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O Direito de Superfície
O Direito de Superfície
de obra no subsolo
TIAGO HENRIQUE SOUSA*
I. Introdução
362, a propósito do direito de superfície no Direito romano, ensina, de forma lapidar, que a superfí‑
cie (superfícies) era o direito real dotado de transmissibilidade inter vivos e mortis causa, o qual permitia,
por longos períodos de tempo ou perpetuamente o gozo pleno e exclusivo de um edifício sediado
em solo alheio, mediante o pagamento de um cânon anual, denominado pensio ou solarium, o qual
surgiu com o desiderato de afastar os graves constrangimentos desencadeados pelo conceito romano.
Ressalve-se, porém, que refere José Luís Ramos, Direitos Reais, 2.ª ed., Lisboa, 2021, p. 465,
numa posição isolada na doutrina jus-realista nacional, que o direito de superfície, contrariamente
ao direito de propriedade ou usufruto, não tem encontro no Direito romano ou no direito feu‑
dal, ganhando apenas a sua dimensão já no decurso do século XIX. Apesar dessa circunstância,
salienta que podemos encontrar alguns antecedentes que ajudam a compreender e a caracterizar
este direito real.
3 Sobre o direito de superfície, em geral, veja-se, por ordem cronológica: Carlos Mota Pinto,
Direitos Reais, Coimbra, 1971, pp, 289 e ss.; António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1.ª ed.,
Lisboa, 1979, pp. 706 e ss.; Eduardo dos Santos, Curso de Direitos Reais, I, 1.ª ed., Lisboa, 1983,
pp. 563 e ss.; Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado – Vol. III, 2.ª ed., Coimbra,
1987, pp. e 485 e ss.; José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 5.ª ed., Coimbra, 1993,
pp. 523 e ss.; Luís de Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6.ª ed., Coimbra, 2009, pp.
431 e ss.; António Manuel Triunfante, Lições de Direitos Reais, 1.ª ed., Coimbra, 2017, pp. e
281 ss.; Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, 1.ª ed., Lisboa, 2017, pp. 435 e ss.; Rui Januá‑
rio/Filipe Lobo d`Ávila/Luís de Andrade Pinhel, Direitos Civil – Direito das coisas, 1.ª ed., Lis‑
boa, 2018, pp. 1006 e ss.; Luís Menezes Leitão, Direitos Civil, 9.ª ed., Coimbra, 2020, pp. 343 e
ss.; Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 4.ª ed., Coimbra, 2020, pp. 301 e ss.; António
Santos Justo, Direitos Reais, 7.ª ed., Lisboa, 2020, pp. 437 e ss. ;José Alberto Vieira, Direitos
Reais, 2.ª ed., Coimbra, 2018, pp. 693 e ss.; José Luís Ramos, Direitos Reais, 2.ª ed., Lisboa, 2021,
pp. 465 e ss.; AAVV, Comentário ao Código Civil – Direito das coisas, 1.ª ed. Lisboa, 2021, pp. e ss.
4 Fernando Ferreira Pinto/Diogo Pessoa, Comentário ao Código Civil – Direito das Coisas, p.
652, referem que, apesar de a norma não ter correspondência com qualquer preceito anterior do
Código de Seabra, são relevantes para o contexto histórico da mesma o artigo 2308.º do Código
de Seabra, a Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948 e o artigo 952.º do Código Civil italiano.
5 Rui Pinto/Cláudia Trindade, Código Civil Anotado, Vol. II, Coimbra, 2019, p. 367, criticam a
noção legal prevista no artigo 1524.º do Código Civil, uma vez que, de acordo com a sua interpre‑
tação do preceito, este revela incompletude, já que não prevê a possibilidade de construção de obra
no subsolo. Considerando, por contrário, que não obstante o Código Civil de 1966, na sua versão
primitiva, não permitir a construção de obra no subsolo, a noção legal é suficientemente elástica para
prever a construção no mesmo, ver por todos, Fernando Ferreira Pinto/Diogo Pessoa, Comen-
tário ao Código Civil – Direito das Coisas, p. 654.
