato em relação


à concepção de língua, admitindo a presença de novas palavras,
produzidas por falantes vivos (“vá passear entre os vivos”) e a aceitação
da variação caipira como uma dentre as “línguas portuguesas”. A teimosia
e ousadia de Emília, dizendo “Mexo e remexo”, é reforçada pela sua
ação “batendo o pezinho” e libertando da prisão o falante matuto. O
intertexto presente aí retoma o típico e célebre personagem caipira
criado por Monteiro Lobato, Jeca-Tatu, imortalizada figura de cócoras
picando fumo de palha, que dessa vez é simbolicamente colocada na
prisão por não praticar a norma culta do nosso idioma. Lobato brinca
com a ideia normativa de língua associando-a a uma lei que não pode
UNIUBE 49

ser transgredida e que, caso seja, pune os falantes com a exclusão


social, por meio da metáfora da prisão. Nesse universo é justamente
uma boneca quem vai libertar as formas socialmente condenadas/
desprestigiadas, como o neologismo e o provincianismo, e reintegrá-los
à atividade linguística cotidiana. A força de Emília, como personagem que
borra os limites da realidade/fantasia, é fundamental na composição de
uma narrativa para o público infantojuvenil. É ela a figura destemida que
ousa mudar o status quo, problematizando e revertendo a ordem das
coisas – inclusive sua essência de boneca, que é superada de modo a
ela ter a faculdade humana.

PESQUISANDO NA WEB

Algumas obras de Monteiro Lobato ganharam adaptação audiovisual,


algumas estão disponíveis na Internet, como as seguintes.
1) O Saci, de 1951.
Veja sinopse do filme, disponível no site Filmow (2018, p, 1)

As aventuras de Pedrinho e suas tentativas de


capturar o endiabrado Saci, que depois irá ajudar
a desfazer a bruxaria da Cuca, tudo com a ajuda
de Emília e Narizinho do Sítio do Picapau Amarelo,
onde vivem Dona Benta e Tia Anastácia. Primeira
adaptação para o cinema da história clássica de
Monteiro Lobato. O filme foi exibido no Festival
Internacional do IV Centenário da Cidade de São
Paulo (1954), e internacional no Festival de Cinema
de Veneza (1954).
Esse filme, de 1951, foi dirigido e escrito por Rodolfo Nanni, com história
de Arthur Neves, embasada na obra de Lobato. Para assistir um trecho do
filme, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=3hW77NwN9vc

2) Série Sítio do Picapau Amarelo

A série Sítio do Picapau Amarelo, baseada na obra de Monteiro Lobato, foi


televisionada em três épocas distinas: a primeira pela extinta rede Tupi –
1952 a 1963; a segunda – 1977 a 1986 e a terceira – 2001 a 2007, pela rede
Globo. As últimas têm alguns capítulos disponíveis na Internet.
50 UNIUBE

• Segunda versão, exibida entre 1977e 1986.


Para visualizar um trecho, acesse:
https://www.youtube.com/watch?v=pDSPJzTP91s
• Terceira versão, exibida entre 2001 e 2007.
Para visualizar um trecho, acesse:
https://www.youtube.com/watch?v=ZYSsEHwe_E0

Agora, sugerimos que faça uma entrevista com pessoas que foram
crianças entre 1977 e 1986 e pessoas que foram crianças entre 2001 e
2007. Pergunte a elas o seguinte.

• Vocês assistiram à série O Sítio do Picapau Amarelo, na infância?


O que têm a dizer sobre ela?
• Já leram livros do Monteiro Lobato dessa série? O que têm a dizer
sobre eles?

As séries desempenharam um papel importante na difusão da obra de


Monteiro Lobato, assim como na permanência dos personagens no
imaginário de várias gerações de crianças e jovens no Brasil. Isso se
deve não apenas ao tempo em que ficaram no ar ao longo de todos
esses anos – 28, conforme somamos os tempos das séries –, mas
principalmente ao cuidado na produção das mesmas, o que conferiu
qualidade à mídia televisiva. Vale destacar, entretanto, que as séries não
suplantam a experiência da leitura em si dos livros que formam o Sítio.
Por se tratar de dois tipos de artes distintas – literatura e audiovisual
– cada uma apresenta características que não podem simplesmente
substituir a outra. Na verdade, as obras somam-se e o ideal é que o
professor possa apresentar as duas para seus alunos. O trabalho com a
palavra, com a visualidade e a construção de imagens que a obra literária
apresenta jamais será substituído pelo universo já conformado e, de certo
modo, fechado fornecido pelo audiovisual.
UNIUBE 51

O segundo elemento de força nas histórias de Lobato, segundo Lajolo


e Zilberman, é a apropriação pelo autor de elementos distantes e
próximos no tempo e no espaço que são integrados ao universo do
sítio. Tanto seres mitológicos, como o minotauro ou heróis da tradição
grega – em O minotauro e os doze trabalhos de Hércules –, como figuras
contemporâneas à redação dos livros, como o Gato Félix, pertencente
a um universo cultural um tanto quanto distante, que é o das histórias
em quadrinhos, são absorvidos organicamente na narrativa. “Trata-se
de uma invasão do mundo contemporâneo, do qual Lobato se apropria
antropofagicamente, pois são antes os produtos estrangeiros que se
naturalizam, ao chegarem ao sítio ou ao conviverem com os meninos.”
(LAJOLO; ZILBERMAN, 1991, p. 58). Como um movimento típico de
contato com várias culturas, tradições e formações, Lobato integra todos
esses universos sem recorrer a um simplismo ou a deformação de uma
fonte.

PARADA PARA REFLEXÃO

Quando Lobato integra esses universos em sua obra, tornando-os acessíveis


ao leitor, o que ele possibilita?
Seria uma forma de oportunizar ao leitor o acesso ao legado cultural da
humanidade?
Dessa forma há uma ampliação do conhecimento de mundo do leitor?
O que pensa sobre isso?

Os índices de modernização ao mesmo tempo localizados no contexto


e no ambiente brasileiro se integram em uma dinâmica que assinala as
contradições da modernidade. É essa “posição ambígua em relação ao
mundo”, apontam Lajolo e Ziberman, em que ora critica a tecnologia
e o progresso, ora se mostra um admirador, que Lobato constrói no
sítio: “todos esses aspectos assinalam e, simultaneamente, justificam
a porosidade do sítio que, por decorrência, absorve o que o mundo
atual criou de mais interessante e digno de ser incorporado.” (LAJOLO;
52 UNIUBE

ZILBERMAN, 1991, p. 58). Assim, pois a brasilidade é preservada, mas


integrada à vida moderna. No entanto, vale pontuar, o topos rural como
ambiente apreciado pela literatura infantojuvenil não é apenas uma
marca nacional. A literatura infantojuvenil ocidental se valeu muito desse
espaço ao longo de sua constituição (LAJOLO; ZILBERMAN, 1991, p.
61), haja vista os contos de fadas e os contos folclóricos que se passam
sobremaneira nessa ambientação.

O intervalo dos anos 1920 a 1945, período em que se estende a


publicação dos livros do Sítio do Picapau Amarelo, é fértil em sentido geral
para a literatura infantojuvenil brasileira. Autores como Francisco Marins,
Maria José Dupré, Lúcia Machado de Almeida, dentre outros surgem no
cenário nacional, assim como aumenta a oferta de editoras que publicam
esse gênero. Globo e Melhoramentos, além das já mencionadas editoras
de Monteiro Lobato, são algumas das casas editoriais que tiveram Cecília
Meireles e Érico Veríssimo dentre seus contribuidores.

Nesse ínterim, foi quase exclusivamente a ficção que se destacou, sendo


que a produção poética ficou um tanto quanto ausente. José Lins do Rego
publica Histórias da velha Totônia em 1936, Lúcio Cardoso, Histórias da
Lagoa Grande em 1939 e Graciliano Ramos, Alexandre e outros heróis
em 1944, todas obras em prosa. Guilherme de Almeida lança O sonho de
Mariana e João Pestana, em 1941, e Henriqueta Lisboa lança O menino
poeta, em 1943.

O aumento da produção para crianças e jovens e o maior interesse


dos escritores já reconhecidos em enveredar por esse gênero reflete
a demanda do mercado brasileiro por livros. Uma série de fatores
como a consolidação da classe média, o avanço da modernização e da
industrialização do país, o aumento da escolaridade dos grupos urbanos,
assim como o novo status da literatura e das artes após o movimento
modernista estiveram na base que impulsionou esse aumento (LAJOLO
& ZILBERMAN, 1991, p. 47).
UNIUBE 53

Sem dúvida a escolarização teve um papel fundamental nesse cenário.


A reforma da escola brasileira ocorreu nos anos de 1920 e surtiu
efeitos ao longo das décadas seguintes. O movimento norte-americano
Escola Nova foi idealizado por John Dewey e concebia, grosso modo, a
democratização do ensino. A escola deixava de ser lugar somente da elite
do país para ser destino em massa da população. Os brasileiros Anísio
Teixeira, Francisco Campos (posteriormente é Francisco Campos quem
vai assumir no governo Getúlio Vargas o âmbito pedagógico), Fernando
de Azevedo, Lourenço Filho, Carneiro Leão e Mário Casassanta estiveram
à frente desse modelo no Brasil. Consideravam que a educação deveria
ser ofertada pelo Estado e insistiam na formação prática, científica e
tecnológica em detrimento da formação livresca de até então.

O maior acesso à educação (Figura 2) promovido nesse período teve


continuidade com o governo Vargas a partir de 1930. Outras reformas
na educação foram realizadas, tendo em vista o caráter assombroso do
analfabetismo de então.

Figura 2: Necessidade de alfabetização da população brasileira.


Fonte: Depositphotos. Acervo Uniube.
54 UNIUBE

As reformas visavam principalmente a qualificação da população


rural, que agora se encontrava em uma sociedade de industrialização
crescente. O mínimo necessário de instrução estava diretamente ligado
à alfabetização, sendo a escola o elemento de base nessa política.
Getúlio Vargas, por meio de seus ministros Francisco Campos e Gustavo
Capanema,
impôs a nova estrutura do ensino: tornou a educação
primária obrigatória, deu lugar de destaque ao ensino
técnico (comercial, industrial, agrícola, formação do
magistério através das escolas normais), e instituiu os
cursos superiores: em 1934, por iniciativa estadual,
é fundada a Universidade de São Paulo e, em 1937,
a Universidade do Brasil, na capital da República.
(LAJOLO; ZILBERMAN, 1991, pp. 50-51).

O processo de modernização da sociedade brasileira só poderia ser


concebido com a implantação de medidas que diminuíssem o abismo
entre a elite e a população trabalhadora, abismo esse existente pelo
analfabetismo que impede a qualificação e o acesso aos bens culturais.
Também foi por iniciativa do ministro Capanema a criação do Instituto
Nacional do Livro (INL) em 1937. Figuravam na concepção do Instituto
a edição de obras literárias consideradas formadoras para a sociedade,
a confecção de uma enciclopédia e de um dicionário sobre o Brasil –
medida fundamental – e o estabelecimento de bibliotecas (Figura 3)
públicas por todo país.

Figura 3: Jovem na biblioteca.


Fonte: Depositphotos. Acervo Uniube
UNIUBE 55

A primeira e a últimas medidas foram, de fato, implementadas, no entanto


a criação da enciclopédia e do dicionário não se realizou. Deve-se à
implantação de bibliotecas uma política muito significativa de acesso ao/
e contato com o livro, revelando-se medida necessária para a criação e
a manutenção da leitura como atividade cultural.

2.3 Conclusão
De modo indireto, durante esse período contemplado neste capítulo,
constata-se que a escolarização beneficiou a produção literária
infantojuvenil no que diz respeito ao aumento do público leitor, habilitando-
o para entrar no universo letrado, ou seja, garantindo o acesso aos bens
culturais. De modo direto, a escolarização certamente beneficiou o
mercado editorial, que produziu especificamente para o ambiente escolar.

Como a tônica nacionalista era extremada nesse momento histórico, os


livros, principalmente os escolares, se tingiram de verde e amarelo e não
fugiram à temática heroica e ufanista. Junto a isso, o registro de histórias
do folclore e orais do país caminhou coerentemente nesse projeto de
elogio da brasilidade. E, como argumentam Lajolo e Zilberman, para
contar com a aquiescência do público adulto, a literatura infantojuvenil foi
certamente “educativa e bem comportada” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1991,
p. 54). Ao mesmo tempo, destaca-se a importância de Monteiro Lobato
para problematizar essa noção de identidade nacional, provocando uma
renovação na produção literária infantojuvenil desse momento.

No balanço desses dois decênios, de 1920 a 1945, a produção literária


infantojuvenil apresentou um aumento significativo no número de autores
envolvidos em sua produção e que produziram continuamente para um
público cada vez mais cativo. A constância da produção acabou por se
alimentar da assiduidade dos leitores, gerando uma circulação bem-vinda
e saudável para o sistema literário.
56 UNIUBE

Veja, a seguir, a cronologia de obras citadas:

Século XX
Contos Pátrios (1904) – Olavo Bilac e Coelho Neto
Histórias de nossa terra (1907) – Julia Lopes de Almeida
Através do Brasil (1910) – Olavo Bilac

Narizinho Arrebitado (1921) – Monteiro Lobato


O Saci (1921) – Monteiro Lobato

Reinações de Narizinho (1931) – Monteiro Lobato


Viagens de João Peralta e Pé - de - Moleque (1931) – Menotti del Picchia
Contos da mãe preta (1933) – Osvaldo Orico
Histórias do Pai João (1933) – Osvaldo Orico
Emília no país da gramática (1934) – Monteiro Lobato
Histórias da velha Totônia (1936) – José Lins do Rego
As aventuras do avião vermelho (1936) – Érico Veríssimo
O poço do Visconde (1937) – Monteiro Lobato
Histórias da Tia Nastácia (1937) – Monteiro Lobato
O Picapau Amarelo (1939) – Monteiro Lobato
O minotauro (1939) – Monteiro Lobato
Histórias da Lagoa Grande (1939) – Lúcio Cardoso
A terra dos meninos pelados (1939) – Graciliano Ramos
Fada menina (1939) – Lúcia Miguel Pereira

Referências

ANDRADE, Mário de. Macunaíma. Coleção Arquivos, Unesco, 1988.

BILAC, Olavo; BONFIM, Manuel. Através do Brasil. Francisco Alves, RJ, 1948, 36
ed. Universidade Estadual de Campinas. Disponível em: https://www.unicamp.br/
iel/memoria/Ensaios/LiteraturaInfantil/00atraves.htm. Acesso em: 31 jul. 2018.
UNIUBE 57

BILAC, Olavo. NETTO, Coelho. Contos Pátrios. Francisco Alves, RJ, 1931, 27 ed.
(ilustrado por Vasco Lima). In: Universidade Estadual de Campinas. Disponível em:
https://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/LiteraturaInfantil/0contos.htm.
Acesso em: 31 jul. 2018.

CAVALHEIRO, Edgar. Monteiro Lobato. Vida e obra Vol. 2. São Paulo:


Nacional, 1955.

LAJOLO, Marisa, e Regina ZILBERMAN. Literatura infantil brasileira: história e


histórias. São Paulo: Ática, 1991.

LAJOLO, Marisa; João Luís (Orgs.) CECCANTINI. Monteiro Lobato livro a livro:
Obra infantil. São Paulo: Unesp: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008.

FILMOW.com. O Saci. Disponível em: https://filmow.com/o-saci-t19484/ficha-tecnica/.


Acesso em: 30 ago. 2018.

HOUAISS, Antônio. VILLAR, Mauro Salles. Dicionário Houaiss da Língua


Portuguesa.Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

LOBATO, Monteiro. Emília no país da Gramática. São Paulo: Brasiliense, 1978.

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo: Brasiliense, 1956.

NARIZINHO arrebitado. Biblioteca Guita e José Mindlin.


Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000025027&
bbm/7452#page/1/mode/2up. Acesso em: 25 jul. 2018.
Capítulo
O universo literário infantil:
uma viagem sem limites
3

Kátia Maria Capucci Fabri


Luciana Góis Barbosa

Introdução
Neste capítulo, embasamos nossas discussões iniciais a partir de
Coelho (2000). Essa autora apresenta-nos os estágios psicológicos
da criança e a necessária adequação dos textos às diversas etapas
do desenvolvimento infantil e juvenil. Para Coelho, os estágios se
subsdividem em categorias que são: o pré-leitor (primeira infância
e segunda infância), o leitor iniciante, o leitor em processo, o leitor
fluente e o leitor crítico.

Consideramos importante que o convívio do leitor com o universo


literário seja por meio de uma viagem sem limites. Para isso
sugerimos alguns princípios orientadores, que segundo a autora
podem ser úteis para a escolha de livros adequados a cada categoria
de leitor.

Seguindo o plano deste livro, refletimos sobre a literatura como arte


literária ou pedagógica, apontando questões quanto à sua natureza
específica. Nesse sentido, convidamos, você, a refletir sobre essa
questão: a literatura infantil percenteria à arte literária ou à área
pedagógica? Ela é didática ou lúdica? Ela instrui ou diverte?

No trajeto do livro, examinamos o papel da Literatura Infantil


na escola, discutindo a sua importância no âmbito do ensino e
considerando a relação entre conhecimento e e o mundo imaginário.
A partir disso, reconhecemos que são configurados novos modos de
pensar, sentir, querer e agir. Por fim, sugerimos diferentes abordagens
60 UNIUBE

para desenvolver uma leitura literária em sala de aula, desvinculada


de uma obrigação, mas, sobretudo, pautada numa relação poética,
prazerosa e fecunda entre o educando e o livro.

Dessa forma, reiteramos que nossa intenção, neste capítulo, é


apontar como a literatura deve ser um espaço de convergência de
linguagens e que pode gerar diferentes possibilidades metodológicas
de exploração do texto literário.

Objetivos
Ao final dos estudos deste capítulo, esperamos que você seja
capaz de:
• enumerar e explicar os estágios psicológicos da criança;
• relacionar os estágios psicológicos da criança com a
adequação aos textos literários;
• refletir sobre a literatura como arte e ação pedagógica;
• discutir a respeito do papel da literatura e do livro na escola;
• explicar a poesia como uma atitude criativa;
• elaborar propostas de leituras para diferentes fases do
desenvolvimento do leitor infantil.
• relação às outras produções contemporâneas.

