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O direito de superfície, em especial, para a realização

de obra no subsolo
TIAGO HENRIQUE SOUSA*

Sumário: I. Introdução. II. Os antecedentes históricos do direito de superfície – breve nota.


III. O direito de superfície na experiência portuguesa: 3.1. A consagração do direito de
superfície na Lei n.º 2030 de 22 de Junho de 1948; 3.2. O direito de superfície no regime
do actual Código Civil – a construção de obra no subsolo; 3.3. Os modos de constituição
do direito de superfície para construção de obra no subsolo – a problemática da usucapião;
3.4. O cânon superficiário – particularidades na sua definição por referência a obra construída
no subsolo; 3.5. A articulação da situação jurídica do superficiário com a situação jurídica
do fundeiro – atendendo à construção de obra no subsolo; 3.6. Natureza jurídica do direito
de superfície.

I. Introdução

Na ordem jurídica portuguesa, o direito de superfície é consagrado nos


artigos 1524.º a 1542.º do Código Civil, sendo um direito real de gozo anco‑
rado numa forte tradição histórica1, com origem remota no Ius Romanum2.

* Assistente Convidado da Faculdade de Direito de Lisboa e Advogado.


1 Guilherme Braga da Cruz, O direito de superfície no Direito romano, Separata: Revista de Direito e
de Estudos Sociais, a. 4, n.ºs 3-4, Coimbra, 1949, pp. 5 e ss., referia, a propósito da entrada em vigor
da Lei n.º 2030 de 22 de Junho de 1948, que introduziu, em termos gerais, o direito de superfície
na ordem jurídica portuguesa, que este instituto agora restaurado, apesar de não ser uma cópia fiel
do correspondente instituto romano, afigura-se essencial para avaliar as origens históricas do mesmo.
2 António Santos Justo, Manual de Direito privado romano, 3.ª ed., Rio de Mouro, 2021, pp.361-

362, a propósito do direito de superfície no Direito romano, ensina, de forma lapidar, que a superfí‑
cie (superfícies) era o direito real dotado de transmissibilidade inter vivos e mortis causa, o qual permitia,

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A doutrina jus-realista portuguesa, nas obras gerais de referência, expõe,


em termos mais ou menos amplos, o regime jurídico do direito de superfície3.
O legislador, não obstante as críticas apontadas pela ciência do direito à
consagração de noções legais, deu-nos uma definição de direito de superfície,
no artigo 1524.º, como se verifica com várias outras noções legais consagradas
no Livro III do nosso Código Civil4.
Assim, determina o artigo 1524.º que:

O direito de superfície consiste na faculdade de construir ou manter, perpétua ou tempo-


rariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações5.

por longos períodos de tempo ou perpetuamente o gozo pleno e exclusivo de um edifício sediado
em solo alheio, mediante o pagamento de um cânon anual, denominado pensio ou solarium, o qual
surgiu com o desiderato de afastar os graves constrangimentos desencadeados pelo conceito romano.
Ressalve-se, porém, que refere José Luís Ramos, Direitos Reais, 2.ª ed., Lisboa, 2021, p. 465,
numa posição isolada na doutrina jus-realista nacional, que o direito de superfície, contrariamente
ao direito de propriedade ou usufruto, não tem encontro no Direito romano ou no direito feu‑
dal, ganhando apenas a sua dimensão já no decurso do século XIX. Apesar dessa circunstância,
salienta que podemos encontrar alguns antecedentes que ajudam a compreender e a caracterizar
este direito real.
3 Sobre o direito de superfície, em geral, veja-se, por ordem cronológica: Carlos Mota Pinto,

Direitos Reais, Coimbra, 1971, pp, 289 e ss.; António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1.ª ed.,
Lisboa, 1979, pp. 706 e ss.; Eduardo dos Santos, Curso de Direitos Reais, I, 1.ª ed., Lisboa, 1983,
pp. 563 e ss.; Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado – Vol. III, 2.ª ed., Coimbra,
1987, pp. e 485 e ss.; José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 5.ª ed., Coimbra, 1993,
pp. 523 e ss.; Luís de Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6.ª ed., Coimbra, 2009, pp.
431 e ss.; António Manuel Triunfante, Lições de Direitos Reais, 1.ª ed., Coimbra, 2017, pp. e
281 ss.; Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, 1.ª ed., Lisboa, 2017, pp. 435 e ss.; Rui Januá‑
rio/Filipe Lobo d`Ávila/Luís de Andrade Pinhel, Direitos Civil – Direito das coisas, 1.ª ed., Lis‑
boa, 2018, pp. 1006 e ss.; Luís Menezes Leitão, Direitos Civil, 9.ª ed., Coimbra, 2020, pp. 343 e
ss.; Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 4.ª ed., Coimbra, 2020, pp. 301 e ss.; António
Santos Justo, Direitos Reais, 7.ª ed., Lisboa, 2020, pp. 437 e ss. ;José Alberto Vieira, Direitos
Reais, 2.ª ed., Coimbra, 2018, pp. 693 e ss.; José Luís Ramos, Direitos Reais, 2.ª ed., Lisboa, 2021,
pp. 465 e ss.; AAVV, Comentário ao Código Civil – Direito das coisas, 1.ª ed. Lisboa, 2021, pp. e ss.
4 Fernando Ferreira Pinto/Diogo Pessoa, Comentário ao Código Civil – Direito das Coisas, p.

652, referem que, apesar de a norma não ter correspondência com qualquer preceito anterior do
Código de Seabra, são relevantes para o contexto histórico da mesma o artigo 2308.º do Código
de Seabra, a Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948 e o artigo 952.º do Código Civil italiano.
5 Rui Pinto/Cláudia Trindade, Código Civil Anotado, Vol. II, Coimbra, 2019, p. 367, criticam a

noção legal prevista no artigo 1524.º do Código Civil, uma vez que, de acordo com a sua interpre‑
tação do preceito, este revela incompletude, já que não prevê a possibilidade de construção de obra
no subsolo. Considerando, por contrário, que não obstante o Código Civil de 1966, na sua versão
primitiva, não permitir a construção de obra no subsolo, a noção legal é suficientemente elástica para
prever a construção no mesmo, ver por todos, Fernando Ferreira Pinto/Diogo Pessoa, Comen-
tário ao Código Civil – Direito das Coisas, p. 654.

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Em termos iniciais, podemos dizer que o superficiário, tal qual se verifica


com os demais direitos reais de gozo, tem o aproveitamento típico de uma
determinada coisa corpórea6.
Resta agora aferir em que termos se pode corporizar o aproveitamento da
coisa objecto do direito real em estudo.
Levando a cabo uma delimitação positiva do direito de superfície, verifi‑
camos que o superficiário, legitimado pelo direito real de que é titular, e no
exercício dos poderes de transformação que daí emergem, através da sua acção
própria ou mediante a intervenção de um terceiro, com o qual encete deter‑
minada relação jurídica, leva a cabo uma construção ou plantação, aquilo a
que a doutrina designa de implante, num solo ou subsolo alheio, pertencente
a outro titular de um direito real de gozo, o proprietário, também designado
de fundeiro.
Este poder do superficiário agora indicado não esgota, contudo, o con‑
teúdo do direito de superfície.
Assim, o superficiário, além de poder levar a cabo uma construção ou uma
plantação em terreno alheio, pode também manter determinada obra ou plan‑
tação previamente existente sobre ou sob solo alheio, por um determinado
período de tempo convencionado, conforme resulta do regime dos artigos
1525.º e 1528.º, ambos do Código Civil.
Pode ainda o superficiário, nos termos previstos no artigo 1526.º, construir
sobre edifício alheio, o que a doutrina designa por direito de sobreelevação.
Atendendo a esta breve indicação dos poderes do superficiário, concluí‑
mos, desde logo, que estes poderes têm natureza multipolar, podendo as partes
conformar o tipo em causa, no âmbito da sua autonomia privada, no que con‑
cerne à delimitação positiva deste direito real de gozo.
Este direito real de gozo pode ter natureza temporária ou perpétua, con‑
forme resulta, desde logo, da noção legal do artigo 1524.º do Código Civil.
O direito de superfície é, atendendo ao catálogo dos direitos reais de gozo
previstos na ordem jurídica portuguesa, aquele que tem um carácter mais com‑
plexo7, o que se manifesta em vários aspectos do seu regime, conforme ampla‑
mente tentaremos demonstrar no decorrer desta exposição.

6Assim salienta, José Alberto Vieira, Direitos Reais cit., p. 697.


7José de Oliveira Ascensão, Estudos sobre a superfície e a acessão, Separata da Revista Scientia Juri‑
dica, Braga, 1973, pp. 29 e ss., destaca, a propósito da caracterização do direito de superfície, que
quer o superficiário, quer o fundeiro, são titulares de um direito real composto, revestindo tal situa‑
ção grande complexidade, pelo que se trataria da mais complexa de todas as situações reais existentes
em Portugal, apenas superado pela colonia (direito real de gozo que era previsto na ilha da Madeira).
Na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974, foi decretada a extinção da colonia pela Lei n.º
77/77, de 29 de Setembro.

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A configuração do direito de superfície permite que se evite a aplicação das


regras da acessão industrial imobiliária8 previstas nos artigos 1339.º a 1343.º,
evitando problemas de aferição, imediata, de quem é o titular da plantação ou
da construção levada a cabo pelo superficiário no terreno alheio pertencente
ao fundeiro.
Feita esta primeira aproximação ao direito de superfície, cabe agora aferir,
ainda que em traços muitos gerais, a origem histórica deste direito real de gozo,
uma que que tal análise se afigura essencial para aferir o actual regime objec‑
tivo vigente entre nós, em concreto no que concerne à construção de obra no
subsolo.

