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cena n.

27

Avatares da Peça Bem-feita na Dramaturgia


Brasileira Contemporânea

Stephan Arnulf Baumgärtel


Universidade Estadual de Santa Catarina/UDESC, Florianópolis, Brasil
E-mail: stephao08@yahoo.com.br

Elen de Medeiros
Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG, Belo Horizonte, Brasil
E-mail: elendemedeiros@hotmail.com

João Sanches
Universidade Federal da Bahia/UFBA, Salvador, Brasil
E-mail: sanchesjoao@ig.com.br

Resumo Abstract
A partir do estudo de três autores teatrais By analysing the work of three contempo-
contemporâneos, Vinícius Calderoni, Jô Bilac rary Brazilian playwrights, Vinícius Calderoni,
e João Sanches, visamos reconhecer na pro- Jô Bilac and João Sanches, we set out to re-
dução brasileira atual novos avatares da peça cognize in contemporary Brazilian playwriting
bem-feita. Para tanto, partimos antes de um new avatars of the well-made play. To do so,
reconhecimento do padrão formal e ideológico we start by describing the formal and ideologi-
desse tipo de peça no século XIX para esta- cal pattern inscribed in this kind of playwriting
belecer aproximações com os textos do teatro in the 19th century, in order to establish a com-
brasileiro do século XXI. parison with some texts of Brazilian dramatur-
gy in the 21st century.

Palavras-chave Keywords
Teatro Brasileiro Contemporâneo. Dramaturgia Contemporary Brazilian Theatre. Brazilian Dra-
Brasileira. Peça Bem-feita. maturgy. Well-made Play.
cena n. 27

Introdução inofensivo, acrítico e divertido de uma forma


que foi originalmente pensada para apresentar
Em 2013, a revista Le Monde Diplomatique uma imagem problemática do status quo de
Brasil publicou um artigo do diretor alemão sua época, o capitalismo moderno.
Thomas Ostermeier, no qual ele constata uma Não é a primeira vez que uma forma, ori-
crise de conteúdo e da forma cênica no teatro ginalmente alinhada a uma classe social pro-
contemporâneo1. Diz ele: gressista, vira chavão de diversão e veículo
ideológico do conservadorismo bem-humo-
as formas inovadoras que surgiram rado dessa mesma classe num momento his-
nos anos 1970 e 1980 continuam a
orientar o credo estético de um grande tórico posterior. Exatamente isso aconteceu
número de teatros públicos e festivais, com o drama burguês quando caiu nas mãos
ainda que nesse assunto os imitado-
res estejam longe de se igualar a seus de autores que cunharam a fórmula da peça
modelos […] A poetologia desse teatro bem-feita, assentada temática e formalmente
baseia-se na ideia de que a ação dra-
mática não é mais de nossa época; que nesse drama realista moderno. Esses autores,
o homem não poderia se compreender como Scribe, ou Sardou, mas até certo ponto
como mestre de suas ações; que exis-
tem tantas verdades subjetivas quanto também Labiche e Feydeau com seu convite a
o número de espectadores presentes; uma risada pouco comprometida com a dinâ-
que os acontecimentos representa-
dos no palco não exprimem nenhuma
mica social, já não representaram uma burgue-
verdade válida para todos; que nossa sia que lutou para uma transformação social
experiência fragmentada do mundo (ou contra restrições sociais da própria vida
somente encontra sua tradução num
teatro fracionado, em que os gêneros afetiva), mas – na abdicação desse objetivo, a
se justaponham: corpo, dança, fotos, partir do momento em que ela tornara-se clas-
vídeos, música, palavra… Essa imbri-
cação sensorial assegura ao especta- se dominante – dedicou-se, em composições
dor que este mundo caótico perma- formalmente estereotipadas, predominante-
necerá para sempre indecifrável e que
não há espaço para procurar ligações mente a uma análise moralista de sua estrutura
de causalidade ou culpados. psicossocial.
Como então se articulam as proposições e
E conclui que limitações na parcela da dramaturgia contem-
porânea que denominamos peça bem-feita?
esse ‘realismo capitalista’ estetiza uma
ideologia vitoriosa [...]. Em um mundo Com quais recursos formais e temáticos ela
dominado pela doutrina neoliberal, pode trabalhar (e talvez até possamos afirmar
nada poderia dar mais prazer a seus
beneficiários que estes pressupostos: que prefere trabalhar com eles)? Para respon-
ninguém é responsável por nada, e a der a essas perguntas, vamos primeiro apre-
complexidade do mundo torna ilusória
sentar uma breve leitura crítica das descrições
toda tentativa de circunscrever seus
mecanismos. e definições da peça bem-feita tradicional, a
fim de criar um suporte analítico que possa ser
Podemos dizer, com isso, que o realismo articulado a textos da dramaturgia brasileira
hegemônico da contemporaneidade faz uso contemporânea. Textos que, devido às fun-
ções de suas formas em relação ao conteúdo
1 Ver https://diplomatique.org.br/para-que-serve-o-teatro/, social inscrito neles, podem ser qualificados
sem páginas. Último acesso: 30 de novembro de 2018.

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como exemplos de uma peça bem-feita bra- E John Russell Taylor (2014, p. 12) aponta
sileira atual. um entrecho semelhante, responsável pela es-
trutura das peças do aluno mais importante de
Scribe, Victorien Sardou, mas frisa ainda que
A peça bem-feita: as peças de Scribe se pautaram não na
uma dramaturgia posta a serviço de
[...] construção de um drama enquanto
uma função emocional harmonizante totalidade, como Racine a teria com-
preendido, mas basicamente na distri-
buição espacial e temporal de efeitos
O termo “peça bem-feita” foi cunhado por
de tal maneira que um público pode
Eugene Scribe por volta de 1825, numa épo- ser mantido num estado de expectati-
ca em que a revolução francesa já consolida- va do início ao fim. (Tradução nossa)3.