Esquema
3.1 A literatura e os estágios psicológicos da criança
3.2 Literatura infantil: arte literária ou pedagógica?
3.3 O papel da literatura na escola
3.4 O livro em sala de aula
3.5 A leitura: o que perceber, o que discutir...
3.6 Propostas de leituras para diferentes fases do desenvolvimento
do leitor:
3.7 Análise literária: Felizbrim, um amiguinho cheio de luz...
3.8 Conclusão
UNIUBE 61

3.1 A literatura e os estágios psicológicos da criança

Para que o convívio do leitor com a literatura seja efetivo, neste capítulo,
estudaremos os estágios psicológicos da criança, por considerarmos
fundamental compreender que a leitura é uma aventura cognitiva,
emocional, afetiva, portanto muitos são os fatores a serem considerados
antes de escolher uma obra para ser lida e recomendada

Sob a luz da psicologia experimental, é importante compreender que


a evolução biopsíquica das crianças, pré-adolescentes e adolescentes
pode diferenciar-se de acordo com as várias fases de desenvolvimento
do leitor. Esse fato ocorre conforme vários fatores que se conjugam
nesse processo de desenvolvimento de cada indivíduo. Assim, segundo
Coelho, a inclusão do leitor em determinada “categoria” “depende não
apenas de sua idade, mas, principalmente, da inter-relação entre sua
idade cronológica, nível de amadurecimento [...] e grau ou nível de
conhecimento/domínio do mecanismo da leitura”. (COELHO, 2000, p.
32). Há, então, para a autora, diferentes categorias de leitor, conforme
sua faixa etária.

Vamos conhecer quais são as categorias de leitor?

Pré-leitor
Leitor Leitor em Leitor Leitor
• Primeira infância
(dos 15/17 meses
iniciante processo fluente crítico
aos 3 anos)
(a partir dos 6/7 (a partir dos 8/9 (a partir dos (a partir dos
• Segunda infância anos) anos) 10/11 anos) 12/13 anos)
(dos 4/5 anos)

A seguir, apresentamos as principais características de cada fase.


Iniciamos pelo Pré-leitor que subdivide-se em duas categorias iniciais,
abrangendo duas fases:
62 UNIUBE

• Pré-leitor - Primeira infância: nessa fase a criança inicia o


reconhecimento pelo tato de tudo que a circunda. Esse período é
comumente denominado de “invenção da mão”, uma vez que ela
tenta alcançar e sentir tudo ao seu redor. Além disso, inicia também
a conquista da própria linguagem, dando nomes às realidades à
sua volta. Nessa etapa, é importante apresentar à criança diferentes
estímulos como gravuras de animais em folhas soltas ou álbuns
confeccionados de materiais diversos como tecido, plástico, papel
grosso, ou também, objetos familiares tais como bichos de pelúcia ou
qualquer material macio, fofo; chocalhos musicais etc. Ressaltamos,
ainda, a importância da mediação do adulto com a criança ao
manipular e nomear os objetos ou brinquedos, inventando situações
bem simples e, consequentemente, estimulando o pensamento
infantil. “É nessa fase que o mundo natural e o mundo cultural (o da
linguagem nomeadora) começam a se relacionar na percepção que
a criança começa a ter do espaço global em que vive.” (COELHO,
2000, p. 33).
• Pré-leitor - Segunda-infância: observa-se um avanço em relação
à comunicação verbal, o livro passa a ser um dos brinquedos
favoritos mediante a orientação de um adulto, seja em casa ou na
escola. Há um aprofundamento e descoberta do mundo concreto e
do mundo da linguagem por meio de atividades lúdicas. É também
a fase do egocentrismo e dos interesses ludopráticos. Essas
características apontam o interesse da criança em tudo ao seu
redor, buscando atribuir significados, daí a importância da escolha
de livros adequados que prevaleçam, essencialmente, imagens que
sugiram um acontecimento ou um fato significativo. Os livros devem
contemplar gravuras e desenhos coloridos ou em preto e branco,
simples e de fácil comunicação visual, com o mínimo de texto escrito,
que podem ser lidos ou dramatizados pelos adultos. Ao contar uma
história deve-se criar uma atmosfera de graça e de humor, um clima
de mistério e expectativa para conquistar o pequeno leitor. Nessa
fase, “a criança começa a perceber a inter-relação entre o mundo
real que a circunda e o mundo da palavra que nomeia esse real”
(COELHO, 2000, p. 33). A partir dessa nomeação ela amplia as
relações cognitivas e afetivas com o mundo que a cerca.
UNIUBE 63

Quais livros ler para o Pré-leitor ?

São vários os autores que se destacam com


Eva Furnari
publicações infantis que atendem ao público
desta faixa etária, dentre eles, para exemplificar, Escritora e ilustradora
desde 1980 e tem
sugerimos a leitura on-line do livro Assim 60 livros publicados.
Nasceu em Roma,
Assado (Moderna), de Eva Furnari. O livro é Itália, em 1948, e
veio para o Brasil
divertido, interessante a partir de sua capa, em aos dois anos de
idade. Formou-se
que risonhas crianças viajam em um tapete em Arquitetura, foi
mágico ou uma prancha de faz de conta. Cada professora de artes,
trabalhou como
personagem (bicho, cozinheira, time, gato, desenhista em
revistas e publicou
menina, espelho, velha, sapo, médico, gato histórias da Bruxinha
no jornal Folha de
nanico, conversa fiada, faxineiro, homem, amigo S. Paulo. Tem livros
adaptados para
do vizinho) “desfila” aos nossos olhos, metendo- o teatro e livros
se em engraçadas encrencas. Tudo recheado publicados no México,
Equador, Guatemala,
com um saboroso nonsense (fora da realidade), Bolívia e Itália. A
autora recebeu
que as crianças adoram. Todas as histórias diversos prêmios ao
longo de sua carreira.
têm uma organização binária: apresentação e https://www.moderna.
com.br
nomeação da personagem, seguida de uma
ação atrapalhada e sua consequência. O
paralelismo com que os textos são construídos,
juntamente com as rimas, cria um jogo verbal que envolve gostosamente
o leitor num fio ao mesmo tempo conhecido na estrutura e novo no
conteúdo.

Texto Adaptado. Disponível em http://www.letrinhaspraler.com.


br/2016/07/assim-assado-eva-furnari.html. Acesso em 02 de abril
de 2019.
64 UNIUBE

Sugerimos as seguintes séries e coleções para o Pré-leitor:

»» Coleção “Peixe Vivo”, de Eva Furnari (Ática);


»» Coleção “Escadinha”, Série “Um degrau”, de Lúcia Pimentel Góes/
Naomy Kuruda (Ed. do Brasil);
»» Coleção “Crie & Conte”, de Cristina Porto/ Tenê de Casa Branca
(FTD);
»» Coleção “Só Imagem”, de Eva Furnari;
»» Coleção “Hora da Fantasia” (Moderna);
»» Série “Amendoin”, de Eva Furnari (Paulinas);
»» Série “Livros de Imagem” (Moderna);
»» Coleção “Conte outra vez” (Formato);
»» Coleção “As meninas” de Eva Furnari (Formato);
»» Coleção “Canta de dança” (Brinque –Book);
»» “Livros de pano”, de Paula Valéria (APEL);
»» Coleção “Livros de Madeira”, de Alice e Lúcia Góes (Ed. Saxônia).
(COELHO, 2000, p. 34).

• Leitor iniciante: nesta fase de aprendizagem da leitura, a criança


já reconhece, com facilidade, os signos linguísticos, a formação
das sílabas simples e complexas. Ao mesmo tempo, evolui-se na
socialização e racionalização da realidade. Desse modo, a mediação
dos adultos, ainda, se faz necessária, como “agentes estimuladores”,
pois ela precisa ser incentivada para além da decodificação, ou
seja, é preciso ajudá-la a atribuir significados. Diante disso, os livros
com imagens ainda devem predominar sobre o texto escrito. As
histórias devem apresentar situações envolvendo uma introdução
simples, o conflito, o clímax e um desfecho. Sabe-se que nesta
fase o pensamento lógico infantil ainda está em desenvolvimento
para compor uma narração com unidade, coerência e organicidade
(Coelho, 2000). É importante que as personagens sejam reais,
humanas ou simbólicas, representadas por animais, plantas,
objetos e tenham, sobretudo, perfis com traços de caráter ou
comportamento bem definidos, isto é, personagens bons e maus,
fortes e fracos etc. Além disso, as palavras devem ser estruturadas,
UNIUBE 65

preferencialmente, por meio de sílabas simples, organizadas em


frases curtas nominais ou absolutas, contendo elementos repetitivos,
para facilitar a compreensão. Vejamos um fragmento do livro Tudo
bem ser diferente (Todd Parr, Editora Panda Books, 2000) a seguir,
que apresenta um vocabulário simples, que faz parte do cotidiano
da criança:
“Tudo bem ter um dente a menos
Tudo bem precisar de alguma ajuda
Tudo bem ter um nariz diferente
Tudo bem ter uma cor diferente [...]”

https://www.youtube.com/watch?v=_AxAnkqg-vk

Nessa perspectiva, Coelho (2000) reflete sobre a importância de o livro


estimular a imaginação, a inteligência, a afetividade, as emoções, seja
por meio da leitura de contos ou de histórias do cotidiano. É preciso que
as narrativas sejam bem humoradas e que conduzam o leitor iniciante a
se identificar com suas alegrias, vontades, problemas e sonhos.

Então perguntamos: quais livros o leitor iniciante deve ler?


Seguem algumas sugestões de séries e coleções indicadas
para o leitor iniciante:

»» Coleção “Gato e Rato”, de Mary Eliardo França (Ática);


»» Coleção “Girassol” (Moderna);
»» Série “Um Dois Feijão com Arroz”, DE Tenê (Ática);
»» Série “Lagarta Pintada” (Ática);
»» Coleção “Escadinha”, de Lúcia Góes/ Naomy Kuruda (Ed. Do Brasil)
»» Coleção “Primeiras Histórias” FTD;
»» Série “Pega-pega”, “Coleção Didática/ Série Descobrindo” e
“Coleção “Cavalo-Marinho” (Paulinas);
»» Coleção” Hora dos Sonhos” de Ruth Rocha (Quinteto Editorial);
»» Coleção “Mico Maneco 2” de Ana Maria Machado (Salamandra);
66 UNIUBE

»» Série “Jogos Linguísticos” (Moderna);


»» Série “Onda livre” (Global);
»» Coleção “Mindinho e seu vizinho” (Atual);
»» Coleção “Marc Brown/ Mundo de Arthur” (Salamandra);
»» Coleção “Derek Matthews” (Brinque-Book);
»» Coleção “Beto e Bia” (José Olympio);
»» “Histórias ao pé da letras”, de Hebe Coimbra (Formato);
»» Série “Mané Coelho”, de Mary/ Eliardo França (Ediouro). (COELHO,
2000, p. 36).
»» Coleção “Arca de Noé” de Vinícius de Moraes;
»» Livros do Ziraldo: FLICTS, O Menino Maluquinho, O planeta lilás, A
coleção ABZ, dentre outros que são encontrados em: https://www.
ziraldo.com/home.htm

• Leitor em processo: nesta fase a criança domina os mecanismos


da leitura e com essa conquista emergem curiosidade e interesse
pelo desconhecido. Nota-se um avanço considerável no pensamento
lógico, organizando-se em formas concretas que possibilitam as
operações mentais. Essa etapa, também se caracteriza pelo desejo
de ser desafiada, constantemente, revelando também, a capacidade
de argumentação. Observamos que a presença do adulto ainda é
importante como motivador para a leitura e, especialmente, como
provocador de atividades pós-leitura. Sendo assim, destacamos que
as imagens em diálogo com o texto são fundamentais para o leitor
em processo. Ademais, nos textos escolhidos, devem prevalecer
a graça, o humor e as situações inesperadas ou satíricas. As
estruturas das frases devem ser em períodos simples, na ordem
direta, ampliando-se gradativamente para os períodos compostos. “A
efabulação (concatenação dos momentos narrativos) deve obedecer
ao esquema linear: princípio, meio e fim”. (COELHO, 2000, p. 37).

O que podemos indicar para o leitor em processo?


UNIUBE 67

»» “Clássicos Infantis” (Moderna);


»» Série “Vento Azul” (Melhoramentos);
»» Coleção “Mico Maneco 3-4”, de Ana Maria Machado (Salamandra);
»» Coleção “Texto Imagem” (Ed. do Brasil);
»» Série “Ana Maria Machado” (Moderna);
»» Série dos “Reizinhos”, de Ruth Rocha (Salamandra);
»» Coleção “Estórias para Brincar” (Vale Livros);
»» Série “Azul” e Coleção “Primeiras Histórias (FTD);
»» Coleção “Hora dos Sonhos”, de Ruth Rocha (Quinteto Editorial);
»» Coleção Desafios (Moderna);
»» Série “Poemas Narrativos” (Moderna);
»» Coleções “Viagem do olhar”, de Claudio Martins, “Quatro olhos”,
de Marta Neves e Fernando Cardoso, e “Quem diria!”, de Maurício
Veneza (Formato);
»» Coleção “Família Problema”, de Babete Cole (Companhia das
Letrinhas);
»» Contos Clássicos” (Martins Fontes);
»» Coleção Fábulas Brasileiras” (Ediouro). (COELHO, 2000, p. 36-37).
»» Coleção “Arca de Noé” de Vinícius de Moraes;
»» Livros do Ziraldo: FLICTS, O Menino Maluquinho, O planeta lilás, A
coleção ABZ, dentre outros que são encontrados em: https://www.
ziraldo.com/home.htm

• Leitor fluente: neste período há a consolidação dos processos de


leitura e a compreensão do mundo. Esta fase é marcada pelo início
da pré-adolescência, observando-se um suje-o mais reflexivo, com
capacidade de concentração e aprofundamento na percepção do
mundo. O pensamento hipotético dedutivo desenvolve-se, logo, a
capacidade de abstração evolui. Com isso, o leitor, interessa-se
fortemente por temas relacionados à atualidade em geral, com pré-
disposição para participar de grupos nos quais as individualidades
confrontam-se. Para Coelho (2000), o leitor nessa fase é atraído
pela comparação e enfrentamento de ideias, há uma potencialização
afetiva que se une à nova sensação pelo poder interior: marcado pelo
68 UNIUBE

desenvolvimento da inteligência, do pensamento formal e reflexivo.


O contato e a mediação dos adultos já não ocupam mais um lugar
de destaque, pelo contrário, observa-se uma força interior fazendo-o
sentir-se onipotente. Nesse cenário a ação do mediador deve ser
de líder entusiasmado para conquistar a atenção e a confiança de
seus liderados. A diversidade literária evolui, as imagens já não
desempenham lugar de destaque e o texto assume o seu notório
papel. Observamos que, nessa fase, há um interesse pelos livros
com uma linguagem mais elaborada, que apresentam “heróis” e
“heroínas” que lutam incansavelmente por um ideal humanitário
e justo. No caso de pessoas comuns, devem ser personagens
altamente questionadores, idealistas, envolvidos emocionalmente,
desafiando a inteligência do leitor fluente.

INDICAÇÃO DE LEITURA

Para compreender melhor as características dessa fase, indicamos a


leitura do livro Extraordinário da autora R. J. Palácio. A história apresenta
o personagem Auggie que nasceu com uma síndrome genética cuja
sequela é uma severa deformidade facial, que lhe impôs diversas cirurgias
e complicações médicas. Por isso, ele nunca frequentou uma escola de
verdade. Todo mundo sabe que é difícil ser um aluno novo, mais ainda,
quando se tem um rosto tão diferente. Prestes a começar o quinto ano em
um colégio particular de Nova York, ele tem uma missão nada fácil pela
frente: convencer os colegas de que, apesar da aparência incomum, ele é um
menino igual a todos os outros. Disponível em: http://www.extraordinariolivro.
com.br/. Acesso em 25 de abril de 2019.
Conheça a página online do livro Extraordinário http://www.
extraordinariolivro.com.br/

A seguir, sugerimos uma relação de livros indicados para o


leitor fluente, vamos conhecê-la?

»» Séries “Vivências”, “Suspense” e “Ficção Científica” (Melhoramentos);


»» “Coleção Girassol” e “Coleção Veredas” (Moderna);
UNIUBE 69

»» “Série Vagalume” (Ática);


»» “Coleção Nossa Gente (FDT);
»» “Coleção Passe Livre” (Ed. Nacional);
»» “Coleção Segundas Histórias ( FTD);
»» “Coleção Tirando de Letra” (Atual);
»» “Dias Bordados/ Memórias do Brasil” (Salamandra);
»» “Coleção Jovens do Mundo Todo” (Brasiliense);
»» “Coleção Jabuti” (Saraiva) ;
»» “Transas e Tramas” (Atual);
»» Série “Histórias e mais histórias – Girassol” (Moderna): Bartolomeu
Campos Queirós, Faca Afiada;
»» Vivina de Assis Viana. “Será que ele vem?”
»» Giselda Laporta Nicolelis, “Um Dono para Buscapé;”
»» Wagner Costa, “Aí, Né... e E Depois?”;
»» Ângela Lago, “Um ano danado de bom!;”
»» “Contos da Mitologia” (FTD);
»» “Entre a espada e a rosa”, de Marina Colasanti (Salamandra);
»» “O Sofá Estampado”, de Lygia Bojunga (José Olympio);
»» “A turma do gordo”, de João Carlos Marinho (Global);
»» “Contos e Lendas do Japão”, de Lúcia Hiratsuka (Estação
Liberdade). (COELHO, 2000, p. 39).

