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A Bíblia Sagrada de
Graciliano Ramos
A leitura e a glosa do texto religioso realizadas
pelo autor de Vidas Secas
•••

Thiago Mio Salla

E
m entrevista publicada no jornal Folha da Manhã, em 25
de setembro de 1949, o escritor Graciliano Ramos rebaixava
todas as suas obras e dizia que, na literatura mundial, o livro de
maior valor artístico não seria de literatura, mas sim a Bíblia1.
Três anos depois, em nova palestra, agora à revista Manchete, torna a ma-
nifestar sua admiração pelas Sagradas Escrituras: “É um livro que fez um
povo. Sem ele, os judeus não mais existiriam hoje. Basta lembrar o que
sucedeu aos moabitas, aos fenícios e a outros mais: desapareceram. Ficou
o judeu, porque tinha um monumento escrito”2. ¶ A princípio, tal defe-
rência à Bíblia, por mais que se funde em aspectos históricos e literários,
soa estranha na boca de um ateu convicto como o autor de Vidas Secas.
Aos 22 anos, em carta ao pai, datada de 24 de maio de 1915, o então jovem
Graciliano afirmava enfaticamente que sempre fora “ateu, graças a Deus”.
E continuava sua argumentação em tom zombeteiro: “Deus está morto,
coitado! Ainda insepulto, mas morto a valer, como os infernais hereges
da atualidade afirmam. Mas eu respeito essa velha forjadora de embustes
daqueles bons tempos em que a humanidade, para andar, precisava de
freio na boca e sela no dorso”3. Assim, se rejeitava a religião católica e, por
conseguinte, a Bíblia, como propiciadoras de algum conforto espiritual
e regramento moral, uma vez que Deus estaria morto, não deixava de ter
consideração, ainda que em chave irônica, pela “velha forjadora de embus-
tes”. ¶ Ao julgar que a religião se funda no logro dos fiéis, Graciliano adota
em relação a ela uma postura a um só tempo desmistificadora (de denúncia

1. Graciliano Ramos, Conversas, organização de Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn,


Rio de Janeiro, Record, 2014, p. 220.
2. Idem, p. 251.
3. Graciliano Ramos, Cartas, 8. ed., Rio de Janeiro, Record, 2011, p. 71.

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irônica de seus embustes e castrações) e de outros embustes utilizados por Valério para
estudioso (a examinar as estratégias de persua­ mascarar seu arrivismo leviano.
são utilizadas pelo discurso religioso). Em Já o protagonista de S. Bernardo (1934),
outras palavras, toma-a tanto como “mentira”, Paulo Honório, aprendeu a ler numa Bíblia
em termos factuais e morais, quanto como protestante, “de capa preta, dos bodes”6, mas,
“metáfora”, em chave intelectual e ficcional. em sua escalada de acúmulo de capital, pou-
Dessa última posição, adviria seu respeito co se preocupava com o “outro mundo”. Na
pelo texto bíblico, visto enquanto repositório verdade, adaptara a religião a seus interesses
linguístico e material literário, ou seja, fonte patronais: “Admito Deus, pagador celeste dos
de estudos e fabulação capaz de unir o útil e meus trabalhadores, mal remunerados cá na
o deleitável, em que avulta o hábil manuseio terra, e admito o Diabo, futuro carrasco do
de recursos retórico-estilísticos com o fito de ladrão que me furtou uma vaca de raça”7. De
seduzir os leitores. acordo com tal leitura pragmática, a metáfora
Em certo sentido, esses dois vetores de religiosa funcionaria como ilusão a perpetuar
leitura do texto religioso que aparecem nas a um só tempo a dominação dos senhores e a
cartas escritas pelo jovem Graciliano po- alienação das classes mais baixas.
dem também ser percebidos nos primeiros Em diferentes passagens de seus fluxos
romances do escritor alagoano quando ele se de consciência, o funcionário público e in-
refere à Bíblia. Em Caetés (1933), o narrador- telectual frustrado Luís da Silva de Angústia
-protagonista João Valério utilizava o Ecle- (1936) repete a frase “o espírito de Deus boia-
siastes, para guardar suas economias. Por um va sobre as águas” (com algumas variantes),
lado, essa imagem-síntese do livro sagrado retomando o início do livro do Gênesis8.
como “cofre” insinua a riqueza da obra: a Mais especificamente, em outro trecho do
frase lapidar “nada de novo sob o sol”4 do romance, diante da litografia de uma “santi-
Eclesiastes orientará a trajetória de Valério, nha bonita”, o protagonista retoma o Deus
que, ao fim, se reconhece como um índio vingativo e violento do Antigo Testamento,
caeté, ou seja, um selvagem com uma cama- “que incendiava cidades”, como meio de
da de verniz por fora, movido pela mesma e questionar o quanto a humanidade estaria se
imperativa vaidade, responsável por igualar tornando “pulha” e, em certo sentido, justifi-
todos os homens no caminho para a mor- car o impulso primitivo do assassinato que vi-
te5. Por outro lado, tal uso da Bíblia como ria a cometer9. Portanto, se conhecia e fazia
caixa-forte reforça explicitamente a lógica uso do texto e de imagens da Bíblia, Luís da
do dinheiro que governa as ações do per-
sonagem em seu desejo de ascender social 6. Graciliano Ramos, S. Bernardo, 5. ed., Rio de Janei-
e economicamente para além de qualquer ro, José Olympio, 1953, p. 108.
ensinamento religioso. Nesse último caso, 7. Idem, p. 136.
8. Referência à frase “e o espírito de Deus pairava sobre
o livro sagrado se convertia num disfarce as águas” (Gênesis, 1, 2). Na Bíblia que pertenceu a
para despistar larápios, de modo análogo aos Graciliano, esse mesmo trecho fora traduzido como “e
o Espírito de Deus era levado sobre as águas” (Gênesis,
Português, em Bíblia Sagrada, tradução de António
4. Eclesiastes, Português, em Bíblia Sagrada, 67. ed., Pereira de Figueiredo, Rio de Janeiro, B. L. Garnier,
tradução do Centro Bíblico Católico, São Paulo, Ave [1864], t. 1, cap. 1, vers. 2, p. 65). Esta última redação
Maria, 1989, cap. 1, vers. 9, p. 816. também aparece ipsis litteris em Angústia (Graciliano
5. Ieda Lebensztayn, Graciliano Ramos e a Novidade: Ramos, Angústia, 6. ed., Rio de Janeiro, José Olympio,
o Astrônomo do Inferno e os Meninos Impossíveis, São 1953, p. 113).
Paulo, Hedra, 2010, pp. 291-292. 9. Graciliano Ramos, op. cit., p. 184.

