Primeiramente, cumpre ressaltar que o filme Nise - O Coração da Loucura tem
como principal patologia abordada a esquizofrenia. Essa condição se caracteriza por ser um transtorno mental que possui como sintomas a perda de contato com a realidade (psicose), alucinações (é comum ouvir vozes), falsas convicções (delírios), pensamento e comportamento anômalo, redução das demonstrações de emoções, diminuição da motivação, uma piora da função mental (cognição) e problemas no desempenho diário, incluindo no âmbito profissional, social, relacionamentos e autocuidado. Jung entendia a esquizofrenia como casos de psicose e paranóia, constituindo o que o público leigo considera como “loucos”. Para ele, a esquizofrenia possui causa e fins psíquicos, tal qual ocorre na vida de uma pessoa dita como “normal”. Contudo, a principal diferença é que, para a pessoa normal, o eu é o próprio sujeito da experiência. No ser esquizofrênico, o eu sofre uma fragmentação e passa a coexistir em uma variedade de sujeitos, com funcionamentos autônomos. Ele também ressalta que, quando há neurose, há uma preservação da unidade potencial da personalidade e que, na esquizofrenia, a ligação entre o eu e demais complexo se encontra rompida, de forma absoluta, em alguns casos à mais e outros à menos. Neste norte, Jung deixou claro sua inclinação em apostar num forte complexo afetivo na origem da esquizofrenia. Apesar disso, ele não descartava a origem orgânica da condição, ponderando que a doença não teria satisfação em sua explicação com apenas um aspecto, sendo um conjunto de aspecto físico e psíquico causadores da esquizofrenia. É de extrema relevância estudar e possuir conhecimento sobre o tema, tanto para ser de auxílio no reconhecimento da condição nas outras pessoas quanto para poder tratá-las da melhor forma possível, mais adequada à sua situação e com mais dignidade. Nise, ao ganhar um livro de seu marido, interessou-se pela teoria de Jung. Para ela, a relação que este fazia com as representações do inconsciente pessoal por meio de mandalas e a arte a encantou. Neste sentido, Nise utilizava técnicas de TO - terapia ocupacional - em seus pacientes. A terapia ocupacional permitia aos pacientes graves formas para se expressar, principalmente a expressão de vivências não verbalizáveis, que, no psicótico, estão fora do alcance das elaborações da razão e da palavra. Nise encontrou, durante a aplicação das atividades de terapia ocupacional, inúmeros indícios que o mundo interno do psicótico “encerra insuspeitadas riquezas e as conserva, mesmo depois de longos anos de doença”. Para Nise, haviam atividades que permitiam um acesso menos dificultado aos fenômenos internos, como desenhos, pinturas e modelagens, sendo feitos livremente pelo paciente. Essas atividades são ligadas à arteterapia e possibilitam a expressão do inconsciente em formas mais abstratas, mas muito significativas. Por meio da Psicologia Profunda de Jung, Nise encontrou base para explicar a produção artística dos psicóticos, bem como a possível linguagem para entender o processo de psicose de cada paciente. Neste sentido, a arte se torna uma grande parceira de Nise na proposta de expressão simbólica do paciente, pois essa atividade permitia que os pacientes esquizofrênicos, que possuem dificuldade com comunicação clara e objetiva, expressassem seus pensamentos e seu interior com uma gama de sensibilidade e uma riqueza de detalhes não alcançáveis para estes pela palavra. No filme, é perceptível como Nise observa de longe seus pacientes desenvolverem suas atividades artísticas, retratando-as e fazendo alguns apontamentos somente. Contudo, só pelo fato dessas imagens serem compartilhadas e virem à consciência já possibilitavam uma enorme melhora para o paciente, que mudava suas atitudes e comportamentos com outros internos e a equipe do hospital e seus monitores. Por exemplo, a paciente Adelina encontrou uma possibilidade de viver um pouco mais próxima da realidade e mais: ela namorou outro interno e sua relação com o masculino ficou mais saudável, tendo uma diminuição substancial em sua agressividade excessiva. Exemplos como o trabalho de Nise da Silveira demonstram como o trabalho da psicoterapia junguiana pode promover a saúde mental dentro dos CAPS - Centro de Atenção Psicossocial. Conforme o próprio pensamento de Jung, a esquizofrenia parte de duas frentes: uma psíquica e uma física. Por mais que o psicólogo não possa tratar da parte física da condição da forma como a medicina e ciência ocidental determinam, com remédios e exames clínicos, o trabalho desenvolvido pela psicoterapia lida com a frente psíquica da doença, de igual importância à sua contraparte. O trabalho desenvolvido com o inconsciente, por meio da arteterapia, demonstrou resultados muito satisfatórios no tratamento dos pacientes, possibilitando trazê-los de volta para um convívio em sociedade. Ademais, as técnicas utilizadas estimulavam o paciente a lidar com seus medos, traumas e contar a sua história, sendo livres para ser quem eles eram e se expressar como bem entendessem, levando em consideração o respeito e a individualidade do paciente. É possível se inspirar e até replicar o trabalho desenvolvido por Nise nos CAPS, como forma de aplicação da teoria junguiana na promoção da saúde mental, em casos de psicose e em outros onde o paciente tem dificuldades em se expressar. Sobretudo, deve-se ressaltar o quão humanizador foi o trabalho de Nise e como isso engrandece o trabalho do psicólogo. Ainda que no pensamento da época os demais médicos, que aplicavam técnicas de eletrochoque e lobotomia, podiam não perceber que não estavam tratando dos pacientes com melhora na qualidade de vida destes, que não alcançavam sua autonomia e retorno à sociedade, mas sim os anulavam e silenciavam seus sintomas e, por consequência, sua individualidade, a sensibilidade de Nise a fez perceber que algo estava errado e que o bem estar da pessoa mais interessada no tratamento não estava sendo levado em consideração. Não bastava ali a “cura” do paciente quando este ficava ainda mais deslocado da realidade após os procedimentos utilizados pelos seus colegas médicos. Era necessário trazer de volta a capacidade do indivíduo de se expressar para que este pudesse se localizar na sociedade e em seus pensamentos, seus sentimentos. Neste sentido, o trabalho de Nise foi excepcional e deve pautar o trabalho do psicólogo como um todo, sendo um exemplo de como exercer sua função ao respeitar e humanizar o outro, que confiou sua saúde à ele.