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Avatares Da Peça Bem-Feita Na Dramaturgia Brasileira Contemporânea
Avatares Da Peça Bem-Feita Na Dramaturgia Brasileira Contemporânea
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Elen de Medeiros
Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG, Belo Horizonte, Brasil
E-mail: elendemedeiros@hotmail.com
João Sanches
Universidade Federal da Bahia/UFBA, Salvador, Brasil
E-mail: sanchesjoao@ig.com.br
Resumo Abstract
A partir do estudo de três autores teatrais By analysing the work of three contempo-
contemporâneos, Vinícius Calderoni, Jô Bilac rary Brazilian playwrights, Vinícius Calderoni,
e João Sanches, visamos reconhecer na pro- Jô Bilac and João Sanches, we set out to re-
dução brasileira atual novos avatares da peça cognize in contemporary Brazilian playwriting
bem-feita. Para tanto, partimos antes de um new avatars of the well-made play. To do so,
reconhecimento do padrão formal e ideológico we start by describing the formal and ideologi-
desse tipo de peça no século XIX para esta- cal pattern inscribed in this kind of playwriting
belecer aproximações com os textos do teatro in the 19th century, in order to establish a com-
brasileiro do século XXI. parison with some texts of Brazilian dramatur-
gy in the 21st century.
Palavras-chave Keywords
Teatro Brasileiro Contemporâneo. Dramaturgia Contemporary Brazilian Theatre. Brazilian Dra-
Brasileira. Peça Bem-feita. maturgy. Well-made Play.
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como exemplos de uma peça bem-feita bra- E John Russell Taylor (2014, p. 12) aponta
sileira atual. um entrecho semelhante, responsável pela es-
trutura das peças do aluno mais importante de
Scribe, Victorien Sardou, mas frisa ainda que
A peça bem-feita: as peças de Scribe se pautaram não na
uma dramaturgia posta a serviço de
[...] construção de um drama enquanto
uma função emocional harmonizante totalidade, como Racine a teria com-
preendido, mas basicamente na distri-
buição espacial e temporal de efeitos
O termo “peça bem-feita” foi cunhado por
de tal maneira que um público pode
Eugene Scribe por volta de 1825, numa épo- ser mantido num estado de expectati-
ca em que a revolução francesa já consolida- va do início ao fim. (Tradução nossa)3.
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peça bem-feita, por sua vez, convida seu lei- as regras estabelecidas da vida burguesa e
tor e público a identificar-se harmoniosamen- do drama burguês tradicional, mas ao mesmo
te tanto com o material social quanto com os tempo um profundo medo ou uma má vontade
recursos formais convencionais, ao invés de de ultrapassar os limites formais e conteudís-
deliberadamente provocar nele uma reflexão ticos postos por esse mundo. Em outras pa-
sobre os princípios estruturantes seja da dra- lavras, a crítica mantém-se nos limites de um
maturgia, seja do mundo social da ficção e da moralismo já posto, da mesma maneira como
vida empírica, para indagar-se sobre as forças a visão transformadora não passa de um fris-
formadoras de seu mundo. É a exigência de son excitante, mas em última instância sem
um fim harmonizante que impõe uma “supre- consequências.
macia da técnica” e faz com que sua racionali- Como podemos, então, aplicar ao contex-
dade específica não só “não poup[e] o texto da to contemporâneo brasileiro essa dialética de
superficialidade, da falta de visão e da artificia- uma poética de escrita teatral representar ao
lidade” (Guinsburg et. al., 2006, p. 236), mas o mesmo tempo o resultado de uma época nova
imprima tais limitações. numa visão conservadora, ao usar seus impul-
A técnica visa organizar, como vimos, pe- sos críticos de uma maneira esvaziadora?