• Leitor crítico: esta fase caracteriza-se pelo total domínio da leitura,


da linguagem oral e escrita. Nota-se no leitor um amadurecimento
na capacidade crítica e reflexiva. Tem-se, também, um leitor que
compreende a essência do texto, capaz de ler, criar e recriar a partir
do que foi lido. Diante desse novo mundo, Coelho (2000, p. 39)
aponta que “a ânsia de viver funde-se com a ânsia do saber.” O
jovem leitor crítico abre-se plenamente para o mundo, relacionando-
se com o outro em busca de novas descobertas. É nesse espaço
que ele deve ser impulsionado a extrapolar da mera fruição de
prazer ou emoção, antes sugerida, e ser provocado a mergulhar de
fato na literatura.
70 UNIUBE

E então, o que ler na adolescência? A seguir, indicamos


alguns títulos:

»» “Coleção Jovens do Mundo Todo” (Brasiliense);


»» “Série Literatura Juvenil”, “Coleção Travessias” e “Série 7 faces”
(Moderna);
»» “Série Morena”, “Série Entre Linhas e Letras” e “Série Tirando de
Letra” (Atual);
»» “Série Trans-Ação” (Melhoramentos);
»» “Série Vaga-lume” (Ática);
»» “Coleção Polêmica” (Moderna);
»» “Coleção Jabuti” (Saraiva);
»» “Coleção Reconstruir (Formato);
»» “Coleção Vertentes” (Quinteto Editorial);
»» “Coleção Por Dentro das Artes (Companhia das Letrinhas);
»» “Coleção Assim é se lhe parece” (Ediouro) (COELHO, 2000, p. 40).

Assim, chegamos à conclusão de que conhecer as características dos


estágios psicológicos da criança e do adolescente é imprescindível para
promover a leitura de livros adequados a cada idade, respeitando-se o
desenvolvimento cognitivo da criança e do adolescente. A literatura como
arte é um instrumento de emoção e prazer e poderá propiciar ao pequeno
leitor um vasto caminho rumo a uma nova mentalidade, iniciando-se
como pré-leitor e avançando gradativamente para a formação de um
leitor crítico, com maior capacidade de reflexão.

A seguir, aprofundaremos nossas reflexões acerca da literatura como arte


literária ou arte pedagógica.

3.2 Literatura infantil: arte literária ou área pedagógica?

Sabe-se que a literatura infantil destinada às crianças, em sua grande


maioria, tem como objetivo conduzir o pequeno leitor a descobrir um
UNIUBE 71

novo mundo e, enquanto arte, tratar sobre temas diversos. Partindo


desse pressuposto, compreende-se que, tradicionalmente, a literatura
infantil, entrelaçando os mundos imaginário e real, utilizando histórias
com o intuito de deixar instruções ou transmitir ensinamentos, criando
memórias e reforçando tradições. Desde seus primórdios, ela atravessa
séculos encantando e despertando a imaginação, tal qual um espelho
que reflete alegrias, desejos e medos.

Nesse contexto, faz-se necessário compreender sua natureza específica.


Diante disso, questionamos:

A literatura infantil pertenceria à arte literária ou à área


pedagógica?
Ela é didática ou lúdica?
Ela instrui ou diverte?

Partindo desses questionamentos, concluímos que o problema está


longe de ser resolvido. Há na literatura diferentes pontos de vista que em
determinadas épocas se radicalizaram. Ao analisarmos a literatura infantil
através dos tempos, logo observamos que ela pertence simultaneamente
a essas duas áreas que se correlacionam.

Nesse viés, Coelho (2000) afirma


podemos dizer que, como objeto que provoca emoções,
dá prazer ou diverte e, acima de tudo, modifica a
consciência de mundo do seu leitor, a literatura infantil é
arte. Sob outro aspecto, como instrumento manipulado
por uma intenção educativa, ela se inscreve na área da
pedagogia. (COELHO, 2000, p. 46).

Por muito tempo o ensino nas escolas utilizou o livro infantil apenas
para transmitir normas e valores do mundo adulto, deixando de lado o
deleite e a fruição. Essa postura fragmentada atribuiu aos textos literários,
destinados à criança, uma visão exclusivamente educativa, minimizando-
a enquanto arte. “É possível perceber que entre esses dois extremos há
uma variedade enorme de tipos de literatura, em que as duas intenções
72 UNIUBE

(divertir e ensinar) estão sempre presentes, embora em doses diferentes.”


(COELHO, 2000, p.46).

Considerando a predominância da literatura infantil destinada às


crianças no passado, a decisão do que escrever ao público infantil,
nem sempre dependia exclusivamente do desejo do escritor. Nesse
contexto dicotômico, o autor encontrava-se diante de um confronto: a
crise entre a sociedade e a literatura. Havia, assim, duas correntes: os
que buscavam escrever uma literatura para entretenimento, um jogo
descompromissado, preponderando-se o lúdico, o incentivo à imaginação
e autores que acreditavam que a criança precisava ser preservada da
crise e ajudada em sua integração social, por meio de mensagens
moralistas, elegendo como ideal a literatura informativa, oferecendo fatos
científicos comprovados, por meio de situações reais (COELHO, 2000).

Visando atender a esse amplo mercado literário, a proliferação de livros


fragmentados, sobrecarregados de informações, mas despidos de
fantasia e imaginação multiplicou-se nas editoras brasileiras e muitos
deles, ao invés de atrair o jovem leitor o afastava da leitura. Entretanto,
esse cenário negativo não afetou a alta qualidade da produção literária
para crianças e jovens no Brasil. Não há dúvidas de que a literatura
contemporânea se encarrega de estimular a criatividade e a descoberta
de novos valores.

Diante desse impasse questionamos: que tipo de literatura


predominou?

De acordo com Zilberman (1982), por muito tempo, o livro para crianças,
desde sua origem, assumiu uma postura pedagógica. Com personalidade
educativa, a literatura infantil englobava normas e valores do mundo
adulto, preferindo o caráter lúdico. Para Santos (2011) a espécie literária
e a escola tinham relações metafóricas simultâneas e complementares
UNIUBE 73

e por isso é importante salientar que o contexto educativo, com mais


frequência do que deveria, “reitera perspectivas hegemônicas acerca
dos modos de ser, de se comportar, de fazer, de possuir, de se relacionar
com os outros, com as instituições, com o trabalho” (SANTOS, 2011,
p. 94). Dessa forma, os livros selecionados pela escola, muitas vezes,
denunciam o “modelo” de pessoas que ela pretende formar. Eis aqui a
importância do trabalho didático do professor frente a esse mundo de
possibilidades. Ele deve estar ciente de que o trabalho com a Literatura
Infantil tem a função de provocar prazer, diversão, envolvimento com a
narrativa, descobrindo um jogo lúdico entre as palavras e as imagens. A
respeito desse assunto, discutiremos na sequência.

3.3 O papel da literatura na escola

A literatura infantil foi incorporada à escola e, assim, imagina-se que


todas as crianças passarão a ler, conforme afirma Abramovich (1989).
Sabemos que a literatura tem um papel relevante a cumprir dentro do
espaço escolar, mas as severas críticas ao doutrinamento imposto por
séculos dão indícios sobre a importância de reorganizar os caminhos
entre a literatura e a educação formativa, sem desconsiderar os
interesses da criança.

Nesse sentido, é fundamental refletirmos sobre as palavras de Coelho


(2000, p. 50) “toda leitura que, consciente ou inconscientemente, se faça
em sintonia com a essencialidade do texto lido, resultará na formação
de determinada consciência de mundo no espírito do leitor”. Assim, a
escola sendo o espaço para o encontro entre a criança e o livro, deve-se
encarregar de explorar o texto de maneira adequada, distanciando-se do
modelo pedagógico do passado. E mais: a abordagem adequada do livro
infantil é condição primordial para o ensino de leitura, pois dependendo
da condução do professor pode-se estilhaçar uma história, desvirtuando
a função da obra literária enquanto arte.
74 UNIUBE

Nos dizeres de Resende (1993, p. 99) “uma escola que liberta


estrutura-se sobre uma pedagogia que poderia chamar de pedagogia
do imaginário. Nesse contexto, sem dúvida, a arte estará presente,
condicionando uma formação estética e humanizadora”. Portanto, o
currículo da escola deve se pautar na literatura como objeto que se apoia
na arte, fortalecendo o potencial de cada ser, estimulando sua expressão
e habilidades individuais. Daí a importância que se atribui ao papel do
professor, uma vez que as experiências com a literatura infantil, propostas
pelo educador, mediador entre os textos e as crianças, contribuem para
o desenvolvimento do gosto pela leitura, do estímulo à imaginação e da
ampliação do conhecimento de mundo (BNCC, 2018).

Entendemos, assim, que compete à escola possibilitar esse espaço


de conhecimento, auxiliando o aluno a aprofundar a relação afetiva e
intelectual com as obras. Logo, o seu papel não é formar poetas, embora
isso possa acontecer, mas sim possibilitar que o aluno tenha a liberdade
de criação, de expressão e de imaginação.

Por isso, asseguramos a importância da conexão entre a educação e a


literatura. É, pois, nessas relações mútuas que vamos superar conflitos,
atingindo resultados que se configurem em novos modos de pensar,
sentir, querer e agir. Dentro desse contexto, apresentamos no próximo
tópico algumas considerações sobre o trabalho de literatura na sala de
aula.

3.4 O livro em sala de aula

Observa-se ainda nos dias de hoje que a leitura literária em sala de aula
vincula-se, muitas vezes, à noção de uma tarefa a ser cumprida num
determinado prazo, uma espécie de corrida contra o tempo, geralmente,
com a entrega de um resumo ou uma lista de questões, não é mesmo?
Sabemos que essa situação, com foco no ensino tradicional, necessita
UNIUBE 75

com urgência, ser modificada, conforme estamos discutindo neste livro


de apoio.

Além disso, atualmente, o livro impresso concorre com as novas


tecnologias. O professor depara-se com fortes concorrentes, como
tablets, notebooks e até telefone celular. É necessário, então, que esse
docente seja criativo, inovador, dinâmico e faça uma conexão entre esses
materiais: o livro impresso e as novas tecnologias.

AGORA É A SUA VEZ

Pense na sua experiência com a literatura. Para começar, lembre qual foi o
seu primeiro contato com a literatura e quais foram os primeiros livros que
você leu? Quais autores e/ou pessoas foram essenciais para esse processo
de entrada no mundo da literatura?

Pois bem, esperamos que essas lembranças tenham sido agradáveis,


interessantes. Essas indagações são importantes para que possamos
ampliar nossas discussões acerca da relevância do mediador na formação
de leitores inquietos, críticos, perspicazes, além das diferentes abordagens
que ele pode desenvolver com o leitor em formação.

No processo de interação com a leitura de uma obra infantil, há muito o


que descobrir, comentar, imaginar, opinar. Para Resende,
O mundo dos livros é mesmo abracadábrico. Ele
permite a diversificação de caminhos. De uma história
e de um poema tiram-se vários, como se tiram objetos
surpreendentes da cartola de um mágico. A palavra
literária e as artes todas têm virtudes cabalísticas,
construindo símbolos de sentidos inesgotáveis.
(RESENDE, 1993, p. 120).

Observamos nas palavras da autora a necessidade de desenvolver uma


exploração adequada nas obras escolhidas. Nesse sentido, podemos
pensar nas indicações que fazemos, pois não temos a certeza de que
um determinado gênero literário poderá agradar a todos. É necessário
76 UNIUBE

planejar, pois alguns alunos poderão se interessar mais por contos,


outros por fábulas, histórias em quadrinhos, crônicas e assim por diante.

E o que fazer?

Por que não ampliar os horizontes, levando os alunos às livrarias físicas


ou pesquisando na Internet, indo às bibliotecas ou bancas de revistas,
deixando cada um manusear, folhear, buscar, achar, separar, repensar,
rever, escolher até se decidir? (Abramovich, 1989). Para isso, o professor
precisa primeiramente estar imbuído do desejo de sensibilizar os alunos
para o ato de ler. Ele deve, também, ser um amante da leitura, pois
como estabelecer uma comunicação com o aluno, se conhece pouco de
Literatura Infantil?

Uma outra sugestão é apresentar, em sala de aula, histórias contadas,


encenadas, cantadas de produções da Literatura Infantil e que estão
disponíveis no YouTube. Dessa forma, observamos que a tecnologia
também pode contribuir para a construção do gosto pela leitura literária.
Entretanto, insistimos na relevância de a criança ter contato com o livro
impresso.

No YouTube há inúmeras histórias contadas, encenadas de ótimos


autores da literatura infantil brasileira. Busque e escolha a mais
adequada ao seu público e apresente-as. Uma sugestão: os poemas
infantis de Vinícius de Moraes, cantados por Vinícius e Toquinho,
como no site: https://www.youtube.com/watch?v=jb5z-_TyJfw

Nesse sentido, ressaltamos que uma relação prazerosa pode ocorrer


a partir das escolhas de cada aluno, em função dos seus próprios
parâmetros, vontades, desejos, gostos. Que tal dar o direito ao aluno de
selecionar dois a três títulos no mês ou bimestre, conforme sua escolha
e apresentá-los para a turma?
UNIUBE 77

Reflita sobre essa possibilidade.

Há, também, um outro aspecto crucial a se cuidar. Um livro de literatura


deve ser apreciado como meio de fruição, imaginação e formação
humana. Portanto, esse texto jamais deve ser tomado apenas como
um pretexto para se estudar gramática, sublinhar verbos, encontrar
substantivos próprios, circular advérbios ou adjetivos ou simplesmente
encontrar a mensagem da história. Essa prática inadequada e equivocada
se resume em uma pedagogização ou uma didatização imediatista
e mal interpretada no que concerne ao trabalho com o texto literário,
descaracterizando a especificidade das narrativas literárias (Abramovich,
1989).

3.5 A leitura: o que perceber, o que discutir...

No processo de análise crítica da obra, conversar com as crianças sobre


o que foi lido é fundamental. Nesse momento, visa-se desenvolver o
potencial crítico do aluno, conduzindo-o a pensar, duvidar, questionar
etc. De maneira geral, a análise pode ser feita por meio de uma série de
perguntas:

»» Quais os sentidos que podemos extrair da obra? Qual é o seu


enredo, assunto, trama, desfecho? Quais os personagens.? De
quais você gostou mais?
»» Quais recursos de linguagem, de estilo, de estrutura escolhidos pelo
autor?
»» Qual a relação das imagens com as palavras? (caso o livro seja
verbo-visual)
»» Qual seria a finalidade da obra em relação ao leitor? Divertir, instruir,
educar, emocionar, conscientizar? (COELHO, 2000).
»» O que a história traz de novidades?
78 UNIUBE

É imprescindível, também, discutir e perguntar as características dos


personagens; quais são os mais importantes; que convencem e agem
de um modo sincero ou não (não importa se o personagem é gente,
bicho, fada, vampiro) e até aqueles personagens esquecidos pelo autor
que não têm menor importância para o enredo da história. Enfim, tudo
que há num texto literário merece destaque e precisa ser amplamente
discutido (Abramovich, 1989).

A partir dessas reflexões, a história, certamente, vai se descortinando


em várias outras histórias que existem em um só livro. Além disso, há
outros elementos importantes para a análise completa do objeto livro
como: a capa, contracapa, encadernação, formato do livro, paginação,
tipo e tamanho das letras, imagens (caso o livro seja ilustrado). Tudo isso
faz parte do processo de apreciação e compreensão da obra. Deve-se
indagar, por exemplo, quais as percepções da turma sobre a capa (se
bonita, colorida, atraente, relacionada com a história ou não), o título, que
por sua vez tem como característica apresentar o que será lido, sobre o
autor, dentre outras possibilidades. Ainda, o professor pode completar a
discussão com a pergunta: e qual é a sua história de vida?

Por fim, a exploração das imagens é, sobretudo, condição basilar para


a interpretação da obra em geral, pois é nesse momento que a criança
pode estabelecer um diálogo com as linguagens verbal e não verbal.
As imagens, em um bom livro, não podem ser apenas decorativas, mas
devem compor também a história.

A seguir apresentamos algumas propostas de leituras que podem ser


aplicadas em sala de aula.

3.6 Propostas de leituras para diferentes fases do


desenvolvimento do leitor:

Inicialmente, propomos a leitura do livro “Sapo Cururinho da Beira do


Rio”, da escritora Maria Magdalena Lana Gastelois, editora FTD, 1988.
UNIUBE 79

Esse livro é apropriado para crianças da fase de pré-leitores. Vamos,


então, apresentar brevemente a história.

Vamos conhecer parte da história?

Certa vez, os personagens Regina, Pedro e Ivan encontraram um sapinho


atrás da geladeira e deram-lhe o nome de Cururinho. Após darem-lhe
esse nome, os meninos narraram como Cururinho tinha nascido e o que
estava fazendo naquele lugar. Na sequência disseram que o sapinho
voltou para o jardim e depois de ‘papar’ uma borboleta, ele viu umas
bolas coloridas flutuando e ‘nhoque nhoque’. Mas aquilo não era nenhum
bichinho...

O que será que Cururinho ‘papou’?


O que eram essas bolinhas coloridas?

Antes de contar a história a professora deve criar uma situação prazerosa,


em um espaço adequado, que pode ser no pátio da escola ou na sala de
aula com as crianças em círculo, de forma descontraída.

Na sequência, apresentamos uma proposta prática para esse livro. Essa


proposta foi adaptada da obra de Resende (1993).

A atividade pode ser introduzida com a música infantil “o Sapo”. Você


pode encontrar um vídeo dessa música em https://www.youtube.com/
watch?v=0JkSpPZJDkE

O sapo

O sapo não lava o pé


Não lava porque não quer
Ele mora na lagoa
Não lava o pé porque não quer
Mas que chulé!
80 UNIUBE

A sapa na lava pá
Na lava parqua na qua
Ala mara na la lagua
Na lava a pá parqua na quar
Mas qua chalá!

E sepe ne leve pé
Ne leve perque ne que
Ele mere ne le legue
Ne leve e pe perque ne quer
Mes que chelé!

I sipi ni livi pí
Ni livi pirqui ni qui
Ili miri ni li ligui
Ni livi i pí pirqui ni quis
Mis qui chilí!

O sopo no lovo pó
No lovo porquo no quo
Olo moro no lo loguo
No lovo o pó porquo no quor
Mos quo choló!

U supu nu luvu pú
Nu luvu purquu nu quu
Ulu muru nu lu luguu
Nu luvu u pu purquu nu quur
Mus quu chulú!

Veja que nessa letra, diversos sons com as vogais podem ser
trabalhados...