8 José de Oliveira Ascensão, Estudos sobre a superfície e a acessão, cit. p. 9, refere que a acessão é
como que a outra face da medalha relativamente ao direito de superfície, só se verificando superfície
o que escapar à acessão.
9
“Praeterea id quod in solo nostro ab aliquo aedificatum est, quamvis ille suo nomine aedificaverit iure natu-
rali nostrum fit, quia superfícies solo cedit”, Gaio, II, 73. Conforme refere Armindo Ribeiro Mendes,
O direito de superfície, Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, 1972, p. 19, também no Digesto
surge um fragmento de Gaio, possivelmente interpolado, em que é consagrada o princípio da acessão
“omne quod inaedificatur solo cedit” (D.41.17.10).
10 Giovanni Balbi, Il diritto di superfície, Torino, 1947, pp. 19 e ss., ensinava, de forma sintética, que
em virtude das regras da acessão, em Roma, o Pretor começou a permitir que os privados levassem
a cabo construções, dando-lhe uma tutela próxima daquela que tinha o proprietário, evitando os
formalismos ínsito às regras do jus civile atinentes à propriedade.
11 António Santos Justo, Manual de Direito privado romano, p. 362.
12 Guilherme Braga da Cruz, O direito de superfície no Direito romano, pp. 9 e ss. defendia que o
direito de superfície era uma criação pretória, a qual havia sido criada pela primeira vez em Roma
para conceder uma protecçáo judiciária, de carácter real, em favor do sujeito que construiu num ter‑
reno alheio com a respectiva autorização do dominus, outorgando-lhe um interdito, designado de
interdictum de superficiebus, bem como uma acção judicial, uma utilis actio in rem,
13 Com grande desenvolvimento sobre esta questão, José Augusto Pires Martins, Do direito de
da Ordem dos Advogados, Lisboa, 1952, pp. 241, trata desta matéria com algum detalhe.
15 Neste sentido, Guilherme Braga da Cruz, O direito de superfície no Direito romano, p. 15.
16 Assim refere Paulo de Tarso Pacheco Carreiro, Origem, evolução e conceito actual do direito de
superfície, p. 242.
um ius in re aliena, isto é, um direito sobre uma coisa alheia, o qual é constituído
sobre o solo do proprietário17.
Após a queda do Império Romano, as regras da acessão deixaram de se
manter de forma absoluta, em virtude da organização menos desenvolvidas das
sociedades germânicas por comparação à sociedade romana e à própria natu‑
reza das construções mais rudimentares desenvolvidas nesta época, muitas de
madeira, de palha ou de colmo18.
Os povos germânicos permitiam a divisão da propriedade do solo da do
sobressolo, permitindo-se, assim, que a uma pessoa pudesse pertencer a pro‑
priedade do solo e a outra pessoa a propriedade do edifício, sendo ainda pos‑
sível pertencer a um sujeito a propriedade do solo e a outro a propriedade das
árvores19.
Verifica-se uma alteração do direito de superfície por comparação com a
sua matriz romana, o qual sofreu uma nova configuração no período de Direito
comum20.
A codificação francesa e as suas congéneres, entre as quais a portuguesa,
com o Código de Seabra de 1867, não consagraram a matéria do direito de
superfície no seu articulado, sendo certo que o Code acabou por não consagrar
a regra absoluta da acessão prevista nos moldes romanos, conforme resulta do
regime do seu artigo 553.º ainda em vigor na sua forma primitiva:
II, 2.ª ed. Barcelona, 1976, p.1, atendendo à evolução deste direito real de gozo, acabam por concluir
que o direito de superfície tem origem no direito romano e no direito comum.