ripécias, situações surpreendentes e quid pro
quo engraçados de tal maneira a configurar
uma história emocionalmente cativante, sem Três breves estudos de caso
que os adornos narrativos ferissem o caráter
realista da história. Ou melhor, sua verossi- 3.1 Vinícius Calderoni e sua trilogia placas
milhança, e com isso seu grau de realismo, é tectônicas
tanto testada quanto respeitada por sua eficá- À primeira vista, a escrita de Vinícius Cal-
cia emocional específica. A ela devem servir deroni pouco tem a ver com a peça bem-feita
os elementos estruturais fixados. Isso indica nos moldes modernos. Aos textos falta uma
a função ideológica dessa dimensão afetiva e estrutura narrativa linear causal, o que já su-
sensacionalista, cujo escapismo é camuflado gere o deslocamento do conflito da trama
pelos recursos realistas, mas revelado pelo ex- ficcional para uma instância meta-teatral, ou
cesso de peripécias. melhor, compositiva, referente à estrutura do
Essa interação entre eficácia emocional e texto. Concomitantemente, a criação de per-
seu enquadramento num naturalismo realista é sonagens mal segue princípios de um realis-
a base formal da finalidade moralista da peça mo psicológico. De fato, a relação entre per-
bem-feita. Os procedimentos que encontra- sonagem e linguagem inverte a dinâmica de
mos – na técnica de criar constantemente ex- causa interna (psicológica) e efeito externo (a
pectativas para no final oferecer uma solução materialidade e retórica da linguagem). Dessa
alegremente conservadora – revelam como maneira, o personagem principal das peças
função fundamental da peça bem-feita a for- é uma figura uma vez coletiva, uma vez anô-
mulação de uma quase transgressão na qual nima: a concretização de um discurso social
está inscrito obviamente um desejo por esse na boca de um ator que nos apresenta um ser
horizonte outro; uma insatisfação para com humano – sendo esse efeito de uma situação
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social e de sua discursividade típica. Tampou- periências sociais complexas e muito doloro-
co encontramos um segredo e mal-entendido sas em suas contradições, o tratamento retó-
a cujo redor circula a narrativa, ou melhor, eles rico jocoso e lúdico esvazia as contradições e
são tratados como a regra e não a exceção as transforma em paradoxos criados por tru-
da comunicação humana. Consequentemen- ques linguísticos. Ao invés de criar, no plano
te, o dénouement numa “cena a fazer” fica da narrativa, uma “cena a fazer”, fabrica-se no
impossibilitado. Nenhuma figura ficcional fica plano da linguagem um “clima a manter”. Um
surpresa ou aliviada com a confissão explícita clima que podemos caracterizar com a avalia-
de um conteúdo onipresente e já vivenciado ção popular de que no mundo avesso a viver
na prática. Mas, da mesma maneira como o as consequências de suas contradições, os
herói deixa de ser uma figura individual e se conflitos se tornam escândalos e as contra-
transforma em figura de linguagem social, po- dições acabam forçosamente “em pizza”. Ou
demos observar que os truques narrativos da dito de maneira mais erudita, o que poderia
peça bem-feita reaparecem como jogos de lin- ser uma paródia crítica do funcionamento so-
guagem, oscilando entre fricções e harmoniza- cial vira um pastiche de formas pré-moldadas.4
ções linguísticas, oferecendo uma continuida- Esse esvaziamento de um conteúdo potencial-
de não-causal entre as cenas por meio de um mente doloroso (e inclusive da forma alegórica
travelling de palavras idênticas por contextos que possui alguma força analítica para falar do
distintos e, consequentemente, de um desliza- mundo atual) pelo tratamento excessivamen-
mento constante do sentido dessas palavras te técnico da escrita, é atestado pelo amigo e
e das cenas. Ou seja, a partir da percepção colaborador do autor, Ricardo Gomes. Diz ele:
inicial de que o herói da dramaturgia contem-
porânea é a linguagem em sua construção so- [O] que está dentro da cabeça de Viní-
cius Calderoni [...] são todas as bana-
cial, podemos identificar funções parecidas às lidades anestesiantes, todo o entulho
da poética narrativa (rocambolesca, oscilante, existencial, todos os escombros que
fazemos daquilo que fizeram (fizemos)
harmonizante e aliviador) em seu vai-e-vem de de nós. […] Um exército de manequins
cenas mais ou menos realistas, mas ao mesmo refugiados. […] Autômatos. Pessoas
forçosamente conformadas com as
tempo beirando a implausibilidade, cenas dra- perdas das próprias pernas. […] Nar-
máticas emocionalmente cativantes e bem hu- radores tentando concatenar informa-
ções que não sabemos se constituem
moradas em seu flerte com o escândalo moral. uma piada, uma denúncia, um sonho,
Desse ponto de vista, não surpreende a uma reportagem sensacionalista ou
um meme. Mas que, no fim das con-
coexistência relativamente harmônica de um tas, deve ser só uma piada mesmo.
eclético, mas apurado feeling formal acerca Sem fim. (Calderoni, 2017c, p. 14).
das características estruturais e materiais do
mundo atual, com um gesto retórico de esva- Como se articulam essas “banalidades
ziar o tempo e a geografia contextual de sua anestesiantes”, esse “entulho existencial”,
trilogia e de esconder na estática de um bem- para poder formar pouco mais que uma piada?