II. Os antecedentes históricos do direito de superfície – breve nota

No Direito romano vigorava o princípio da superfície solo cedit, conforme era


reconhecido pelos Jurisprudentes romanos, bastando compulsar as Institutas de
Gaio para se chegar a tal conclusão9.
Este princípio manifesta a virtualidade automática de aquisição do direito
de propriedade, por acessão10, de qualquer plantação ou construção que seja
concretizada no seu solo, independentemente de qualquer manifestação de
vontade e/ou pagamento de qualquer valor, por um terceiro, pertencendo
também ao proprietário do solo tudo aquilo que se viesse a unir ao terreno por
acção da natureza, não sendo assim necessária qualquer intervenção humana.
Verifica-se, deste modo, uma absorção directa e imediata de tudo aquilo
que é colocado no solo do proprietário por acção humana ou natural.
Conforme refere Santos Justo11, a superfície é uma figura com origem
do Direito Romano, tendo sido desenvolvida para obviar às consequências

8 José de Oliveira Ascensão, Estudos sobre a superfície e a acessão, cit. p. 9, refere que a acessão é

como que a outra face da medalha relativamente ao direito de superfície, só se verificando superfície
o que escapar à acessão.
9
“Praeterea id quod in solo nostro ab aliquo aedificatum est, quamvis ille suo nomine aedificaverit iure natu-
rali nostrum fit, quia superfícies solo cedit”, Gaio, II, 73. Conforme refere Armindo Ribeiro Mendes,
O direito de superfície, Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, 1972, p. 19, também no Digesto
surge um fragmento de Gaio, possivelmente interpolado, em que é consagrada o princípio da acessão
“omne quod inaedificatur solo cedit” (D.41.17.10).
10 Giovanni Balbi, Il diritto di superfície, Torino, 1947, pp. 19 e ss., ensinava, de forma sintética, que

em virtude das regras da acessão, em Roma, o Pretor começou a permitir que os privados levassem
a cabo construções, dando-lhe uma tutela próxima daquela que tinha o proprietário, evitando os
formalismos ínsito às regras do jus civile atinentes à propriedade.
11 António Santos Justo, Manual de Direito privado romano, p. 362.

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nefastas desencadeadas pela aplicação do já referido princípio superfície solo cedit


e para afastar as graves consequências anti-económicas do conceito romano
de propriedade, sendo que o solo pertencia a uma pequena parte da sociedade
romana, em concreto, ao populus Romanus, a algumas instituições públicas e
alguns poucos cidadãos romanos.
Destaque-se, porém, que apesar de a doutrina apontar a época romana
como a origem histórica do direito real12 em estudo, a verdade é que a época
concreta do seu surgimento não parecer ser unânime13.
Conforme nos refere a doutrina14, o Estado permitiu, ainda durante o
período romano da República, que os particulares pudessem construir no
designado “ager publicus”, isto é, domínio público do Estado, através de con‑
cessões perpétuas in perpetuum ou temporárias ad tempus, ficando estes adstritos
ao pagamento de canon anual ou solarium como contrapartida da construção por
si levada a cabo.
Contudo, esta possibilidade de construção não afastava as regras do princí‑
pio superfície solo cedit, revertendo a propriedade da construção para o Estado,
no termo da concessão atribuída ao particular15.
Tratava-se, assim, de uma relação locatícia de Direito público.
Posteriormente, estas regras transitaram para o direito privado, passando
esta possibilidade de construção a ser também possível de encetar entre par‑
ticulares, não sendo, todavia, concedido um direito real ao concessionário16.
Apenas na época do Imperador Justiniano, e em virtude das evoluções ante‑
riores, o direito de superfície surge como direito real autonomizável, direito
esse que podia ser transmissível inter vivos e mortis causa e que permitia que o
seu titular tivesse o gozo de um edifício implantada num terreno alheio perten‑
cente ao proprietário, mediante um pagamento de uma contrapartida, sendo

12 Guilherme Braga da Cruz, O direito de superfície no Direito romano, pp. 9 e ss. defendia que o
direito de superfície era uma criação pretória, a qual havia sido criada pela primeira vez em Roma
para conceder uma protecçáo judiciária, de carácter real, em favor do sujeito que construiu num ter‑
reno alheio com a respectiva autorização do dominus, outorgando-lhe um interdito, designado de
interdictum de superficiebus, bem como uma acção judicial, uma utilis actio in rem,
13 Com grande desenvolvimento sobre esta questão, José Augusto Pires Martins, Do direito de

superfície – Dissertação de licenciatura em Ciências Jurídicas apresentada à Faculdade de Direito de


Lisboa, Lisboa, 1950, pp. 8 e ss.
14 Paulo de Tarso Pacheco Carreiro, Origem, evolução e conceito actual do direito de superfície, Revista

da Ordem dos Advogados, Lisboa, 1952, pp. 241, trata desta matéria com algum detalhe.
15 Neste sentido, Guilherme Braga da Cruz, O direito de superfície no Direito romano, p. 15.

16 Assim refere Paulo de Tarso Pacheco Carreiro, Origem, evolução e conceito actual do direito de

superfície, p. 242.

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um ius in re aliena, isto é, um direito sobre uma coisa alheia, o qual é constituído
sobre o solo do proprietário17.
Após a queda do Império Romano, as regras da acessão deixaram de se
manter de forma absoluta, em virtude da organização menos desenvolvidas das
sociedades germânicas por comparação à sociedade romana e à própria natu‑
reza das construções mais rudimentares desenvolvidas nesta época, muitas de
madeira, de palha ou de colmo18.
Os povos germânicos permitiam a divisão da propriedade do solo da do
sobressolo, permitindo-se, assim, que a uma pessoa pudesse pertencer a pro‑
priedade do solo e a outra pessoa a propriedade do edifício, sendo ainda pos‑
sível pertencer a um sujeito a propriedade do solo e a outro a propriedade das
árvores19.
Verifica-se uma alteração do direito de superfície por comparação com a
sua matriz romana, o qual sofreu uma nova configuração no período de Direito
comum20.
A codificação francesa e as suas congéneres, entre as quais a portuguesa,
com o Código de Seabra de 1867, não consagraram a matéria do direito de
superfície no seu articulado, sendo certo que o Code acabou por não consagrar
a regra absoluta da acessão prevista nos moldes romanos, conforme resulta do
regime do seu artigo 553.º ainda em vigor na sua forma primitiva:

Toutes constructions, plantations et ouvrages sur un terrain ou dans l’intérieur sont


présumés faits par le propriétaire à ses frais et lui appartenir, si le contraire n’est prouvé ; sans
préjudice de la propriété qu’un tiers pourrait avoir acquise ou pourrait acquérir par prescription
soit d’un souterrain sous le bâtiment d’autrui, soit de toute autre partie du bâtiment.

Apesar dessa circunstância, a doutrina gaulesa tende a defender que o direito


de superfície se aplica no ordenamento jurídico francês, entendimento que, de
igual modo, é sufragado pela jurisprudência dos seus tribunais21

17 Cfr. José Alberto Vieira, Direitos Reais, cit., p. 696.


18 Para maiores desenvolvimentos, Armindo Ribeiro Mendes, O direito de superfície, cit., pp. 22 e ss.
19
Ver por todos, Paulo de Tarso Pacheco Carreiro, Origem, evolução e conceito actual do direito de
superfície, cit., p. 246.
20 Ludwig Enneccerus/Theodor Kipp/Martin Wolf, Tratado de Derecho Civil – Derecho de Cosas,

II, 2.ª ed. Barcelona, 1976, p.1, atendendo à evolução deste direito real de gozo, acabam por concluir
que o direito de superfície tem origem no direito romano e no direito comum.
21 Francoise Terré/Phillippe Simler, Droit Civil – Les Biens, Dalloz, 5.ª ed. pp. 710 e ss., ensinam

que o Code Civil não consagra, no seu catálogo de Direitos Reais, o direito de superfície, consagrando
no regime previsto no artigo 552.º que: “la propriété du sol emporte la propriété du dessus et du dessou-
s”,em virtude da herança da Revolução Francesa, vendo os autores materiais do Código Napoleão,

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Diferentemente, o BGB consagrou o direito de superfície (Erbbaurecht),


nos seus primitivos §§ 1012-1017, o qual veria a ser depois objeto de regu‑
lação própria e retirado do Código Civil, em 1919, através da ErbbauVO/
/Erbbaurechtsverodnung), de 15 de Janeiro de 191922, a qual, para além de ajustes
adotados por Estados federados, como a Verordnung der Landesregierung über den
Rang von Erbbaurechten, de 17 de Janeiro de 1994 (Baden‑Württemberg), foi
alterada e redenominada pelo Gesetz über das Erbbaurechten (Erbbaurechtsgesetz
ou ErbbauRG) de 23 de Novembro de 2007, por último alterado pela Lei de 1
de Outubro de 2013.
No Codice Civile italiano de 1942, o direito de superfície é regulado de
forma dispersa ao longo deste diploma, estando o regime‑base previsto nos
artigos 952.º e seguintes. Assim, o direito de sobreelevação é consagrado no
artigo 1127.º, regulando os artigos 2810.º, 2812.º e 2816.º a hipoteca sobre o
direito de superfície, além de existir legislação extravagante sobre o direito de
superfície.