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teada (contos e novelas, poemas, provérbios


e parábolas), mais por interesse literário. “O
seu exemplar do livro sagrado, uma edição
da Garnier (1864), está cheio de anotações.
Em letra miúda, à margem, ele opina, glosa,
divaga. Com toda a irreverência de que era
capaz”11. Clara Ramos, filha mais nova do
escritor alagoano, também enfatizava que
a Bíblia era o livro de cabeceira do Velho
Graça. Segundo ela, Graciliano possuía uma
bela edição das Sagradas Escrituras “com
ilustrações de [Gustave] Doré, já estragada
pelo tempo e as observações jocosas que o
leitor, este de fato irreverente, não se coíbe
de fazer às margens do Novo Testamento”12.
Fernando Alves Cristóvão, renomado pes-
quisador português, autor de Graciliano
Ramos: Estruturas e Valores de um Modo
de Narrar (1975), destacava que, repetidas
vezes, o autor de Vidas Secas tratou do uso
dos pronomes em língua portuguesa. E o
aprendizado dessa matéria por parte do ro-
1. Capa do exemplar de Graciliano Ramos do mancista teria sido penoso, “como se pode
segundo tomo da Bíblia Sagrada editada pela verificar pelas notas marginais da sua Bíblia,
Garnier em 1864. ieb/usp. que ainda se conserva. Esse exemplar [...]
tem as margens cheias de anotações sobre
Silva recusava a religião como “sustentáculo o emprego dos pronomes, juntamente com
da ordem, uma necessidade social”10, recor- outros comentários”13.
rendo ao crime como meio de tentar apagar Para além dos testemunhos de terceiros,
seus recalques e sua dor. sempre tive interesse em consultar a edição
Se essa postura de estudioso e conhecedor da Bíblia Sagrada que pertenceu a Graci-
do texto bíblico correlata à de ferino desmis- liano. Todavia, uma pergunta elementar
tificador do discurso religioso encontra-se não encontrava resposta: onde o livro se
tanto na correspondência íntima do então encontrava? Teria se perdido? Continuou
jovem Graciliano quanto na produção do com a família do escritor? Ou foi doado por
romancista consagrado depois de seus três sua viúva, Heloísa Ramos, ao Instituto de
romances iniciais, o mesmo se observa nas
marcas de leitura que deixou num objeto
11. Ricardo Ramos, Retrato Fragmentado, São Paulo,
que o acompanhou por toda a vida: sua edi- Globo, 2011, p. 120.
ção da Bíblia Sagrada. 12. Clara Ramos, Mestre Graciliano: Confirmação
Segundo Ricardo Ramos, filho de Graci- Humana de uma Obra, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1979, p. 156.
liano, seu pai conhecia a Bíblia de cor e sal- 13. Fernando Alves Cristóvão, Graciliano Ramos: Es-
trutura e Valores de um Modo de Narrar, Rio de Janei-
10. Idem, p. 46. ro, Ed. Brasília/Rio, 1977, p. 135.

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2. Contracapa e lombada da Bíblia Sagrada (Rio de Janeiro, Garnier, t. 2, 1864)


pertencente a Graciliano Ramos. ieb/usp.

Estudos Brasileiros (ieb/usp), juntamente pertencente ao ieb/usp, encontrou-se uma


com todo o material (manuscritos, recortes, edição em dois tomos da Bíblia Sagrada que
fotografias etc.) que hoje compõem o Arqui- pertenceu ao autor de Vidas Secas. Trata-
vo Graciliano Ramos? -se de uma versão do texto traduzida para o
português segundo a Vulgata Latina pelo
¶ A Bíblia de Graciliano Ramos: edições padre português António Pereira de Figuei-
da Garnier redo (1725-1797) e publicada no Brasil pela
A última opção, em princípio a mais óbvia Garnier em 1864 (ano da primeira edição).
de todas, acabou se comprovando. Recente- Além de contar com notas produzidas pelo
mente, depois de um trabalho de recatalo- cônego Delaunay (cura de Saint-Étienne-
gação de todo o Arquivo Graciliano Ramos, -du-Mont) e rico conteúdo pré-textual (pre-