ra seu caráter burguês conservador. Segundo


Stephen Stanton (1957, p. 59), sua estrutura As descrições indicam que o objetivo artísti-
apresenta uma fórmula que segue sete ele- co era criar uma peça cujo material e estrutura
mentos estruturais precisos e necessários: garantem um público atraído pelo apelo emo-
cional sem que a forma fira demais o realismo
[1] uma trama vivaz baseada num se- do drama burguês.
gredo que é escondido da maioria dos
personagens (mas conhecido pelo
Quando um texto teatral faz uso de boa
público) até a cena do clímax na qual parte dos elementos estruturais de uma peça
sua súbita revelação serve para expor bem-feita, mas de modo irônico, pois o que
um personagem fraudulento e restau-
rar o estado feliz do herói desafortu- lhe interessa é confrontar o público com sua
nado com qual o público se identifica; própria consciência convencional, entre outras
[2] uma estrutura de ação e suspense
que está sendo cada vez mais inten- por meio da crítica dos chavões estruturais da
sificada por entradas e saídas força- peça bem-feita, essa peça passa a ser reco-
das, cartas inesperadas, e outros me-
canismos - uma estrutura que surge nhecida como problem play, como os dramas
de uma exposição lenta e deliberada de Ibsen e Shaw. O dispositivo construtivo da
nas primeiras cenas; [3] um conflito
prolongado entre o herói e seu anta-
gonista, pontuado por uma série de al- until the climactic scene, where its sudden revelation, serves
tos e baixos na sina do herói; [4] o fim to expose a fraudulent character and restore to grace the un-
do conflito marcado por duas cenas fortunate hero with whom the audience identifies itself; [2] a
agudamente contrastantes, conheci- pattern of action and suspense, increasingly intensified by
das como peripécia e cena obrigató- contrived entrances and exits, unexpected letters, and other
devices-this pattern springing from much slow and deliberate
ria, que apresentam os pontos mais
exposition in the early scenes; [3] a sustained conflict betwe-
baixos e altos, respectivamente, nas en the hero and his adversary, punctuated by a series of ups
aventuras do herói e revelam o segre- and downs in the hero’s fortunes; [4] the end of the conflict,
do escondido frente ao lado oposto; marked by two sharply contrasted scenes, known as the peri-
[5] um mau-entendimento fundamen- peteia and the obligatory scene, which present the lowest and
tal, ou quiproquó, revelado para os the highest points, respectively, in the hero’s adventures and
espectadores mas encoberto para os reveal the withheld secret to the opposing side; [5] a central
participantes; [6] um desenlace lógico misunderstanding or quiproquo, made obvious to the specta-
e plausível; e [7] a reprodução dessa tor but kept from the participants; [6] a logical and plausible
denouement; and [7] the reproduction of this overall action
macroestrutura em cada ato da peça. pattern in each individual act of the play”.
(Tradução nossa)2.
3 No original: “[…] overall construction of a drama such as
Racine would have understood it, but at least the spacing and
2 No original: “[1] a lively plot based on a secret which is wi- preparation of effects so that an audience should be kept ex-
thheld from most of the characters (but known to the audience) pectant from beginning to end”.

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peça bem-feita, por sua vez, convida seu lei- as regras estabelecidas da vida burguesa e
tor e público a identificar-se harmoniosamen- do drama burguês tradicional, mas ao mesmo
te tanto com o material social quanto com os tempo um profundo medo ou uma má vontade
recursos formais convencionais, ao invés de de ultrapassar os limites formais e conteudís-
deliberadamente provocar nele uma reflexão ticos postos por esse mundo. Em outras pa-
sobre os princípios estruturantes seja da dra- lavras, a crítica mantém-se nos limites de um
maturgia, seja do mundo social da ficção e da moralismo já posto, da mesma maneira como
vida empírica, para indagar-se sobre as forças a visão transformadora não passa de um fris-
formadoras de seu mundo. É a exigência de son excitante, mas em última instância sem
um fim harmonizante que impõe uma “supre- consequências.
macia da técnica” e faz com que sua racionali- Como podemos, então, aplicar ao contex-
dade específica não só “não poup[e] o texto da to contemporâneo brasileiro essa dialética de
superficialidade, da falta de visão e da artificia- uma poética de escrita teatral representar ao
lidade” (Guinsburg et. al., 2006, p. 236), mas o mesmo tempo o resultado de uma época nova
imprima tais limitações. numa visão conservadora, ao usar seus impul-
A técnica visa organizar, como vimos, pe- sos críticos de uma maneira esvaziadora?
ripécias, situações surpreendentes e quid pro
quo engraçados de tal maneira a configurar
uma história emocionalmente cativante, sem Três breves estudos de caso
que os adornos narrativos ferissem o caráter
realista da história. Ou melhor, sua verossi- 3.1 Vinícius Calderoni e sua trilogia placas
milhança, e com isso seu grau de realismo, é tectônicas
tanto testada quanto respeitada por sua eficá- À primeira vista, a escrita de Vinícius Cal-
cia emocional específica. A ela devem servir deroni pouco tem a ver com a peça bem-feita
os elementos estruturais fixados. Isso indica nos moldes modernos. Aos textos falta uma
a função ideológica dessa dimensão afetiva e estrutura narrativa linear causal, o que já su-
sensacionalista, cujo escapismo é camuflado gere o deslocamento do conflito da trama
pelos recursos realistas, mas revelado pelo ex- ficcional para uma instância meta-teatral, ou
cesso de peripécias. melhor, compositiva, referente à estrutura do
Essa interação entre eficácia emocional e texto. Concomitantemente, a criação de per-
seu enquadramento num naturalismo realista é sonagens mal segue princípios de um realis-
a base formal da finalidade moralista da peça mo psicológico. De fato, a relação entre per-
bem-feita. Os procedimentos que encontra- sonagem e linguagem inverte a dinâmica de
mos – na técnica de criar constantemente ex- causa interna (psicológica) e efeito externo (a
pectativas para no final oferecer uma solução materialidade e retórica da linguagem). Dessa
alegremente conservadora – revelam como maneira, o personagem principal das peças
função fundamental da peça bem-feita a for- é uma figura uma vez coletiva, uma vez anô-
mulação de uma quase transgressão na qual nima: a concretização de um discurso social
está inscrito obviamente um desejo por esse na boca de um ator que nos apresenta um ser
horizonte outro; uma insatisfação para com humano – sendo esse efeito de uma situação