III. O direito de superfície na experiência portuguesa

3.1. A consagração do direito de superfície na Lei n.º 2030 de 22 de Junho de 1948

Na nossa ordem jurídica, a maioria da doutrina sufragava23 que o direito


de superfície apenas foi consagrado, em termos objectivos, pela primeira vez,

no direito de superfície, um resquício do Antigo Regime. Contudo, salientam estes civilistas que a
Cours de Cassation, desde os primórdios da entrada em vigor deste código, levou a cabo uma interpre‑
tação restritiva deste preceito legal, desenvolvendo a construção de que o mesmo apenas consagrava
uma presunção de natureza ilidível, permitindo, deste modo, a constituição de direitos de superfície
no tráfego, o qual poderia ser transmitido a terceiros e ser objecto de hipoteca.
Marcel Planiol, Traité élémentaire de Droit civil, I, 12.ª ed., Paris, 1935, pp. 23 e ss., refere que a
doutrina francesa, atendendo à letra de vários preceitos do Code, entre os quais, o regime do artigo
546.º, 551.º e 553.º, 519.º e 664.º , tem chegado à conclusão de que o direito de superfície vigora
em França. É ainda referido que o artigo 553.º do Code consagra uma presunção ilidível, razão pela
o princípio da superficies solo cedit, não sendo de ordem pública, pode ser afastado.
22 Compulsando o § 1, inciso 1, do ErbbauVO /Erbbaurechtsverodnung), que aqui transcrevemos, Ein

Grundstück kann in der Weise belastet werden, daß demjenigen, zu dessen Gunsten die Belastung erfolgt, das
veräußerliche und vererbliche Recht zusteht, auf oder unter der Oberfläche des Grundstücks ein Bauwerk zu
haben (Erbbaurecht), verificamos que o direito de superfície, na Alemanha, permite a construção de
obra sobre o sob o solo, razão pela qual concluímos que o superficiário poderá levar a cabo cons‑
trução de obra no subsolo.
23 Luís da Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil em comentário ao Código Civil, Vol. XI, Lisboa,

1937, p. 298, referia que na época da pré‑codificação a Lei de 9 de Julho de 1773 previa nos seus §§
11.º, 17.º e 26.º, o direito de superfície no que concerne a árvores e plantações.

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na Lei n.º 2030 de 22 de Junho de 1948, diploma que, entre outras matérias,
previu, nos artigos 21.º a 29.º, o direito de superfície24.
Em momento anterior, o artigo 2308.º do Código de Seabra previa a possi‑
bilidade de, durante 30 anos, o proprietário de um prédio se sujeitar à presença
de árvores pertença de outro sujeito.
Esta disposição previa o seguinte:

O dono do prédio, onde existirem árvores alheias, poderá adquiril-as, pagando o seu
valor, excepto se, por effeito de contracto, se tiver obrigado a conservál-as no dominio alheio
por certo numero de annos, que nunca poderão exceder trinta.

Analisando o regime previsto na Lei n.º 2030 de 22 de Junho de 1948, con‑


cluímos que apenas o Estado, autarquias locais e pessoas colectivas de utilidade
pública administrativas podiam constituir direito de superfície e em terrenos do
domínio público (artigo 22.º)25.
Deste modo, atendendo ao regime legal supracitado, os proprietários de
terrenos de natureza privada não tinham legitimidade para constituir um direito
de superfície.

3.2. 
O direito de superfície no regime do actual Código Civil – a construção de
obra no subsolo

Foi o Código Civil de 1966 que, em termos gerais, e pela primeira vez,
passou a prever na ordem jurídica portuguesa a possibilidade de constituição
do direito de superfície, independentemente da natureza do sujeito e do solo.

Este autor defendia, de igual modo, a admissibilidade do direito de superfície em momento


anterior à Lei n.º 2030 de 22 de Junho de 1948. E, em igual sentido, Paulo de Tarso Pacheco
Carreiro, Origem, evolução e conceito actual do direito de superfície, cit., p. 258 e ss., invocando, para
alicerçar o seu entendimento, cinco disposições do Código de Seabra: os artigos: 2335.º; 2287.º;
2289.º; 2306.º e 2308.º.
Entre os argumentos mais relevantes desenvolvidos parece ser a circunstância de o primeiro pre‑
ceito permitir a obra por andares, demonstrando-se que nem sempre funcionava a acessão e o
artigo 2308.º que previa um caso de superfície sobre plantações.
24 José Dias Marques, Direitos Reais – Parte geral, I, 1.ª ed., Lisboa, 1960, pp. 142 e ss., referia que

a Lei n.º 2.030, de 22 de Junho de 1948, nos artigos 21.º e seguintes, introduziu uma nova figura
de direito real, que expressamente qualificou de “propriedade imperfeita”. Diz ainda este autor que
por via da constituição do direito de superfície (atendendo ao diploma referenciado), origina-se o
desdobramento em dois direitos reais: o direito de implantar e manter edifício próprio em terreno
alheio e o mero direito ao solo.
25 Assim constata, João Afonso Corte-Real, Derecho de superficie, in Derecho de superficie y expro‑

piacion en Portugal, Sevilha, 1964, p. 10.

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Verificamos que a importância do direito de superfície no tráfego jurídico


é relevante, atendendo a uma multiplicidade de razões26.
Destarte, o direito de superfície é um importante instrumento ao serviço
de políticas públicas de ordenamento do território e de urbanização27, permi‑
tindo a construção de casas de habitação, muitas vezes levadas a cabo por coo‑
perativas de habitação, em terrenos públicos, sem que os construtores tenham
o pesado encargo de aquisição do solo, que se mantém na esfera jurídica do
Estado, enquanto fundeiro28. A constituição deste direito real menor evita,
deste modo, que se tenham de recolher e empregar capitais em aquisição de
terrenos, os quais podem ser canalizados, quase em exclusivo, para a construção
do implante29.
O direito de superfície tem ainda um papel relevante na facilitação do
desenvolvimento de actividades industriais e comerciais e no incremento de
riqueza no tráfego. Este direito real de gozo permite a construção v.g. de unida‑
des industriais, centros comerciais e obras de outra ordem, sem que o fundeiro
perca a titularidade do solo e sem que o superficiário tenha o pesado encargo
de aquisição do solo. É verdade que o superficiário tem de pagar ao fundeiro

26 Ludwig Enneccerus/Theodor Kipp/Martin Wolf, Tratado de Derecho Civil – Derecho de Cosas,


Cit. p. 2, referem a importância que o direito de superfície tem no âmbito do desenvolvimento da
“pequena habitação” levada a cabo em terrenos do Estado, evitando a especulação de terrenos, per‑
mitindo às classes médias e pobres ter direito à sua própria habitação. Giovanni Balbi, Il Diritto di
superfície, cit., p. 18 refere que através da constituição do direito de superfície permite-se levar a cabo
edifícios com escopos diversos, entre os quais industriais e comerciais, designadamente: armazéns;
parques de estacionamento; estádios desportivos, instalações balneares.
Entre nós, Armindo Ribeiro Mendes, O Direito de superfície, cit., p. 17, refere que o direito de
superfície é um direito real que é típico das cidades ou dos grandes centros urbanos, que tem como
desiderato levar a cabo construções de imóveis, em regra destinados à habitação ou ao exercício de
actividades industriais ou comerciais.
27
Margarida Costa Andrade, Observações ao regime jurídico do direito de superfície e dúvidas que daí
resultaram, Separata de Direito Penal: Fundamentos Dogmáticos e Político-Criminais, Homenagem
ao Prof. Peter Hünerfeld, Coimbra, p. 1295, refere que no que concerne ao Direito Público, foi
sempre verificado o potencial do direito de superfície, enquanto instrumento de gestão da ocupação e
do ordenamento do território e do ordenamento dos solos e da realização de políticas de urbanização.
28 Compulsando a jurisprudência dos tribunais superiores nacionais, verifica-se que as instâncias recur‑

sórias nacionais, por diversas vezes tiveram de analisar questões relativas a direito de superfície em que
cooperativas de habitação social estavam envolvidas. Veja-se, assim, a título meramente indicativo,
os seguintes arestos: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.09.1998, relativo ao processo
98B682, Relator Juiz Conselheiro Ferreira de Almeida; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
de 30.10.2014, relativo ao processo 3588/12.0YXLSB.BL1-8, Relatora Juíza Desembargadora Isoleta
Almeida Costa ou o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02.07.2019, relativo ao processo
14205/16.9T8LSB.L1-1, Relatora Juíza Desembargadora Isabel Fonseca.
29 Uma vez mais, como refere, Giovanni Balbi, Il diritto di superfície, cit., p. 18.

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o cânon superficiário. Contudo, regra geral, esse encargo não é comparável


com a aquisição do terreno sobre o qual o implante irá assentar, permitindo
uma maior disponibilidade de capital do superficiário para investir na actividade
concreta que pretende desenvolver.
O superficiário, atendendo à natureza do investimento que pretende levar
a cabo com a constituição do direito de superfície, tenderá a querer amortizar
os custos em que incorre com o pagamento do cânon superficiário, desiderato
que é potenciado com o gozo concreto que faz do implante.
O direito de superfície proporciona ao seu titular posições jurídicas activas
que não são compagináveis nos direitos pessoais de gozo.
Com efeito, o superficiário, sendo titular de um direito real de gozo, goza
de uma tutela mais intensa no seu investimento imobiliário do que aquela
que se verificaria se fosse um mero detentor da construção, nos termos de um
direito pessoal de gozo de longa duração com o fundeiro, em concreto um
arrendamento, o que se concretiza em vários aspectos do regime legal vigente
que, em seguida, procuraremos demonstrar.
Desta guisa, o superficiário, sendo titular de um direito real de gozo, tem ao
seu dispor a possibilidade de lançar mão de uma acção de reivindicação, acção
real por excelência, aplicada nos termos do disposto no artigo 1311.º, ex vi,
artigo 1315.º, caso seja esbulhado por terceiros e inclusivamente, pelo próprio
fundeiro30.
Por seu turno, se for titular de um direito pessoal de gozo31, apenas poderá
recorrer às acções possessórias, nos termos do disposto no artigo 1278.º e
seguintes, por via do regime previsto no artigo 1037.º, número 2, do Código
Civil32.
Acresce, ainda, que o arrendamento está sujeito a um limite máximo de
30 anos, conforme resulta da regra prevista no artigo 1025.º do Código Civil.
Este prazo pode não ser suficientemente dilatado para compensar a natureza do

30
Sobre as acções reais, com grande detalhe, Nuno Andrade Piçarra, Das Acções Reais, Vol. I e
II, Lisboa, 2021.
31 José Andrade Mesquita, Direitos pessoais de gozo, Coimbra, 1999, pp. 135 e ss., ensina que o

direito pessoal de gozo é um direito imediato sobre uma coisa, sendo certo que, partindo da noção
de obrigação prevista no artigo 397.º do Código Civil, conclui-se que nos direitos pessoais de gozo,
o seu núcleo fundamental escapa a esse conceito, uma vez que o que caracteriza este tipo de direito
é o poder que assiste ao titular de retirar determinadas utilidades de uma coisa corpórea sem a inter‑
mediação de terceiros, sendo impossível de explicar esse gozo, em sede obrigacional, através de uma
prestação de outrem, tendo os direitos pessoais de gozo uma coisa.
32 Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado – Vol. II, 4.ª ed., Coimbra, 1997, p. 368,

referem que a defesa da posição do locatário deve caber a este, não apenas contra actos de terceiros,
como também contra actos do próprio locador.