21 Francoise Terré/Phillippe Simler, Droit Civil – Les Biens, Dalloz, 5.ª ed. pp. 710 e ss., ensinam
que o Code Civil não consagra, no seu catálogo de Direitos Reais, o direito de superfície, consagrando
no regime previsto no artigo 552.º que: “la propriété du sol emporte la propriété du dessus et du dessou-
s”,em virtude da herança da Revolução Francesa, vendo os autores materiais do Código Napoleão,
no direito de superfície, um resquício do Antigo Regime. Contudo, salientam estes civilistas que a
Cours de Cassation, desde os primórdios da entrada em vigor deste código, levou a cabo uma interpre‑
tação restritiva deste preceito legal, desenvolvendo a construção de que o mesmo apenas consagrava
uma presunção de natureza ilidível, permitindo, deste modo, a constituição de direitos de superfície
no tráfego, o qual poderia ser transmitido a terceiros e ser objecto de hipoteca.
Marcel Planiol, Traité élémentaire de Droit civil, I, 12.ª ed., Paris, 1935, pp. 23 e ss., refere que a
doutrina francesa, atendendo à letra de vários preceitos do Code, entre os quais, o regime do artigo
546.º, 551.º e 553.º, 519.º e 664.º , tem chegado à conclusão de que o direito de superfície vigora
em França. É ainda referido que o artigo 553.º do Code consagra uma presunção ilidível, razão pela
o princípio da superficies solo cedit, não sendo de ordem pública, pode ser afastado.
22 Compulsando o § 1, inciso 1, do ErbbauVO /Erbbaurechtsverodnung), que aqui transcrevemos, Ein
Grundstück kann in der Weise belastet werden, daß demjenigen, zu dessen Gunsten die Belastung erfolgt, das
veräußerliche und vererbliche Recht zusteht, auf oder unter der Oberfläche des Grundstücks ein Bauwerk zu
haben (Erbbaurecht), verificamos que o direito de superfície, na Alemanha, permite a construção de
obra sobre o sob o solo, razão pela qual concluímos que o superficiário poderá levar a cabo cons‑
trução de obra no subsolo.
23 Luís da Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil em comentário ao Código Civil, Vol. XI, Lisboa,
1937, p. 298, referia que na época da pré‑codificação a Lei de 9 de Julho de 1773 previa nos seus §§
11.º, 17.º e 26.º, o direito de superfície no que concerne a árvores e plantações.
na Lei n.º 2030 de 22 de Junho de 1948, diploma que, entre outras matérias,
previu, nos artigos 21.º a 29.º, o direito de superfície24.
Em momento anterior, o artigo 2308.º do Código de Seabra previa a possi‑
bilidade de, durante 30 anos, o proprietário de um prédio se sujeitar à presença
de árvores pertença de outro sujeito.
Esta disposição previa o seguinte:
O dono do prédio, onde existirem árvores alheias, poderá adquiril-as, pagando o seu
valor, excepto se, por effeito de contracto, se tiver obrigado a conservál-as no dominio alheio
por certo numero de annos, que nunca poderão exceder trinta.
3.2.
O direito de superfície no regime do actual Código Civil – a construção de
obra no subsolo
Foi o Código Civil de 1966 que, em termos gerais, e pela primeira vez,
passou a prever na ordem jurídica portuguesa a possibilidade de constituição
do direito de superfície, independentemente da natureza do sujeito e do solo.
a Lei n.º 2.030, de 22 de Junho de 1948, nos artigos 21.º e seguintes, introduziu uma nova figura
de direito real, que expressamente qualificou de “propriedade imperfeita”. Diz ainda este autor que
por via da constituição do direito de superfície (atendendo ao diploma referenciado), origina-se o
desdobramento em dois direitos reais: o direito de implantar e manter edifício próprio em terreno
alheio e o mero direito ao solo.