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social e de sua discursividade típica. Tampou- periências sociais complexas e muito doloro-
co encontramos um segredo e mal-entendido sas em suas contradições, o tratamento retó-
a cujo redor circula a narrativa, ou melhor, eles rico jocoso e lúdico esvazia as contradições e
são tratados como a regra e não a exceção as transforma em paradoxos criados por tru-
da comunicação humana. Consequentemen- ques linguísticos. Ao invés de criar, no plano
te, o dénouement numa “cena a fazer” fica da narrativa, uma “cena a fazer”, fabrica-se no
impossibilitado. Nenhuma figura ficcional fica plano da linguagem um “clima a manter”. Um
surpresa ou aliviada com a confissão explícita clima que podemos caracterizar com a avalia-
de um conteúdo onipresente e já vivenciado ção popular de que no mundo avesso a viver
na prática. Mas, da mesma maneira como o as consequências de suas contradições, os
herói deixa de ser uma figura individual e se conflitos se tornam escândalos e as contra-
transforma em figura de linguagem social, po- dições acabam forçosamente “em pizza”. Ou
demos observar que os truques narrativos da dito de maneira mais erudita, o que poderia
peça bem-feita reaparecem como jogos de lin- ser uma paródia crítica do funcionamento so-
guagem, oscilando entre fricções e harmoniza- cial vira um pastiche de formas pré-moldadas.4
ções linguísticas, oferecendo uma continuida- Esse esvaziamento de um conteúdo potencial-
de não-causal entre as cenas por meio de um mente doloroso (e inclusive da forma alegórica
travelling de palavras idênticas por contextos que possui alguma força analítica para falar do
distintos e, consequentemente, de um desliza- mundo atual) pelo tratamento excessivamen-
mento constante do sentido dessas palavras te técnico da escrita, é atestado pelo amigo e
e das cenas. Ou seja, a partir da percepção colaborador do autor, Ricardo Gomes. Diz ele:
inicial de que o herói da dramaturgia contem-
porânea é a linguagem em sua construção so- [O] que está dentro da cabeça de Viní-
cius Calderoni [...] são todas as bana-
cial, podemos identificar funções parecidas às lidades anestesiantes, todo o entulho
da poética narrativa (rocambolesca, oscilante, existencial, todos os escombros que
fazemos daquilo que fizeram (fizemos)
harmonizante e aliviador) em seu vai-e-vem de de nós. […] Um exército de manequins
cenas mais ou menos realistas, mas ao mesmo refugiados. […] Autômatos. Pessoas
forçosamente conformadas com as
tempo beirando a implausibilidade, cenas dra- perdas das próprias pernas. […] Nar-
máticas emocionalmente cativantes e bem hu- radores tentando concatenar informa-
ções que não sabemos se constituem
moradas em seu flerte com o escândalo moral. uma piada, uma denúncia, um sonho,
Desse ponto de vista, não surpreende a uma reportagem sensacionalista ou
um meme. Mas que, no fim das con-
coexistência relativamente harmônica de um tas, deve ser só uma piada mesmo.
eclético, mas apurado feeling formal acerca Sem fim. (Calderoni, 2017c, p. 14).
das características estruturais e materiais do
mundo atual, com um gesto retórico de esva- Como se articulam essas “banalidades
ziar o tempo e a geografia contextual de sua anestesiantes”, esse “entulho existencial”,
trilogia e de esconder na estática de um bem- para poder formar pouco mais que uma piada?
-humorado requinte verbal a dinâmica intrínse- Encontramos, entre outros recursos, o desen-
ca desse contexto histórico. Se as temáticas
citadas pelo material linguístico apontam ex- 4 Sobre a diferenciação entre paródia e pastiche, ver Jame-
son (2002) e Eagleton (1995).

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caixe de réplicas e o deslocamento brusco do abraça PEDRO]


endereçado, o que produz ao mesmo tempo PEDRO: A gente já entregou o papel
do estacionamento?
uma escrita fluida e desconexa, cheia de bura- JANAÌNA: Já, tava na minha bolsa,
cos (ou de micro-peripécias numa terminologia lembra? (Calderoni, 2017b, p. 30, gri-
fos nossos).
mais tradicional):