RDC VII (2022), 1, 91-118


O direito de superfície, em especial, para a realização de obra no subsolo   101

investimento que o superficiário pretende levar a cabo, sobretudo quando o


superficiário é uma sociedade comercial robusta e em que os capitais a investir
são elevados.
Por fim, o superficiário pode onerar o seu direito real de gozo, através da
constituição de um direito real de garantia, em particular, de uma hipoteca, a
qual poderá ser constituída aquando da finalização do implante. Igual possibi‑
lidade já não existiria num caso de direito pessoal de gozo de longa duração.
Além do mais, o superficiário pode fruir amplamente da construção por
si executada, o que não se verificaria, nos mesmos moldes, com um arrenda‑
mento, por exemplo.
Destarte, parecem existir no tráfego várias razões atractivas para a constitui‑
ção deste direito real menor de gozo.
Feita esta delimitação geral do direito de superfície, vamos agora afinar a
nossa exposição no que concerne ao direito de superfície para construção de
obra no subsolo.
Na versão inicial do Código Civil de 1966, o legislador não previa a pos‑
sibilidade de construção de obra no subsolo, determinando o artigo 1525.º,
n.º 2, do Código Civil que:

o direito de superfície não pode ter por objecto a construção de obra no subsolo, a menos que
ela seja inerente à obra superficiária.

Foi o Decreto-Lei n.º 257/91, de 18 de Julho que alterou o regime do


artigo 1525.º, n.º 2, passando-se a prever que o proprietário pode aproveitar
não só a superfície do solo, como também o subsolo.
O preâmbulo deste diploma demonstra a occasio legis33 inerente à alteração
do diploma que pela sua importância aqui transcrevemos:

(…) é sabido que o progresso económico e social dos grandes centros implica a multipli-
cação dos veículos automóveis em circulação. (…) Há, assim, que encontrar soluções novas
que permitam normalizar o tráfego automóvel, com relevo para o ponderoso problema do
estacionamento nos grandes centros urbanos. (…) A saída tecnicamente possível perante as
coordenadas acima mencionadas reside na construção de parques de estacionamento subterrâ-
neos, devidamente dimensionados, edificados de acordo com todas as normas de segurança e

33António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito civil, I, 4.ª ed., Coimbra, 2019, p. 709, ensina
que a occassio legis (ocasião da lei) é o conjunto de circunstâncias existentes aquando da feitura da lei,
tendo, deste modo, condicionado ou interferido no texto legal. Refere ainda que ocassio legis torna-se
importante quando é reflectida na lei, podendo a mesma resultar do próprio preâmbulo do diploma.
Foi o que se verificou, nesta sede, com o Decreto-Lei n.º 257/91, de 18 de Julho.

RDC VII (2022), 1, 91-118


102 Tiago Henrique Sousa

planeados por forma a não prejudicar a traça das cidades. Tais parques irão permitir remover
da superfície todo um conjunto de automóveis estacionados pelos mais diversos locais, com
ganhos claros para o trânsito de transportes públicos e de peões e, em geral, para a qualidade
de vida urbana (…)

Concluímos que o legislador sentiu a necessidade de alterar o regime do


artigo 1525.º do Código Civil, atendendo ao aumento exponencial de car‑
ros nos centros urbanos e à subsequente necessidade premente de criação de
parques de estacionamento subterrâneos que não descaracterizassem o espaço
urbano.
Apesar de ser facto notório que o objetivo do legislador não ter sido alcan‑
çado com a reforma verificada, uma vez que passados que estão 30 anos da
alteração do artigo 1525.º do Código Civil se verificou um aumento expo‑
nencial de tráfego rodoviários nos centros urbanos34, a verdade é que a altera‑
ção legislativa levada a cabo ampliou o conteúdo de aproveitamento tipificado
relativamente ao direito de superfície, dando-lhe novas virtualidades no tráfego
jurídico.
Sendo certo que a versão actual do artigo 1525.º do Código Civil surgiu
no âmbito das necessidades acima referenciadas, a verdade é que o implante
a construir pelo superficiário não está circunscrito a parques de estaciona‑
mento35, podendo o implante ter qualquer natureza construtiva, desde que o
subsolo, atendendo às suas características intrínsecas, permita a construção que
se pretende efectivar.
A construção de obra no subsolo por parte do superficiário parece-nos ser
mais complexa do que a construção do implante sobre o solo36.

34
Compulsando os dados da Pordata, disponíveis em https://www.pordata.pt/Portugal/Ve%C3%A‑
Dculos+rodovi%C3%A1rios+motorizados+por+mil+habitantes-3234 , verificamos que o número
de carros por habitante, em Portugal, tem vindo a aumentar de forma constante. Assim, se em 2010
existiam 584,7 carros por cada mil habitantes, em 2020, esse número atingiu 681,8 carros por cada
mil habitantes.
35 Armindo Ribeiro Mendes, O direito de superfície, cit., p. 46, ainda na vigência da versão primitiva

do Código Civil de 1966 que não permitia construção de obras no subsolo, referia como exemplo
deste tipo de construções (não admitidas então na legislação vigente), uma adega subterrânea, um
abrigo contra bombardeamentos, um parque de estacionamento subterrâneo ou uma construção para
instalação de depósitos frigoríficos.
36 Existem várias definições sobre a noção de solo de acordo com a perspectiva das Ciências do Solo,

desde as noções muito sintéticas às noções muito detalhadas. Sobre este fenómeno, veja-se, desde
logo, as explicações dadas pela Sociedade Portuguesa da Ciência do Solo, disponíveis em https://
www.spcs.pt/ . De acordo a Soil Science Society of America, solo é uma mistura de minerais, organismos
vivos e mortos (materiais orgânicos), ar e água. Esses quatro ingredientes reagem uns com os outros, tornando o
solo um dos recursos naturais mais dinâmicos e importantes do nosso planeta. Nos Estados Unidos da Amé‑

RDC VII (2022), 1, 91-118


O direito de superfície, em especial, para a realização de obra no subsolo   103

Assim, e por referência aos parques de estacionamento subterrâneos, os


mesmos, sobretudo nos grandes centros urbanos, tendem a ter vários pisos.
Existem vários tipos de solo, os quais são definidos por uma complexa
interação de fatores como o material, o clima e a vegetação, os quais têm carac‑
terísticas físicas e químicas muito específicas, que afetam a utilização que se lhe
pode dar.
Podemos indicar, sem perpectivas de exaustão, os vários tipos de solos:
incipientes; litólicos; calcários; argilosos; podzolizados; halomórficos; hidro‑
mórficos e orgânicos hidromórficos, sendo a construção do subsolo mais ou
menos complexa, atendendo à natureza do subsolo em causa37.
Deste modo, atendendo à diferente natureza dos solos em presença, o puta‑
tivo superficiário diligente, sobretudo se for uma sociedade comercial ou se
estiver envolvido num consórcio para a construção de obra no subsolo, como
muitas vezes se verifica no tráfego, tende a analisar a natureza do subsolo onde
irá ser construído o implante antes de constituir o seu direito de superfície.
O estudo do solo e subsolo tem, necessariamente, de ser levado a cabo por
técnicos com conhecimentos especializados, com recurso às modernas técnicas
de investigação da superfície terrestre utilizadas por ramos especiais da enge‑
nharia geológica38 e geotécnica39.
Esta análise do solo e do subsolo é essencial para que o putativo superficiá‑
rio possa aquilatar a dimensão do seu investimento na construção do implante,
sendo também preponderante na determinação do cânon superficiário a pagar
ao fundeiro e na duração que o direito de superfície terá de ter para rentabilizar
o investimento a concretizar.
No final do estudo preliminar ao solo e subsolo, o putativo superficiário,
atendendo aos dados técnicos que tem ao seu dispor, pode acabar por concluir
que se verifica uma impossibilidade física de construção do implante nos termos

rica, a classificação geral dos solos está baseada numa escala de 12 de solo. Para mais detalhes, ver, por
todos, https://www.soils.org/about-soils/basics
37
Para maiores desenvolvimentos sobre a classificação dos solos em Portugal, veja-se a obra de refe‑
rência de José De Carvalho Cardoso, Os solos de Portugal: sua classificação, caracterização e génese,
Lisboa, 1965, 311 pp.
38 A Engenharia Geológica é uma especialidade de Engenharia que aplica princípios, conceitos e téc‑

nicas das Ciências Geológicas na resolução de problemas de engenharia que envolvem a Terra e o
seu funcionamento como um sistema geodinâmico, cfr. https://eduportugal.eu/opcoes-de-estudo/
engenharia-geologica/.
39 Este ramo da Engenharia Civil estuda a interferência de obras de qualquer natureza com a sua fun‑

dação, seja ela em solo ou rocha. O Engenheiro Geotécnico atua em projetos de escavação, túneis,
compactação de aterros, tratamentos de fundações, instrumentação de obras, percolação de fluxos
em solos e rochas, contenções entre outros concretamente configuráveis.