Preparando as crianças para entrarem na história, a professora conduz


a encenação da capa (sem que elas tenham visto o livro ainda). Em
UNIUBE 81

seguida, ela pode apresentar o livro, comentando a capa e iniciando a


história, mostrando as páginas do livro. Esse livro pode ser encontrado
por um preço acessível em livrarias on-line .

Resende (1993, p. 128) propõe a continuação da


Onomatopeia
leitura, retomando as onomatopeias da história e
repetindo em coro com a professora: É o processo
de formação
de palavras ou
fonemas com o
I objetivo de tentar
imitar o barulho de
Todos um som, quando
são pronunciadas.
A bolhinhas de sabão
Fazem
Pluc pluc pluc

II
Professora
O que a bolhinhas fazem?
Todos
Pluc pluc pluc

III
Professora
O sapinho pula
E faz
Todos
up up up

IV
Professora
O sapinho pula
E faz
Todos
up up up
82 UNIUBE

Professora
rá rá rá
Todos
reche reche reche
crá crá crá (Resende, 1993, p. 128).

Resende (1993) também sugere que as crianças sejam estimuladas a


fazer brincadeiras, dentre elas, imitarem a posição dos sapinhos. Essa é
uma atividade alegre, dinâmica e que trabalha com as sílabas, os sons,
a repetição, a música e a parte corporal.

Outra atividade que trazemos, neste capítulo, refere-se à leitura de


poesia, que pode ser aplicada para qualquer idade em sala de aula. A
poesia deve ser vista não como um ato de memorização, mas como um
fundamental recurso, capaz de modificar a relação do pequeno leitor na
sua fase de letramento. Isso porque, pela poesia pode-se brincar com as
palavras, imaginar um mundo de faz de contas, fantasiar a realidade...

De acordo com Ferreira (2001, apud Alves, 2015, p. 11), poesia é “ a arte
de criar imagens, de sugerir emoções por meio de uma linguagem em
que se combinam sons.” Pela poesia, estabelece-se um vínculo entre os
signos linguísticos e a linguagem estética. Essa relação provoca tanto a
área das emoções quanto a criatividade.

A poesia está associada a uma atitude criativa, e não a um gênero


literário. É uma definição mais ampla, que pode estar presente em
diversas manifestações artísticas.

Já o poema é um gênero textual que apresenta características que


permitem identificá-lo entre os demais gêneros: é um texto composto
em versos e estrofes ou em prosa poética. https://www.portugues.com.
br/literatura/diferencas-entre-poesia-poema-soneto.html
UNIUBE 83

Reafirmando essa definição, Paes em Alves (2015, p. 5) diz que “ A


poesia tende a chamar a atenção da criança para as surpresas que
podem estar escondidas na língua, que fala todos os dias sem se dar
conta.”

Alves (2015, p. 12) trata da importância de trazer a poesia para a sala


de aula como atividade inovadora, não como exercício mecânico, de
repetição. Se trabalhada de forma criativa, o professor é capaz de
“introduzir no universo da criança, de forma lúdica, uma nova maneira
de entender o cotidiano infantil.”

Diante dessas observações, apresentamos o poema “Convite” de José


Paulo Paes, introduzindo algumas propostas para o trabalho com a
poesia em sala de aula.

Convite

Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.

Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.

As palavras não;
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam
Como a água do rio
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que é água sempre nova


como cada dia
que é sempre um novo dia
Vamos brincar de poesia?

(José Paulo Paes)


Disponível em http://literainfanto.blogspot.com/2010/05/convite-jose-
paulo-paes.html. Acesso dia 20 de jun. de 2019

Essa poesia é encenada pelo Grupo Estalo e pode ser assistida em:
https://www.youtube.com/watch?v=GXvIAtCxSHs

Após a leitura do poema, podemos verificar que o poeta, pelo título,


instiga o leitor a participar de um evento de leitura. Nesse evento, vamos
“brincar com as palavras”. Ao mesmo tempo que o poema convoca para
entrar na brincadeira, por meio de elementos do mundo infantil como
bola, pião, papagaio, o texto reflete acerca da produção poética:

[...]
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.

As palavras não
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.

Com a imaginação, podemos elaborar, reelaborar com as mesmas


palavras de forma criativa, diferentes textos. Para entrar nesse mundo
fantástico da criação poética, o poeta finaliza com o convite:
UNIUBE 85

“Vamos brincar de poesia?”

Como proposta de atividade, em um momento inicial, o professor pode


levar para sala de aula balões vazios de bexigas coloridas, que serão
enchidos pelas crianças ou pela professora. Nesse momento, já começa
a brincadeira, com a sala em círculo, para possibilitar a movimentação.

Na sequência, o(a) professor(a), popõe um jogo em que elas devem


enviar a bexiga cheia para os colegas e, assim, a sala fica movimentada,
colorida e alegre. Aos poucos o(a) docente vai estourando as bexigas
com um palitinho, e a brincadeira vai chegando ao final.

Concluída essa atividade, ela provoca reflexões, perguntando:


• Brinquedos estragam?
• A roupa que usamos fica velha?
• E o que acontece com os cadernos no final do ano?
• E com as palavras, o que ocorre? Elas se gastam?

Nesse processo, a professora reflete com as crianças sobre o fazer


poético: como as palavras não se gastam, elas podem ser repetidas,
reproduzidas, trocadas, rimadas, e ao participar desse jogo, criar e ler
poemas pode ficar muito divertido. Ao final, pode-se convidar a turma
para produzir um poema individual ou em grupo como, por exemplo, a
partir da palava pião, outras palavras que rimam com ela podem ser
sugeridas: chão, ancião, bolão, união, folião, feijão etc.

Outra proposta que trazemos é o trabalho com o poema de Vinícius de


Moraes “O Pato”. Esse poema pode ser encontrado no livro infantil “Arca
de Noé”, Editora CIA das Letrinhas, 2004. Também, você pode levar para
a sala de aula o poema musicado com imagens, que se encontra no
YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=ttn81dhwtS8
86 UNIUBE

O Pato

Lá vem o Pato
Pata aqui, pata acolá
Lá vem o Pato
Para ver o que é que há.
O Pato pateta
Pintou o caneco
Surrou a galinha
Bateu no marreco
Pulou do poleiro
No pé do cavalo
Levou um coice
Criou um galo
Comeu um pedaço
De jenipapo
Ficou engasgado
Com dor no papo
Caiu no poço
Quebrou a tigela
Tantas fez o moço
Que foi pra panela
(MORAES, 1981, p.370)

A letra da canção inicia com a apresentação do Pato, que tem grafia


em letra maiúscula, personificando-o. Há também uma chamada para a
chegada dele na história.
Lá vem o Pato
Pata aqui, pata acolá
Lá vem o Pato
Para ver o que é que há. (MORAES, 1981, p.370).
UNIUBE 87

Brincando com as palavras, o autor mostra como o personagem chega:


uma pata aqui e uma acolá, imitando o andar desta ave.

Sugerimos que ao iniciar a leitura do poema, o(a) professor(a) faça


uma proposta para a turma se movimentar, imitando o andar do
Pato. As crianças podem caminhar ora em duplas ora sozinhas.
O(a) professor(a) pode puxar a atividade andando com os alunos
mais devagar ou mais depressa.

Na sequência do poema, o autor apresenta as várias ações do Pato


como: pintar o caneco, que significa na gíria popular fazer o que
quiser, principalmente travessuras como: o Pato surra a galinha, bate
no marreco, pula no poleiro, pula no pé do cavalo. Mas todas essas
travessuras têm consequências, pois ele leva um coice e do coice fica
com um galo. De tantas artes feitas, ele foi parar na panela.

E o que será que o Pato virou?

Observamos que todas as ações do pato são engraçadas, pois são


incomuns, fazendo o leitor entrar no mundo da fantasia. Diante disso,
o(a) professor(a) como mediador(a), pode levar as crianças a pensar
em outras possibilidades fantásticas, mágicas que o pato poderia ter
feito, pois não cabe no nosso mundo um pato surrar, bater, criar um galo,
comer a fruta jenipapo.

ÊTA PATO LEVADO!

Neste momento, o professor pode apresentar o vídeo do poema


musicado, cantando com os alunos. Vai ser divertido!

Uma outra proposta de trabalho com poemas na sala de aula é


88 UNIUBE

apresentada por Resende (1993, p.150). Novamente, trazemos um texto


de José Paulo Paes:

Acidente

Atirei o pau no gato


mas o gato
não morreu
porque o pau pegou no rato
que eu tentei salvar do gato
e o rato
(que chato!)
Foi quem morreu...

Esse poema dialoga com a cantiga popular, Atirei o pau no gato,


desencadeando uma intertextualidade, ou seja, a relação de um texto
com outros.

Neste momento, a professora pode convidar os alunos para cantarem


a música.

Atirei o pau no gato

Atirei o pau no gato-to


Mas o gato-to não morreu-reu-reu
Dona Chica-ca adimirou-se-se
Do berro, do berro que o gato deu
Miau
Atirei o pau no gato-to
Mas o gato-to não morreu-reu-reu
Dona Chica-ca adimirou-se-se
UNIUBE 89

Do berro, do berro que o gato deu


Miau
Miau miau miau
Miau miau miau
Miau miau miau

Como sugestão apresentamos o site, que traz o poema cantado.:


https://www.ouvirmusica.com.br/cantigas-populares/983981/

Resende (1993) sugere que


após a leitura dos textos, a professora observa a reação
dos receptores. [...] Se as emoções dadas pelo texto
ganharem expressão em comentários, pode-se criar um
clima que faça aflorar espontaneamente a dimensão
profunda de cada um, enriquecendo-se a percepção
poética. (RESENDE 1993, p. 144).

Dessa forma, a criança, ao penetrar na magia do poema, faz surgir


diferentes imagens significativas, entrelaçando o que ela leu ou escutou
com a sua própria história de vida. Diferentes sentimentos podem surgir
como memórias do acalanto dos pais, avós ou tios na hora de dormir ou
brincadeiras nas férias. Esse é um momento especial para o pequeno
leitor exteriorizar emoções que poderão ser compartilhadas com a turma.
Para concluir este capítulo, apresentamos a análise literária do livro
infantil “Felizbrim um amiguinho cheio de luz” da escritora Mônica
Aparecida de Oliveira Cruz (2011). Esse livro é indicado para leitores
iniciantes, de 7 a 8 anos.
90 UNIUBE

3.7 Análise literária: Felizbrim, um amiguinho cheio de luz...

Nesta fase, o pensamento lógico da criança está se desenvolvendo, daí


a relevância de personagens reais, humanos ou imaginários, podendo
ser representados por animais, plantas, objetos. Também, nessa etapa,
as narrativas devem ser simples e estruturadas em introdução, conflito,
clímax e desfecho.

Vamos apresentar, na sequência, a análise do livro Felizbrim, um


amiguinho cheio de luz, que está disponível em Uberaba, Uniube (2011)
UNIUBE 91

Análise literária
Felizbrim, um amiguinho cheio de luz...

Mônica Aparecida de Oliveira Cruz

Analisar um texto é olhá-lo em sua profundidade, enxergando


detalhes que muitas vezes não são percebidos, numa leitura
mais corriqueira. Analisar seria uma forma de exercitar o olhar e
de tornar-se capaz de fazer leituras sempre mais plenas. Sendo
assim, convidamos você a refletir sobre os efeitos de sentido
produzidos no texto pela riqueza de detalhes e interação das
linguagens verbal e nãoverbal que se completam de forma
totalmente harmoniosa e, também por isso, conferem à obra
valor artístico. Por isso, propomos a análise literária deste livro.
Esperamos que ela seja útil e prazerosa para você!

A análise de um livro de literatura infantil deve começar


sempre pela capa do livro. No caso do nosso livro, vemos
que a leitura da capa antecipa algumas informações sobre
o conteúdo da história, mas, ao mesmo tempo, instaura
um suspense: Quem será Felizbrim? Não há na ilustração
nenhum dado explícito que nos permita reconhecer,
inicialmente, quem é esse personagem sobre o qual a
história vai tratar. No entanto, vemos que saem raios de luz
da caixinha de fósforos. Temos também a presença de um
garoto que olha fixamente a caixinha.

A parte escrita nos fornece importantes pistas, observe a


letra maiúscula, por ela é possível inferir que Felizbrim é
um nome próprio. “Será um apelido?”, pois Felizbrim não
é um nome convencional, como os que conhecemos para
nomear pessoas. Possivelmente, não seria o nome do
garoto. Então, Felizbrim será o nome de um animal? De
um amigo imaginário? De um objeto? Ou de um brinquedo?
92 UNIUBE

Outra informação precisa é a de que é alguém do sexo


masculino “um amiguinho”. O artigo indefinido “um”
colabora para a imprecisão da identificação: um amiguinho
entre outros. O diminutivo pode ter sido usado para mostrar
o tamanho do amigo, ele pode ser pequenino em relação
aos demais, e, ainda, a expressão pode também conotar
afetividade, alguém por quem se tem carinho. As duas
leituras são possíveis e somente com a leitura das próximas
páginas é que o impasse poderá ser resolvido. Também, a
qualificação do amiguinho, que vem na sequência, permite
identificar que se trata de algo ou alguém diferente entre
os demais: cheio de luz, iluminado. Assim, a ilustração
da caixa com os raios de luz contribui para aumentar o
suspense criado em torno do personagem e do seu nome.
O que está dentro da caixa? Por que solta luz? Será um
brinquedo eletrônico? O que tem a ver o nome com a luz?

Um dado também importante é que Felizbrim é amigo


de alguém. Quem o considera um amiguinho cheio de
luz? Quem é que apresenta Felizbrim para o leitor como
um amiguinho cheio de luz? Será o garoto que aparece
na ilustração? Essas são indagações que somente no
transcurso da leitura serão esclarecidas.

Temos, assim, algumas informações em destaque. Na parte


verbal, o destaque é para a palavra Felizbrim, que ocupa
um espaço maior, grafada em cor diferente, contornada
pela cor dourada, circundada de estrelas. Todos esses
dados nos permitem inferir que se trata do elemento central
da narrativa. Por outro lado, na parte não verbal, temos o
destaque, em primeiro plano, para a caixa com raios de luz,
o que nos leva a supor que o amiguinho cheio de luz esteja
dentro da caixa. Num segundo plano, mais ao fundo, há o
garoto que se mostra deslumbrado diante da luminosidade
que sai da caixa de fósforos.
UNIUBE 93

Nesse sentido, pelas informações contidas na capa do livro, inferimos a


presença de alguns personagens que farão parte da história: o primeiro,
Felizbrim; o segundo, alguém que o considera seu amigo; e o terceiro, o
menino de olhar deslumbrado. Além disso, identificamos que a história
terá como tema central a amizade.

Na página 5, vemos o garoto da capa do livro e, sobre ele, aparecem


alguns dados novos como, por exemplo, o nome Leo, supostamente
a forma simplificada do nome Leonardo, um garoto que brinca com os
amigos na rua depois da escola.

A ilustração confirma o texto verbal, mostrando a indicação temporal


“Todas as tardes”. Veja que a luz nos remete à projeção dos últimos raios
solares. Esses contornam a frente do corpo de Leo, bem como colorem
as nuvens ao fundo e o corpo dos meninos. Entendemos isso, também,
por causa da paisagem mais escura ao fundo, sinal de que a noite se
aproxima.

Com relação ao local onde os fatos se passam, a ilustração complementa


o texto verbal, pois permite identificar a rua como sendo uma rua central
de uma cidade interiorana. Tais referências são recuperadas pelas
construções da igreja e das casas, na maioria, construções simples,
diferentes das construções dos grandes centros urbanos onde há
modernos e gigantescos edifícios. Além disso, não há, na rua, a presença
de carros, por isso, percebemos que brincar na rua não traz nenhum tipo
de perigo aparente, fato só evidenciado em pequenas cidades.

A partir da sexta e sétima páginas, aparece um novo personagem, um vaga-


-lume pequenino e brilhante, que desvia a atenção de Leo do futebol com
os amigos e passa a ser o centro das atenções do garoto. Esse fato só
pode ser percebido, porque a noite chega e a luz do vaga-lume atrai o
menino.

Nesse momento, a leitura, tanto do texto verbal, quanto da ilustração, traz


indícios que permitem recuperar as informações contidas na capa. Vimos,
94 UNIUBE

na capa, a caixa que aparece agora, na ilustração da


sétima página, na mão do menino e, também, no texto da
sexta página, “caixinha”. Já a palavra “amiguinho”, no título
da capa, relaciona-se com a expressão “pequenininho” da
sexta página, um diminutivo triplo para mostrar o tamanho do
bichinho; e a expressão “cheio de luz” da capa relaciona-se
com a expressão “o mais brilhante”.

No entanto, é apresentada uma nova qualificação para


o vaga-lume, “mas também era o mais esperto”, fato que
dificultava ao garoto pegá-lo, como é confirmado na passagem:
“Com muito custo, Leo conseguiu pegá-lo”. Ainda nessa parte
da história, temos três superlativos indicando qualidades em
grau muito elevado e intenso pelo uso do advérbio “mais”,
“mais pequenininho”, “mais brilhante”, “mais esperto”, ou seja,
qualidades que o tornavam diferente dos demais, por isso, atraía
tanto o menino.

Portanto, podemos inferir que Felizbrim, o amiguinho cheio de


luz, é o vaga-lume. Mas, amiguinho de quem? Do Leo que o
quer colocar em uma caixinha? A pergunta sem resposta “Certo,
amiguinho?”, no final do texto da página 8, leva-nos a supor uma
falta de cumplicidade entre ambos. E, ainda, podemos pensar:
“Por que Leo quer guardar e proteger o vaga-lume?”; “De quais
perigos?”; “Por que será que Leo queria proteger o amigo?”