-humorado requinte verbal a dinâmica intrínse- Encontramos, entre outros recursos, o desen-
ca desse contexto histórico. Se as temáticas
citadas pelo material linguístico apontam ex- 4 Sobre a diferenciação entre paródia e pastiche, ver Jame-
son (2002) e Eagleton (1995).
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Paula: Eu quero encostar na sua pele Em nível daquilo que tradicionalmente é de-
macia, eu quero te beijar dos pés à ca- nominado de personagem, apreendemos sua
beça.
Sergio: Relaxa aí, toma um uísque,
transformação em discurso padronizado, seja
assiste uma tv...Oi, mãe! E esse texto esse discurso social ou afetivo (instâncias de
você já leu? enunciação denominadas de Amigo Cômico e
Julio: Um táxi. Um táxi vazio. Um táxi
que transporta o amor da minha vida. Amigo Trágico (Calderoni, 2017c, p. 23) ou pro-
Lara: Um táxi logo depois de deixar o duzido por instâncias sem definição cuja fala
amor da minha vida em seu destino,
voltando a ser um táxi vazio. Eu que- remete diretamente aos meios de comunica-
ro morder esses seus lábios carnudos ção e seu estilo de notícia sensacionalista (Cal-
até sair sangue.
Paula: Porque você não tira sua rou- deroni, 2017a, p. 20), ou um discurso alegórico
pa? (Calderoni, 2017a, p. 19). com figuras intituladas Esperança, Ódio, Medo
(Calderoni, 2017c, p. 43), ou figuras aparente-
Percebe-se também a repetição da mesma mente individualizadas que alteram entre a po-
palavra em cenas distintas o que serve para sição de narrador e de interlocutor (Calderoni,
dar suavidade a uma transição que não possui 2017b, p. 52-56) ou figuras que expõem, junto
um nexo causal e às vezes nem temático, sen- com sua fala, o subtexto destoante (Calderoni,
do pouco mais que um truque (como a apre- 2017c, p. 29-33).
sentação surpreendente de uma carta desco- O que atravessa esses exemplos como fio
nhecida na peça bem-feita tradicional) para condutor comum é uma ausência de interio-
oferecer uma diversão textual. Tematicamente ridade, tanto na comunicação intersubjetiva
falando, permite estabelecer uma oscilação de quanto na percepção intrasubjetiva, como se
pontos de vista que não implicam consequên- as figuras não fossem capazes de viver a partir
cias, apesar da onipresença sugerida pela téc- de uma vontade própria. É o mundo, por meio
nica do travelling linguístico: de suas máscaras linguísticas em forma de
discursos sociais, que os conduz e que dirige
[Narrador não nomeado da cena 2, no
final de uma longa reflexão e narração suas maneiras de relacionar-se e comportar-
de mais que cinco páginas]: ...se você -se.
olhar bem, todos os vínculos que se
tem na vida são sempre um pouco Estamos perante uma relação humana de
precários. Os fios que nos conectam passividade ante forças externas – forças que
às pessoas que amamos e às coisas
se manifestam como leis de mercado, práti-
que fazemos. É exatamente como um
fio, e, como um fio, pode ser facilmen- cas de comunicação comercial e publicitária –
te rompido. Não sei, tô sendo muito que atravessam o mundo e às quais os seres
chato? humanos se veem (ou acreditam) obrigados
JANAÌNA: Pros outros não sei, mas
para mim, que já te ouvi falar disso a sujeitar-se, transformando a si mesmos em
umas duzentas vezes, um pouco. [ri e efeitos dessas posições sociais ou libidinais:
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um jovem diretor substituto que tenta conciliar crita às situações convencionais do jogo inter-
os embates que surgem entre as professoras. subjetivo, articulando em si os lugares comuns
A narrativa é baseada fundamentalmente nos sociais sobre educação, escola pública, pro-
conflitos individuais e joga com a banalidade fessores etc.