25 Assim constata, João Afonso Corte-Real, Derecho de superficie, in Derecho de superficie y expro‑
sórias nacionais, por diversas vezes tiveram de analisar questões relativas a direito de superfície em que
cooperativas de habitação social estavam envolvidas. Veja-se, assim, a título meramente indicativo,
os seguintes arestos: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.09.1998, relativo ao processo
98B682, Relator Juiz Conselheiro Ferreira de Almeida; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
de 30.10.2014, relativo ao processo 3588/12.0YXLSB.BL1-8, Relatora Juíza Desembargadora Isoleta
Almeida Costa ou o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02.07.2019, relativo ao processo
14205/16.9T8LSB.L1-1, Relatora Juíza Desembargadora Isabel Fonseca.
29 Uma vez mais, como refere, Giovanni Balbi, Il diritto di superfície, cit., p. 18.
30
Sobre as acções reais, com grande detalhe, Nuno Andrade Piçarra, Das Acções Reais, Vol. I e
II, Lisboa, 2021.
31 José Andrade Mesquita, Direitos pessoais de gozo, Coimbra, 1999, pp. 135 e ss., ensina que o
direito pessoal de gozo é um direito imediato sobre uma coisa, sendo certo que, partindo da noção
de obrigação prevista no artigo 397.º do Código Civil, conclui-se que nos direitos pessoais de gozo,
o seu núcleo fundamental escapa a esse conceito, uma vez que o que caracteriza este tipo de direito
é o poder que assiste ao titular de retirar determinadas utilidades de uma coisa corpórea sem a inter‑
mediação de terceiros, sendo impossível de explicar esse gozo, em sede obrigacional, através de uma
prestação de outrem, tendo os direitos pessoais de gozo uma coisa.
32 Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado – Vol. II, 4.ª ed., Coimbra, 1997, p. 368,
referem que a defesa da posição do locatário deve caber a este, não apenas contra actos de terceiros,
como também contra actos do próprio locador.
o direito de superfície não pode ter por objecto a construção de obra no subsolo, a menos que
ela seja inerente à obra superficiária.
(…) é sabido que o progresso económico e social dos grandes centros implica a multipli-
cação dos veículos automóveis em circulação. (…) Há, assim, que encontrar soluções novas
que permitam normalizar o tráfego automóvel, com relevo para o ponderoso problema do
estacionamento nos grandes centros urbanos. (…) A saída tecnicamente possível perante as
coordenadas acima mencionadas reside na construção de parques de estacionamento subterrâ-
neos, devidamente dimensionados, edificados de acordo com todas as normas de segurança e
33António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito civil, I, 4.ª ed., Coimbra, 2019, p. 709, ensina
que a occassio legis (ocasião da lei) é o conjunto de circunstâncias existentes aquando da feitura da lei,
tendo, deste modo, condicionado ou interferido no texto legal. Refere ainda que ocassio legis torna-se
importante quando é reflectida na lei, podendo a mesma resultar do próprio preâmbulo do diploma.
Foi o que se verificou, nesta sede, com o Decreto-Lei n.º 257/91, de 18 de Julho.
planeados por forma a não prejudicar a traça das cidades. Tais parques irão permitir remover
da superfície todo um conjunto de automóveis estacionados pelos mais diversos locais, com
ganhos claros para o trânsito de transportes públicos e de peões e, em geral, para a qualidade
de vida urbana (…)
34
Compulsando os dados da Pordata, disponíveis em https://www.pordata.pt/Portugal/Ve%C3%A‑
Dculos+rodovi%C3%A1rios+motorizados+por+mil+habitantes-3234 , verificamos que o número
de carros por habitante, em Portugal, tem vindo a aumentar de forma constante. Assim, se em 2010
existiam 584,7 carros por cada mil habitantes, em 2020, esse número atingiu 681,8 carros por cada
mil habitantes.
35 Armindo Ribeiro Mendes, O direito de superfície, cit., p. 46, ainda na vigência da versão primitiva
do Código Civil de 1966 que não permitia construção de obras no subsolo, referia como exemplo
deste tipo de construções (não admitidas então na legislação vigente), uma adega subterrânea, um
abrigo contra bombardeamentos, um parque de estacionamento subterrâneo ou uma construção para
instalação de depósitos frigoríficos.