Paula: Eu quero encostar na sua pele Em nível daquilo que tradicionalmente é de-
macia, eu quero te beijar dos pés à ca- nominado de personagem, apreendemos sua
beça.
Sergio: Relaxa aí, toma um uísque,
transformação em discurso padronizado, seja
assiste uma tv...Oi, mãe! E esse texto esse discurso social ou afetivo (instâncias de
você já leu? enunciação denominadas de Amigo Cômico e
Julio: Um táxi. Um táxi vazio. Um táxi
que transporta o amor da minha vida. Amigo Trágico (Calderoni, 2017c, p. 23) ou pro-
Lara: Um táxi logo depois de deixar o duzido por instâncias sem definição cuja fala
amor da minha vida em seu destino,
voltando a ser um táxi vazio. Eu que- remete diretamente aos meios de comunica-
ro morder esses seus lábios carnudos ção e seu estilo de notícia sensacionalista (Cal-
até sair sangue.
Paula: Porque você não tira sua rou- deroni, 2017a, p. 20), ou um discurso alegórico
pa? (Calderoni, 2017a, p. 19). com figuras intituladas Esperança, Ódio, Medo
(Calderoni, 2017c, p. 43), ou figuras aparente-
Percebe-se também a repetição da mesma mente individualizadas que alteram entre a po-
palavra em cenas distintas o que serve para sição de narrador e de interlocutor (Calderoni,
dar suavidade a uma transição que não possui 2017b, p. 52-56) ou figuras que expõem, junto
um nexo causal e às vezes nem temático, sen- com sua fala, o subtexto destoante (Calderoni,
do pouco mais que um truque (como a apre- 2017c, p. 29-33).
sentação surpreendente de uma carta desco- O que atravessa esses exemplos como fio
nhecida na peça bem-feita tradicional) para condutor comum é uma ausência de interio-
oferecer uma diversão textual. Tematicamente ridade, tanto na comunicação intersubjetiva
falando, permite estabelecer uma oscilação de quanto na percepção intrasubjetiva, como se
pontos de vista que não implicam consequên- as figuras não fossem capazes de viver a partir
cias, apesar da onipresença sugerida pela téc- de uma vontade própria. É o mundo, por meio
nica do travelling linguístico: de suas máscaras linguísticas em forma de
discursos sociais, que os conduz e que dirige
[Narrador não nomeado da cena 2, no
final de uma longa reflexão e narração suas maneiras de relacionar-se e comportar-
de mais que cinco páginas]: ...se você -se.
olhar bem, todos os vínculos que se
tem na vida são sempre um pouco Estamos perante uma relação humana de
precários. Os fios que nos conectam passividade ante forças externas – forças que
às pessoas que amamos e às coisas
se manifestam como leis de mercado, práti-
que fazemos. É exatamente como um
fio, e, como um fio, pode ser facilmen- cas de comunicação comercial e publicitária –
te rompido. Não sei, tô sendo muito que atravessam o mundo e às quais os seres
chato? humanos se veem (ou acreditam) obrigados
JANAÌNA: Pros outros não sei, mas
para mim, que já te ouvi falar disso a sujeitar-se, transformando a si mesmos em
umas duzentas vezes, um pouco. [ri e efeitos dessas posições sociais ou libidinais:

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“Pessoas forçosamente conformadas com as nesse instante contínuo muda incessantemen-


perdas das próprias pernas.” te, mas não sua qualidade de insuficiência e de
Não é que essa atitude está também na raiz efemeridade absoluta.
da forma específica da intriga da peça bem-fei- Calderoni percebe que essa estrutura de
ta? Uma intriga na qual incidentes surpreen- sua escritura está ligada ao espírito de nosso
dentes, em geral pouco motivados pelas ações tempo. Na introdução a sua última peça, Cho-
das figuras, levam os conflitos a um final feliz; rume, ele nos diz (2017c, p. 7) que reagiu com
uma felicidade que consiste em perceber que esse texto a uma provocação que dialogava
os conflitos foram nada mais que alguns mal- com as outras peças da trilogia: a de escrever
-entendidos e que uma harmonia preestabele-
cida – a mão invisível que milagrosamente diri- um espetáculo que se propusesse a
encenar coisas tão exóticas quanto
ge as peripécias narrativas – se impõe também um manifesto político, manuais de ins-
ao final da intriga de tal maneira que o destino talação de eletrodomésticos, bulas de
remédio, placas de trânsito, entre ou-
premia invariavelmente o herói? Certamente, tras manifestações […] ficou claro, na-
entre o século XIX e a atualidade, a descrença quele instante, que essa premissa se
relacionava em muitos aspectos com
perante esse tipo de solução ficcional se agra- questões presentes na dramaturgia de
vou, talvez até virou um niilismo abundante em Não nem nada e com temáticas que
estavam começando a despontar em
círculos intelectuais, mas a tentativa de viven- Arrã.
ciar um prazer na dor da passividade (real ou
acreditada) permeia ambos os estilos teatrais. É patente que os textos de Calderoni se
A descrição que o próprio Calderoni faz da apresentam como um sintoma da globalização
estrutura de sua primeira peça nos remete à neoliberal com suas relações sociais aparen-
aglomeração de faits divers na peça bem-feita temente líquidas. E revelam o problema que
do século XIX. Escreve Calderoni: surge quando os artistas querem fundar sua
autonomia artística num gesto autorreferencial
Penso que Não nem nada é um grito
coral polifônico, um concerto sinfôni- que se nega a marcar no interior de seus textos
co camerístico de caos ordenado, um como dialogam concretamente com seu con-
texto/espetáculo em plano-sequência
historicamente situado entre as coisas texto social. Para Calderoni e Gomes, “as coi-
que existiam antes de nós e as coisas sas vão acontecendo. E saber onde elas co-
que serão criadas depois que morrer-
mos, num momento frágil do tempo meçaram provavelmente não vai mudar seus
que podemos chamar de ‘este exato desfechos” (Calderoni, 2017c, p. 14). Essa ati-
instante’ - que nunca mais vai se re-
petir e é completamente insuficiente.
tude fatalista é, a meu ver, estruturalmente cor-
(2017a, p. 9). respondente com as estratégias dos marque-
teiros neoliberais do sistema financeiro atual
Aqui encontramos condensados uma visão de apresentar decisões políticas como medida
da história tanto individual quanto social sem obrigatória sem alternativa, exigida pelo fun-
especificidades e sem constantes, a não ser cionamento da realidade supostamente única
aquela importantíssima de ter seu olhar preso que se chama economia neoliberal. Elas são
no plano sequência de instantes desconexos e também responsáveis pelo fato de que aquilo
privados de plenitude. O conteúdo perceptível “que era ainda construção [...] já é ruína” (Cal-

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deroni, 2017c, p. 9). rais que salvaguardam as especificidades de