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3. Gravura sobre aço da tela O Inverno ou O Dilúvio (1660-1664, Paris, Museu do Louvre), de Nicolas
Poussin, reproduzida na Bíblia Sagrada editada pela Garnier em 1864

fácios e apresentações) e pós-textual (dicio- sinalizar que estes pertenceram a edições


nários geográfico, histórico e onomástico), distintas do livro, publicadas pela Garnier
o livro, encadernado em Paris, destaca-se ainda no século xix: a primeira de 1864 e a
pela beleza das ilustrações: mais especifi- segunda de 1881. Se por um lado não se pode
camente, gravuras sobre aço realizadas por dirimir essa dúvida, por outro, mediante o co-
Ed. Willmann, a partir de obras de Rafael, tejo de ambos os volumes que pertenceram
Leonardo da Vinci, Ticiano, Poussin, entre a Graciliano com exemplares inteiramen-
outros grandes artistas que representaram te preservados da segunda edição da Bíblia
cenas bíblicas. Sagrada publicada pela Garnier em 1881,
Tais informações bibliográficas foram pode-se afirmar que o escritor alagoano se
extraídas de fragmentos do frontispício do aventurou pelo mundo bíblico a partir do
segundo tomo da Bíblia que pertenceu a luxuoso trabalho editorial de B. L. Garnier14.
Graciliano. Por mais que o miolo de ambos
os volumes se encontre conservado (apesar 14. A partir dos dados recolhidos, pode-se conjecturar
do escurecimento e da fragilidade do papel), que, inicialmente, Graciliano foi presenteado com
os dois volumes da segunda edição da Bíblia Garnier
perderam-se algumas de suas pré-textuais e lançada em 1881. Desse conjunto, observa-se a deterio-
pós-textuais; também a lombada, as estampas ração do segundo tomo, cuja encadernação se perdeu
da capa e a encadernação (de marroquim) e quase a totalidade de suas páginas se esfarelaram ou
desapareceram (faltam dele, ao todo, 474 páginas, que
apresentam desgastes e diferenças entre o abrangem desde o segundo livro de Macabeus, última
primeiro e o segundo tomos, o que pode parte do Antigo Testamento, até o Apocalipse, ou seja,

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Na abertura do segundo tomo da edição abundavam no mercado. E acrescenta: “a


da Garnier de 1864, Dom Manuel Joaquim edicção foi feita com luxo e nitidez; as gravu-
da Silveira, arcebispo da Bahia e primaz do ras são tiradas de painéis dos melhores mes-
Brasil, louva a iniciativa do livreiro francês tres; de sorte que, além do valor real do livro,
de “proporcionar a todos os católicos d’este o mérito do trabalho material não contribui
Império a lição das Sagradas Escrituras, livre menos para que todos desejem possuí-lo. O
dos erros e das subtracções das Bíblias falsifi- Sr. Garnier é um dos estrangeiros que honra
cadas e truncadas que em tanta quantidade dignamente o paiz que o hospeda”18. Dias
correm pelo paiz”15. Em 16 de abril de 1864, depois, o Correio Paulistano, em 3 de maio
o jornal carioca Constitucional celebrava a de 1864, anunciava que tal edição da Bíblia
iniciativa do livreiro francês, que publicava, Sagrada estava à venda na Livraria Garraux,
“a preço módico”16, uma edição “verdadeira” bem como recomendava vivamente a aqui-
do livro religioso enquanto tantas “falsas”17 sição desta obra de bom gosto e utilidade,
“cujos dous volumes encerram, dentro de
o fim do Novo Testamento). Em função de tamanha uma nítida encadernação de marroquim, a
perda, o escritor alagoano adquirira a posteriori, muito palavra santa da Divindade”19.
possivelmente num alfarrabista, um novo exemplar Por mais que tenha sido impresso em Pa-
deste segundo tomo, o qual integrava a primeira edi-
ção da Bíblia de Garnier datada de 1864. É provável ris, tal trabalho de Garnier se notabilizou
que a compra de tal volume tenha se dado quando da como a primeira Bíblia completa editada no
primeira permanência de Graciliano no Rio de Janeiro Brasil. Essa precedência editorial em terras
entre 1914 e 1915, pois, como se verá mais adiante, sua
correspondência desse período assinala o “mergulho”
brasileiras comunga com o lugar histórico
na leitura do Evangelho de São Mateus. da versão do texto bíblico eleita pelo livreiro
15. Dom Manuel Joaquim da Silveira, “Mandamento”, francês em seu lavor de publicar as Sagradas
em Bíblia Sagrada, tradução de António Pereira de
Figueiredo. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, [1864], s.p.
Escrituras: ele optou por editar a primeira
16. No Catálogo da Livraria de B. L. Garnier, n. 23, tradução completa da Bíblia católica para
que acompanha o segundo tomo das Obras Poéticas o português, feita por António Pereira de
de Manoel Ignacio da Silva Alvarenga (1864), a Bí-
blia Sagrada ocupa lugar de destaque: aparece na
Figueiredo, teólogo regalista, vinculado ao
segunda página, em letras garrafais que reproduzem poder pombalino. Este padre português
o frontispício da edição publicada por esta casa edito- começou a empreitada de verter a Vulgata
rial. Curiosamente, não há a indicação do preço dos
Latina para a língua portuguesa em 1772 e
volumes. Essa informação foi localizada apenas em
anúncio estampado no jornal Publicador Maranhense, terminou-a em 1790, totalizando 23 volumes
em 12 de maio de 1864. Na Livraria do Largo de Palácio
de São Luís, cada tomo era vendido por 15$000 réis. Igreja Católica. Cf. Dom Manuel Joaquim da Silveira.
17. Referência às edições da mais antiga tradução Carta Pastoral Premunindo os seus Diocesanos Contra
da Bíblia para o português, feita por João Ferreira as Mutilações, e as Adulterações da Bíblia Traduzida
d’Almeida. Tal trabalho desse religioso vinculado à em Português pelo Padre João Ferreira A. d’Almeida;
Igreja Reformada da Holanda começou a ser publi- Contra os Folhetos, e Livretos Contra a Religião, que
cado em 1753, na cidade de Batávia, pela Companhia com a Mesma Bíblia se Tem Espalhado Nesta Cidade;
das Índias Ocidentais (Luiz Antonio Giraldi, História e Contra Alguns Erros, que se Têm Publicado no País,
da Bíblia no Brasil, Barueri, SP, Sociedade Bíblica do Bahia, Tip. De Camilo de Lellis Masson & C, 1862.
Brasil, 2008, p. xxxiii). Segundo Dom Manoel da Sil- Apud. Leonardo Ferreira de Jesus, “‘Folhas Veneno-
veira, a Bíblia de João Ferreira d’Almeida apresentava sas’: a Reação Católica à Difusão de Livros e Bíblias
o Antigo Testamento “truncado”, bem como excluía Protestantes na Bahia na Década de 1860”, História.
dele, entre outros, os livros de Tobias, Judite, Sabe- com, ufrb, Cachoeira, BA, ano 1, n. 1, 2013, pp. 8-9.
doria, Baruc e Eclesiástico (ou Sirácida). O clérigo 18. Notícias Diversas, Constitucional, Rio de Janeiro,
também destacava que o Novo Testamento, apesar 16 abr. 1864, p. 4.
de completo, continha inúmeros erros que teriam 19. Noticiário, Correio Paulistano, São Paulo, 3 maio
levado o protestantismo a condenar várias práticas da 1864, p. 3.