36 Existem várias definições sobre a noção de solo de acordo com a perspectiva das Ciências do Solo,
desde as noções muito sintéticas às noções muito detalhadas. Sobre este fenómeno, veja-se, desde
logo, as explicações dadas pela Sociedade Portuguesa da Ciência do Solo, disponíveis em https://
www.spcs.pt/ . De acordo a Soil Science Society of America, solo é uma mistura de minerais, organismos
vivos e mortos (materiais orgânicos), ar e água. Esses quatro ingredientes reagem uns com os outros, tornando o
solo um dos recursos naturais mais dinâmicos e importantes do nosso planeta. Nos Estados Unidos da Amé‑
rica, a classificação geral dos solos está baseada numa escala de 12 de solo. Para mais detalhes, ver, por
todos, https://www.soils.org/about-soils/basics
37
Para maiores desenvolvimentos sobre a classificação dos solos em Portugal, veja-se a obra de refe‑
rência de José De Carvalho Cardoso, Os solos de Portugal: sua classificação, caracterização e génese,
Lisboa, 1965, 311 pp.
38 A Engenharia Geológica é uma especialidade de Engenharia que aplica princípios, conceitos e téc‑
nicas das Ciências Geológicas na resolução de problemas de engenharia que envolvem a Terra e o
seu funcionamento como um sistema geodinâmico, cfr. https://eduportugal.eu/opcoes-de-estudo/
engenharia-geologica/.
39 Este ramo da Engenharia Civil estuda a interferência de obras de qualquer natureza com a sua fun‑
dação, seja ela em solo ou rocha. O Engenheiro Geotécnico atua em projetos de escavação, túneis,
compactação de aterros, tratamentos de fundações, instrumentação de obras, percolação de fluxos
em solos e rochas, contenções entre outros concretamente configuráveis.
40
Muitas vezes, no tráfego jurídico, as partes, no âmbito da sua autonomia privada, convencionam
e celebram um contrato-promessa de direito de superfície, enquanto contrato preparatório, no qual
a definição do modo de constituição deste direito real pode ser amplamente definido. Poderá ser
definida uma condição suspensiva de que o contrato definitivo apenas será celebrado se o solo e
subsolo revestirem determinadas características que, de uma forma inicial, o putativo superficiário
não conseguirá avaliar.
41 Margarida Costa Andrade, Observações ao regime jurídico do direito de superfície e dúvidas que daí
resultaram, cit. p. 1303, destaca que após a reforma de 1991, passam a poder coexistir até três pro‑
priedades sobre o mesmo prédio: a propriedade onerada, a propriedade sobre a obra superficiária e
a propriedade sobre a obra subterrânea.
42 Ana Afonso, Comentário ao Código Civil – Direito das Coisas, p. 672, refere que a regra ínsita no
artigo 1533, em virtude da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/91 de 18 de Julho, se aplica
quando a utilização do solo perturbe o exercício do direito sobre o subsolo.
43 Margarida Costa Andrade, Observações ao regime jurídico do direito de superfície e dúvidas que daí
resultaram, cit., pp. 1307 e ss., defende que este regime permite que, no caso de um prédio que tenha
vários pisos, que podem corresponder aos requisitos da propriedade horizontal, o fundeiro pode alie‑
nar várias fracções autónomas em regime de propriedade horizontal.
44 José Alberto Vieira, Direitos Reais, cit., p. 702, sufraga que o direito de superfície tem sempre por
objecto apenas o solo e nunca o implante. O superficiário é, assim, titular de dois direitos reais de gozo,
cada um deles tendo por objecto uma coisa diferente: o direito de superfície tem por objecto o solo e
o direito de propriedade um objecto distinto, que é o implante material (obra) ou vegetal (plantação).
