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BoletimlCESP PI. 14 v. J7.jaPl.

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texto, operando de acordo com ficção e seus elementos estru-


o modelo definido de tradução turais, uma escrita da história
diferenciada, se demonstra plural, onde auto-reconhe-
assim particularmente produti- cer-se coletlvamente. Se
va em representar os mecanis- incorpora assim no tempo
mos recônditos do pacto auto- estético do texto literário o ato
biográfico, onde a divergência "destrutivo-criativo" de salvar
temporal entre vivência e o passado enquanto tempo
narração, que inviabiliza qual- atual como Graciliano faz nas
quer tentação de decalque, Memórias do Cárcere, movi-
remete logo para a narratlviza- mento esse que Silvia no ampli-
ção dos dados da experiência. fica no seu romance-ensaio
A rearticulação do passado por que, problematizando não só o
efeito da operação tradutora, a tema da própria forma da obra,
reflexão que esse processo a transforma em matriz ativa e
desencadeia acerca dele, aberta de novas experiências
confere ao projeto literário uma para os outroslleitores (p.136).
outra vantagem decisiva: a de Por esses caminhos, Wan-
abri-lo para os outros como der Melo Miranda constrói um
"lugar de reflexão" do próprio ensaio onde os textos literários
passado, ao mesmo tempo que de Graclllano e Silvia no, meti-
ele se manifesta como lugar de culosamente desmontados e
reflexão do seu próprio fazer estudados, se tornam pre-tex-
enquanto fazer textual (p.118). tos para uma pluralidade de
O corte epistemológico do implicações e inquietações,
ensaio de Wander Melo que apontam a critica, à
Miranda, proporcionado pelo maneira da literatura que ela
extraordinário manancial de própria analisa, como espaço
temas teóricos, estéticos, privilegiado de reflexão e de
politicas, que decorre da exegese do mundo.
conjunção intertextual das
obras de Gracillano e Silviano, Roberto Vecchi
se aprofunda ainda mais
questionando os mecanismos
próprios de construção do LIMA, Délcio Monteiro de.
discurso histórico, revisados .Os sobrinhos de Judas. Rio
através dos elementos de des- de Janeiro: Francisco Alves, 1992.
contrução do discurso literário.
A simbolização da experiência
184 p,
e do passado através do corpo
como metáfora da história e do Trinta dinheiros. Por eles o
todo social que os dois escrito- apóstolo Judas vendeu o Cristo
res realizam, conferindo a aos fariseus. Arrependido da
palavra viva e marcante, torna transação comerciai mais
transitiva a experiência singu- repugnante que a cristandade
lar do relato autobiográfico que conheceu, desesperado por ter
possibilita, na aliança aparen- traldo o divino Mestre, o Isca-
temente paradoxal com a riote enforcou-se. A imagem de

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seu corpo dependurado no Os financiadores do Golpe


ramo da figueira amaldiçoada de Estado de 1964, as diferen-
é, ao mesmo tempo, slmbolo tes formas de comportamento
do castigo pela traição, ainda sexual, o papel sócio-econõmi-
que prevista nas Sagradas co das seitas religiosas impor-
Escrituras, e exemplo de auto- tadas, a trajetória da Igreja
extermlnio pela desmedida Católica no Brasil desde os
ambição. Do ano 1 aos nossos seus primórdios. Esses são os
dias, Judas tem deixado incon- temas pesquisados pelo autor
tável número de descendentes. nas obras precedentes, e
Para estes, todos os meios são apresentados aos leitores num
válidos para conseguir dinhei- discurso jornallstico compe-
ro, bens, riqueza. tente, que prima pela idonei-
Inspirado nessa grande dade de fontes (ainda que não
metáfora do comportamento reveladas em rodapés nem
argentério de Judas, Oélcio bibliografias). Um discurso de
Monteiro de Lima intitulou seu leitura agradável porque bem
último livro, cujo tema gira em articulado e claro.
torno do empresariado brasi- Em Os sobrinhos de Judas,
leiro e suas relações com o a fratura exposta é a vida
capital: Os sobrinhos de financeira do empresa riado
Judas. Ou Lobos de Terno e nacional, destacando-se sua
colarinho branco - conforme a ambição desmedida de lucro
ilustração da capa de Gian fácil, cujas conseqQências
Calvi - encarando-se de frente, atingem não somente o baixo
apertando-se as mãos e padrão de vida do trabalhador
aproximando-se para um por causa dos salários indig-
abraço de aliança cartelizada, nos, mas também a economia
unidos contra a Pátria. global do Pais: pela sangria
Trata-se de mais um ensaio nos cofres públicos pela
corajoso do autor, cujos en- sonegação de impostos, pelo
saios anteriores também se trambique no pagamento das
voltam para temas contunden- obrigações sociais, pela
tes e polémicos que a evasão de divisas.
sociedade brasileira insistia ~ importante registrar que o
em não discutir abertamente autor não cai em generali-
até bem pouco tempo. Se zações p.erigosas, nem se
começa a discuti-los agora - e mostra inimigo dos empresá-
ainda com certa timidez, rios enquanto constituintes de
devido a pressões e precon- uma classe. Não trabalhando
ceitos de indivlduos e grupos com categorias marxistas de
influentes que se arvoram em análise sócio-econõmica,
donos da verdade - os livros de Oélcio também não os vê como
Oélcio são, a meu ver, de o inimigo público número um.
leitura indispensável para o Ao contrário. No capitulo
descongelamento urgente "Idolatria da esperteza", diz o
dessa discussão. autor: "A acumulação de capi-
talou riqueza no curso dos