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(dezessete do Antigo Testamento e seis do


Novo Testamento), publicados pela Regia
Officina Typografica20. Em seguida, a versão
de Pereira de Figueiredo ganhou uma edição
em sete volumes in-quarto, cuja impressão
foi iniciada pela oficina de Simão Thaddeo
Ferreira em 1794 e terminada pela Academia
Real das Sciencias de Lisboa em 1819. Segun-
do Rubens Borba de Moraes, essa segunda
edição, que conta com portadas gravadas e
um retrato Joannes Brasiliae Princeps (Dom
João vi, a quem o primeiro volume é dedica-
do), seria “a mais procurada” entre as Bíblias
católicas vertidas para o português21.
Conforme levantamento feito na Biblio-
teca Nacional de Portugal, antes da edição
brasileira da Garnier, a tradução integral
de Pereira de Figueiredo ainda foi impressa
pelas oficinas inglesas B. Bensley (1821), Ba-
gster e Thoms (1828), G. Watts (1850) e Spot- 4. Folha de rosto da segunda edição da tradução da
tiswoode (1858). Em Portugal, destaque para Bíblia Sagrada para o português feita por António
a edição conjunta feita pela Tipografia de Pereira de Figueiredo (Lisboa, Simão Thaddeo
José Carlos de Aguiar Vianna e pela Tipogra- Ferreira, 1794, vol. 1).

fia Universal de Thomaz Quintino Antunes


(1852-1853)22 e para o trabalho da casa Silva que até agora se haviam empreen­dido e exe-
& Sousa, que entre 1852 e 1854 publicou a cutado em língua portuguesa, realçando a
obra em dois volumes. Em meio a esse vasto nitidez do texto com o primor das gravuras”23.
conjunto bibliográfico, o trabalho de Gar-
nier se notabilizou, pois não teria poupado ¶ Graciliano e a leitura do texto “sagrado”
“diligências e despesas para que esta edição No primeiro volume da bela Bíblia da
excedesse em beleza e elegância a todas as Garnier que pertenceu a Graciliano consta
a seguinte dedicatória: “Ao amigo Gracilia-
20. Luiz Antonio Giraldi, op. cit., p. xxxv.
no Ramos Oliveira oferece M. Venâncio”.
21. Rubens Borba de Moraes, O Bibliófilo Aprendiz, 4.
ed., Brasília, Briquet de Lemos; Rio de Janeiro, Casa Descobre-se assim que o livro foi um pre-
da Palavra, 2005, p. 70. sente de Mário Venâncio, agente dos Cor-
22. Essa edição vinha com o seguinte esclarecimento: reios e professor de geografia do Internato
“Enriquecida com várias notas do mesmo traduc-
tor (excepto aquellas que foram condemnadas em Alagoano de Viçosa no começo do século
Roma)”. Vale salientar que as notas de rodapé das duas xx. Essa malograda figura, que se suicidara
primeiras edições do trabalho de Figueiredo em verter em 1º de fevereiro de 1906, depois de inge-
a Vulgata Latina para o português foram condenadas
pela Igreja Católica “por defenderem o direito de os rir forte dose de ácido fênico, atuou como
reis interferirem nas questões religiosas” (Luiz Antonio
Giraldi, A Bíblia no Brasil Império: Como um Livro
Proibido durante o Brasil Colônia Tornou-se uma das 23. Innocencio Francisco da Silva, Diccionario Biblio-
Obras mais Lidas nos Tempos do Brasil Império, 2. ed., graphico Portuguez, 23 vols, Lisboa, Imprensa Nacio-
Barueri, SP, Sociedade Bíblica do Brasil, s.d., s.p.). nal, 1867, t. 8, p. 401.

Livro ◆ 101
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5. “Ao amigo Graciliano Ramos Oliveira oferece M. Venâncio”. Dedicatória


que consta do primeiro tomo da Bíblia de Graciliano.