Entretanto, na música Fora da ordem de cada peça, e as compreendemos aqui como
Caetano Veloso, que a frase cita, essa cons- projetos políticos enquadrados em formatos
tatação se refere ao contexto explícito de uma estruturais conflitantes. Isso, a priori, nos le-
escola pública que virou boca dos adolescen- varia a crer em uma potência de crise, de an-
tes armados pertencentes ao narcotráfico. E tinomia entre forma e conteúdo. No entanto, o
Caetano remete a busca por prazer o tempo que queremos destacar é que, em face de uma
todo às forças que impelem os seres humanos composição dramática, o discurso politizado
a refugiar-se num mundo privado cujo prazer, recai num lugar de pouca exploração. Nesse
portanto, é moldado pelas forças dessa nova sentido, o que marca em particular esses dois
ordem. Nos textos de Calderoni essa relação textos de Jô Bilac não é, tal como em Vinícius
fica no máximo implícita e pressuposta, sem Calderoni, a despolitização da peça em uma
ser tematizada. Antes, ela é esvaziada de sua arquitetura bem estruturada, mas o enfraque-
dimensão social concreta a tal ponto de ex- cimento da perspectiva crítica que é, a prin-
pressar uma operacionalidade abstrata a qual cípio, o leitmotiv das peças, diante da forma
o ser humano pode assistir e dentro da qual ele adotada. Ou seja, em ambas há um proces-
pode agir, sendo um motor automatizado de so relativamente próximo, que é um discurso
sua produção. A questão que se coloca aqui pretensa e potencialmente politizado que não
é: até que ponto a dramaturgia de Calderoni é absorvido por completo pela estrutura e, em
apenas contribui para formar um vaudeville em virtude disso ou em conjunção a isso, acaba
ruínas, mas mesmo assim quase infantilizan- não tendo maior aprofundamento no encami-
te, ou consegue constituir uma comédia social nhamento dramático.
paródica que expusesse a estrutura da dinâmi- Tanto em Conselho de classe quanto em Al-
ca social em curso? Até que ponto é uma peça guém acaba de morrer lá fora há a intenção
bem-feita ou um problem play? do discurso crítico à sociedade anestesiada e
imobilizada diante das condições em que se
3.2 Pensamento politizado em uma moldu- encontram suas personagens. O que vemos,
ra dramática ensimesmada: Jô Bilac no entanto, na articulação desse discurso a
Diante dessa proposta de procurar novos uma escolha estética, é a reafirmação de al-
avatares da peça bem-feita, em conjunção guns lugares comuns, escapando para a bana-
com um ideário teatral contemporâneo, tome- lidade das situações e arranjando saídas fáceis
mos como exemplo duas peças do dramatur- e diluídas para o problema proposto.
go carioca Jô Bilac, que abordam questões Em Conselho de classe, durante uma re-
relacionadas a uma estrutura que parece estar união de conselho de classe de uma escola
adquirindo contornos na literatura dramática estadual, quatro professoras discutem o im-
brasileira contemporânea: Conselho de clas- bróglio que coloca a situação da escola num
se, escrita para a comemoração dos 25 anos lugar de conflito: os alunos se rebelaram con-
da Companhia dos Atores (2013), e Alguém tra as ordens da diretora, o que provocou um
acaba de morrer lá fora (encenada em 2011). acidente seguido de um surto psíquico dela,
Nos dois casos, há particularidades estrutu- e seu consequente afastamento. Surge, então,

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um jovem diretor substituto que tenta conciliar crita às situações convencionais do jogo inter-
os embates que surgem entre as professoras. subjetivo, articulando em si os lugares comuns
A narrativa é baseada fundamentalmente nos sociais sobre educação, escola pública, pro-
conflitos individuais e joga com a banalidade fessores etc.
das situações, ocasionando numa estrutura Há, ao longo da exploração da problemá-
ensimesmada, que não transborda os limites tica escolar, uma preocupação legítima de se
do drama. aproximar desse conteúdo crítico em relação
O que se nota é uma tentativa de colocar às condições cotidianas de uma educação que
em choque as opiniões opostas e contraditó- é costumeiramente tratada como “perfumaria”
rias do corpo docente, o que de fato ocorre, na vida política brasileira, da mesma forma
embora o argumento em alguns momentos como a profissão é considerada inferior e me-
reproduza os velhos chavões que pautam a nos interessante socialmente. E esse discurso
discussão sobre o ensino público, pouco se está presente na peça, levantando os parado-
distanciando da reafirmação do que se vê nos xos vivenciados, as condições exaustivas e as
meios midiáticos. Evidente que há uma dispo- ingenuidades que acompanham a formação
sição irônica no texto em relação à opinião se- do educador no Brasil. No entanto, não seria
dimentada sobre professores, alunos e escola. bastante curioso que tal discurso esteja diluído
Mas a expansão de sua veia crítica e do deba- entre as opiniões diversas, quase obnubilado
te esbarra, justamente, na proposição formal pela forma convencional que assume a peça,
escolhida, fechada e interpessoal. dialógica e bem estruturada? Nesse sentido,
Talvez pudéssemos relacionar, de alguma o que pode parecer aqui é uma aproximação
forma, esses temas do cotidiano que emer- demasiada com esse lugar comum educacio-
gem na narrativa da peça àquilo que Sarrazac nal sem distanciar-se de forma apropriada dele
(2017) chama de infradramático: a representa- para enfim discuti-lo com a devida atenção.
ção de personagens muito comuns, em que O que, nesse sentido, alinha tal peça a uma
“nada acontece”, sem grandes catástrofes. certa ideia de peça bem-feita contemporâ-
No entanto, como o crítico francês observa, o nea seria seu uso bem articulado da estrutura,
“infradramático não mora somente na falta da marcadamente dando conta de uma situação
estatura das personagens, dos acontecimen- contraditória e crítica por si só na formulação
tos e outros microconflitos; ele liga-se à subje- algo fechada do drama, sedimentando assim o
tivação e, portanto, à relativização que marca conteúdo na forma. Isso, em si, não é um pro-
todos esses microacontecimentos e microcon- blema para o teatro contemporâneo, que tem
flitos. Em outros termos, muitas vezes é com como caráter fundamental as possibilidades
um teatro íntimo e de conflitos intrassubjeti- artísticas variadas. O que vemos, nos parece,
vos, intrapsíquicos que estamos lidando” (Sar- é a reafirmação, pela articulação do conteú-
razac, 2017, p. 54). É então que reconhecemos do à forma, de um discurso hegemônico que
as limitações dessa dramaturgia, na medida não encontra resistência: depois de uma longa
em que seu formado fechado, dramático, não tarde de discussão, o jovem diretor substitu-
captura o íntimo do íntimo para referir-se ao to abre pacificamente sua cerveja com a pro-
universal. Ela, no entanto, permanece circuns- fessora Célia, e ambos vão para suas casas