45 Neste sentido, Mouteira Guerreiro, Reflexões sobre o direito de superfície, a sua titulação e registo, os
volumes e o conceito de prédio urbano, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Porto,
2009, p. 221. Em sentido crítico, defendendo que a construção dogmática deste autor, ao defender
a possibilidade de rebaixar obra não pertencente ao tipo superficiário, verificando-se uma violação
do princípio da tipicidade,, Margarida Costa Andrade, Observações ao regime jurídico do direito de
superfície e dúvidas que daí resultaram, cit., pp. 1309 e ss.
Este autor entende que se aplica, neste caso, por analogia, o regime previsto
no artigo 1526.º do Código Civil relativo ao designado direito de sobreeleva‑
ção, tendo em conta a identidade de razão entre as duas situações concretas.
3.3.
Os modos de constituição do direito de superfície para construção de obra no
subsolo – a problemática da usucapião
Determina o artigo 1528.º que o direito de superfície pode ser constituído por
contrato, testamento ou usucapião.
No que concerne à constituição do direito de superfície através de contrato,
o legislador acabou por prever um conceito-quadro, razão pela qual qualquer
contrato quod efectum46, típico ou atípico, é idóneo à constituição deste direito
real menor47. Assim, o direito de superfície pode ser constituído tendo como
título um contrato de compra e venda, um contrato de doação, um contrato de
permuta. Pode ainda resultar de uma dação em cumprimento.
Não se verifica também particulares dúvidas relativamente à constituição
do direito de superfície através de testamento, sendo este direito real de gozo
constituído mortis causa, atendendo à deixa testamentário do de cujus.
Pelo contrário, relativamente à constituição do direito de superfície por
usucapião, surgem dificuldades48 sobre as quais nos devemos pronunciar, uma
vez que estas têm impacto concreto no tráfego jurídico49.
46 A constituição do direito de superfície por via negocial está sujeita a forma especial, exigindo-se
escritura pública ou documento particular autenticado, conforme resulta do Decreto-Lei n.º 116/2008,
de 04 de Julho, em concreto, do seu artigo 22.º, alínea a), sendo um facto aquisitivo sujeito a registo,
nos termos do disposto no artigo 2.º, número 1, alínea a), do Código do Registo Predial.
47
Carlos Mota Pinto, Direitos Reais, cit., p. 297, refere que o direito de superfície se pode cons‑
tituir por acto negocial inter vivos, gratuito ou oneroso.
48 Invocando as dificuldades na usucapião do direito de superfície, António Manuel Triunfante,
Lições de Direitos Reais, cit., pp. 307 e ss., sem que, contudo, tome posição definitiva.
49 A jurisprudência portuguesa, em alguns dos seus arestos, pronunciou-se no sentido favorável da
usucapião do direito de superfície. Neste sentido, entre outros, veja-se o acórdão do Supremo Tri‑
bunal de Justiça de 04.02.1993, relativo ao processo: 083244, Relator Juiz Conselheiro Baltazar
Coelho, que citamos: “(…) Admitida a usucapião como fonte aquisitiva do direito de superfície sobre edifício
já construído, a sua operosidade, por banda do superficiário, há-de depender da verificação do condicionalismo
enunciado nos artigos 1287 e seguintes do Código Civil, condicionalismo que, observando o corpus, há-de relati-
vamente ao animus, traduzir-se na convicção do usucapiente deter e fruir a obra, isto é, somente a construção, como
superficiário, ou seja, com exclusão do terreno em que a mesma está implantada (…)”. E, ainda, o acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa de 14.01.2010, relativo ao processo:739/05.4TBSSB.L1-6, Relator
Juiz Desembargador José Eduardo Sapateiro, no qual se determinou: “(…) O direito de superfície, que
pode constituir-se por usucapião, forma-se directamente sobre ou sob – em termos de subsolo – o terreno ou solo
do prédio ou, no último caso, sobre edifício alheio já existente (direito de sobreelevação), de maneira a que uma e
outra construção (e respectivos direitos) não se mesclam ou confundem física e estruturalmente.