mentor intelectual de Graciliano quando neblina, que era como o hálito da grande
da entrada deste, então aluno da referida cidade adormecida. Nos casais dos cabreiros,
instituição, no mundo das letras entre 1904 cães de vigília ululavam lugubremente”27.
e 190624. Guiado pela mão de tal mestre, o É irônico observar que o jovem Graciliano
futuro romancista das Vidas Secas publi- tenha sido presenteado com uma Bíblia por
cou seu primeiro texto ficcional, o conto um suicida, explicitamente interessado pela
“Pequeno Pedinte” 25, no jornal O Dilú- temática religiosa, tal como se pode per-
culo, periódico estudantil idealizado por ceber pela passagem supracitada, na qual
Venâncio, que, fecundo em palavras raras, Venâncio se vale de lugares bíblicos para
também escolheu o “desgraçado” título da valorizar a narrativa28. Além disso, esse pri-
publicação26. Ele pressagiava um bom fu- meiro mestre do futuro autor de Angústia
turo literário para o Graciliano aspirante a declarava-se grande admirador de Coelho
escritor e via nele sinais de Aluísio Azevedo Neto, escritor conhecido por tomar as Sagra-
e Coelho Neto. das Escrituras como livro de sua alma, fonte
Ao mesmo tempo, Mário Venâncio tam- para “sua sede de verdades” e “bálsamo para
bém procurava seu lugar ao sol como litera- as dores de suas agonias”29.
to. Graciliano lhe teria elogiado um conto
que assim principiava: “Jerusalém, a deicida,
27. Idem, p. 227. Trata-se do texto “Simão Pedro”,
dormia sossegadamente à luz pálida das es- dedicado a “[Graciliano] Ramos de Oliveira” e pu-
trelas. Sobre as colinas pairava uma tênue blicado por Mário Venâncio em O Dilúculo, n. 2, 26
jul. 1904, p. 1. Como o autor de Infância parece citar,
de memória, a narrativa, comete alguns deslizes. O
24. Graciliano Ramos, Infância, 3. ed., Rio de Janeiro, trecho original encontra-se recolhido em Fernando
José Olympio, 1953, p. 229. Alves Cristóvão, op. cit., 229.
25. G. Ramos, “Pequeno Pedinte”, O Dilúculo, Viçosa, 28. Idem, ibidem.
24 jun. 1904, p. 2. Graciliano dedica este texto a Mário 29. João Neves da Fontoura, Elogio de Coelho Neto:
Venâncio. Discurso de Recepção, Rio de Janeiro, Barretto, 1937,
26. Graciliano Ramos, op. cit., p. 225. p. 43.

102 ◆ Livro
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Na contramão dos louvores católicos de Rocha Lima, o objeto direto antecedido pela
Coelho Neto e movido pelo interesse da- preposição “a”, uso “largamente desenvol-
queles que se propõem a conhecer o tex- vido em espanhol, seria também frequente
to bíblico, mas, descrentes, debocham de no galego e apareceria, ainda, de modo es-
modo mordaz dos preceitos e ensinamentos porádico, no catalão, no sardo e em alguns
transmitidos pelas escrituras “sagradas”, Gra- dialetos provençais e da Itália meridional”31.
ciliano realizou a leitura da Bíblia segundo E segundo lembra Bechara, o filólogo ale-
três vertentes, identificadas na marginália mão Karl Heinz Delille, que se dedicou ao
do exemplar que lhe pertenceu: 1. revisão e estudo do objeto direto preposicionado em
análise gramatical das construções linguísti- português, mostrou que a maior frequência
cas presentes, sobretudo, nos livros do Antigo de emprego da preposição em tal contexto
Testamento; 2. estabelecimento de relações ocorreu no século xvii, “talvez porque nesse
intertextuais entre trechos do Evangelho de período foi mais próxima a união de nosso
São Mateus e algumas obras que lia por volta idioma ao espanhol”32.
de 1915, mais especificamente o romance A Nesse tipo de construção, Bechara ain-
Relíquia, de Eça de Queiroz, e o estudo A da destaca que a preposição quase sempre
Loucura de Jesus, do Dr. Binet-Sanglé; 3. aparece para evidenciar o contraste entre
base para tiradas irônicas em que procurava sujeito e complemento, evitando possíveis
escarnecer certos dogmas e ensinamentos, confusões interpretativas em enunciados que
sem deixar de apontar incoerências internas fogem da ordem direta (sujeito – verbo –
e externas que marcariam diversas passagens complemento). No trecho em questão, tanto
da Bíblia. o sujeito “Senhor Deus” quanto o objeto
direto “o homem” aparecem pospostos ao
¶ Estudos gramaticais e dessacralização verbo, o que torna plenamente justificável o
do texto bíblico uso da preposição “a” para marcar claramen-
Em seu exemplar da Bíblia, Graciliano te o paciente da ação verbal. Assim também
assinala inúmeras ocorrências em que o ob- preconizava a Grammatica Expositiva (1907)
jeto direto vem acompanhado de preposição. de Eduardo Carlos Pereira, livro que alcan-
A primeira delas consta do segundo livro do çou grande aceitação no começo do século
Gênesis, versículo 7, que apresenta a seguin- xx, quando Graciliano incrementava seus
te redação: “Formou pois o Senhor Deos ao estudos sobre o idioma33.
homem do barro da terra...”30. Ao lado do
31. Rocha Lima, Gramática Normativa da Língua
texto, o escritor destaca: “Objeto direto reg.
Portuguesa, 49. ed., Rio de Janeiro, José Olympio,
[ido] de preposição sem necessidade. Não 2011, p. 300.
havia no caso philologia(s)”. Percebe-se que 32. Evanildo Bechara, “Emprego Especial da Preposi-
ção ‘A’”, O Dia, Rio de Janeiro, 26 dez. 2010.
Graciliano toma o uso da preposição, nesse
33. “Nestas construcções a preposição indica clara-
caso, como um mero recurso estilístico pas- mente qual o paciente da acção, e a sua ausência traria
sível de ser eliminado. Além disso, mencio- incerteza entre o agente e o paciente, ou poria este no
na a suposta falta de respaldo filológico da logar daquele, dando à frase sentido contrário ao que
se lhe quer dar” (Eduardo Carlos Pereira, Grammatica
construção. No entanto, conforme ressalta Expositiva, São Paulo, Weiszflog Irmãos, 1907, p. 203).
Em algumas passagens de sua correspondência data-
das do início do século, o escritor alagoano menciona
30. Gênesis, Português, em Bíblia Sagrada, tradução que estudava alguns tratados gramaticais, mas não
de António Pereira de Figueiredo, Rio de Janeiro, B. especifica as obras consultadas. Em carta ao amigo Jo-
L. Garnier, [1864], t. 1, cap. 2, vers. 7, p. 66. aquim Pinto da Mota Lima Filho, de fevereiro de 1914,

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6. Página do livro do Gênesis com o seguinte comentário de Graciliano, no alto, à direita: “Objeto direto
reg.[ido] de preposição sem necessidade. Não havia no caso philologia(s)”.