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anos não é, portanto, pecado sempre foi o pilar de sus-


ou crime, muito menos objeto tentação do marxismo, acres-
de vergonha. A prosperidade centamos, por outro lado nos
do empresário não significa parece legitima a tentativa de
necessariamente desonestida- incrementar todas as forças
de. O talento para novas inicia- sociais, para que se alcance o
tivas e o trabalho perseverante socialismo democrático sem
podem levar a uma acumulação passar pelo estágio da luta
de riqueza perfeitamente acei- concreta e da ditadura do pro-
tável e até servir de exemplo letariado. O autor acredita nes-
para outros empresários que sa possibilidade. É o que se lê
lhe sigam os passos" (p. 46). nas entrelinhas de seu texto.
Ainda que os marxistas dis- Nos termos dessa crença
cordem dessas colocações, politica, Oélclo não ataca o
elas atestam com certeza o empresário enquanto abstra-
nlvel de isenção politico- ção, mas os maus empresá-
ideológica de seu autor no rios, comparando-os inclusive
tratamento do assunto, ao com os de outros palses para
desnudar por inteiro a vida pro- ressaltar as fraudes e o mau
fissional Intima do empresaria- desempenho dos brasileiros:
do nacional, em suas relações "Enquanto o europeu ou
capitalistas de produção com- americano busca, num esforço
pletamente deterioradas. Com continuado, o fortalecimento
muitas provas e dados de sua empresa, o homem de
irrefutáveis. negócios brasileiro persegue o
Também numa posição não enriquecimento pessoal rápi-
marxista, longe de qualquer do. Nessa diferença de objetl-
modismo pois ela está presen- vos está toda a orientação de
te em seus livros anteriores, o comportamento e as implica-
autor ultrapassa a questão da ções inerentes a atitudes e
luta de classes. em sintonia compromissos com a comu-
com o sindicalismo pós-moder- nidade.( ... ) Um possui cons-
no e em sua forte vertente ciência da responsabilidade
brasileira. Afirma Oélcio que a social, enquanto o outro visa
mentalidade da desconfiança e tão somente o lucro" (id.ib).
da animosidade entre patrões O lucro, a esperteza, a
e empregados precisa acabar, ambição. Eis os tipos de corda
pois uns não podem abrir mão que boa parte dos nossos
dos outros, na condição de homens de negócios fabrica,
parceiros que são. por enquanto sem medo de
Entretanto isso não signifi- falar em corda em casa de
ca que a debilidade de organi- enforcado. A salda para Judas
zação dos trabalhadores foi amarrá-Ia no pescoço e
resulte no aproveitamento da apertar. A salda de seus
exploração do trabalho assa- sobrinhos, na versão nacional
lariado, através da fixação de contemporânea, e , segundo
salários não negociados. Se, Oélcio, bem diferentes dos
por um lado. a luta de classes sobrinhos de Sam, tem sido

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amarrar a corda no pescoço como se poderá ver, da própria


dos trabalhadores e na porta narrativa.
dos cofres públicos, culpando "Ó imperador Lúcifer, mes-
o governo pelo esvaziamento tre de todos os espfritos
destes. Até quando? rebeldes, sê favorável à invo-
Délcio Monteiro de Lima não cação que faço a teu grande
aponta soluções, nem é esse o ministro Lucifuge Rofocale,
seu propósito. Ele descreve, pois desejo estabelecer um
revela dados, estatrsticas, pacto com ele ... ( ... ) Eu te
compara, ensaia interpreta- chamo, Esplrito do Mal, espf-
ções. Uma coisa é certa: Se rito cruel, esplrito sem pieda-
não houver uma transformação de. ( ... ) Vai e coloca um nó ao
radical nas estratégias de ação redor da cabeça do Empresário
dos sobrinhos de Judas, Mineiro do Ano, meu inimigo,
vendedores do Brasil e inimigo dos meus, inimigo das
compradores do trabalho artesãos, inimigo dos inicia-
humano por quaisquer trinta dos; (... )" (p.92).
dinheiros, em breve as nossas A relação entre o nó do
figueiras serão pasto de colar da medalha e o laço da
corvos. forca de Tiradentes, mártir que
dá ensejo à comemoração, é
Letlcia Malard.
denunciadora do uso esvazia-
dor da palavra liberdade. Entre
estes dois nós Instala-se um
NEVES, Jeter. A Ilngua da outro, o nó do garrote-vil,
serpente. Belo Horizonte: instrumento que matou o pai de
Editora Lê, 1993. 240 p. Morena, vitima da repressão
da ditadura militar dos anos SO
Dentre as diversas possi- e 70, e que ele mesmo
bilidades de leitura do novo fabricara durante seu tempo de
livro de Jeter Neves, a idéia da "reeducação" na prisão.
conjuração delineia-se como "Os relatos falam da cara de
caminho instigante. Isso acon- terror do sentenciado quando o
tece não apenas porque o torniquete, às primeiras voltas,
tempo básico da narrativa é um inicia a compressão da nuca, e
certo 21 de abril, dia de Tira- o pescoço, enlaçado pela
dentes, chefe da conjuração coleira de ferro, recebe a
mineira, mas também, e princi- pressão na garganta ( ... )"
palmente, porque outras (p.SS).
formas de conjuro encontram- Assim é que se relacionam
se presentes na narrativa. as duas partes do livro: "O
O conjuro feito por Morena, Relatório" e "A Relação". O
a mag a artesã, contra o Dr. relatório, que descrevia as
Sauro, empresário do ano, atividades de reeducação do
agraciado com a medalha da prisioneiro, surripiado por Thot
Inconfidência, faz-se, pois, da rede dos poderosos, faz
metonfmia de minha leitura e, parte da relação, o ato de
relatar. Não é por acaso que

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