Da página 8 em diante, o cenário muda da rua para a casa de Leo,


ou melhor, para o quarto do garoto. Por meio da leitura da imagem,
vemos um contraste, pois enquanto Leo está descalço, mais à
vontade e totalmente deslumbrado com o brilho do vaga-lume, o
mesmo não acontece com o bichinho. Felizbrim voa de um lado para
o outro, sem saber onde está, quem sabe tentando encontrar a saída
daquele local. A postura atenta e deslumbrada de Leo revela que sua
atitude em colocar o vaga-lume na caixa não sugere maldade e, sim,
apenas uma curiosidade infantil.
UNIUBE 95

Ainda nessa mesma página, fica evidente que Felizbrim é o nome do


vaga-lume e o porquê do nome, ou seja, o que ele significa: Feliz-, porque
ele é alegre; -bri, de brilhante e o -im, uma espécie de diminutivo, para
dar a ideia da pequenez do bichinho. Talvez se ele fosse brilhante e
grande, o seu nome fosse Felizbrilhão,
feliz, brilhante e um bicho grande. E,
ainda, pelos dizeres de Felizbrim em Hipérbole
“um brilho sem fim” percebemos o É o recurso linguístico utilizado
exagero (hipérbole) na intensidade para expressar o exagero de
e na duração do brilho do vaga-lume, uma ideia.
duração também prolongada pelo uso Ex.: “um brilho sem fim.”
das reticências, na página 8.

Na ilustração, vemos a confirmação do texto verbal, uma vez que


percebemos o brilho de Felizbrim refletido no rosto de Leo, bem como
contornando o seu corpo. A luz de Felizbrim é percebida, inclusive, por
meio do contraste, formado pela sombra e pelo reflexo da luz em todo
o quarto. É importante fazer a
leitura do contraste de cores,
Animismo
pois por meio do uso desse
recurso é que se evidencia a É uma característica da criança,
origem e a projeção da luz, constatada pelo biólogo Jean Piaget
que estudou profundamente a
confirmando o texto verbal. inteligência infantil. Segundo ele, o
animismo é o fato de a criança, em
No momento em que o um período de seu desenvolvimento,
menino conversa com o atribuir a seres inanimados,
características e personalidade de
vaga-lume, observamos seres animados. Essa característica
uma das características da vai atenuando progressivamente
narrativa para crianças, o na medida em que a criança se
animismo, a personificação desenvolve.
de animais tão presente nas Personificação ou prosopopeia
fábulas. Isso corrobora para
a maior compreensão dos É a figura de linguagem que
consiste em atribuir ações e
fatos. sentimentos humanos a seres
inanimados.
A personificação envolve
o leitor no universo do faz
de conta, distante do formalismo científico; ela instaura um
universo atemporal e mágico à Literatura, contribuindo para a
veracidade da ficção, onde tudo é possível.
96 UNIUBE

Ainda pelas ilustrações, quando é noite, Leo fica no quarto,


logo a brincadeira na rua com os amigos deixou de ser o
mais importante. Pela fala de Leo, esse fato é confirmado
“De agora em diante, você será meu melhor amigo” (página
8). Então, todos os demais amigos ficarão em segundo
plano.

Metonímia
Além da personificação,
outros recursos de lingua- Consiste na substituição
gem são usados na página de uma palavra por outra,
baseada na relação que
9, observe: “Quando o existe entre ambas.
silêncio tomou conta da
noite, a casa, a rua, a cidade Ex.: “[...] suas mãos mais que
depressa abriram a vidraça
dormiam...”, temos nesse
[...]” Troca do todo “menino”
fragmento a metonímia, pela parte “suas mãos”.
pois em vez de dizer que as
Gradação
pessoas dormiam, usa-se
a casa, a rua e a cidade. E, Progressão de ideias
em ordem crescente ou
ainda, uma gradação em decrescente.
ordem crescente, ou seja,
do elemento menor “casa”, para o elemento maior “cidade”.
Esses recursos, juntamente com o uso das reticências,
contribuem para generalizar e intensificar o estado de
repouso (dormir) das pessoas que habitam esses locais.

Pela imagem da página 9, a expressão de deleite e desejo


estampada no rosto de Felizbrim, colado na vidraça, faz-nos
imaginar o que ele estaria vendo. Por sabermos que esses
bichinhos têm hábitos noturnos, logo pensamos que
Felizbrim, supostamente, observa os vaga-lumes que estão
acordados, voando lá fora, em silêncio, uma vez que não
produzem barulho, só voam e irradiam luz e brilho.

A imagem inferida, pelo leitor, sobre os vaga-lumes acordados


e em movimento, contrasta com a imagem, também inferida
pelo leitor, das pessoas dormindo. E, ainda, o contraste da
UNIUBE 97

escuridão da noite e da luz dos vaga-lumes produz um efeito


importante para a construção do sentido. Tais constrastes
provocam no leitor a percepção da diversidade de modos
de vida dos seres vivos. O fato de Felizbrim estar dentro do
quarto e não junto com os outros vaga-lumes, demonstra o
sentimento de isolamento, de solidão e de tristeza vivido pelo
bichinho.

Nas páginas 10 e 11, temos, novamente, a indicação do tempo


que ajuda a construir a sequência da narrativa, podendo ser
observada tanto pelo texto verbal quanto pela ilustração.

Nesse sentido, na página 10, a luz intensa do sol que entra


pela vidraça, leva-nos a supor que Felizbrim, preso na
caixinha, esteja desinquieto, querendo sair lá de dentro. Os
sinais que saem da caixa não são raios de luz, e sim recursos
gráficos que sugerem que ele esteja se debatendo, querendo
sair de lá. A palavra “preso”, no texto, também reafirma essa
ideia, uma vez que estar preso não é um ato voluntário, portanto,
quando alguém está preso, o seu desejo é o de ficar livre.

A imagem do sol entrando pela vidraça também nos remete ao


clichê de “ver o sol nascer quadrado pelas grades da prisão”.
Embora não haja grades na vidraça, o fato de Felizbrim estar
querendo sair da caixa pode estar ligado tanto à ideia de
liberdade quanto ao calor provocado pela intensidade dos raios
do sol que esteja tornando a prisão mais insuportável ainda
para o vaga-lume.

A imagem da página 11, ao contrário da página do lado, mostra


que tanto Felizbrim quanto Leo se divertem dentro do quarto.
E, mais, os brinquedos e o livro em cima da cama evidenciam
a atenção dispensada pelo garoto ao animalzinho. Indícios que
colaboram para a compreensão da alegria de Felizbrim, que
voa livremente pelo quarto e é o centro da atenção do garoto.
98 UNIUBE

Assim, temos outro recurso Antítese


de linguagem importante – a
antítese –, que nos permite Recurso linguístico usado
para aproximar palavras
novamente analisar os contras-
e expressões de sentido
tes: o dia para o vaga-lume opostos.
era prisão, treva, calor, preso
dentro da caixa; entretanto, de Ex.: dia e noite; trevas e
luz; prisão e liberdade.
noite, quando tudo, normal-
mente, é escuro para os
outros, para o bichinho era luz, liberdade, era quando ele
podia sair da caixa e voar pelo quarto. Com os verbos no
gerúndio, “ziguezagueando e iluminando”, percebemos a
duração contínua do voo e do brilho do vaga-lume. Então,
com a ilustração, podemos entender esse voo como uma
brincadeira que traz satisfação para o garoto e sensação
de liberdade para Felizbrim.

Nas próximas páginas, o garoto sente necessidade de


mostrar seu amigo a todos os meninos. Essa atitude e o
uso das expressões “exibia”, “ninguém tem um amiguinho
como eu” revelam um comportamento de superioridade
de Leo em relação aos colegas. Também é importante
observar a diferença de sentido entre “amigo” e “colegas”,
pois Felizbrim era para Leo “seu amigo”, isto é, único. A
ideia de posse está contida no pronome possessivo “seu”,
Felizbrim fora escolhido entre “todos” e, nesse caso, o
pronome indefinido “todos” revela a condição dos outros
de serem apenas colegas de Leo. Essas afirmações
também são recuperadas pelo espaço externo em que
se encontravam ─ a escola, lugar onde convivemos com
colegas de sala de aula. Já Felizbrim é o amigo de um
espaço mais íntimo, reservado ao mundo particular do
personagem Leo.

Ainda, na página 13, a metáfora do amigo como


tesouro e a comparação com pedra preciosa
são chavões usados por muitas pessoas, porém
essas expressões vêm com uma carga nova de
significação, visto que o amigo que é tesouro está
UNIUBE 99

dentro de uma caixa, bem guardado Metáfora


e brilha como pedra preciosa.
Então, pela cor dourada do brilho Recurso linguístico que resulta
do vaga-lume, podemos associá-lo do emprego de uma palavra
a uma joia e a caixa, onde guarda com sentido diferente do que lhe
o vaga-lume, poderia ser associada é próprio, por semelhança ou
comparação entre dois termos.
a um porta-joias. Acontece que
crianças não são ligadas a joias Ex.: “Ele é o meu tesouro.”
e, talvez, esse brilho, para o
garoto, lembre mais um brinquedo, Comparação
desses modernos, cheio de luzes Como o próprio nome diz, é
e fluorescências que tanto atraem uma comparação explícita entre
o público infantil. É interessante termos com os quais se deseja
estabelecer semelhança, para
também observar a grande tornar mais clara uma ideia.
quantidade de exclamações que
revelam o quanto o garoto estava Ex.: “brilha como uma pedra
preciosa!!!”
deslumbrado com o novo amigo e
com o brilho que dele irradiava.

A ilustração formada pelas páginas 12 e 13 nos remete a vários aspectos.


Pela ilustração, no fundo temos a escola cercada por tábuas baixas, bem
diferente das construções modernas das escolas, cercadas por enormes
muros. Dessa forma, fica clara a referência a um tempo passado, quando
não havia a ameaça dos perigos que hoje existem. Outra referência
ao passado é a bandeira do Brasil hasteada, que nos faz recordar os
momentos cívicos que aconteciam sempre antes do início das aulas,
quando os alunos enfileirados cantavam o Hino Nacional e hasteavam
a bandeira.

Mas, se por um lado, a imagem nos leva a um tempo diferente, ela


também remete a algo atemporal: a curiosidade e o entusiasmo infantil.
Estes são evidenciados nos olhares dos garotos e de Leo, que possuem
algo em comum, direcionam-nos para um mesmo foco – a caixa – que
Leo segura nas mãos. Os garotos, mais próximos, ao seu redor, parecem
deslumbrados, inclusive mais que Leo; os mais distantes se ajeitam na
expectativa de verem a novidade.
100 UNIUBE

A partir da página 14, vemos que o garoto cansou de só


brincar com o vaga-lume. Sentindo falta de seus amigos,
voltou a ficar com eles. Uma percepção inconsciente de
que o animalzinho não preenche suas carências. A vidraça,
agora, permite-nos ver o mundo lá fora mais amplo e todos se
divertindo, menos o Felizbrim, que do lado de dentro do quarto,
observa tudo sozinho, por isso, a expressão “coitadinho”. Pela
expressão temporal “Os dias foram passando...”, seguida por
reticências, percebe-se a exaustão em que se encontra o
vaga-lume, evidência também comprovada pela postura do
bichinho, anteninhas, braços e asas caídas. Além disso, a
expressão fisionômica de tristeza e até uma lágrima rolando
de seus olhos. O garoto, indiferente a tudo isso, continua se
divertindo cada vez mais e sem limites, já que deixou de ir à
escola para nadar com os amigos no riacho.

A ilustração da página 15 é bastante rica. Nesse momento,


certamente, a criança leitora, e os adultos também, deliciam-
se com a situação hilariante e com o prazer dos personagens.
A nudez de Leo, de certa forma, revela um despojamento de
censura e a ausência de preocupação que ele poderia ter naquele
momento. A alegria estampada nos rostos dos meninos, inclusive
na personificação do sol sorrindo, revela a cumplicidade e a alegria
de todos com aquele momento de descontração.

Assim, o drama de Felizbrim, na página 14, e a alegria de Leo, na


página 15, lado a lado, confrontam-se, tornam ainda mais díspares
as circunstâncias das experiências vividas pelos dois personagens.
Leo, nesses momentos, parecia se esquecer completamente do resto
do mundo, inclusive de Felizbrim.

Continuando a análise, nas páginas 16 e 17, é interessante notar


que a presença da família só aparece na imagem e na fala da mãe,
como repressora do erro do filho. A casa, até então, era espaço só das
relações do garoto com o vaga-lume. Esse é um dado que contribui para
mostrar a necessidade do garoto em ter um amigo em casa. Um indício
de que o garoto sente o vazio causado pela ausência da família, isto é,
carência afetiva.
UNIUBE 101

Isso concorre também para nos levar a supor que o garoto, embora
tenha muitos amigos na rua, sinta-se só em casa, devido à ausência das
relações familiares, porém, esse fato não justifica a atitude do garoto
prender o vaga-lume em seu quarto.

Voltando a analisar a figura da mãe, vemos que as expressões


fisionômicas, os braços cruzados, a postura arqueada são indícios
de alguém que está brava e quer acertar
contas. E mais, a fala marcada por letras
maiúsculas e em negrito revela a aspereza Ironia
da correção, a autoridade e a imponência
da voz. A ironia na fala – “BONITO HEIM, Palavra ou expressão
LEONARDO!” –, a sequência de frases que dá a entender, em
determinado contexto,
exclamativas, a frase imperativa, enfim, o contrário do que se
tudo isso demonstra, ao mesmo tempo, quer dizer.
censura, ordem, castigo. E, ainda mais,
quando a mãe o trata por Leonardo, desfaz-
se o vínculo afetivo de abreviação do nome próprio; geralmente, é
isso que acontece quando se quer mostrar a seriedade do que é
comunicado.

Na página 17, do lado de fora da casa, percebemos o sol se


pondo, por detrás de sombras que nos remetem à noite chegando.
Não mais personificado, sem olhos e sem sorriso, o sol, agora,
natural, parece ter perdido a cumplicidade com os meninos. Da
mesma forma, de volta à realidade, Leo esconde seu rosto entre
os cabelos, cabisbaixo, envergonhado ou amedrontado pelas
represálias da mãe.

Nas páginas seguintes, o garoto começa a sofrer com as


restrições do castigo imposto pela mãe e, então, ele mesmo
constrói o seu conhecimento acerca do que fez com o vaga-lume.
Leo experimenta o sofrimento de ficar preso no quarto, de não
poder conviver com os amigos e brincar livremente pela rua
como fazia.

Na página 18, a tristeza, tanto de Leo, como de Felizbrim, é


evidenciada. Entretanto, os dois, apesar de estarem no mesmo
quarto, sofrem sozinhos, não se solidarizam com a tristeza um
do outro. Apenas Felizbrim, sentado em sua caixinha, olha
para traz na tentativa de compreender a atitude de Leo que
lhe é indiferente. O balãozinho do pensamento de Leo e a sua
102 UNIUBE

postura de bruços, chorando, na cama, mostram como ele


está absorto em seu universo, sem se lembrar mais de
Felizbrim. A tristeza do bichinho também é evidenciada pela
pouca luz que emana e pelo desgaste físico do corpinho todo
caído, entregue às frustrações.

Na página 19, a expressão do rosto de Leo exprime tristeza


e surpresa por encontrar Felizbrim tão triste, também. As
cores escuras do quarto e a redução do campo da imagem
em relação a outras cenas também conferem à situação um
aspecto dramático.

Quando Leo consegue sair do seu mundo e enxergar


Felizbrim, ele se identifica com o bichinho tanto pela tristeza
quanto pela solidão. Pela ausência de luz do vaga-lume,
percebeu a tristeza, pelo olhar fixo nos outros vaga-lumes e
pelo choro, a solidão de seu amiguinho. Só, então, viu que
eles tinham algo em comum, pois seu amiguinho também
não estava feliz ali preso sem a convivência dos outros
vaga-lumes. São vários os elementos que comprovam
essa passagem: “não voava mais”, a falta de liberdade; “a
sua luzinha estava quase se apagando de tão fraquinha”,
a luz é como a expressão da vida, de alegria, as pessoas
alegres parece irradiarem luz;
“olhava fixamente pela vidraça”, o
desejo de estar lá fora com seus Sinestesia
amigos. E, ainda, a comparação
É a combinação de
dos vaga-lumes com bailarinos, sensações diferentes.
“dançando ao sabor da brisa
suave, colorindo com suas luzes a Ex.: sabor (paladar);
brisa suave (tato);
escuridão”, outro recurso importante
colorindo, luzes,
de linguagem, a sinestesia, a escuridão (visão).
mistura do sensorial contribui para
produzir o efeito de sentido do
prazer de ser livre e da alegria de viver.

Na página 20, Leo começa a refletir, observando tanto os


vaga-lumes quanto os seus amigos. No alto, os vaga-lumes;
embaixo, os seus amigos. Dois ângulos, dois tipos de seres,
no entanto, as mesmas sensações: liberdade e alegria. Ao
observar os outros, Leo compreende o que está acontecendo.
UNIUBE 103

A página 21 nos surpreende. Há uma explosão de cores.


O desenho é projetado como se o ponto de vista do leitor
estivesse no alto. O destaque é para as luzes e para a cara
de felicidade de Felizbrim que, desenhada em tamanho maior,
confere uma sensação de liberdade, rompendo o espaço em
busca de sua própria identidade de vaga-lume em seu habitat
natural.

No texto não verbal, vemos


Metonímia
que as mãos de Leo,
mais que ele próprio (uma Consiste na substituição
de uma palavra por outra,
metonímia), deram liberda- baseada na relação que existe
de ao vaga-lume. Pela fala entre ambas.
do menino, “nunca mais Ex.:“[...] suas mãos mais que
quero guardar um amigo depressa abriram a vidraça[...]”.
Troca do todo “menino” pela
assim”, o “guardar” já não parte “suas mãos”.
tem mais aquele sentido
da primeira vez em que foi
usado no texto. O primeiro guardar, pronunciado pelo garoto,
tinha o significado de proteção, já o usado no final do livro é
um “guardar” mais reflexivo, é o “guardar” de fechar, querer só
para si e esse Leo, mais amadurecido, não queria mais.

Nesse sentido, a postura de correção da mãe, em relação


à desobediência do filho, foi positiva, pois fez com que o
filho aprendesse com o erro a refletir sobre outros erros que
cometeu, movido por seus desejos e vontades que nem
sempre condizem com as vontades dos outros.