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acomodados com a condição. Há um apazi- tral da narrativa. Enquanto estrutura dramatúr-


guamento do debate posto, pela simples so- gica, portanto, a peça é potente em sua rela-
lução narrativa de desfecho da fábula. Assim, ção entre os dispositivos de que lança mão,
acompanhamos a problemática em uma es- estabelecendo uma história que se desdobra
trutura bastante fechada, dialógica e absoluta, em várias e desestruturando o espectador/lei-
seguindo os termos szondianos de análise. tor diante do que vê. Cheia de reviravoltas e
Alguém acaba de morrer lá fora é, segun- efeitos de impacto, o texto deixa escapar, com
do seu dramaturgo, uma insurgência “contra a isso, seu discurso oficial, na medida em que a
burguesia e sua alienação desrespeitosa com crítica social e politizada se desarticula diante
o outro”, e carrega consigo “os discursos re- da descontinuidade narrativa. Queremos notar,
petitivos, o senso comum, a opinião rasa a diante desse jogo dramático que se estilhaça
respeito das coisas, a indiferença, o abismo” diante do espectador, que o discurso politiza-
(2012, p. 6). De fato, estamos diante de uma do e potencialmente crítico sobre a dita bur-
situação de inércia, em que as personagens guesia pós-moderna fica escorregadio diante
em cena nada fazem e, de formas diferentes, das convenções dramáticas assumidas.
encaram a morte em sua violência imediata. “Ouve-se uma freada brusca de um carro
Ao propor contar quatro versões diferentes de do lado de fora do café. Instintivamente, todos
reações diante de um atropelamento – quatro olham para a porta de vaivém. Vozerio do lado
possibilidades de enfrentamento da morte –, a de fora. Expectativa” (Bilac, 2012, p. 29). A par-
preocupação da dramaturgia recai muito mais tir de uma cena inicial, em que as personagens
sobre a forma da narrativa e sua solução do são apresentadas e também estão expostos os
que necessariamente sobre aquela alienação seus mistérios particulares (cada um marcou
burguesa prevista na apresentação da peça. um encontro para aquele horário), e um breve
Novamente, assim como em Conselho de clas- enfrentamento com o garçom Dodô, essa ru-
se, vemos diante de nós uma profusão de lu- brica marca o ponto de convergência das ce-
gares comuns – narrativos e ideológicos – que nas seguintes. A continuidade é circular, em di-
nos fazem perder a dimensão exata do que a ferentes versões sobre o que poderia vir após
peça almeja tematicamente. o atropelamento: pressupõe-se, em cena, o
Em um bar, três clientes – Cláudio, Laura que seria a reação de cada um se o atropelado
e Marcela – esperam por alguém com quem fosse a pessoa com quem tivesse marcado o
marcaram um encontro naquele local, enquan- encontro. Então, são projetadas as reações de
to fazem pedidos a um garçom mal-humora- Cláudio, Laura e Marcela. Desmembra-se, as-
do. Depois de uma breve discussão sobre a sim, a narrativa em braços de possibilidades,
condição deles e um acontecimento – o ba- marcando a imprecisão fabular. A estrutura, em
rulho de um atropelamento na rua –, a história si, é o que ganha destaque nessa dramaturgia,
é repassada com variações conforme visões atraindo a atenção, divertindo e marcando seu
potencialmente diferentes. Em todos os ca- objetivo. Nesse sentido, o que vemos, a exem-
sos, desloca-se a perspectiva e se reconfigu- plo do que ocorre em Conselho de classe, é um
ram os caminhos e os impactos da morte em esvaziamento do discurso pretendido (declara-
cada personagem, desarticulando o eixo cen- damente anti-burguês pelo autor) em virtude

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da atenção dedicada à forma de narrar. político. A peça bem-feita do século XIX esta-
Se há um pressuposto sobre a experiên- va, direta ou indiretamente, ligada a um pen-
cia ou o impacto de cada um diante da mor- samento de classe, em vista do crescimento
te, ou mesmo uma necessidade de abordar a da burguesia e a ânsia que se tinha de criar ou
futilidade e o vazio da vida burguesa, ele fica projetar um modelo para o público. Buscava-
enfraquecido pela ordem estrutural, incitada a -se, assim, um efeito moral, adequado à classe
fim de provocar certo impacto no público pela que representa. Em vista disso, dá-se privilé-
imprecisão de que lança mão. Ainda na cena gio à formulação verossímil, de forma que o
inicial, ocorre um breve embate entre o garçom público se reconheça no modelo projetado em
e os clientes por causa de troco: “Cláudio: ... cena, efetivando o molde do público conforme
[indo até o balcão, puxa o dinheiro] Pela água./ as normas morais tidas à época como vigentes
Dodô: Não tem menor? [...] Dodô: [encara, im- (v. Faria, 2006).
paciente] Tô sem troco... Alguém troca?” (Bi- É nesse sentido que reconhecemos o fun-
lac, 2012, p. 27). Diante da negativa dos ou- cionamento da dramaturgia de Jô Bilac, que
tros clientes, instaura-se uma discussão entre abarca e reproduz um discurso moral de um
eles, com frases como “Marcela: Você deveria nicho social, mas sem expandir o debate. Ou
se esforçar mais pra agradar sua clientela!” ou seja, ao se apropriar de uma estrutura fechada,
“Dodô: E a senhora é uma burguesa metida a ela não dá espaço às discussões politizadas
besta!/ Dodô: Todos vocês! Escrotos! Choran- que o dramaturgo almeja e coloca em estado
do de barriga cheia!” (Idem, ibidem). de potência. Ao contrário, o simples apazigua-
A cena não vai muito além disso e dá lugar mento das questões praticamente reforça o
justamente para as proposições formais. Logo senso comum, de forma que um público par-
após o “bate-boca generalizado”, o persona- ticular se reconheça no discurso habitual. Há,
gem Cláudio aparta a briga com frases como enfim, uma reprodução dos lugares comuns
“E eu tenho certeza de que o Dodô se esforça- vistos, aproximando-se assim desse efeito
rá um pouco mais para conseguir o meu troco, realista do comum, e marcando as escolhas
não é, Dodô?” (Idem, p. 28). A cena se encer- dramáticas de verossimilhança.
ra sem ampliar o debate, e a peça segue sua
proposta de desenvolver as várias possíveis 3.3 João Sanches e a comédia Entre nós:
continuações da história, partindo sempre do peça bem-feita ou problem play?
atropelamento. Assim, aquilo que se apresen- As peças de João Sanches são exemplos
ta por sua potencialidade crítica acaba sendo de dramaturgia contemporânea encenada e
submergida pela estrutura em jogo. O que se publicada no Nordeste, particularmente em
vê, com isso, é a repetição dos lugares-co- Salvador, na Bahia. O premiado texto Entre
muns que mais reafirmam os estereótipos do nós: uma comédia sobre diversidade (San-
que os problematizam. ches, 2015) apresenta dois atores que criam
Nesse sentido, diante dessas duas peças de uma peça sobre diversidade sexual no mo-
estruturas aparentemente diversas, a relação mento da apresentação. Para isso, discutem,
com uma pretensa peça bem-feita contempo- narram e encenam a fábula simultaneamente.
rânea pode ser alinhada a um senso amplo do A partir dessa estrutura metadramática, as per-