Nunca seria juridicamente possível constituir um direito de superfície aéreo relativamente à dita
casinha, por não se reconduzir a uma das situações admissíveis e com consagração legal, até por‑
que lhe falta em absoluto essa ligação ou conexão com o solo ou terreno alheio, para efeitos de
implantação de obra ou plantação, que está sempre presente em tal instituto (…)”,
50
Com este entendimento, Giovanni Pugliese. Superficie – Commetario del Codice Civile, 4.ª ed.
Bologna, Roma, 1976, pp. 588 e ss.
51 No direito alemão, já Ludwig Enneccerus/Theodor Kipp/Martin Wolf, Tratado de Derecho
Civil – Derecho de Cosas, p. 8, ensinavam que o direito de superfície se pode adquirir por usucapião.
52 Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado – Vol. III, cit., p. 596.
56 Carlos Mota Pinto, Direitos Reais, cit., p. 298-299, a propósito da aquisição do direito de super‑
fície por usucapião, exemplifica o caso em que um determinado sujeito confere a alguém, por acto
3.4.
O cânon superficiário – particularidades na sua definição por referência a
obra construída no subsolo
nulo por falta de forma – por exemplo, um contrato verbal – o poder de construir. Este, em virtude
da nulidade do titulo constitutivo, pode adquirir se tiver posse, por usucapião.
57 Entre outros, António Menezes Cordeiro, Posse: perpectivas dogmáticas actuais, 3.ª ed., Coimbra,
2000, pp. 57 e ss., defende que o sistema possessório português é substancialmente de tipo objectivo.
58 Com grande desenvolvimento sobre a matéria do cânon superficiário, José de Oliveira Ascen‑
são, Estudos sobre a superfície e a acessão, cit., pp. 23 e ss.
59 Margarida Costa Andrade, Observações ao regime jurídico do direito de superfície e dúvidas que daí
11 e ss.
61 A aquisição aqui em causa é não automática, não carecendo do proferimento de qualquer declaração
de vontade para o efeito. Neste sentido, José Alberto Vieira, Direitos Reais, cit., p. 711 e Fernando
Ferreira Pinto/Isabel Teixeira Duarte, Comentário ao Código Civil – Direito das Coisas, p. 686.
62 José de Oliveira Ascensão, Estudos sobre a superfície e a acessão, cit., p. 23, ensina que se se conven‑
ciona o pagamento de um cânon superficiário estamos perante um ónus real, uma vez que o crédito
do fundeiro, não obstante não ser funcional no que concerne ao gozo do prédio, é, contudo, munido
de inerência que permite que o mesmo seja oposto a quem seja o titular do direito de superfície,
transmitindo-se ao novo titular do direito.
63 Armindo Ribeiro Mendes, O direito de superfície, cit., p. 57, na esteira do entendimento de
Oliveira Ascensão.
64 José Luís Ramos, Direitos Reais, cit., p. 472, refere que o cânon superficiário, sendo um poder
de exigir a entrega de uma coisa ou dinheiro a quem é o titular do direito, apenas pode subsistir
enquanto a titularidade deste direito real menor se mantiver.
65 Margarida Costa Andrade, Observações ao regime jurídico do direito de superfície e dúvidas que daí
da taxatividade das obrigações reais, uma vez que encontramos respaldo desta
qualificação jurídica no regime do artigo 1530.º do Código Civil. Tratando-se
de uma obrigação real, o cânon superficiário pode extinguir-se por renúncia
liberatória do titular do direito real, por aplicação do princípio geral vigente,
nos termos indicados por Henrique Mesquita, para todas as obrigações reais, de
que o titular de determinado direito real pode extinguir a prestação a que está
adstrito, renunciando à titularidade do seu direito real em benefício do credor.