Na página 22, vemos uma semelhança entre os vaga-lumes


e as crianças. Ambos brincam, em perfeita harmonia. A noite
está linda e todos os elementos conspiram para comporem
aquele momento, pela singeleza da ilustração e pela leveza
dos personagens percebemos como as “coisas” simples da
vida trazem alegria aos corações. Tudo isso, marcado por
um enorme coração, tracejado pelo voo de liberdade do
vaga-lume.
104 UNIUBE

Nessa página, identificamos e entendemos, também, o


aprendizado do garoto Leo; a síntese de tudo o que as suas
atitudes foram capazes de fazê-lo compreender, o sentido da
verdadeira amizade.

Na página 23: “Felizbrins... amigos são luz...”, chamamos a


atenção para o traçado das letras, construídas a partir do voo
dos vaga-lumes, uma leitura que só se torna possível depois
de conhecer a história. Também fica claro que o título do livro
foi alterado, agora, há o plural no nome próprio e na palavra
amigos. Além disso, na ilustração, a quantidade de vaga-lumes
voando contribuem para mostrar o aprendizado de Leo em
relação à amizade. Por isso, o uso da palavra ‘luz’ e não ‘luzes’,
porque luzes remeteriam à ideia das luzes dos vaga-lumes, algo
concreto e, no caso, luz quer nos levar a pensar em luz como algo
abstrato, ou seja, a luz que irradia do nosso interior, a sensação
de que as amizades contribuem para nos tornar mais felizes, mais
cheios de luz, iluminados. Então, luz é símbolo de unificação,
nossas amizades formam uma luz intensa que dá brilho e alegria
às nossas vidas. E, para finalizar, a caixa aberta é sinal de liberdade,
mostrando que ser amigo não é ter a posse sobre o outro, mas ser
livre para conviver com todos.

Dessa forma, é bom lembrar que essa análise nos possibilitou


associar as ilustrações com o texto verbal, percebendo a sequência
narrativa pela indicação do tempo no texto, como também nas
ilustrações (posição do sol para indicar tarde, fim de tarde; a lua e
as estrelas, indicando a noite). Percebemos, ainda, a referência ao
espaço em que acontecem os fatos, identificado, principalmente, pela
ilustração como sendo de uma cidade interiorana; a caracterização dos
personagens, que não está explícita no texto verbal, mas subentendida
pelas atitudes e comportamentos dos personagens; o narrador que,
embora narre os fatos em terceira pessoa, faz uma análise psicológica
dos personagens, deixando transparecer o seu grau de envolvimento
com o que é narrado; e, por fim, o enredo, sem muitos conflitos, porém,
com carga significativa que envolve o leitor até as últimas páginas.
UNIUBE 105

Terminada a análise, gostaríamos de lembrar que esta é uma das


leituras possíveis do livro “Felizbrim, um amiguinho cheio de luz...”.
Porém, muitas outras leituras poderão se associar e/ou complementar
esta que aqui se apresenta, levando-se em conta vários fatores e
partindo do pressuposto de que cada leitor faz uma leitura mais
ampliada da mesma obra, cada vez em que ela é lida.

Assim sendo, esta análise tem como objetivo levá-lo a perceber


que uma leitura deve ser feita de forma simples, mas não
necessariamente simplista. Por isso, chamamos a atenção para
as relações estabelecidas entre as ilustrações e o texto verbal, e,
também, para as pistas, subentendidos, pressupostos e implícitos
que são marcas relevantes para a compreensão dos textos;
principalmente, para os recursos linguísticos como as figuras
de linguagem que contribuem de maneira significativa para a
construção dos efeitos de sentido produzidos. Esperamos que
com esta análise, você, educador, tenha um olhar mais cuidadoso
na escolha, seleção e mediação das estratégias de leitura das
obras literárias que serão oferecidas ou indicadas como leitura
para os seus alunos.

Dessa forma, suas aulas serão muito mais produtivas e


criativas, pode ter certeza! Nada é mais incitante que desvendar
e descobrir mistérios; faz parte do ser humano ser motivado
pelos desafios. Então, motive os seus alunos a buscarem os
sentidos inscritos nos textos!
106 UNIUBE

3.8 Conclusão
Apresentamos neste capítulo algumas possibilidades de intervenção
pedagógica a serem realizadas, pelo(a) professor(a), respeitando os
estágio psicológicos das crianças de modo a aproximar o leitor infantil
com a linguagem escrita e imagética, por meio do mundo imaginário que
a literatura, vista como arte, permite a esse leitor.

Dentre as reflexões feitas, salientamos que a Literatura Infantil insere-se


ao mesmo tempo como arte literária e ou arte ou pedagógica, justamente,
por entendermos que essas duas atitudes polares (literária e pedagógica)
conseguem equacionar os dois termos: “literatura para divertir, dar prazer,
emocionar...e, que, ao mesmo tempo, ensinar modos novos de ver o
mundo, de viver, pensar, reagir, criar...”(COELHO, 2002, p. 48).

Sugerimos que as ideias descritas no corpo deste capítulo sejam


apenas o início para uma contínua mudança na atuação docente e que
as premissas teóricas sejam a base para o desenvolvimento de uma
educação literária que prepare o leitor para o exercício da imaginação
numa aventura cognitiva, emocional, lúdica e criativa.

Referências

ABROMOVICH, Fanny. Literatura Infantil gostosuras e bobices. São Paulo:


Editora: Scipione, 1989.

ALVES, Ana Maria da Silva. A poesia infantil de José Paulo Paes em sala de
aula: uma proposta de leitura e abordagem do poema “convite”. Trabalho de
Conclusão de Curso. Universidade Estadual da Paraíba, 2015. Disponível em <http://
dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/bitstream/123456789/7845/1/PDF%20-20Ana%20
Maria%20da%20Silva%20Alves.pdf>. Acesso em: 18 jun. 2019.

BRASIL. BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR-BNCC-2018.


UNIUBE 107

CRUZ, Mônica Aparecida de Oliveira. Felizbrim Um amiguinho cheio de luz.


Uberaba. Universidade de Uberaba. 2011.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil. Teoria. Análise.


Didática. 7ª ed. Moderna. São Paulo, 2000.

COELHO, Nelly Novaes. Livro online. 2002. Disponível em: <https://www.


amazon.com.br/conto-fadas-S%C3%ADmbolos-mitos-aqu%C3%A9tipos-ebook/
dp/B00M0VF7XC/ref=dp_kinw_strp_exp_1_1>. Acesso em: 18 jun. 2019.

GIROTTO, Cyntia Graziella G. Simões, SOUZA, Renata Junqueira. (Org.).


Literatura e Educação Infantil. V.1. Campinas: Mercado de Letras, 2016.

KOIDE, Adriana Batista de Souza; TORTELLA, Jussara Cristina Barboza.


LITERATURA INFANTIL E EDUCAÇÃO: CONVERGÊNCIA OU
CAMINHO UNÍSSONO?. Revista Leia Escola, [S.l.], v. 16, n. 1, p. 72-81,
nov. 2016. ISSN 2358-5870. Disponível em: <http://revistas.ufcg.edu.
br/ch/index.php/Leia/article/view/645>. Acesso em: 12 jul. 2019.

MORAES, Vinícius. POESIA COMPLETA E PROSA. Volume Único.1981.

MORAES, Vinícius. Arca de Noé. São Paulo: Editora CIA das Letrinhas, 2004.

PARR, Todd. Tudo bem ser diferente. Editora Panda Books, 2000.

RESENDE, Vânia Maria. Vivências de leitura e expressão criadora.


São Paulo; Ed. Saraiva, 1993.

SANTOS, M. de M. Por um lugar para a literatura infantil/juvenil nos estudos


literários. Tese (Doutorado em Letras e Linguística).
Universidades Federal da Bahia: 2011.

Disponível em: https://www.portugues.com.br/literatura/diferencas-


entre-poesia-poema-soneto.html. Acesso em: 18 jun. 2019.
Capítulo
As múltiplas possibilidades
de leitura do livro FLICTS
4

Kátia Maria Capucci Fabri


Luciana Góis Barbos

Introdução
Neste capítulo, embasamos nossas discussões a partir de Coracine
(1995), de Resende (2013) e de Cascarelli (2007). Incialmente
trazemos três perspectivas do ato de ler, compreendendo que esse
ato ultrapassa a decodificação dos signos para alcançar a leitura no
discurso, ou seja, no contexto dos sujeitos que escrevem e leem,
envolvendo todos os acontecimentos históricos, sociais, culturais,
que cercam esses escritores e leitores.

Além disso, apresentamos a leitura literária como fonte de recriação


da realidade, capaz de transformar aqueles que leem no encontro
entre a magia e o difícil cotidiano, entre a ficção e a realidade.

Seguindo o plano deste capítulo, apresentamos uma análise crítica


do livro FLICTS, obra fundamental para a literaruta infantil no Brasil.
Conforme Resende (2013), esse livro possui um caráter inovador,
sendo um marco revolucionário, ousado na produção de livros para
crianças, apesar de encantar a todos os tipos de público.

Finalmente, trazemos uma análise do projeto gráfico, baseada nos


estudos de Cascarelli (2007). A autora afirma que tudo em FLICTS
há uma significação. A partir disso, observamos que as imagens não
estão afastadas das palavras, mas ambos os signos verbais e não
verbais controem a história, deixando o leitor perplexo, inconformado,
emocionado frente à luta de uma cor que personifica Flicts. Esse
personagem empenha-se bravamente para ocupar um espaço nas
110 UNIUBE

cartelas de cores tradicionais, na comunidade que o desaprova,


e esse fato deixa o seu cotidiano árduo, mas não impossível de
conquistas.

Esperamos que vocês entrem nesta viagem fantástica de FLICTS


com olhos livres para as inúmeras possibilidades que hoje a literatura
infantil traz para os seus leitores.

Encantem-se para encantar os seus alunos.

Objetivos
Ao final dos estudos deste capítulo, esperamos que você seja
capaz de:
• explicar a leitura como um ato de interação e de
transformação;
• especificar os tipos de leitura de acordo com os estudos
linguísticos;
• reconhecer a importância da leitura literária como fonte de
prazer;
• explicar a relevância do livro FLICTS e seu caráter inovador
para a literatura infantil;
• desenvolver a leitura crítica a partir de um texto com projeto
gráfico ousado;
• analisar o livro, observando as conexões entre a palavra
escrita e outros códigos não verbais.

Esquema
4.1 Reflexões sobre o ato de ler
4.2 A leitura literária: uma interação prazerosa
4.3 FLICTS: um livro inovador
4.4 O personagem Flicts e a idealização do real
4.5 Um breve olhar para as formas e as cores do livro FLICTS
4.6 Conclusão
UNIUBE 111

4.1 Reflexões sobre o ato de ler


Para iniciarmos este capítulo, consideramos fundamental compreender o
ato de ler como um processo que ultrapassa a decodificação dos signos
tanto verbais (palavras, frases..) como não verbais (imagens, desenhos,
gestos, fotografias...).

Um autor muito importante para nos ajudar a refletir acerca da leitura é


Paulo Freire. Para ele “a leitura do mundo precede a leitura da palavra,
daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da
leitura daquele.” (FREIRE, 2001, p. 11).

Essa concepção de Freire sobre a leitura


Texto
salienta que o ato de ler está intrinsicamente
Deve ser
relacionado ao mundo que cerca o leitor, ou seja, compreendido neste
todas as experiências do sujeito/leitor fazem capítulo como toda
unidade de sentido,
um movimento para interpretar um texto. Esse considerando as
suas condições de
movimento é repleto de vivências da infância, produção como: em
que tempo e lugar
das leituras do período escolar, das relações é escrito ou lido;
quais as intenções
familiares, do convívio com os amigos, da e objetivos de quem
travessia da adolescência até a vida adulta. produz ou lê. Todo
esse processo
Enfim, todo o percurso do sujeito leitor vai ocorre no momento
de interação
delinear as suas diferentes formas de ler. Isso (ORLANDI, 1988).

implica dizer que o texto está diretamente ligado


ao contexto, às suas condições de produção.

Assim, o que falamos, ouvimos, escrevemos, interpretamos tem por trás


um mundo que nos precede, nos rodeia, envolvendo todas as nossas
ações e, além disso, como diz Freire, esse mundo vai continuar nas
nossas posteriores leituras.

Martins (2012, p. 23) afirma que “ler é inteirar-se no mundo, sendo


também uma forma de conquistar autonomia, de deixar de ler pelos olhos
112 UNIUBE

de outrem.” Isso significa dizer que a leitura é fonte de libertação do


indíviduo. Ler pelos próprios olhos é passaporte para a autodeterminação
dos atos.

Com essas duas visões tanto de Freire quanto de Martins, podemos


afirmar que, ao propor leituras de livros infantis, o professor deve estar
ciente das escolhas de seu posicionamento como professor mediador, ou
seja, aquele professor responsável pelo processo do ato de ler em sala
de aula. Esse processo exige criatividade, dinamicidade, amorosidade
e, sobretudo, um professor leitor.

Para explicarmos melhor a respeito dos conceitos que abordam a leitura


e de como os estudos nesta área têm avançado, trazemos a seguir outra
estudiosa, Coracine (1995), que nos apresenta três perspectivas acerca
do ato de ler.

A autora expõe, inicialmente, a leitura a partir do ponto de vista


estruturalista, ou seja, o que importa no texto são: as formas organizadas
nas frases, a sequência linguística de signos, a estrutura dos parágrafos,
os sentidos literais das palavras etc.

Nessa visão, somente o produto textual é fonte de significado. Há uma


desconsideração com o que cerca este texto como o contexto, pois o
significado dele está “arraigado nas palavras e frases, na dependência
direta da forma.”(CORACINE, 1995, p. 13).

Para essa visão, basta decodificar, ou seja, identificar os signos para


que a leitura se realize. Vejamos a palavra casa, no ponto de vista
estruturalista, é suficiente decodificar a sequência linguística c+a+s+a
e compreender o sentido dicionarizado, literal como moradia, local de
habitação. Nessa concepção, não há o envolvimento dos sujeitos e de
suas experiências na produção da leitura.
UNIUBE 113

O ato de decodificar é importante, mas apenas ele não é satisfatório para


uma leitura eficaz. É preciso ir além desse ato mecânico. Essa forma de
trabalhar com leitura permaneceu (ou ainda tem permanecido) por muito
tempo em nossas escolas. Há nesse ato apenas estímulo e resposta, não
ultrapassando as sequências linguísticas nem percebendo as condições
de produção e as diversas possibilidades de significação, que envolvem
as sequências de uma frase, de um parágrafo, de um texto.

Além disso, já está claro, a partir dos estudos atuais, que ler não pode
estar conectado apenas a algo escrito, mas deve referir-se também
a todos os outros tipos de expressões que o ser humano é capaz de
realizar como a produção de imagens artísitcas, de gestos, de sinais
etc. A essa ideia acrescentamos que a produção dos textos está cercada
pelos acontecimentos históricos, sociais, culturais, que circundam o fazer
humano.

No avanço dos estudos sobre a leitura, Coracine (1995) apresenta uma


outra concepção, defendida pela psicologia cognitivista, que é a leitura
na perspectiva interativa. Nessa percepção, o leitor aciona, ou seja,
processa esquemas de instrução, que levam, com base no texto, à
produção de significados.

Diante de um texto verbal ou não verbal, o leitor constrói sentidos


seguindo as marcas textuais e fazendo as inferências. Essas marcas
que o autor vai deixando formam a arquitetura do texto. Por meio dela,
é possível levantar hipóteses, construir antecipações e até chegar a
conclusões à medida que esse leitor percorre o material lido.

Para compreender melhor essas duas perspectivas, vamos analisar o


início da obra de Ziraldo, O Menino Maluquinho,lançado em 1980, que
encontra-se on-line, no site do escritor. Vale a pena entrar nesse link e ler
também outras obras do autor. http://www.ziraldo.com/menino/mm13.htm
114 UNIUBE

Para as nossas reflexões, a referência é Pinto, Ziraldo Alves, São Paulo:


Melhoramentos, 1982.

Vamos iniciar a análise pela capa. Nela há o personagem principal


vestido de adulto com uma panela na cabeça, apontando a sabedoria do
pai, do avô, dos tios e a peraltice da criança, por meio das brincadeiras,
do faz de conta.

Partindo do título, o leitor já tem uma ideia do personagem do livro:


um menino maluquinho. Mas como será esse menino? O que é ser
maluquinho?

Assim, pelas pistas apontadas por Ziraldo, o que é possível inferir,


concluir da sequência da história?

Vejamos:

Na página 7 (Pinto, 1982), o autor inicia a obra com uma expressão


própria dos contos de fadas, indicando que a história a ser contada faz
parte do mundo imaginário. É como se ele dissese: “prepare-se, leitor,
que a história já vai começar! Imagine! Sonhe! ”

“Era uma vez um menino maluquinho” (PINTO, 1982, p.7)

Nessa sequência linguística, Ziraldo nos apresenta o protagonista da


história, o menino maluquinho, que pelas ilustrações, o leitor inicia as
suas inferências, isto é, ele fará a leitura de uma história sobre um
menino sapeca, levado, travesso, esperto...

Na página 8 do livro, decodificamos a frase:

“Ele tinha o olho maior que a barriga” (PINTO, 1982, p. 8)


UNIUBE 115

Será suficiente apenas decodificá-la para uma leitura eficaz,


interpretativa? Já sabemos que não, porque a leitura significativa
envolve, além dos signos linguísticos, as ilustrações que constroem
simultaneamente o texto. Também, há os conhecimentos que precedem
a leitura do leitor, como afirma Freire (19910 e que vão mobilizar outros
diante da história lida.

Assim, Ziraldo ilustra com a figura de um menino, que tem um olho


grande no lugar da cabeça. Esse olho é maior que a barriga. Essa frase
tem origem nos ditados populares, que significa ser muito guloso, comer
em excesso. Temos então mais uma característica inicial do menino que
é maluquinho e esfomeado.

Para além do texto, poderíamos contemplar ideias como: desejos de


comer muito, de brincar, de divertir-se, de conhecer o mundo...

Continuando a leitura:

“tinha fogo no rabo”

“ tinha vento nos pés “

“umas pernas enormes (que davam para abraçar o mundo)”

“e macaquinhos no sótão (embora nem soubesse Sótão


o que significava macaquinho no sótão) (PINTO, Compartimento de
uma casa situado
1982, p. 9, 10 , 11, 12). entre o forro e a
armação do telhado.