das situações, ocasionando numa estrutura Há, ao longo da exploração da problemá-
ensimesmada, que não transborda os limites tica escolar, uma preocupação legítima de se
do drama. aproximar desse conteúdo crítico em relação
O que se nota é uma tentativa de colocar às condições cotidianas de uma educação que
em choque as opiniões opostas e contraditó- é costumeiramente tratada como “perfumaria”
rias do corpo docente, o que de fato ocorre, na vida política brasileira, da mesma forma
embora o argumento em alguns momentos como a profissão é considerada inferior e me-
reproduza os velhos chavões que pautam a nos interessante socialmente. E esse discurso
discussão sobre o ensino público, pouco se está presente na peça, levantando os parado-
distanciando da reafirmação do que se vê nos xos vivenciados, as condições exaustivas e as
meios midiáticos. Evidente que há uma dispo- ingenuidades que acompanham a formação
sição irônica no texto em relação à opinião se- do educador no Brasil. No entanto, não seria
dimentada sobre professores, alunos e escola. bastante curioso que tal discurso esteja diluído
Mas a expansão de sua veia crítica e do deba- entre as opiniões diversas, quase obnubilado
te esbarra, justamente, na proposição formal pela forma convencional que assume a peça,
escolhida, fechada e interpessoal. dialógica e bem estruturada? Nesse sentido,
Talvez pudéssemos relacionar, de alguma o que pode parecer aqui é uma aproximação
forma, esses temas do cotidiano que emer- demasiada com esse lugar comum educacio-
gem na narrativa da peça àquilo que Sarrazac nal sem distanciar-se de forma apropriada dele
(2017) chama de infradramático: a representa- para enfim discuti-lo com a devida atenção.
ção de personagens muito comuns, em que O que, nesse sentido, alinha tal peça a uma
“nada acontece”, sem grandes catástrofes. certa ideia de peça bem-feita contemporâ-
No entanto, como o crítico francês observa, o nea seria seu uso bem articulado da estrutura,
“infradramático não mora somente na falta da marcadamente dando conta de uma situação
estatura das personagens, dos acontecimen- contraditória e crítica por si só na formulação
tos e outros microconflitos; ele liga-se à subje- algo fechada do drama, sedimentando assim o
tivação e, portanto, à relativização que marca conteúdo na forma. Isso, em si, não é um pro-
todos esses microacontecimentos e microcon- blema para o teatro contemporâneo, que tem
flitos. Em outros termos, muitas vezes é com como caráter fundamental as possibilidades
um teatro íntimo e de conflitos intrassubjeti- artísticas variadas. O que vemos, nos parece,
vos, intrapsíquicos que estamos lidando” (Sar- é a reafirmação, pela articulação do conteú-
razac, 2017, p. 54). É então que reconhecemos do à forma, de um discurso hegemônico que
as limitações dessa dramaturgia, na medida não encontra resistência: depois de uma longa
em que seu formado fechado, dramático, não tarde de discussão, o jovem diretor substitu-
captura o íntimo do íntimo para referir-se ao to abre pacificamente sua cerveja com a pro-
universal. Ela, no entanto, permanece circuns- fessora Célia, e ambos vão para suas casas
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da atenção dedicada à forma de narrar. político. A peça bem-feita do século XIX esta-
Se há um pressuposto sobre a experiên- va, direta ou indiretamente, ligada a um pen-
cia ou o impacto de cada um diante da mor- samento de classe, em vista do crescimento
te, ou mesmo uma necessidade de abordar a da burguesia e a ânsia que se tinha de criar ou
futilidade e o vazio da vida burguesa, ele fica projetar um modelo para o público. Buscava-
enfraquecido pela ordem estrutural, incitada a -se, assim, um efeito moral, adequado à classe
fim de provocar certo impacto no público pela que representa. Em vista disso, dá-se privilé-
imprecisão de que lança mão. Ainda na cena gio à formulação verossímil, de forma que o
inicial, ocorre um breve embate entre o garçom público se reconheça no modelo projetado em
e os clientes por causa de troco: “Cláudio: ... cena, efetivando o molde do público conforme
[indo até o balcão, puxa o dinheiro] Pela água./ as normas morais tidas à época como vigentes
Dodô: Não tem menor? [...] Dodô: [encara, im- (v. Faria, 2006).