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sonagens-atores vão inventando outras per- Diante da situação, o leitor/espectador é


sonagens e compondo uma intriga cujo des- convidado a decidir se o casal de persona-
fecho o leitor/espectador terá que arbitrar. As gens pode, enfim, se relacionar e realizar o
personagens-atores interpretam a história de beijo impedido durante todo o espetáculo, ou
Rodrigo e Fabinho, dois jovens estudantes do se a peça deve terminar com uma música que
ensino médio que, apesar de envolvidos afeti- “deixa o fim em aberto”. O texto sugere que
vamente, não conseguem sequer se beijar pela plateia vote e oferece as duas opções de des-
primeira vez. Com abordagens antagônicas fecho, mas é evidente o intuito de que a plateia
sobre o tema diversidade sexual, as persona- escolha o final que autoriza o beijo e a relação.
gens-atores discutem sobre as características Interessante notar que, com um beijo final,
e atitudes de Rodrigo e Fabinho, sobre o de- os dois planos desse metadrama (plano das
senvolvimento da intriga e, finalmente, sobre o personagens-atores e das personagens que
desfecho da trama. Depois que os adolescen- eles interpretam) se fundem. Se pensarmos
tes superam uma série de situações que im- ainda que o devir cênico do texto aponta para
pedem o beijo dos dois, o casal ainda enfrenta a realização performativa do beijo por dois
um último empecilho: a divergência dos atores homens, ao vivo, na presença de uma plateia
sobre se eles devem ficar ou não juntos no fi- que escolheu esse acontecimento por meio de
nal e se a cena deverá ter beijo. uma votação, podemos concluir que a peça
propõe (e sua encenação proporciona de fato)
ATOR1 - Não, na verdade, eu acho que um acontecimento (micro)político imediato, di-
não deveria ter o beijo.
ATOR2- Uma história de amor sem bei- retamente ligado ao tema e a todos presentes
jo?? em cada apresentação.
ATOR1- Exatamente. Muito menos óbvio.
E bem contemporâneo. Formulada por Sarrazac (2012), a noção de
ATOR2 - Ah, não... devir cênico se refere à força e às virtualida-
ATOR1- Hoje em dia, o comum é o rela-
cionamento não dar certo. des cênicas de uma obra, ou seja, “pelo que
ATOR2- Mas nesse caso o relacionamen- num texto – que pode ser não dramático – so-
to nem começou.
ATOR1- Bem contemporâneo. licita o palco e, numa certa medida, reinventa-
ATOR2- Eu acho muito pessimista. Me- -o” (Sarrazac, 2012, p. 66). No caso de Entre
lhor ter o beijo.
ATOR1- Muito melhor deixar a coisa em nós, o devir cênico da dramaturgia extrapola
aberto. o universo ficcional da intriga, ou da situação
ATOR2- Esse lance de deixar o casal gay
metadramática da peça, e provoca os leitores/
sem beijo é muito novela.
ATOR1- Esse lance de ter beijo romântico espectadores no sentido da realização de uma
no fim também. ação afirmativa direta, via dramaturgia e ence-
ATOR2- Ok. Então a platéia decide. Su-
per contemporâneo. nação.
ATOR1- O público decidir o fim da história Se considerarmos ainda a noção de desvio
é coisa de programa de TV dos anos 90.
ATOR2- Gente, a verdade é que o meu (Sarrazac, 2012), podemos identificar muitos
colega aqui é heterossexual e está resis- procedimentos dramatúrgicos que se des-
tindo em me beijar. Pronto. Falei.
ATOR1- Nada a ver! De jeito nenhum! viam de modelos tradicionais ou majoritários:
Eu só acho que não tem que rolar beijo recursos metalínguisticos, narrações, questio-
porque é muito menos óbvio. (Sanches,
2015, p. 125-127). namentos, variações de tempo e espaço, frag-