Na ilustração da página 9, há um menino com um fogo desenhado atrás


do seu corpo, já na página 10, esse menino corre velozmente, com os
116 UNIUBE

cabelos voando e na página 11, Ziraldo desenha um menino com braços


abertos e pernas muito longas, cabendo entre elas um globo terrestre.
Essas descrições nos levam a identificar o menino maluquinho como
uma criança inquieta, agitada, que não conseguia ficar parado, que voava
como pássaros, que corria como um avião a jato e que queria conquistar
o mundo, aproveitando todas as experiências que uma criança tem a
possibilidade de viver. Dessa forma, as imagens nos ajudam a delinear
a figura do personagem, identificando essas características coerentes
com o título do livro.

Na página 12, o autor apresenta o menino maluquinho com uma cabeça


bem grande e diversos desenhos de alegres macaquinhos, saindo de
sua cabeça.

Quantas ideias interessantes esse menino maluquinho tinha!

Quais eram elas? Que brincadeiras ele queria inventar, participar, criar?
E na página 13, o autor ilustra com uma imagem que retoma as
anteriores, ou seja, um menino com olho grande, macaquinhos no sótão,
fogo no rabo e pernas longas e diz:

“Ele era um menino impossível!” (PINTO, 1982, p. 13).

Observamos, então, que Ziraldo, ao fazer a junção de signos linguísticos


com imagens, como já abordamos, o autor expande o diálogo entre as
linguagens, conduzindo o leitor à definição do perfil do personagem.
Além disso, é possível projetar os sentidos da história, isto é, muitas
travessuras serão feitas pelo menino maluquinho, que é muito esperto
e tem mil ideias para tornar sua vida e a de seus amigos uma grande
diversão.
UNIUBE 117

Pelas pistas apontadas por Ziraldo, tanto por meio das palavras quanto
pelas imagens, o que pode-se inferir, concluir?

É possível reconhecer, segundo Resende (2013, p. 209), que “o ritmo


agitado do alegre e vibrante menino maluquinho combina com a narrativa
que transcorre movimentada e célere através da integração de palavras
e imagens.”

Assim, compreendemos a leitura interativa como aquela que ocorre com


base nas marcas do texto e nas informações armazenadas pelo leitor
durante as suas vivências como, por exemplo, entender as expressões
populares e identificar as características comportamentais das crianças
de cinco, seis anos, dentre outras.

Uma outra visão do ato de ler, apresentada por Coracine (1995), é a


leitura como processo discursivo, ou seja, não só os elementos que
fazem parte do texto devem ser considerados, mas também os que estão
fora dele.

Onde estão esses elementos?


Quais são eles?

Esses elementos estão na situação, no contexto, nas condições de


produção de quem elabora o texto e também daquele que vai lê-lo, ou
seja, são as histórias já lidas, ouvidas e contadas pelos pais, avós, tios,
professores, amigos, em situações alegres ou sofridas e vivenciadas
pelos leitores e, ainda, são as suas experiências partilhadas. Enfim,
tudo o que precede a leitura, como diz Freire (1991), tem continuidade
nas histórias que estão sendo lidas e, também, nas próximas que virão.

Nessa linha de pensamento, defende-se que o leitor deve ter uma


posição ativa diante do texto, percebendo o que está subentendido,
implícito, isto é, o que não é revelado claramente, mas apena sugerido.
118 UNIUBE

Dessa forma, esse leitor ativo deve acionar inferências. Segundo Abaurre
e Pontara (1999, p. 76): “inferir algo pode ser definido como um processo
de raciocínio segundo o qual se conclui alguma coisa a partir de outra
já conhecida.”

EXPLICANDO MELHOR

Para processar as ideias e chegar a uma conclusão, exige-se do leitor a


ativação de suas leituras anteriores e de vivências experimentadas. Por
exemplo, na história do menino maluquinho, é necessário conhecer os
significados das expressões populares usadas por Ziraldo, para construir
a imagem desse personagem, inclusive, como leitor se identificando
com o protagonista da história ou não. Além disso, é preciso relacionar
as travessuras que o protagonista irá fazer com as características das
crianças dessa faixa etária, que, normalmente, são curiosas, interessadas
por novidades, ativas, com habilidades de linguagens, interativas etc.

Observe que estamos retomando a concepção de leitura interativa, que


ocorre por meio das pistas deixadas pelo autor e, somando a ela, a visão
discursiva. Assim, cada leitor vai elaborar o enredo da história conforme
seu desenvolvimento intelectual, suas experiências imaginativas, seu
convívio com livros, suas lembranças de histórias ouvidas. Diante disso, a
presença de um professor mediador dinâmico, criativo, inovador e, acima
de tudo, leitor é fundamental.

Reforçando as ideias!

Queremos deixar claro, neste capítulo, que as duas primeiras


perspectivas sobre a leitura são muito importantes para se chegar
na leitura discursiva. Essa concepção de leitura exige além da
decodificação e da interação, a capacidade do leitor em buscar nas
condições de produção textual (que está no contexto) uma compreensão
que envolva conhecimentos históricos, sociais, culturais, dentre outros.
UNIUBE 119

A seguir fazemos uma sucinta apresentação acerca da leitura literária.

4.2 A leitura literária: uma interação prazerosa

As linguagens não podem ser tomadas somente como forma de


comunicação, de informação, é preciso ampliar a visão para enxergá-
las como fonte de inspiração, encantamento, magia.

Dentre as linguagens do nosso dia a dia, nos primeiros anos de vida,


incluindo a vida escolar, temos a leitura literária, que é de fundamental
importância para o desenvolvimento da criatividade nessa fase da
infância.

A leitura literária, diz Graça Paulino, no Glossário CEALE, ocorre


quando a ação do leitor constitui predominantemente
uma prática cultural de natureza artística,
estabelecendo com o texto lido uma interação
prazerosa [...] O pacto entre leitor e texto inclui,
necessariamente, a dimensão imaginária, em que se
destaca a linguagem.
http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale
Acesso em: 19 de maio de 2019

O Programa Curricular Nacional –PCNs (Brasil, 1997) apresenta


diferentes formas de ler textos, por exemplo, textos que podem ser
lidos por partes, buscando somente informações, lidos rapidamente
ou vagarosamente. Leituras para interpretação, para apreensão de
conteúdo, enfim, para diferentes objetivos. Entre elas, temos a leitura
do texto literário, que deve necessariamente fazer parte do processo de
desenvolvimento criativo da criança.

Nessa perspectiva, Zilberman (1984) reflete sobre a literatura de ficção,


afirmando que na sua globalidade deve deflagrar uma experiência ampla
de leitura e, por consequência, sua presença na escola deve promover
transformações “radicais que, por isto mesmo, lhe são imprescindíveis.
” (ZILBERMAN, 1984, p. 222).
120 UNIUBE

Para que essa experiência mágica, encantadora do livro de literatura


infantil ocorra na sala de aula, é fundamental que o professor mediador
assuma a posição de um profissional facilitador e ao mesmo tempo
incentivador, provocador de leituras literárias como fonte de crescimento
cognitivo, cultural, artístico do aluno.

Diante isso, é necessário que esse professor se prepare para atuar com
seus alunos, e essa atuação exige conhecimento amplo de pesquisas
na área da leitura, de estudos que envolvam análises críticas de obras
infantis e, acima de tudo, muita leitura de livros infantis. E esse é um dos
objetivos deste livro de apoio, apontar para o professor possibilidades
de leituras de textos verbais e não verbais, dentro do território literário.

Assim, apresentamos, na sequência deste capítulo, análises e reflexões a


respeito do livro FLICTS de Ziraldo, que tem um projeto gráfico inovador,
uma história encantadora, inaugurando uma literatura surpreendente,
voltada para crianças, mas também muito apreciada pelos adolescente
e adultos.

4.3 FLICTS: um livro inovador

Sabe-se que desde o início do século XX, importantes representantes


brasileiros contribuíram para o desenvolvimento da literatura infantil em
nosso país, entre eles, temos o nome de Monteiro Lobato.

Entretanto, foi a partir dos anos de 1970 que surgiram mudanças


significativas, com programas públicos e privados, voltados para a
literatura infantil e juvenil e desenvolvidos nas escolas, defendendo a
difusão da leitura literária.

Um nome relevante nesse período foi o de Ziraldo. Nos anos de 60/70, o


escritor inaugura a transição entre uma literatura de cunho informativo e
UNIUBE 121

formativo com o livro Menino Maluquinho e publica FLICTS, um marco


na literatura infantojuvenil brasileira, pelo seu caráter arrojado.

SAIBA MAIS

Conhecendo Ziraldo

Ziraldo Alves Pinto nasceu no dia 24 de outubro de 1932 em Caratinga,


Minas Gerais. Começou sua carreira nos anos de 1950 em jornais e
revistas. Além de pintor e escritor, é também cartazista, jornalista, chargista,
caricaturista...

Ele ficou famoso nos anos de 1960 com o lançamento da primeira revista
brasileira em quadrinhos: “A Turma do Pererê”. Em 1969, publicou seu
primeiro livro infantil, FLICTS, a história de uma cor que não encontrava
seu lugar no mundo. Nesse livro, ele usou o máximo de cores e o mínimo de
palavras e conquistou fãs no mundo todo. A partir de 1979 concentrou-se na
produção de livros para crianças. Sua lista de títulos é enorme, vamos citar
alguns: O menino maluquinho, O planeta lilás, O bichinho da maçã, Coleção
ABZ, Vovó Delícia, Menina nina, O menino mais bonito do mundo, O Joelho
Juvenal, Os dez amigos, entre muitos outros.
http://www.ziraldo.com/livros/home.htm. Acesso em 31 de mar.2019.

Conheça mais sobre Ziraldo e sua obra no site citado acima.

Ziraldo, no livro FLICTS, fez uma grande inovação, elaborando um novo


projeto gráfico, com o uso de cores, ilustrações viabilizando, assim,
uma conexão intensa entre os recursos imagéticos e o texto verbal, as
palavras, os signos linguísticos.

Este livro, além de ser um marco revolucionário na literatura infantil, pela


sua beleza, ludicidade, criatividade, apresenta possibilidades inúmeras
de leituras críticas, tecidas ao longo da obra.
122 UNIUBE

Resende (2013, p. 27) afirma que FLICTS “surpreendeu pelo ineditismo”,


movimentando um público enorme pelo o que a obra trouxe, por meio
do “impacto cromático, da exploração inovadora da palavra no espaço
gráfico, de ampliação da linguagem.”

Nessa obra, o leitor não só se encanta com a novidade do que lê e


vivencia como, também, pode acionar todas as suas experiências de
vida e as suas leituras anteriores, fazendo emergir uma pluralidade de
interpretações.

Então perguntamos:

Por que FLICTS leva o leitor a produzir uma leitura crítica e


lúdica simultaneamente?
Conforme Resende (2013, p. 21), Ziraldo fez uma ruptura com os
livros infantis, anteriormente editados, que tinham um cunho formativo,
moralista. Ao lançar FLICTS, ele amplia o universo da linha editorial
infantil, trazendo uma “linguagem rica e simbólica, com grau redobrado
de polissemia”, ou seja, no diálogo entre signos linguísticos e imagens,
cores, formas, estabelece-se uma multiplicidade de leituras com inúmeros
sentidos. Cada leitor pode dar o tom colorido ou não para a história.
Assim, o livro solicita desse leitor um olhar que deve seguir um movimento
plurissignificativo do texto.

Essa obra de Ziraldo é composta de linguagem verbal e não verbal,


sendo que essas linguagens não apresentam leituras dicotômicas,
fragmentadas, pois elas formam um todo significativo. Ambas têm a
mesma importância. No livro, essa junção de palavras e imagens produz
encantamento, sedução no encontro do mundo interior e exterior do
personagem. Assim, ao mesmo tempo em que o leitor entra no jogo
lúdico do texto, ele também participa da trama discursiva, observando
os contrastes do cotidiano do personagem Flicts.
UNIUBE 123

Nesse viés, Resende (2013) afirma:


a linguagem de arte com poder múltiplo, polifônico,
desdobra-se na polissemia dos signos, que, enfeixados
no livro infantil, redobram a potencialização dos
sentidos. [...]. Sem rupturas com as raízes da memória
cultural, resvalando para o riso e a poesia, a obra de
Ziraldo contempla também o presente, as ocorrências
do cotidiano, o que há de inédito na simplicidade do
mundo.” (RESENDE, 2013, p. 39 e 40).

No livro não há desenhos figurativos, ou seja, que apenas representem


elementos da natureza, objetos, seres de ficção, animais ou seres
humanos. Isso porque a narrativa acontece por meio do diálogo
das linguagens, que circula, fazendo suceder naturalmente e de
forma harmônica o desenrolar dos acontecimentos. As imagens são
representadas pelas formas geométricas e pelas cores. Todo o conjunto
do texto é significativo, não havendo, portanto, signos decorativos.

Vamos à história

Como a narrativa do livro se desenvolve?

“Era uma vez uma cor.” (PINTO, 1989, p. 5).

Intertextualidade
Ziraldo, ao trazer os contos de fada, provocando
uma intertextualidade, traz também os clássicos É a relação que se
estabelece entre
da literatura infantil que encantaram e continuam textos, quando um
deles faz referência
encantando os leitores de todas as idades. Há a elementos
existentes no outro.
uma chamada para o universo fascinante da (ABAURRE e
PONTARA. 1999,
literatura. p. 79).

A narrativa continua:

“muito rara e muito triste


que se chamava Flicts.” (p.5)
124 UNIUBE

Com essa introdução, por meio do narrador, o leitor é apresentado ao


personagem protagonista, Flicts, cujo nome é o mesmo do título do
livro FLICTS. Além disso, esse leitor inicia a história já avisado sobre
os sentimentos desse personagem. Há uma projeção do que vai ser
contado. São pistas que o autor vai apresentado no momento de
interação entre a criança e o texto.

Uma cor rara e triste, porque não se harmoniza no universo dos chamados
“normais”. Vamos nos aprofundar, então, na jornada de um personagem
que luta pela busca de sua identidade. Essa luta é de extrema angústia,
pois é constituída de veredas repletas de desencontros. A posição do
narrador marca o embate entre Flicts e o seu em torno. Vejamos:

“não tinha a força do Vermelho”

“não tinha a imensa luz do Amarelo’

“nem a paz que tem o Azul”

“Era apenas o frágil e feio e aflito Flicts.” (PINTO, 1989, p. 7, 9, 10, 11).

Mesmo na fragilidade, no decorrer da história, Flicts aventurou-se na vida,


buscando parceiros, espaços, partilhas entre possíveis companheiros.
Observamos, também, que os nomes das cores podem representar
nomes próprios de pessoas, de objetos, de situações, pois elas são
grafadas em letra maiúscula.

Continuando a narrativa, percebemos a consciência tensa do


protagonista, pela voz do narrador, diante de um mundo que exclui o
diferente. Quem não pertence ao grupo dos semelhantes é desprezado,
rejeitado, e essa reflexão é comprovada pelo trecho a seguir:
UNIUBE 125

“Tudo no mundo tem cor


tudo é
Azul
Cor- de-rosa
ou furta-cor
é Vermelho ou
Amarelo
[...]
Mas
não existe no mundo
nada que seja Flicts.”( PINTO, 1989, p. 12).

Já na página 17, o personagem, pela primeira vez, teve voz, ao querer


participar das brincadeiras:

“Deixa eu ficar na berlinda?


Deixa eu ser o cabra-cega?
Deixa eu ser o cavalinho?
Deixa que eu fique no pique? ” (PINTO, 1989, p.170).

Entretanto, as respostas eram desconsoladoras:

“ ‘Sete é um número tão bonito’, disse o Vermelho vermelho


‘Não tem lugar para você’ disse o Laranja
‘Vai procurar um espelho’ disse o Amarelo.” (PINTO,1989, p. 20).

Mesmo assim, Flicts foi sobrevivendo à procura de seus semelhantes na


caixa de lápis de cor, no arco-íris, nas cores das plantas de um jardim
florido na primavera.

Entretanto, mesmo diante das adversidades, ele persistiu e tomou uma


decisão: iria procurar trabalho. E, em um diálogo de humildade, ele disse:
126 UNIUBE

“Será que eu
não posso ter um cantinho
ou em uma faixa
em um escudo
ou em brasão
em bandeira ou estandarte?”(PINTO, 1989 p. 24).

E apesar do doloroso e lamentável NÃO,

“’Não há vagas’ falou o Azul

‘Não há vagas’ sussurrou o Branco

‘Não há vagas’ berrou o Vermelho” (PINTO, 1989 p. 25),

Flicts continuou insistindo. Ele não se entregou ao fracasso e determinado


resolveu viajar para as terras mais distantes, mais bonitas, mais antigas,
mais jovens. Para cada lugar que Flicts foi, Ziraldo ilustra com as
bandeiras dos países. Nessa passagem da história, está presente um
cotidiano árduo do personagem no enfrentamento de situações adversas,
vivenciadas por ele e que, também, podem ocorrer no dia a dia dos
leitores, por meio de outras experiências.

Para que essa leitura seja feita, é necessário compreender as condições


de produção do autor. Ziraldo vivia momentos de apreensão, nas
décadas de 70/80. Nessa época, vivemos um período histórico/político,
no Brasil, sob o regime militar, com censura ao que era adverso aos
preceitos desse regime, ou seja, havia perseguição política, fechamento
da imprensa, repressão, ausência da democracia. Diante disso, havia
um desejo, principalmente, por parte dos artistas, de criar, de produzir
metáforas, de usar a linguagem literária para despertar consciências, e
a literatura foi e, ainda, é um grande recurso para dar voz aos que são
impedidos de pertencimento em diversos grupos.
UNIUBE 127

Essa situação histórica é uma das possibilidades de fazermos a


intertextualidade com a criação de Flicts.

O protagonista no decorrer da narrativa, depara-se com inúmeros


obstáculos, mas mantém-se constante na busca de ressonâncias na
sociedade. Quanto a essa questão Resende reflete (2013, p. 84): “o
discurso de Ziraldo arma contradições que lhe dão densidade crítica;
conserva as ambivalências, não compactuando com modos conformistas
de estar no mundo.”