RDC VII (2022), 1, 91-118


104 Tiago Henrique Sousa

por si inicialmente configurados, ou que o empreendimento a levar a cabo,


atendendo às características do subsolo, tem um custo demasiado oneroso que,
ab initio, não era perspectivado.
Nos exemplos hipotéticos acima configurados, o direito real de superfície
pode não ser celebrado, não obstante poderem ser configurados, contratual‑
mente, os termos em que se gizará as posições jurídicas quer do putativo super‑
ficiário, quer do putativo fundeiro, mormente quando o direito real menor em
discussão não seja celebrado por causa imputável ao potencial superficiário40.
Parece-nos que a grande virtualidade que a alteração legislativa em discus‑
são ao regime do artigo 1525.º, n.º 2, do Código Civil, introduziu na nossa
ordem jurídica foi a de permitir a constituição de mais do que um direito de
superfície, cujo objecto é a mesma coisa corpórea, ou seja, o mesmo terreno.
Assim, o fundeiro pode constituir um direito de superfície sobre o espaço
aéreo, permitindo uma construção ao superficiário no seu terreno. Por seu
turno, pode constituir, de forma simultânea ou sucessiva, um novo direito de
superfície sobre o subsolo, através do qual é construída, por exemplo, uma cave
para conservação de vinhos.
Neste caso, passariam a subsistir, harmonicamente, e sem qualquer conflito,
três direitos reais de gozo: 1) o direito real de gozo do fundeiro sobre o solo;
2) o direito do superficiário que lhe permite construir e manter uma obra ou
plantação construída acima do solo (obra superficiária) e 3) o direito do super‑
ficiário que lhe permite construir uma obra no subsolo (obra subterrânea)41.
É importante agora atender ao regime previsto no artigo 1533.º do Código
Civil, o qual determina que o uso e a fruição do subsolo pertencem ao proprietário;
este é, porém, responsável pelo prejuízo causado ao superficiário em consequência da
exploração que dele fizer42.

40
Muitas vezes, no tráfego jurídico, as partes, no âmbito da sua autonomia privada, convencionam
e celebram um contrato-promessa de direito de superfície, enquanto contrato preparatório, no qual
a definição do modo de constituição deste direito real pode ser amplamente definido. Poderá ser
definida uma condição suspensiva de que o contrato definitivo apenas será celebrado se o solo e
subsolo revestirem determinadas características que, de uma forma inicial, o putativo superficiário
não conseguirá avaliar.
41 Margarida Costa Andrade, Observações ao regime jurídico do direito de superfície e dúvidas que daí

resultaram, cit. p. 1303, destaca que após a reforma de 1991, passam a poder coexistir até três pro‑
priedades sobre o mesmo prédio: a propriedade onerada, a propriedade sobre a obra superficiária e
a propriedade sobre a obra subterrânea.
42 Ana Afonso, Comentário ao Código Civil – Direito das Coisas, p. 672, refere que a regra ínsita no

artigo 1533, em virtude da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/91 de 18 de Julho, se aplica
quando a utilização do solo perturbe o exercício do direito sobre o subsolo.

RDC VII (2022), 1, 91-118


O direito de superfície, em especial, para a realização de obra no subsolo   105

Nos casos em que, nos termos do disposto no artigo 1525.º, n.º 2, do


Código Civil, o direito de superfície foi constituído para construção de obra
no subsolo, não se afigura possível que o uso e fruição plena pertençam ao
fundeiro, cabendo sim, regra geral, ao superficiário, não obstante se poderem
verificar algumas particulares de regime, que, infra, procuraremos demonstrar.
Os poderes supracitados integram o conteúdo injuntivo típico de aprovei‑
tamento do direito real de que este é titular.
O regime do artigo 1528.º do Código Civil determina que o direito de
superfície pode resultar da alienação de obra ou árvores já existentes, separada‑
mente da propriedade do solo43.
Atendendo ao regime legal exposto, o superficiário não tem de construir
o implante, podendo este estar edificado pelo fundeiro, que lhe transferiu a
titularidade da edificação através do direito de superfície, mantendo-se apenas
o dominus do solo e o inerente direito real de propriedade sobre o mesmo.
Por referência ao tema em estudo, pode verificar-se a seguinte situação:
imagine-se que a obra transmitida pelo fundeiro ao superficiário é uma cons‑
trução no subsolo, por exemplo, um parque de estacionamento ou um centro
comercial subterrâneo com três pisos. Suponha-se agora que o superficiário
pretende ampliar a obra, com a subsequente construção de novos pisos subter‑
râneos, de forma a que obra passe a ter um total de seis pisos. Nesta circunstân‑
cia, julgamos que o superficiário pode ampliar a obra em causa, transformando
o seu implante num parque de estacionamento ou num centro comercial
mais amplo do que o primitivo, desde que o título constitutivo não o proíba
expressamente.
Assim, se é certo que o artigo 1528.º, segunda parte, do Código Civil
permite que o direito de superfície possa ser constituído por referência a uma
edificação já construída, a verdade é que também o título constitutivo da super‑
fície pode prever a faculdade de o superficiário ampliar a obra já construída, não
parecendo existir nenhuma norma legal que obste a este entendimento.
Na situação acima indicada, parece-nos que o direito de rebaixar a obra
subterrânea, por parte do superficiário, ainda se insere no conteúdo injuntivo
típico do direito de superfície, sem que haja o desrespeito de qualquer princípio
basilar dos Direitos Reais, mormente do princípio da tipicidade. Vejamos.
O direito de superfície permite a ocupação de solo alheio, da titularidade
do fundeiro, sendo certo que, numa primeira fase, enquanto o implante não é

43 Margarida Costa Andrade, Observações ao regime jurídico do direito de superfície e dúvidas que daí
resultaram, cit., pp. 1307 e ss., defende que este regime permite que, no caso de um prédio que tenha
vários pisos, que podem corresponder aos requisitos da propriedade horizontal, o fundeiro pode alie‑
nar várias fracções autónomas em regime de propriedade horizontal.

RDC VII (2022), 1, 91-118


106 Tiago Henrique Sousa

edificado, o superficiário tem o direito de construir, de acordo com a natureza


do solo. Depois de concluída a obra, o direito de superfície passa a ter por
objecto, além do solo ou subsolo, o implante44.
Parece-nos que o conteúdo do direito de superfície permite cumular o
direito de aquisição da obra anteriormente construída (artigo 1528.º do Código
Civil), com a posterior ampliação da obra adquirida, atendendo ao poder de
transformação da titularidade do superficiário e que resulta, desde logo, da letra
da noção legal prevista no artigo 1524.º.
Deste modo, o poder de manter a obra num terreno alheio é compatível
com a ampliação dessa mesma obra primitiva, desde que o título constitutivo
do direito de superfície vá nesse sentido.
Pergunta-se agora se pode o fundeiro constituir nova edificação que se
alicerce no implante construído pelo superficiário.
Parece-nos defensável, se a natureza do solo o permitir, e o uso e fruição da
obra subterrânea do superficiário e o título constitutivo primitivo não o proi‑
bir, que o fundeiro possa levar a cabo uma nova construção, cuja obra se situará
imediatamente abaixo da edificação do superficiário.
Deste modo, o fundeiro tem todo o conteúdo residual de aproveitamento
da coisa que não seja afectada pela constituição do primeiro direito de super‑
fície. O aproveitamento da coisa é consubstanciado no uso e fruição da coisa,
abrangendo quer o solo, quer o subsolo. A regra do artigo 1533.º do Código
Civil, quando a superfície tenha por objecto obra no subsolo, não tem natu‑
reza absoluta, podendo, pelo menos em termos dogmáticos, delimitar-se uma
possibilidade de uso residual do subsolo (uso esse corporizado numa nova cons‑
trução pelo fundeiro).
Alguns autores, como Mouteira Guerreiro45, entendem que se pode veri‑
ficar a constituição de um novo direito de superfície, que incida sobre uma
obra no subsolo já construída, através da sub-edificação ou rebaixamento da
construção.

44 José Alberto Vieira, Direitos Reais, cit., p. 702, sufraga que o direito de superfície tem sempre por
objecto apenas o solo e nunca o implante. O superficiário é, assim, titular de dois direitos reais de gozo,
cada um deles tendo por objecto uma coisa diferente: o direito de superfície tem por objecto o solo e
o direito de propriedade um objecto distinto, que é o implante material (obra) ou vegetal (plantação).
45 Neste sentido, Mouteira Guerreiro, Reflexões sobre o direito de superfície, a sua titulação e registo, os

volumes e o conceito de prédio urbano, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Porto,
2009, p. 221. Em sentido crítico, defendendo que a construção dogmática deste autor, ao defender
a possibilidade de rebaixar obra não pertencente ao tipo superficiário, verificando-se uma violação
do princípio da tipicidade,, Margarida Costa Andrade, Observações ao regime jurídico do direito de
superfície e dúvidas que daí resultaram, cit., pp. 1309 e ss.

RDC VII (2022), 1, 91-118


O direito de superfície, em especial, para a realização de obra no subsolo   107

Este autor entende que se aplica, neste caso, por analogia, o regime previsto
no artigo 1526.º do Código Civil relativo ao designado direito de sobreeleva‑
ção, tendo em conta a identidade de razão entre as duas situações concretas.

3.3. 
Os modos de constituição do direito de superfície para construção de obra no
subsolo – a problemática da usucapião

Determina o artigo 1528.º que o direito de superfície pode ser constituído por
contrato, testamento ou usucapião.
No que concerne à constituição do direito de superfície através de contrato,
o legislador acabou por prever um conceito-quadro, razão pela qual qualquer
contrato quod efectum46, típico ou atípico, é idóneo à constituição deste direito
real menor47. Assim, o direito de superfície pode ser constituído tendo como
título um contrato de compra e venda, um contrato de doação, um contrato de
permuta. Pode ainda resultar de uma dação em cumprimento.
Não se verifica também particulares dúvidas relativamente à constituição
do direito de superfície através de testamento, sendo este direito real de gozo
constituído mortis causa, atendendo à deixa testamentário do de cujus.
Pelo contrário, relativamente à constituição do direito de superfície por
usucapião, surgem dificuldades48 sobre as quais nos devemos pronunciar, uma
vez que estas têm impacto concreto no tráfego jurídico49.