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mentações da fábula e apelo à intervenção di- leitor/espectador. As outras personagens (he-


reta do leitor/espectador, com dois desfechos terossexuais) da trama, no entanto, são apre-
diferentes para a intriga. sentadas de um modo mais caricatural (com
A dramaturgia de Entre nós, portanto, adere efeitos de estranhamento que destacam e cri-
a dispositivos de enunciação bastante recor- ticam atitudes preconceituosas naturalizadas
rentes nas dramaturgias moderna e contem- em nosso cotidiano).
porânea: “O questionamento, sempre essa Cheia de reviravoltadas e situações compli-
tendência filosófica, que encontramos em Pi- cadas, a intriga de Entre nós, embora apresen-
randello, Brecht, Strindberg ou Beckett, invade te muitos desvios autorreflexivos, reúne quase
a ‘ficcionalização’ e contribui para redistribuir todos procedimentos da peça bem-feita, inclu-
o material em função do fabulador. Poder-se- sive a tradicional “cena a fazer”, a cena “obri-
-ia dizer, num sentido quase judiciário, que a gatória” na qual os antagonistas se enfrentam
fábula é processada” (Sarrazac, 2017, p. 10). de maneira definitiva.
No entanto, é preciso reconhecer que não Nesse sentido, seria Entre nós uma peça
há nada de novo na utilização desses desvios, bem-feita contemporânea? Seria a intriga e o
uma vez que eles sempre foram recorrentes desfecho feliz da peça (o beijo e afirmação do
nas dramaturgias de cunho épico e há muito afeto dos dois homens) uma solução alegre-
tempo foram incorporados por construções mente conservadora? Ou seria a adoção de
contemporâneas que não teriam, em princípio, princípios da peça bem-feita (particularmente
intenções de produzir uma dramaturgia efeti- a eficácia emocional e o intuito moralizante)
vamente crítica. No caso de Entre nós, a inten- uma apropriação irônica da dramaturgia de
ção crítica é explícita mas, se por um lado a Entre nós? Seriam esses procedimentos con-
dramaturgia realiza desvios de tendência épi- vencionais utilizados para, justamente com
ca, por outro lado, a peça também apresenta sua eficácia, demonstrar que as convenções
grande parte dos aspectos que neste artigo estabelecidas não incluem a todos? Seria En-
são associados à peça bem-feita contempo- tre nós “a problem play”? Ou, pelo contrário,
rânea como, por exemplo, a busca por eficá- com sua estrutura “bem-feita” a peça apenas
cia emocional, garantida pela identificação do reafirma os valores burgueses pós-modernos,
leitor/espectador com as personagens e com apesar de realizar uma crítica pontual? Recla-
uma intriga que o mantém em suspense, que mar o reconhecimento da homoafetividade
o entretém com peripécias, reconhecimentos e pela sociedade atual, nesses termos, significa
situações surpreendentes. Essa estrutura con- afirmar seu atual sistema de funcionamento?
figura um enredo e uma teatralidade que cativa
emocionalmente e, com isso, também busca
alcançar um efeito moralizante. Esses aspec- Breve conclusão
tos são evidentes em Entre nós, pois o texto
apresenta tanto o casal enamorado quanto a Se os exemplos dramatúrgicos apresen-
dupla de personagens-atores que o interpre- tados e discutidos neste artigo, sobretudo
ta de maneira realista e individualizada, com o os primeiros dois, podem ser, sob diferentes
objetivo de criar identificação e empatia com o abordagens, considerados novos avatares da

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peça bem-feita, naquilo que ela tem de con- CARDWELL, Douglas. The well-made play of
servadora, então talvez uma pergunta ainda Eugene Scribe. The French Review. vol. 56, n.
mais produtiva deva ser feita: que dramaturgias 6. May, 1983. pp. 876-884.
contemporâneas no Brasil podem ser conside-
radas efetivamente críticas e transgressoras? EAGLETON, Terry. “Capitalismo, Modernismo
Em que medida uma peça contemporânea e Pós-Modernismo”. In: Crítica Marxista. São
consegue sustentar um discurso crítico a uma Paulo: Brasiliense, v.1, n.2, 1995. pp. 53-68.
forma articulada e propositiva? Compreende-
mos, diante de certo espectro contemporâneo, FARIA, João Roberto. Teatro e compromis-
que a saída que “acaba em pizza” apazigua e so social. In: Antologia do teatro realista. São
abandona as contradições e fricções neces- Paulo, Martins Fontes, 2006.
sárias para o pensamento crítico, deixando-se
tomar pelo simples efeito de cena e que não GUINSBURG, Jacó; FARIA, João Roberto;
sustenta a eficácia também em seu conteúdo. LIMA, Mariângela Alves de (Orgs.). Dicionário
Entendemos que, para este fim, a peça pre- do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos.
cisará incorporar não apenas um material que São Paulo: Perspectiva, 2006.
tenciona dolorosamente a realidade empírica,
mas também um acabamento formal que im- JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica
possibilite que o teor do material possa ser cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Áti-
assimilado ao status quo sem que esse passe ca, 2002.
por uma transformação ou um deslocamento
estrutural decisivo de suas forças formadoras. SANCHES, João. Entre nós: uma comédia so-
bre diversidade. Salvador: EDUFBA, 2015.

Referências SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama.


Porto: Campo das Letras, 2002.
BILAC, Jô. Alguém acaba de morrer lá fora. Rio
de Janeiro, Cobogó, 2012. SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do dra-
ma moderno e contemporâneo. São Paulo:
BILAC, Jô. Conselho de classe. 2. ed. Rio de Cosac Naify, 2012.
Janeiro, Cobogó, 2016.
SARRAZAC, Jean-Pierre. Poética do drama
CALDERONI, Vinícius. Não nem nada. Rio de moderno: de Ibsen a Koltés. São Paulo: Pers-
Janeiro: Cobogó, 2017a. pectiva, 2017.

CALDERONI, Vinicius. Arrã. Rio de Janeiro: STANTON, Stephen. Scribe’s “Bertrand Et Ra-
Cobogó, 2017b. ton”: a well-made play. In: The Tulane Drama
Review. vol. 2, n. 1. Nov. 1957. pp. 58-70.
CALDERONI, Vinícius. Chorume. Rio de Janei-
ro: Cobogó, 2017c.

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cena n. 27

TAYLOR, John Russel. The rise and fall of the


well-made play. London & New York: Routled-
ge, 2014. (Originalmente publicado em 1967
por Methuen & Co. Ltd.)

VELOSO, Caetano. “Fora da Ordem” in: Circu-


ladô. Gravadora: Elektra, 1991

Recebido: 04/12/2018
Aprovado: 11/01/2018

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