O enfrentamento de Flicts revela uma posição firme para o que ele


objetiva da vida, ou seja, fazer parte de um mundo que descarta,
desaloja, fere aqueles marcados pelas diferenças.

E como continua a história?

Flicts, no embate contínuo de situações hostis, decide parar. Ao não


encontrar territórios, comunidades, grupos que possam ampará-lo,
reconhecê-lo como igual aos outros, ele se cansa. Nas páginas 36, 37 e
38, Ziraldo (1989) coloca:

“UM DIA FLICTS PAROU

e
parou
de
procurar

Olhou pra bem longe


bem longe
e foi subindo
128 UNIUBE

subindo
[...]
sumindo
e
sumindo
sumiu”

O que acontecerá com Flicts?

Será que Flicts não resistiu às decepções de ser abandonado e fugiu?


Onde se escondera?
Alguém o acolheu?

E o autor (1989, p. 46) conclui a história do livro com o enunciado:

“a lua é Flicts”

O livro nos emociona, pois, as tentativas frustradas para achar proteção


mostram ao leitor uma trajetória repleta de tensões, de sofrimento e de
dores pela qual o protagonista passou. Entretanto, ele não desanima. Há
dentro de Flicts uma semente de esperança, e até mesmo de certeza,
de que encontrará um lugar seguro, amoroso, solidário ainda que seja
distante, muito distante.

Assim, desapontado com os desencontros na sua jornada, ele se cansa,


mas também se transforma, após passar por diferentes fases. Em outro
lugar haverá acolhimento para ele.

Essas fases de transformação são metaforicamente apresentadas pelas


fases da lua, que estão nas páginas 41, 42, 43 e 44 (PINTO, 1989).
Trazemos um exemplo da narração:
UNIUBE 129

“E hoje
com dia claro
mesmo com o sol muito alto
quando a lua vem de dia
brigar com o brilho do sol
a lua é azul (PINTO, 1989, p. 41).

PARADA PARA REFLEXÃO

Na última frase do livro “a lua é Flicts” (PINTO, 1989, p.46), questionamos:


Flicts se viu como lua, pois de decrescente, minguante, crescente e cheia, ele
alcança a transformação, conseguindo conviver bem com o seu cotidiano?
Ou
A lua o acolheu, permitindo que lá ele encontrasse a FELICIDADE?

IMPORTANTE!

Nos endereços a seguir, há várias formas de ler o livro: de forma teatral, de


contação de histórias, de apresentações variadas.
Escolha a maneira mais adequada, caso você não tenha o livro impresso.
https://www.youtube.com/watch?v=L-J6nQUmnuo (Leitura adaptada, Colégio
Vicentinos)
https://www.youtube.com/watch?v=PH3Ss4xAqCg (Leitura adaptada em
animação)
Muitas versões também podem ser encontradas no YouTube.
Outra informação:
Ziraldo e Sérgio Ricardo criaram uma trilha sonora para o livro
Veja: https://www.youtube.com/watch?v=FR86lQNS9d8

Na sequência, vamos compreender de que forma o protagonista fantasia,


arquiteta sua realidade.

4.4 Flicts e a idealização do real

A obra de Ziraldo apresenta-nos, por meio da junção de signos, o


cotidiano de um protagonista que almeja um mundo projetado na eterna
130 UNIUBE

felicidade, felicidade essa muitas vezes propagada e até exigida em


nossa sociedade. Para essa conquista, Flicts busca laços afetivos para
sobreviver em um contexto de estereótipos, ou seja, ideias generalizadas
impostas por grupos sobre comportamentos, posições, estilos de vida.
É uma impressão sólida que abarca as aparências, as crenças, as
características, a cultura do outro. São rótulos estabelecidos e somente
os que os possuem são acolhidos pela comunidade.

Em cada busca de inserção, Flicts é sempre desaprovado, o que


desencadeia um conflito entre os personagens. Observem no diálogo
com a caixa de lápis de cor.

Flicts pede:

“Deixa eu ficar na berlinda?


Deixa eu ser o cabra-cega? ” (PINTO, 1989, p. 17).

As cores respondem:

“Sete é um número tão bonito”, disse o Vermelho vermelho.


“Não tem lugar para você” disse o Laranja
“Vai procurar um espelho” disse o Amarelo
“Somos uma grande família” disse o Verde (PINTO, 1989, p. 20).

Esse percurso conflituoso, feito por Flicts, leva-o a dar início a uma
jornada de reflexão sobre os fatos que o cercam. Há um choque de
posicionamentos entre os que são semelhantes e o diferente. A
reprovação dos iguais, que pertencem à caixa de lápis de cor, traz Flicts
para uma realidade inesperada, causando solidão, como verificamos na
voz do narrador:

E mais
Uma vez
UNIUBE 131

deixaram
o frágil e feio e aflito
Flicts
na sua branca
solidão. (PINTO, 1989, p. 23).

No seu percurso em busca de um mundo feliz, os antagonistas continuam


surgindo, e os impactos sentidos pela rejeição fazem Flicts conquistar
forças para continuar lutando. E mesmo que outros espaços como terras
distantes, terras antigas ou países jovens o reneguem, ele se mantém
vivo à procura de pares.

Na página 35, da 22ª edição do livro que está sendo analisado,


encontramos a persistência do protagonista na voz do narrador:

“E o pobre Flicts
procura
alguém
para ser seu par
um companheiro
um amigo
um irmão...” (PINTO, 1989, p.31).

Até quando Flicts resiste?

Observamos que há uma tensão constante entre o mundo interior e


exterior do personagem, deixando também o leitor aflito.

Há esperanças, pois nos desencontros e na persistência uma nova vida


pode surgir. E como afirma Resende (2013, p 127) “o curso surpreendente
das fases da lua potencializa a vida velada de Flicts.” Todos os elementos
imagéticos e verbais contribuem para o entendimento das modificações
132 UNIUBE

do personagem. É uma viagem interior que conduz à reorganização


interna, ao recomeço e quem sabe à FELICIDADE.

No próximo item, fazemos uma análise do projeto gráfico do autor que


dialoga com os signos linguísticos.

4.5 Um breve olhar para as formas e as cores do livro

A história de Flicts é organizada a partir da junção de imagens e signos


linguísticos, palavras. Essas imagens são apresentadas de várias
maneiras como formas geométricas: quadrados de diferentes tamanhos,
círculos, semi-círculos, linhas retas verticais e horizontais. Também,
compõem o livro páginas em branco ou coloridas como vermelho e
amarelo, ou fundo branco com desenhos de diferentes cores.
Tudo em FLICTS significa.

Em um estudo sobre essa obra, a pesquisadora Cascarelli (2007) aborda


a importância da linguagem visual, imagética, agregada à verbal no
processo educativo. Ela afirma que essa união é fundamental “não só
no sentido de promover o encontro da criança com o imaginário literário
(que tanto seduz), mas também no seu desenvolvimento pedagógico.”
(CASCARELLI, 2017, p.55).

Já na abertura da história (Pinto, 1989, p.5), nos deparamos com a cor


terrosa ocre, que é a personificação do protagonista da história –Flicts.
Essa cor domina praticamente toda a página, como um convite para que
o leitor entre na vida do personagem.

Entretanto, essa cor terrosa-ocre não é a que predomina na obra. A cor


predominante na narrativa é branca. Das 48 páginas do livro analisado,
22ª edição 1989, ela está em trinta e duas páginas, enquanto a cor de
Flicts está presente em oito páginas, em diferentes formatos. O branco
é usado, pelo autor em 66,7% do livro (excluindo a capa).
UNIUBE 133

Observamos, assim, que nas páginas em que a cor de Flicts não


aparece, também não há a sua voz, sinalizando um espaço vazio
para o personagem e provocando seu isolamento. Diante disso, não
há permissão para a aspiração de seus anseios, que é o desejo de
pertencimento.

Ainda sobre a cor branca, segundo o dicionário de símbolos, ela reflete a


síntese de todas as cores e também significa a ausência de cor, podendo
constar nas duas extremidades do círculo cromático e referindo-se ao
início e a ao fim do círculo. Simbolicamente essa cor representa paz,
espiritualidade, alegria, sugerindo, também, transformação.
https://www.dicionariodesimbolos.com.br/branco/
Acesso em 19 de abr. de 2019.

Outro aspecto que podemos abordar diz respeito às cores primárias e


secundárias. As primárias são cores puras. Não resultam de dois feixes
de luz. São elas: vermelho, amarelo e azul. Já as cores secundárias
são a união de duas cores primárias, ou seja, quando dois feixes de
luz se misturam e formam uma nova cor como: roxo, alaranjado ou
verde. Há também as cores terciárias e até a quaternárias. https://
www.gestaoeducacional.com.br/cores-primarias/ Acesso em 20 de abr.
de 2019.

Flicts não faz parte das cartelas das cores primárias e secundárias.

Seriam somente essas cores fundamentais para colorirem o mundo? Em que


classificação a cor de Flicts está? O que faz uma comunidade determinar
quem será o escolhido e quem não será amparado, acolhido por um
determinado grupo?
134 UNIUBE

Essa determinação pode eliminar Flicts da caixa de lápis de cor, do


arco-íris, das flores da primavera, das cores das bandeiras, deixando-o
isolado.

E o predomínio do branco, o que poderia ser?


• A independência do personagem dos estereótipos da sociedade?
• A sua emancipação das regras impostas e, consequentemente, a
conquista da autonomia?
• A libertação dos olhares repressores, punitivos, segregadores?
• O recomeço de uma fase lunar de expectativa, de esperança, de
partilhas ou uma punição pela diferença entre os iguais de sua
comunidade?

Outra análise do projeto gráfico.

Dentre as diferentes interposições de códigos, podemos citar as quatro


páginas do livro com o arco-íris (Pinto, 1989, p. de 16 a 19).

Conforme Cascarelli (2007), nas páginas 16 e 17, Ziraldo desenha o


arco-íris, no fundo branco, em semicírculo, ocupando as duas páginas,
em formato côncavo, ou seja, curvado para dentro, e nas páginas 18 e
19 o arco-íris muda de posição, ficando convexo, com a superfície que
se curva para fora, sugerindo dar às costas para o protagonista. Vejamos
os textos de Ziraldo, nessas páginas
“Um dia ele viu no céu
Depois da chuva Cinzenta
A turma toda feliz saindo do recreio
E se chegou pra brincar.” (PINTO, 1989,p.16).

Observamos que no formato do desenho, o arco-íris côncavo, Flicts


vislumbra a possibilidade de ser acolhido pelo arco-íris, sentindo-se
abraçado e, portanto, aceito.
UNIUBE 135

“Deixa eu ficar na berlinda?


Deixa eu ser o cabra-cega?
Deixa eu ser o cavalinho?
Deixa que eu fique no pique? ” (PINTO, 1989, p.17).

No entanto, nas páginas 18 e 19, com o arco-íris convexo, como se


estivesse dando costas para o personagem, o narrador diz:

“Mas ninguém olhou para ele “ (PINTO, 1989, p. 19 e 20), em letras


grandes.

Entretanto, não era esse o comportamento esperado por Flicts, não


era com essa atitude que ele imaginou defrontar-se. Flicts sentiu-se
abandonado.

Um outro projeto gráfico que vamos analisar está no início do livro. Esse
recurso usado pelo autor trata da cor vermelha. Nas páginas 6 e 7 o tom
vermelho invade completamente essas páginas. Isso significa, conforme
Cascarelli (2007), força, poder. Somente, ao final da página 7, no canto
direito, o narrador diz:

“Não
tinha
a força
do
Vermelho.” (PINTO, 1989, p. 7).

Observamos que a potência do vermelho empurra as palavras para um


canto da página, com a intenção de excuí-lo da história.

Já, na página 13, Cascarelli (2007) analisa o tamanho da letra, usada por
Ziraldo, na voz do narrador, em uma página em branco:
“Nada que seja Flicts.” (PINTO, 1989, p. 13).
136 UNIUBE

“A configuração da página anuncia a clara exclusão da cor. A frase escrita


em letras grandes pode ser considerada como um ponto de equilíbrio no
espaço reservado para a solidão. ” (CASCARELLI, 2007, p. 66).

Observamos que a partir desse ponto, inicia-se a jornada de


enfrentamento com diferentes objetos, situações, espaços do cotidiano
como, por exemplo, a caixa de lápis de cor; a primavera, estação das
flores; os parques; a telha da casa; as bandeiras dos países; a cor do
mar, os sinais de trânsito.

Flicts, na busca de inserção no mundo, aparece recorrentemente na


forma de faixas verticais, largas (p.12) e estreitas (p.14), ora ocupando
pequeno espaço da página em branco, quase sumindo (p.38), ora em
forma de quadrado pequeno, entre os vários quadrados coloridos (p.15)
e, somente ao final do livro, nas páginas 46 e 47, ele surge em forma
arredondada e em plano privilegiado, diferenciando-se da cor do fundo.

Cascarelli (2007, p. 87) analisa as páginas finais da obra FLICTS,


observando que “mais de ¾ do espaço em cor terrosa faz contraste com
o fundo preto. No segundo plano temos uma forma semelhante de cor
azulada e sua base encontra-se deformada, sugerindo continuidade do
objeto. A inter-relação dos planos sugere profundidade entre as formas. ”

Há então um instante de magia. Flicts pode ter encontrado o seu lugar


e, finalmente, ter conquistado a sua FELICIDADE.
E a história termina (PINTO, 1989, p 44, 45 e 46):

“E nas noites
Muito claras
Quando a noite é toda dela
A Lua é de prata e ouro
Enorme bola
Amarela”
UNIUBE 137

“MAS
NINGUÉM
SABE
A
VERDADE
(a não ser os astronautas)

que
de perto
de pertinho”

“a lua é Flicts”

Assim, Flicts encontrou, finalmente, a felicidade, porque foi acolhido pela


lua ou porque transformou a sua vida, de forma sábia, em lua, em poesia,
em utopia, em magia...

4.6 Conclusão

De acordo com os estudos deste capítulo, a leitura pode ser entendida


a partir de três perspectivas (Coracine, 1995). A primeira diz respeito
ao ato apenas de decodificar letras, fonemas, palavras. Nessa visão,
considerada como estruturalista, o leitor é um decodificador, um sujeito
passivo frente à compreensão eficaz do texto. Essa posição é importante,
mas não é suficiente para uma leitura crítica, interpretativa.

Em seguida, compreendemos que o ato de ler deve ser interativo, ou


seja, a partir das pistas deixadas pelo autor no texto, o leitor processa
o seu entendimento, apreendendo o sentido por meio dessas marcas
e fazendo, inclusive, germinar, borbulhar previsões para a proposta do
material lido.

Na terceira perspectiva, a autora traz a visão discursiva. Nessa


concepção, há o envolvimento dos aspectos históricos, sociais, culturais
138 UNIUBE

que estão no roteiro do texto e conectados ao mundo factual, real. O leitor


ativo vai tecendo as suas leituras, buscando nas condições de produção:
quem produziu o texto, para quem, quando, onde, com que finalidade,
quais são as ressonâncias entre suas vivências e o que está lendo.

Em FLICTS, partimos da decodificação e das marcas, tanto do projeto


gráfico quanto dos signos linguísticos, para compreendermos que Flicts
pertence a uma sociedade excludente, que apenas reconhece como par
aquele que se assemelha ao grupo. Essa comunidade é fechada para
os que são diferentes não só nas aparências como também em relação
às atitudes, às crenças, aos desejos. Essas considerações nos levam a
uma leitura discursiva, crítica, analítica e, consequentemente, prazerosa.

Portas e janelas são trancadas para impedir o acolhimento das “minorias”.


Há um processo desumano de afastamento, de privações dos indivíduos
de classes sociais, de cor, de gênero, de etnia diferentes. É preciso ter
muita força para sobreviver à aridez desses territórios fechados.

Toda a história é contornada pelas formas geométricas e por diversas


cores primárias e secundárias, incluindo o branco e, também, pelos
signos linguísticos. As imagens compõem com as palavras uma teia
comovente de um sujeito/personagem diferente e, por esse motivo,
afastado do grupo onde vive. Há uma luta diária para fazer parte de uma
comunidade carregada de preconceitos, mas o protagonista não desiste.

Editado no mesmo ano em que o homem foi à Lua pela primeira vez,
Flicts é uma daquelas obras que resistem ao tempo, tal como a viagem
de Neil Armstrong (primeiro astronauta a pisar na lua) que confirmou: “
a lua é Flicts”.
<https://fragmentosliterarios.blogspot.com/2016/05/resenha-flicts-ziraldo.
html>
UNIUBE 139

Referências

ABAURRE, Maria Luiza e PONTARA, Marcela Nogueira. Português.


São Paulo: Moderna. 1999.

BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais, 1997.

CASCARELLI, Claudia. FLICTS, O LIVRO DO ARTISTA. Dissertação de


Mestrado em Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo-UNESP, 2007.

CORACINE, Maria José. (org). O jogo discursivo na aula de leitura


Língua Materna e Língua Estrangeira. Campinas: Pontes, 1995.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler Em três artigos


que se completam. São Paulo: Cortez, 2001.

MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 2012.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1988.

PINTO, Ziraldo Alves. FLICTS. São Paulo: Melhoramentos. 1989.

PINTO, Ziraldo Alves. O MENINO MALUQUINHO. São Paulo: Melhoramentos, 1982.

RESENDE, Vânia Maria. Ziraldo e o livro para crianças e jovens no Brasil


Revelações poéticas sob o signo de Flicts. São Paulo: Paulinas. 2013.

ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura em crise na escola: as


alternativas do professor. São Paulo: Mercado Aberto, 1984.

MAZETTO, Marcela. Cores primárias - quais são? Disponível em: https://www.


gestaoeducacional.com.br/cores-primarias/ Acesso em 20 de abr. de 2019.

PAULINO, Graça. Glossário Ceale. Termos de alfabetização, leitura e escrita para


educadores. Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale.
Acesso em 19 de mai. 2019.

SOUZA, Dany. Fragmentos literários. 2016. Disponível em:


https://fragmentosliterarios.blogspot.com/2016/05/resenha-flicts-ziraldo.html.
Acesso em 17, mai. 2019.

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