104 ◆ Livro
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Todavia, considerando-se as restrições se- da sobre a questão do uso ou não do objeto


mânticas do contexto, não seria imperativo direto preposicionado, ele não deixa de assi-
marcar “o homem” como objeto, pois, no nalar a falta de uniformidade em passagens
âmbito do texto religioso do Gênesis, outro semelhantes. Por exemplo, no Evangelho
não seria o papel do ser humano, que não de São Mateus, capítulo cinco, tem-se no
o de figurar como ente criado pelo sujeito versículo 44: “Amai a vossos inimigos”36; e
onipotente “Senhor Deus”. Em casos seme- no versículo 46: “Porque se vós não amais
lhantes, Camões prescindia do objeto direto senão os que vos amão”37. Ao sublinhar tal
preposicionado. No canto ii, de Os Lusíadas, discrepância na marcação do complemento
é possível encontrar a seguinte construção: de um mesmo verbo (“amar”), Graciliano
“... quando Augusto/ Nas civis Áctias guerras, explicitaria a oscilação de critério presente
animoso,/ O Capitão venceu”34. Observe-se no texto, algo que deporia não só contra a
que o autor pressupõe o conhecimento do tradução de António Pereira de Figueiredo,
fato histórico para se depreenderem o agen- mas contra o discurso religioso de um modo
te e o paciente da ação, ou seja, Otaviano geral. Como se verá, um de seus passatem-
Augusto venceu ao capitão (Marco Antônio) pos favoritos relacionados à leitura da Bíblia
na batalha de Ácio. Como Camões foi uma parece ser o de apontar-lhe incoerências.
figura muito marcante para o jovem Graci- Ainda no capítulo cinco do Evangelho
liano35, pode-se imaginar que seu comentário de São Mateus, consta no versículo 39: “Eu
pudesse levar em conta o português quinhen- porém digo-vos que não resistais ao que vos
tista da monumental epopeia do povo luso. fizer mal; mas se alguém te ferir na tua face
Para além das escolhas gramaticais do direita, oferece-lhe também a outra”38. Na
autor alagoano em questões controversas, margem do texto, Graciliano reclama: “Que
avulta sua perspectiva dessacralizada de lei- mixórdia de pronomes!”. De fato, falta aí
tura do texto religioso. Ele deixa de lado o uniformidade de tratamento uma vez que
peso da “Palavra de Deus” para privilegiar o evangelista inicia o enunciado com a se-
tão somente a palavra, ou seja, o estudo, em gunda pessoa do plural (“digo-vos”) e depois
chave gramatical, das construções linguísti- a substitui pela segunda pessoa do singular
cas da Bíblia vertida para o português. Nesse (“alguém te ferir”), procedimento repudiado
processo, sobressai seu olhar de revisor. Ain- pela norma-padrão e pelo tradicionalismo do
escritor. Algo semelhante acontece também
por exemplo, o então jovem escritor alagoano comenta em Mateus, 6, 1-2, e o autor alagoano torna a
que juntamente com A Origem das Espécies e com O
comentar: “Não compreendo esta mudança
Capital estava lendo uma “infinidade de gramáticas
e outras cacetadas” (Graciliano Ramos, Cartas, 8. ed., de pronomes”. Mais do que abdicar de ver
Rio de Janeiro, Record, 2011, p. 24). qualquer razão aparente em tal oscilação,
34. Luís de Camões, Obra Completa, organização, Graciliano rebaixa esse procedimento como
Introdução, Comentário e Anotações do Prof. An-
tônio Salgado Júnior, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, algo confuso (“mixórdia”), a mostrar certo ca-
2008, p. 46. ráter dúbio de Cristo que começa a se referir
35. Em entrevista, já no final da vida, Graciliano desta-
ca: “Eu tinha sete anos quando me meteram Camões
nas mãos e me fizeram decorar Os Lusíadas. Ficou-me 36. Evangelho de São Mateus, Português, em Bíblia
o gosto da lírica do épico e o canto V com o Velho do Sagrada, tradução de António Pereira de Figueiredo.
Restelo, o Adamastor…” (Marques Gastão, “Gracilia- Rio de Janeiro, B. L. Garnier, [1864], t. 2, cap. 5, vers.
no Ramos”, em Às Portas do Mundo, Lisboa, Comp. 44, p. 351.
Nacional Editora, 1952. p. 323. Texto recolhido em 37. Idem, ibidem.
Graciliano Ramos, Conversas, op. cit., pp. 255-260). 38. Idem, ibidem.