46 A constituição do direito de superfície por via negocial está sujeita a forma especial, exigindo-se
escritura pública ou documento particular autenticado, conforme resulta do Decreto-Lei n.º 116/2008,
de 04 de Julho, em concreto, do seu artigo 22.º, alínea a), sendo um facto aquisitivo sujeito a registo,
nos termos do disposto no artigo 2.º, número 1, alínea a), do Código do Registo Predial.
47
Carlos Mota Pinto, Direitos Reais, cit., p. 297, refere que o direito de superfície se pode cons‑
tituir por acto negocial inter vivos, gratuito ou oneroso.
48 Invocando as dificuldades na usucapião do direito de superfície, António Manuel Triunfante,

Lições de Direitos Reais, cit., pp. 307 e ss., sem que, contudo, tome posição definitiva.
49 A jurisprudência portuguesa, em alguns dos seus arestos, pronunciou-se no sentido favorável da

usucapião do direito de superfície. Neste sentido, entre outros, veja-se o acórdão do Supremo Tri‑
bunal de Justiça de 04.02.1993, relativo ao processo: 083244, Relator Juiz Conselheiro Baltazar
Coelho, que citamos: “(…) Admitida a usucapião como fonte aquisitiva do direito de superfície sobre edifício
já construído, a sua operosidade, por banda do superficiário, há-de depender da verificação do condicionalismo
enunciado nos artigos 1287 e seguintes do Código Civil, condicionalismo que, observando o corpus, há-de relati-
vamente ao animus, traduzir-se na convicção do usucapiente deter e fruir a obra, isto é, somente a construção, como
superficiário, ou seja, com exclusão do terreno em que a mesma está implantada (…)”. E, ainda, o acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa de 14.01.2010, relativo ao processo:739/05.4TBSSB.L1-6, Relator
Juiz Desembargador José Eduardo Sapateiro, no qual se determinou: “(…) O direito de superfície, que
pode constituir-se por usucapião, forma-se directamente sobre ou sob – em termos de subsolo – o terreno ou solo

RDC VII (2022), 1, 91-118


108 Tiago Henrique Sousa

A usucapião é um facto constitutivo originário de direitos reais, que assenta


na posse de determinado sujeito.
Em traços muitos gerais, para que se verifique a usucapião, tem de exis‑
tir uma posse civil, cujos caracteres do possuidor revistam natureza pública e
pacífica (artigos 1261.º e 1262.º do Código Civil), a qual tem de ser contínua
e ininterrupta por determinado lapso de tempo, devendo ainda a usucapião ser
invocada, não operando ipso jure.
O direito de superfície não figura no catálogo dos direitos reais excluídos
pela usucapião, conforme resulta da regra prevista no artigo 1293.º do Código
Civil, o qual determina, apenas e tão só, que as servidões prediais não aparentes
e o direito de uso e habitação estão arredadas desta forma de aquisição originá‑
ria de direitos reais de gozo.
Alguns autores nacionais, na esteira da doutrina tradicional transalpina50,
defendem que não é possível adquirir, por usucapião, o direito de superfí‑
cie, uma vez que a posse é exercida também pelo solo e não apenas sobre a
edificação51.
É esta a opinião que era seguida por Pires de Lima/Antunes Varela52 e
Carvalho Fernandes53.
Em sentido oposto, permitindo esta forma de aquisição do direito de super‑
fície, temos Menezes Leitão54 ou José Luís Ramos55.
No que se refere ao direito de superfície para construção de obra no sub‑
solo, parece-nos ser complexo deslindar uma posse exercida por um sujeito
susceptível de ser invocada para permitir a aquisição deste direito real, contra‑
riamente ao que se verifica para construção de obra acima do solo56.

do prédio ou, no último caso, sobre edifício alheio já existente (direito de sobreelevação), de maneira a que uma e
outra construção (e respectivos direitos) não se mesclam ou confundem física e estruturalmente.
Nunca seria juridicamente possível constituir um direito de superfície aéreo relativamente à dita
casinha, por não se reconduzir a uma das situações admissíveis e com consagração legal, até por‑
que lhe falta em absoluto essa ligação ou conexão com o solo ou terreno alheio, para efeitos de
implantação de obra ou plantação, que está sempre presente em tal instituto (…)”,
50
Com este entendimento, Giovanni Pugliese. Superficie – Commetario del Codice Civile, 4.ª ed.
Bologna, Roma, 1976, pp. 588 e ss.
51 No direito alemão, já Ludwig Enneccerus/Theodor Kipp/Martin Wolf, Tratado de Derecho

Civil – Derecho de Cosas, p. 8, ensinavam que o direito de superfície se pode adquirir por usucapião.
52 Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado – Vol. III, cit., p. 596.

53 Luís de Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, cit., p. 448.

54 Luís Menezes Leitão, Direitos Reais, cit., p. 339.

55 José Luís Ramos, Direitos Reais, cit., pp. 469 e ss.

56 Carlos Mota Pinto, Direitos Reais, cit., p. 298-299, a propósito da aquisição do direito de super‑

fície por usucapião, exemplifica o caso em que um determinado sujeito confere a alguém, por acto

RDC VII (2022), 1, 91-118


O direito de superfície, em especial, para a realização de obra no subsolo   109

A posse assenta, como é facto assente, no corpus, consubstanciado no con‑


trolo material de determinada coisa corpórea, não sendo relevante o aninmus
do possuidor, atendendo à circunstância de o nosso legislador ter adoptado o
sistema objectivamente da posse, conforme defende a mais avalizada doutrina
jus-realista57.
Teremos de aferir e determinar, em termos minimamente objetivos, que a
posse concreta do possuidor era exercida por referência ao direito de superfície
para construção de obra no subsolo. O corpus possessório não se resume apenas
à prática concreta de actos materiais sobre determinada coisa corpórea, sendo
também relevante a susceptibilidade de os praticar.
Contudo, apesar da complexidade acima indicada, parece-nos possível con‑
figurar uma posse exercida nos termos do direito de superfície, que possa espo‑
letar usucapião, caso os pressupostos de aplicação deste instituto jurídico-real se
verifiquem no caso concreto.
Pense-se num sujeito que invade um terreno, em Janeiro de 2021, em
virtude de o terreno mostrar claros sinais de estar abandonado e desocupado,
levando a cabo uma construção subterrânea para construção de um parque
de estacionamento, não levando a cabo, porém, qualquer edificação acima do
solo, apenas existindo um pórtico de entrada para os veículos utilizadores do
parque. Neste caso concreto, o possuidor poderá vir a usucapir, no prazo de 20
anos, o direito de superfície, nos termos previstos no artigo 1296.º, 2.ª parte, do
Código Civil, em virtude de ser um possuidor de má fé e faltar título. Na cir‑
cunstância de o legítimo proprietário reivindicar a propriedade, em Fevereiro
de 2041, através de uma acção real de reivindicação, o possuidor pode invocar
uma excepção peremptória de usucapião, adquirindo de forma originária o
direito de superfície. Por seu turno, o proprietário fica, novamente, investido
na posse e na propriedade do terreno em causa, não obstante ver, com o trân‑
sito em julgado da acção, o seu direito real de propriedade onerado com um
direito real menor – o direito de superfície.

3.4. 
O cânon superficiário – particularidades na sua definição por referência a
obra construída no subsolo

Regra geral no tráfego jurídico contemporâneo, o direito de superfície,


quando é constituído, está sujeito ao pagamento pelo superficiário, ao fundeiro,

nulo por falta de forma – por exemplo, um contrato verbal – o poder de construir. Este, em virtude
da nulidade do titulo constitutivo, pode adquirir se tiver posse, por usucapião.
57 Entre outros, António Menezes Cordeiro, Posse: perpectivas dogmáticas actuais, 3.ª ed., Coimbra,

2000, pp. 57 e ss., defende que o sistema possessório português é substancialmente de tipo objectivo.

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110 Tiago Henrique Sousa

de um preço, nos termos previstos no artigo 1530.º do Código Civil – o desig‑


nado cânon superficiário. A prestação em causa pode ser única, mas também
uma prestação anual, perpétua ou temporária58.
Quando o cânon superficiário reveste natureza anual, há lugar à aplicação
do regime previsto nos artigos 1505.º e 1506.º, relativo à enfiteuse, o qual se
continua a aplicar, não obstante a revogação deste direito real pelo Decreto‑
-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, que extinguiu a enfiteuse sobre prédios
rústicos, bem como o Decreto-Lei n.º 233/76, de 2 de Abril que extinguiu a
enfiteuse sobre prédios urbanos59.
Por referência à construção de obra no subsolo, a determinação do valor do
cânon superficiário e a regularidade do seu pagamento tenderá, regra geral, a ser
detalhadamente negociado entre o fundeiro e o superficiário.
O fundeiro, para construir no subsolo, tem de recorrer, necessariamente,
a empresas que executem empreitadas especializadas. É facto notório que a
construção no subsolo requer, necessariamente, um planeamento adequado
atendendo à sua especificidade, com o desiderato de garantir o sucesso da sua
construção e que a obra que eventualmente esteja sobre o solo ou que venha a
ser levantada sobre este não tenham quaisquer vicissitudes.
Atendendo à natureza dos solos, os trabalhos de empreitada a levar a cabo
pelo superficiário podem ser mais ou menos dispendiosos, sendo certo que,
muitas vezes, aquando da execução da obra, se verificam vicissitudes não pla‑
neadas ab initio, v.g. infiltrações que encareçam a construção60.
O valor e complexidade dos projectos de especialidade das empreitadas de
obras no subsolo, os timings de execução deste tipo de obra e a apertada malha
regulativa do ponto de vista do Direito do Urbanismo para a sua concretização
são factores relevantes a ter em conta na fixação do cânon superficiário.
Outro factor a ter em conta na determinação do cânon superficiário é o
afastamento da regra prevista no artigo 1538.º, n.º 2, sobre a extinção do direito
de superfície por decurso do prazo.
Assim, atendendo ao regime do artigo 1538.º, n.º 1, no termo do direito
de superfície, o fundeiro adquire a propriedade do implante61, tendo de indem‑

58 Com grande desenvolvimento sobre a matéria do cânon superficiário, José de Oliveira Ascen‑
são, Estudos sobre a superfície e a acessão, cit., pp. 23 e ss.
59 Margarida Costa Andrade, Observações ao regime jurídico do direito de superfície e dúvidas que daí

resultaram, cit., p. 1321.