Esta autora ressalva que, contrariamente ao que se verifica com a comproprie‑
dade (artigo 1411.º do Código Civil), usufruto (artigo 1472.º do Código Civil)
e servidões prediais (artigo 1567.º do Código Civil), em que o legislador previu
a possibilidade de renúncia, na servidão não previu esta possibilidade, o que não
releva, em virtude da aplicação da regra geral supra indicada.
A grande relevância prática desta distinção prende-se com a aferição da
transmissibilidade ou não transmissibilidade do cânon superficiário ao novo
adquirente deste direito real menor, bem como a sua eventual prescrição, uma
vez que se se qualificarmos o cânon superficiário como um ónus real, este não
se extingue, por aplicação do regime previsto no artigo 298.º, n.º 3, do Código
Civil66.
Quantos a nós, parece-nos que o cânon superficiário é uma obrigação
real, sendo ponderoso, além dos argumentos anteriormente expostos, a letra
do artigo 1537.º do Código Civil, que determina que a falta de pagamento das
prestações anuais durante vinte anos extingue a obrigação de as pagar, razão pela qual
se pode extinguir por renúncia liberatória.
3.5.
A articulação da situação jurídica do superficiário com a situação jurídica do
fundeiro – atendendo à construção de obra no subsolo
66 António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado – I, – Parte Geral, Coimbra, 2020, p. 875,
refere, lapidarmente, que os direitos reais de gozo são imprescritíveis, sendo certo que todo o regime
da prescrição está moldado nas relações jurídicas obrigacionais.
67 António Manuel Triunfante, Lições de Direitos Reais, cit., pp. 282-283, refere que o direito de
superfície comporta uma certa duplicidade, uma vez que, primeiramente, existe um direito à constru‑
ção ou manutenção de obra ou plantação num terreno alheio (direito potestativo dirigido à aquisição
de um direito real). A segunda dimensão deste direito real incide sobre o implante em sim mesmo,
a designada propriedade superficiária.
68 José de Oliveira Ascensão, Estudos sobre a superfície e a acessão, cit., pp. 27 e ss.
69 José de Oliveira Ascensão, Estudos sobre a superfície e a acessão, cit., pp. 23 e ss.
73 Com grande desenvolvimento sobre a problemática do artigo 1307.º, veja-se, Ana Filipa Morais
Antunes/Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil – Direito das Coisas, cit., pp. 150 e ss.
74 Para uma perpectiva sintética das diferentes construções levadas a cabo pela doutrina nacional,
Luís de Carvalho Fernandes, A situação jurídica do superficiário-condómino, Revista da Ordem dos
Advogados, Lisboa, 2006, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2006/ano-
66-vol-ii-set-2006/doutrina/carvalho-fernandes-a-situacao-juridica-do-superficiario-condomino‑
-star/, pp. 3 e ss.
75 Luís da Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, vol. XI, p. 298.
76 Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado – Vol. III, cit., pp. 587 e ss.
https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2006/ano-66-vol-ii-set-2006/doutrina/carvalho-
fernandes-a-situacao-juridica-do-superficiario-condomino-star/, p. 4.
78 Carlos Mota Pinto, Direitos Reais, cit., pp. 290 e ss.
court, a par dos demais direitos reais de gozo menores previstos no quadro legal
português.
Assim, os contornos e os poderes do superficiário no exercício do direito
real de gozo de que é titular são dinâmicos e apenas definidos por referência
aos termos concretos em que o direito de superfície são definidos e delimitados
pelo fundeiro e pelo superficiário no título constitutivo. Após a definição dos
contornos do direito de superfície, aplicar-se-ão quer as regras previstas no
título constitutivo, v.g. o tipo de implante a construir, suas características, prazo
do direito, valor do cânon superficiário e sua periodicidade, em articulação
directa com o regime objectivo previsto nos artigos 1528.º a 1542.º, adaptável
à situação do caso concreto.