Livro ◆ 105
¶ l e it u r a s

a seus discípulos em registro elevado e ceri- bom revisor, não deixa de sinalizar mais esse
monioso, e depois os trata de modo familiar. ruído no texto.
Graciliano utilizou a Bíblia para estudar Quanto a questões do âmbito da morfo­
outras questões gramaticais. Movido pelo logia e da semântica, Graciliano sublinha
mesmo fito de apontar discrepâncias e a algumas palavras que lhe causaram estra-
carência de harmonia estrutural do texto nhamento por se tratar, em geral, de ter-
sagrado, o escritor alagoano sinalizou a falta mos de menor ocorrência quando de suas
de paralelismo em Mateus, 6, 25. Tome-se o leituras do Antigo e do Novo Testamento.
trecho da tradução de Antônio Figueiredo: Por exemplo, em Gênesis, 9, 22-23, o escritor
“Não andeis cuidadosos da vossa vida que marca a palavra “desnudez”, que aparece
comereis, nem para o corpo que vestireis”39. em três oportunidades para configurar a si-
Graciliano registra a ausência de simetria tuação na qual Noé apareceu nu diante dos
na marcação da regência dos complementos filhos, depois de se embriagar de vinho. En-
nominais de “cuidadoso” (primeiro “da”, e quanto Sem e Jafet se valem de subterfúgios
depois “para”), procedimento que deixaria para não olhar as “vergonhas” do pai, Cam,
de intensificar o sentido da mensagem trans- o caçula, vê o herói bíblico completamente
mitida pelo evangelho40. despido de suas vestes e, em função disso,
Algumas marcações de Graciliano tra- torna-se alvo de severa maldição paterna41.
tam de problemas relacionados à sintaxe de Nesse contexto, longe de indicar afasta-
colocação. Em Mateus 19, 25, por exemplo, mento, separação ou oposição (significa-
Graciliano sinaliza a ambiguidade decorren- dos mais comuns), o prefixo “des-” assume
te da posposição da palavra “logo” na frase caráter reforçativo do substantivo “nudez”,
“Quem poderá logo salvar-se?” – “(Posp.)”. assim como “desaliviar” intensifica o verbo
Do modo como foi redigida a sentença, o “aliviar”42. Todavia, vale acrescentar que
termo em questão pode ser lido como uma a palavra “desnudez”, típica do espanhol,
conjunção coordenada, mas também como mas utilizada em português desde o século
um advérbio temporal. Mediante tal sobre- xvii, consta do Diccionario Contemporaneo
posição, o que deveria ser uma pergunta da Lingua Portuguesa, de Caldas Aulete.
enfática endereçada pelos apóstolos a Cris- Graciliano tinha um exemplar da primeira
to, sobre aqueles passíveis de conseguirem edição da obra, dividida em dois tomos e
o reino de Deus (na qual “logo” se apre- datada de 188143. Nela, o verbete referente
senta enquanto uma conjunção conclusiva
marcadora de ênfase que, anaforicamente,
41. “Maldito seja Chanaan [filho de Cam]: elle será
retoma a dificuldade enunciada por Jesus escravo dos escravos de seus irmãos” (Gênesis, Portu-
de se chegar ao Céu; algo pretendido pelo guês, em Bíblia Sagrada, tradução de António Pereira
texto), torna-se também um questionamento de Figueiredo, Rio de Janeiro, B. L. Garnier, [1864], t.
1, cap. 9, vers. 25, p. 72).
a respeito de quem poderia não só alcançar 42. Mário Barreto, Novíssimos Estudos da Língua Por-
a salvação, mas conseguir isso num futuro tuguesa, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1924, p. 57.
próximo (“logo” como advérbio que circuns- 43. Francisco Júlio Caldas Aulete, Diccionario Con-
temporaneo da Lingua Portugueza, 2 vols., Lisboa,
creve a urgência da demanda). Graciliano, Imprensa Nacional, 1881 (exemplar pertencente ao
Acervo Graciliano Ramos da ufmg). Em carta de 8 de
39. Evangelho de São Mateus, op. cit., t. 2, cap. 6, dezembro de 1914, Graciliano diz à irmã Leonor que
vers. 25, p. 352. estava prestes a fazer duas despesas extraordinárias:
40. José Luiz Fiorin, Figuras de Retórica, São Paulo, a compra de um terno e de um dicionário. Este foi
Contexto, 2014, p. 138. adquirido num sebo por 24$, menos da metade de seu

106 ◆ Livro
l e it u r a s ¶

7. Página de apresentação do exemplar de Graciliano Ramos do Diccionario Contemporaneo da


Lingua Portugueza, de Caldas Aulete, vol. 1, 1881. Centro de Estudos Literários e Culturais/ufmg

Livro ◆ 107
¶ l e it u r a s

a este vocábulo registra o seguinte: “estado não fôr resgatada nem posta em liberdade,
de uma pessoa nua; nudez”. Há, portanto, serão ambos açoutados...”45. Na marginália,
uma equiparação entre “desnudez” e “nu- não faz nenhuma referência grosseira à mãe
dez”, como se o afixo “des-” tivesse apenas de Moisés (ao qual se atribui a autoria do
caráter puramente expletivo e, assim, pu- Pentateuco), entretanto, a própria marcação
desse ser eliminado sem qualquer prejuízo das duas conjunções justapostas sinaliza sua
à compreensão da ideia transmitida pelo contrariedade quanto à redação do trecho.
tema. Segundo essa diretriz, portanto, o De modo análogo, na luta contra ruídos e
autor alagoano poderia estar rebaixando a adiposidades textuais, incomodava-se com
tradução de António Pereira de Figueiredo o dito pleonasmo vicioso. Em diferentes
e reforçando seu posicionamento crítico e passagens da Bíblia Sagrada traduzida por
dessacralizador em relação ao texto bíblico. António Pereira de Figueiredo, sinaliza tal
Ainda havia mais. No anedotário construí­ deslize, como em Gênesis, 4, 8, quando
do em torno de Graciliano, são conhecidos Caim diz a seu irmão Abel: “Saíamos fóra”46.
os impropérios que ele teria dirigido a alguns A atenção de Graciliano também recaía
redatores incautos. Como revisor da revista sobre a macroestrutura do texto. Em Gêne-
getulista Cultura Política, o autor de Vidas sis, 1, 24, Deus diz: “Produza a terra animais
Secas copidescou uma parte considerável da viventes, segundo o seu genero; animais do-
literatura ideológica do Estado Novo. Ao re- mesticos, reptis e bestas da terra, segundo as
cuperar esse período específico da trajetória suas especies. E assim se fez”47. Trata-se do
do velho Graça, o poeta Lêdo Ivo relembra início do sexto dia da criação, no qual são
o caso de um articulista qualquer que, na concebidos os diferentes tipos de animais e
ânsia de bajular o governo, teria abusado o homem, respectivamente. Na lateral desse
das conjunções adversativas: “Mas, no entan- versículo e do seguinte, Graciliano adverte:
to, contudo, todavia, o Estado Nacional...”. “Animais domésticos feitos antes de existir o
Diante dessa construção “balofa”, caracteri- homem...”. Considerando tão só o encadea-
zada pelo acúmulo de elementos sintatica- mento do texto, bem como o conhecimento
mente equivalentes a reforçar, por contraste, de mundo em torno do conceito de domesti-
o regime autoritário, Graciliano não teria se cação, que pressupõe a adaptação e a seleção
contido. “Fez uma alusão bastante desprimo- de seres vivos ao sabor de certas necessidades
rosa à genitora daquele cientista político e humanas, o autor alagoano escancara a in-
disse-me baixando a voz: ‘Vou deixar apenas coerência narrativa sobre a qual se fundaria
uma’”44. No capítulo dezenove, versículo o percurso discursivo da fala divina. Nesse
vinte, do livro do Levítico de sua Bíblia, o sentido, centrado apenas na materialidade
escritor alagoano não deixa de assinalar um do texto bíblico, parece abdicar da suposta
período que padecia, em menor escala, do onipotência do criador para justificar tal apa-
mesmo mal: “Se um homem dormir com rente incongruência48.
uma mulher para abusar d’ella, que seja
escrava e estiver desposada, mas comtudo 45. Levítico, Português, em Bíblia Sagrada, tradução
de António Pereira de Figueiredo, Rio de Janeiro, B.
L. Garnier, [1864], t. 1, cap. 19, vers. 20, p. 172.
valor costumeiro (50$) (Graciliano Ramos, Cartas, 8. 46. Gênesis, op. cit., t. 1, cap. 4, vers. 8, p. 68.
ed., Rio de Janeiro, Record, p. 49). 47. Gênesis, op. cit., t. 1, cap. 1, vers. 24-25, p. 65.
44. Lêdo Ivo, “O Mundo Concentracionário de Gra- 48. Convém destacar que essa crítica de Graciliano
ciliano Ramos”, Teoria e Celebração: Ensaios, São se restringe apenas ao primeiro relato da criação do
Paulo, Duas Cidades, p. 96. mundo recolhido no Gênesis. Como se sabe, há ainda