60 Sobre a problemática da natureza dos solos e a sua relevância no direito de superfície, supra, pp.

11 e ss.
61 A aquisição aqui em causa é não automática, não carecendo do proferimento de qualquer declaração

de vontade para o efeito. Neste sentido, José Alberto Vieira, Direitos Reais, cit., p. 711 e Fernando
Ferreira Pinto/Isabel Teixeira Duarte, Comentário ao Código Civil – Direito das Coisas, p. 686.

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O direito de superfície, em especial, para a realização de obra no subsolo   111

nizar o superficiário por tal circunstância, segundo as regras do enriquecimento


sem causa, exceptuando se afastarem esta regra, ao abrigo do artigo 1538.º,
n.º 2.
Assim, se o fundeiro e o superficiário afastarem esta regra supletiva, pre‑
visivelmente o valor do cânon superficiário ou a sua periodicidade poderá ser
mais facilmente conformada, uma vez que o proprietário do solo sabe que no
final do final da superfície temporária, ficará proprietário do implante, sem
quaisquer outros encargos, podendo usar e fruir do mesmo, ao ter retomado a
propriedade plena do prédio.
Desta guisa, todos estes circunstancialismos supracitados, entre outros con‑
cretamente verificáveis na circunstância do caso concreto, serão relevantes na
fixação do cânon superficiário.
Tratando agora da natureza do cânon superficiário, cabe destacar que a
doutrina não tem entendimento unânime sobre esta matéria.
Assim, Oliveira Ascensão62 defende que se há uma única prestação, se
aplicam as regras gerais atinentes ao pagamento do preço, sendo o superficiário
pessoalmente obrigado, não tendo as vicissitudes do cumprimento da prestação
em causa repercussão no concreto direito real de gozo em estudo.
Contrariamente, se for definido uma prestação anual, o verdadeiro cânon
superficiário, estamos perante um ónus real.
O mesmo entendimento tem Armindo Ribeiro Mendes, sufragando que o
cânon superficiário tem natureza jurídica de ónus real63.
Também José Luís Ramos64 defende, tout court, que se trata de um ónus
real. Para este autor, estamos perante um poder de exigir a quem seja o titular
do direito real da prestação, a qual apenas se mantém enquanto direito real
menor em causa subsistir.
Por seu turno, Margarida Costa Andrade65 sufraga que o cânon superficiá‑
rio é uma obrigação real, de conteúdo positivo, não se verificando o problema

62 José de Oliveira Ascensão, Estudos sobre a superfície e a acessão, cit., p. 23, ensina que se se conven‑
ciona o pagamento de um cânon superficiário estamos perante um ónus real, uma vez que o crédito
do fundeiro, não obstante não ser funcional no que concerne ao gozo do prédio, é, contudo, munido
de inerência que permite que o mesmo seja oposto a quem seja o titular do direito de superfície,
transmitindo-se ao novo titular do direito.
63 Armindo Ribeiro Mendes, O direito de superfície, cit., p. 57, na esteira do entendimento de

Oliveira Ascensão.
64 José Luís Ramos, Direitos Reais, cit., p. 472, refere que o cânon superficiário, sendo um poder

de exigir a entrega de uma coisa ou dinheiro a quem é o titular do direito, apenas pode subsistir
enquanto a titularidade deste direito real menor se mantiver.
65 Margarida Costa Andrade, Observações ao regime jurídico do direito de superfície e dúvidas que daí

resultaram, cit., pp. 1321 e ss.

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112 Tiago Henrique Sousa

da taxatividade das obrigações reais, uma vez que encontramos respaldo desta
qualificação jurídica no regime do artigo 1530.º do Código Civil. Tratando-se
de uma obrigação real, o cânon superficiário pode extinguir-se por renúncia
liberatória do titular do direito real, por aplicação do princípio geral vigente,
nos termos indicados por Henrique Mesquita, para todas as obrigações reais, de
que o titular de determinado direito real pode extinguir a prestação a que está
adstrito, renunciando à titularidade do seu direito real em benefício do credor.
Esta autora ressalva que, contrariamente ao que se verifica com a comproprie‑
dade (artigo 1411.º do Código Civil), usufruto (artigo 1472.º do Código Civil)
e servidões prediais (artigo 1567.º do Código Civil), em que o legislador previu
a possibilidade de renúncia, na servidão não previu esta possibilidade, o que não
releva, em virtude da aplicação da regra geral supra indicada.
A grande relevância prática desta distinção prende-se com a aferição da
transmissibilidade ou não transmissibilidade do cânon superficiário ao novo
adquirente deste direito real menor, bem como a sua eventual prescrição, uma
vez que se se qualificarmos o cânon superficiário como um ónus real, este não
se extingue, por aplicação do regime previsto no artigo 298.º, n.º 3, do Código
Civil66.
Quantos a nós, parece-nos que o cânon superficiário é uma obrigação
real, sendo ponderoso, além dos argumentos anteriormente expostos, a letra
do artigo 1537.º do Código Civil, que determina que a falta de pagamento das
prestações anuais durante vinte anos extingue a obrigação de as pagar, razão pela qual
se pode extinguir por renúncia liberatória.

3.5. 
A articulação da situação jurídica do superficiário com a situação jurídica do
fundeiro – atendendo à construção de obra no subsolo

O direito de superfície para construção de obra no subsolo é um direito real


dinâmico, cujo exercício, pelo seu titular, dos poderes jurídicos permitidos pelo
tipo, apresenta um carácter dualista67, de acordo com o momento concreto em
que o direito real menor se encontra.

66 António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado – I, – Parte Geral, Coimbra, 2020, p. 875,
refere, lapidarmente, que os direitos reais de gozo são imprescritíveis, sendo certo que todo o regime
da prescrição está moldado nas relações jurídicas obrigacionais.
67 António Manuel Triunfante, Lições de Direitos Reais, cit., pp. 282-283, refere que o direito de

superfície comporta uma certa duplicidade, uma vez que, primeiramente, existe um direito à constru‑
ção ou manutenção de obra ou plantação num terreno alheio (direito potestativo dirigido à aquisição
de um direito real). A segunda dimensão deste direito real incide sobre o implante em sim mesmo,
a designada propriedade superficiária.

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O direito de superfície, em especial, para a realização de obra no subsolo   113

Destarte, no momento em que o direito de superfície é constituído, e nos


casos em que ainda não exista obra de construção no subsolo, o superficiário
tem o poder de construir a obra, sendo certo que, atendendo às particulares
deste tipo de construção, nos termos supracitados, a construção do implante
poderá não ser automática.
Neste momento, o direito do superficiário tem apenas por objecto o solo,
com o inerente poder de construir o implante, a que Oliveira Ascensão68
designa de direito de implante.
Após a construção pelo superficiário no subsolo, verifica-se que o direito
de superfície passará a ter por objecto, não apenas o subsolo, mas também a
construção por si levada a cabo, tendo assim este direito real, neste caso, um
objecto dúplice.
Esta questão é particularmente relevante no que diz respeito à alienação do
direito de superfície, por parte do superficiário, ao abrigo do disposto no artigo
1534.º do Código Civil, o qual determina que o direito de superfície e o direito de
propriedade do solo são transmissíveis por acto entre vivos ou por morte.
Julgamos que quando a construção de obra no subsolo se encontrar con‑
cluída, o superficiário, na circunstância de pretender transmitir o direito real
de que é titular, terá de o fazer, necessariamente, em termos globais, razão pela
qual o novo direito real do novo superficiário irá ter por objecto, quer o sub‑
solo, quer a obra construída.
O poder de construção ou direito de implante e o direito sobre implante
são unos e incindíveis, verificando-se, nesta sede, um paralelo com o regime
previsto no artigo 1420.º, n.º 2, do Código Civil, em que o proprietário, em
regime de propriedade horizontal, apenas pode alienar globalmente o direito
real de que é proprietário, não obstante ser proprietário pleno da sua fracção
autónoma e comproprietário das partes comuns.
Parece-nos que o objecto central do direito de superfície, no caso em
estudo, é a obra no subsolo, uma vez que o conteúdo central de aproveita‑
mento deste direito real de gozo, mormente no que concerne aos poderes de
uso e fruição do superficiário, apenas será amplamente concretizado com a
edificação do implante.
Corolário desta relevância é a previsão consagrada no artigo 1536.º, n.º 1,
alínea a), do Código Civil, o qual determina que se o superficiário não concluir a
obra ou não fizer a plantação dentro do prazo fixado ou, na falta de fixação, dentro do
prazo de dez anos, o direito de superfície se extingue.