paciente] Tô sem troco... Alguém troca?” (Bi- É nesse sentido que reconhecemos o fun-
lac, 2012, p. 27). Diante da negativa dos ou- cionamento da dramaturgia de Jô Bilac, que
tros clientes, instaura-se uma discussão entre abarca e reproduz um discurso moral de um
eles, com frases como “Marcela: Você deveria nicho social, mas sem expandir o debate. Ou
se esforçar mais pra agradar sua clientela!” ou seja, ao se apropriar de uma estrutura fechada,
“Dodô: E a senhora é uma burguesa metida a ela não dá espaço às discussões politizadas
besta!/ Dodô: Todos vocês! Escrotos! Choran- que o dramaturgo almeja e coloca em estado
do de barriga cheia!” (Idem, ibidem). de potência. Ao contrário, o simples apazigua-
A cena não vai muito além disso e dá lugar mento das questões praticamente reforça o
justamente para as proposições formais. Logo senso comum, de forma que um público par-
após o “bate-boca generalizado”, o persona- ticular se reconheça no discurso habitual. Há,
gem Cláudio aparta a briga com frases como enfim, uma reprodução dos lugares comuns
“E eu tenho certeza de que o Dodô se esforça- vistos, aproximando-se assim desse efeito
rá um pouco mais para conseguir o meu troco, realista do comum, e marcando as escolhas
não é, Dodô?” (Idem, p. 28). A cena se encer- dramáticas de verossimilhança.
ra sem ampliar o debate, e a peça segue sua
proposta de desenvolver as várias possíveis 3.3 João Sanches e a comédia Entre nós:
continuações da história, partindo sempre do peça bem-feita ou problem play?
atropelamento. Assim, aquilo que se apresen- As peças de João Sanches são exemplos
ta por sua potencialidade crítica acaba sendo de dramaturgia contemporânea encenada e
submergida pela estrutura em jogo. O que se publicada no Nordeste, particularmente em
vê, com isso, é a repetição dos lugares-co- Salvador, na Bahia. O premiado texto Entre
muns que mais reafirmam os estereótipos do nós: uma comédia sobre diversidade (San-
que os problematizam. ches, 2015) apresenta dois atores que criam
Nesse sentido, diante dessas duas peças de uma peça sobre diversidade sexual no mo-
estruturas aparentemente diversas, a relação mento da apresentação. Para isso, discutem,
com uma pretensa peça bem-feita contempo- narram e encenam a fábula simultaneamente.
rânea pode ser alinhada a um senso amplo do A partir dessa estrutura metadramática, as per-
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peça bem-feita, naquilo que ela tem de con- CARDWELL, Douglas. The well-made play of
servadora, então talvez uma pergunta ainda Eugene Scribe. The French Review. vol. 56, n.
mais produtiva deva ser feita: que dramaturgias 6. May, 1983. pp. 876-884.
contemporâneas no Brasil podem ser conside-
radas efetivamente críticas e transgressoras? EAGLETON, Terry. “Capitalismo, Modernismo
Em que medida uma peça contemporânea e Pós-Modernismo”. In: Crítica Marxista. São
consegue sustentar um discurso crítico a uma Paulo: Brasiliense, v.1, n.2, 1995. pp. 53-68.
forma articulada e propositiva? Compreende-
mos, diante de certo espectro contemporâneo, FARIA, João Roberto. Teatro e compromis-
que a saída que “acaba em pizza” apazigua e so social. In: Antologia do teatro realista. São
abandona as contradições e fricções neces- Paulo, Martins Fontes, 2006.
sárias para o pensamento crítico, deixando-se
tomar pelo simples efeito de cena e que não GUINSBURG, Jacó; FARIA, João Roberto;
sustenta a eficácia também em seu conteúdo. LIMA, Mariângela Alves de (Orgs.). Dicionário
Entendemos que, para este fim, a peça pre- do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos.
cisará incorporar não apenas um material que São Paulo: Perspectiva, 2006.
tenciona dolorosamente a realidade empírica,
mas também um acabamento formal que im- JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica
possibilite que o teor do material possa ser cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Áti-
assimilado ao status quo sem que esse passe ca, 2002.
por uma transformação ou um deslocamento
estrutural decisivo de suas forças formadoras. SANCHES, João. Entre nós: uma comédia so-
bre diversidade. Salvador: EDUFBA, 2015.
CALDERONI, Vinicius. Arrã. Rio de Janeiro: STANTON, Stephen. Scribe’s “Bertrand Et Ra-
Cobogó, 2017b. ton”: a well-made play. In: The Tulane Drama
Review. vol. 2, n. 1. Nov. 1957. pp. 58-70.
CALDERONI, Vinícius. Chorume. Rio de Janei-
ro: Cobogó, 2017c.
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Recebido: 04/12/2018
Aprovado: 11/01/2018
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