68 José de Oliveira Ascensão, Estudos sobre a superfície e a acessão, cit., pp. 27 e ss.

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114 Tiago Henrique Sousa

Ora, mesmo nos casos de superfície perpétua, extremamente raros no trá‑


fego, o direito real extingue-se por inércia do seu titular, caso este, por si pró‑
prio ou através de terceiros, leve a cabo a construção ou plantação.
Conclui-se, assim, que o poder de construção está limitado no tempo de
duração do direito de superfície, contrariamente aos poderes de uso, fruição,
disposição e oneração, que se mantêm na esfera jurídica do superficiário durante
toda a vigência deste direito real.
O fundeiro tem uma posição jurídica activa do solo durante a vigência do
direito de superfície para construção de obra no subsolo.
Assim, determina o artigo 1532.º do Código Civil que enquanto não se iniciar
a construção da obra ou não se fizer a plantação das árvores, o uso e a fruição da superfície
pertencem ao proprietário do solo, o qual, todavia, não pode impedir nem tornar mais
onerosa a construção ou a plantação.
Contrariamente às situações em que o direito de superfície tem por objecto
uma construção de obra no solo, em que o gozo do solo pelo fundeiro fica
limitado, aquando do início da obra por parte do superficiário, à porção do
terreno não abrangida pelo direito real menor constituído, nos casos em que
o direito de superfície tem por objecto construção de obra no subsolo, esta
limitação não se verifica.
Com efeito, quando o direito de superfície incide sobre obra no subsolo,
o fundeiro continua a ter o gozo pleno e exclusivo do solo, podendo levar a
cabo construções, usar e fruir as construções eventualmente existente, consti‑
tuir direitos reais de gozo menores sobre o solo, v.g. usufruto ou direito de uso
e habitação, bem como constituir direitos pessoais de gozo, v.g. arrendamento
ou comodato.
Verificamos, assim, que a oneração do direito real do fundeiro é menor
quando o direito de superfície tem por objecto construção no subsolo, atri‑
buindo-lhe poderes de aproveitamento da coisa de que é titular muito mais
extensas do que as que se verificam quando a superfície tem por objecto a
construção acima do solo.
Construída a obra, pergunta-se qual o direito que o superficiário tem
perante o implante construído.
A resposta a esta questão é controversa na doutrina jus-realista portuguesa
existindo diferentes construções dogmáticas sobre esta questão. Procuraremos,
em seguida, elencar as posições mais relevantes, tomando, por fim, posição.
Assim, Oliveira Ascensão69, analisando, com detalhe, as posições do super‑
ficiário e do fundeiro, ensina que a situação do superficiário é composta por

69 José de Oliveira Ascensão, Estudos sobre a superfície e a acessão, cit., pp. 23 e ss.

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O direito de superfície, em especial, para a realização de obra no subsolo   115

dois direitos reais: o direito de implantar a coisa em terreno alheio, desig‑


nado de direito de implante e o direito de propriedade quando a coisa estiver
implantada, os quais, porém, não têm natureza constante. Refere ainda este
autor que não estamos perante uma propriedade superficiária, mas uma pro‑
priedade especial, não gozando da característica da perpetuidade70
A mesma posição é sufragada por importantes autores como Pires de Lima/
/Antunes Varela71, que na esteira da doutrina italiana clássica, desenvolvem
a ideia da propriedade superficiária, como forma de distinção da propriedade
entendida em termos comuns.
Menezes Cordeiro72, sufraga que o direito sobre o implante não pode ser
considerado um direito de propriedade, uma vez que não estamos perante um
direito de natureza nem plena, nem exclusiva.
Cabe tomar posição.
A construção do implante no subsolo é a feição mais relevante quando o
direito real de superfície tenha sido definido, nestes moldes, entre o fundeiro
e o superficiário.
Com a conclusão da obra pelo superficiário, este tem um poder que incide
sobre uma coisa que lhe é própria, o implante. Este poder encontra-se legiti‑
mado e alicerçado no direito real menor de que é titular. Parece assim resultar
que o poder do superficiário não incide sobre coisa alheia, mas sim sobre uma
coisa que lhe é própria.
A propriedade pode ser temporária, conforme resulta do regime do artigo
1307.º73, o qual determina que a propriedade temporária só é admitida nos
casos especialmente previstos na lei.
Também é certo que contrariamente aos demais direitos reais de gozo,
entre os quais o usufruto e o direito de uso e habitação, servidão, o direito de
superfície pode ser perpétuo, conforme resulta da noção legal ínsita no artigo
1524.º do Código Civil, bem como do artigo 1530.º. n.º 2, aproximando-o,
deste modo, também da propriedade.
Outra pista que nos parece relevante é a circunstância de o regime do
direito de superfície, contrariamente ao que se verifica nos demais direitos reais
de gozo, permitir a manutenção de outros direitos reais de gozo e ou direitos
reais de garantia, nos termos previstos no artigo 1541.º, quando o direito de
superfície se extingue antes do prazo previsto no título constitutivo.

70 José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, cit., p. 464.


71
Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado – Vol. III, cit., p. 588 e ss.
72 António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, II, cit., p. 1020.

73 Com grande desenvolvimento sobre a problemática do artigo 1307.º, veja-se, Ana Filipa Morais

Antunes/Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil – Direito das Coisas, cit., pp. 150 e ss.

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116 Tiago Henrique Sousa

Também parece ser relevante a circunstância de o legislador ter sido sensível


à limitação da possibilidade de transmissão de direitos reais de gozo menores,
nos quais o uso e fruição de uma coisa corpórea é o seu centro gravitacional,
sendo o exemplo paradigmático o direito de uso e habitação que é intransmis‑
sível, conforme resulta do regime do artigo 1488.º, bem como no usufruto, em
que se verifica a possibilidade de limitar a transmissão do usufruto, no título
constitutivo, atendendo ao regime do artigo 1444.º do Código Civil. Esta limi‑
tação não se verifica no direito de superfície.
Assim sendo, ponderados todos os argumentos, parece-nos que o direito
do superficiário sobre o implante é uma propriedade temporária ou perpétua
sui generis, com contornos próprios, a qual assenta sobre um solo alheio da titu‑
laridade do fundeiro.
A propriedade temporária, no caso de o direito de superfície ser temporá‑
rio, reverterá para o fundeiro, no termo da superfície, conforme resultam das
regras do artigo 1538.º, n.º 1 do Código Civil.
Na circunstância de o superficiário adquirir o chão ao fundeiro, o direito
de superfície extingue-se por confusão, ao abrigo do disposto no artigo 1536.º,
n.º 1, al. d), do Código Civil. Neste caso, a propriedade que era, ab intio, tem‑
porária, passa a ser perpétua.
Quando o direito de superfície é constituído a título perpétuo, a proprie‑
dade do superficiário sobre o implante também o é. Nesta circunstância, existe
uma grande proximidade entre a designada propriedade superficiária e a pro‑
priedade propriamente dita, porque os poderes de uso, fruição e oneração do
implante são praticamente iguais aos de um proprietário comum.
Apesar de, regra geral, o fundeiro conservar para si o poder de disposição
do seu direito de propriedade, a oneração em causa resultante da perpe‑
tuidade do direito de superfície irá condicionar a transmissibilidade do seu
direito real.
Os condicionamentos práticos no tráfego referenciados no parágrafo
antecedente parecem ser menores nos casos de obras no subsolo, em virtude
de a oneração em causa poder não impactar com a construção acima do solo.
Esse facto torna o direito do fundeiro mais facilmente transacionável uma
vez que permitirá uma possibilidade de gozo, fruição e oneração ao putativo
adquirente.

3.6. Natureza jurídica do direito de superfície

O direito de superfície é um direito real de gozo menor típico previsto na


nossa ordem jurídica.

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O direito de superfície, em especial, para a realização de obra no subsolo   117

Apesar desse facto, a doutrina jus realista continuar a discutir a natureza


jurídica do direito de superfície74.
A doutrina tradicional portuguesa, defendida por autores como Cunha
Gonçalves75, Pires de Lima/Antunes Varela76 sufragam a doutrina do des‑
membramento, existindo no direito de superfície dois direitos distintos.
O direito de propriedade sobre o solo e outro sobre o implante, a designada
propriedade superficiária. Para estes autores, o direito real não é um direito
sobre coisa alheia, mas sim um direito sobre coisa própria, em concreto, o
implante, o qual permanece num terreno que é alheio, da titularidade do fun‑
deiro, sem que haja lugar à aplicação das regras sobre a acessão.
Carvalho Fernandes77 defendia que o direito de superfície configura um
direito real a se, próximo da propriedade, o que legitimaria a faculdade de
recorrer às suas normas, enquanto regime subsidiário, para integrar eventuais
lacunas no tratamento jurídico do direito do superficiário sobre a obra ou a
plantação.
Mota Pinto78 também parecia defender a natureza dualista do direito de
superfície, uma vez que fazia uma destrinça clara entre o direito de construir
ou plantar em terreno alheio e o direito sobre a construção já existente, os
quais tinham natureza diferente. O primeiro, a concessão ad plantandum ou ad
aedificandum é um direito real autónomo in re aliena, sobre coisa de outrem. O
segundo, a propriedade da obra separada do solo, é um direito de propriedade.
Conforme salienta Menezes Leitão79, as doutrinas dualistas quebram a
unidade do direito de superfície, fazendo uma qualificação diferente quando
o mesmo direito pode abranger os poderes de construção ou plantação ou
quando o direito real em causa incide sobre plantação ou obra já existentes.
Verificadas as diferentes construções dogmáticas, sufragamos a posição de
que o direito de superfície é um direito real de gozo menor complexo, tout

74 Para uma perpectiva sintética das diferentes construções levadas a cabo pela doutrina nacional,
Luís de Carvalho Fernandes, A situação jurídica do superficiário-condómino, Revista da Ordem dos
Advogados, Lisboa, 2006, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2006/ano-
66-vol-ii-set-2006/doutrina/carvalho-fernandes-a-situacao-juridica-do-superficiario-condomino‑
-star/, pp. 3 e ss.
75 Luís da Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, vol. XI, p. 298.

76 Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado – Vol. III, cit., pp. 587 e ss.

77 Luís de Carvalho Fernandes, A situação jurídica do superficiário-condómino, cit., disponível em

https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2006/ano-66-vol-ii-set-2006/doutrina/carvalho-
fernandes-a-situacao-juridica-do-superficiario-condomino-star/, p. 4.
78 Carlos Mota Pinto, Direitos Reais, cit., pp. 290 e ss.

79 Luís Menezes Leitão, Direitos Reais, cit., p. 358

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118 Tiago Henrique Sousa

court, a par dos demais direitos reais de gozo menores previstos no quadro legal
português.
Assim, os contornos e os poderes do superficiário no exercício do direito
real de gozo de que é titular são dinâmicos e apenas definidos por referência
aos termos concretos em que o direito de superfície são definidos e delimitados
pelo fundeiro e pelo superficiário no título constitutivo. Após a definição dos
contornos do direito de superfície, aplicar-se-ão quer as regras previstas no
título constitutivo, v.g. o tipo de implante a construir, suas características, prazo
do direito, valor do cânon superficiário e sua periodicidade, em articulação
directa com o regime objectivo previsto nos artigos 1528.º a 1542.º, adaptável
à situação do caso concreto.

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