108 ◆ Livro
l e it u r a s ¶

¶ O diálogo intertextual presente na marginália do Evangelho de São Mateus do


Bíblia de Graciliano exemplar que lhe pertenceu, o então jovem
Em agosto de 1914, com o propósito de artista escreveu “A Relíquia – Eça” ao lado
encontrar alguma atividade na imprensa, de alguns versículos, para indicar a relação
Graciliano abandona o trabalho como co- entre tais passagens e o romance de Eça de
merciante em Palmeira dos Índios e viaja Queiroz que conta a história do interesseiro
para o Rio de Janeiro. Já no ano seguinte, narrador-personagem Teodorico Raposo. Pa-
após trabalhar como suplente de revisor e ralelamente, Graciliano fez as notações “A
revisor de alguns periódicos, além de colabo- Loucura de Jesus” ou “Dr. Sanglé” junto de
rar como cronista nos semanários Parayba do trechos do mencionado evangelho os quais
Sul, da cidade fluminense de mesmo nome, foram utilizados pelo médico francês Binet-
e Jornal de Alagoas, abandona o universo -Sanglé para embasar o estudo clínico que
letrado carioca. Na correspondência que tro- este dedicou à figura de Jesus.
cou com parentes e amigos nesse período de A identificação de tais relações intertex­
afastamento de seu Estado natal, relata per- tuais entre as três obras mencionadas por
calços, descobertas, conquistas e desilusões Graciliano reforça a leitura dessacraliza-
em seu tímido contato com a vida literária da da que ele empreendeu do texto bíblico.
então capital federal. Nesses relatos missivís- Percebe-se que, naquele momento de sua
ticos, não deixa de mencionar os trabalhos juventude, o escritor recupera o texto do
em andamento, sobretudo contos e crônicas, Evangelho de São Mateus a partir da leitura
e os livros que vinha lendo. Em carta enviada de um romance do “grande ímpio portu-
à mãe em 2 de abril de 1915, ele destaca: guês” e da obra sacrílega de um psicopa-
tologista interessado em estudar a figura
Hoje, sexta-feira santa. Soube-o anteontem, do “filho de Deus” à luz do cientificismo
pelo cartaz de um cinema. Grande dia. Dia em oitocentista. Se no tópico visto anterior-
que a cristandade chora alegremente a morte mente avultava o Graciliano estudioso de
de Deus, e a d. Helena nos obriga a jejum, gramática e revisor impiedoso, que não se
surripiando-nos piedosamente o almoço e o furtava a apontar equívocos na tradução de
jantar. [...] Uma maçada. Ontem e hoje tenho António Pereira de Figueiredo, aqui ganha
vivido mergulhado na leitura de A Relíquia de destaque o literato afeito ao realismo/natu-
Eça de Queiroz, de A Loucura de Jesus e do ralismo, descrente de qualquer explicação
Evangelho de S. Mateus – coisas muito sérias religiosa do mundo.
[que] narram circunstancialmente o suplício de Na Bíblia de Graciliano, a referência a A
N. S. Jesus Cristo. Relíquia aparece no capítulo 21, versículos
de doze a quatorze, do Evangelho de São
A Bíblia de Graciliano atesta que, de fato, Mateus. Trata-se mais especificamente do
o escritor degustou esse cardápio de leitu- trecho sobre a entrada de Jesus no templo e
ras na Semana Santa do ano de 1915. Na da consequente expulsão dos vendilhões que
ali realizavam todo tipo de comércio. No ro-
um segundo (Gên., 2, 5-25) no qual se enfoca, sobretu- mance de Eça, a referência a tais mercadores
do, o modo por meio do qual Deus concebeu os seres ganha espaço no terceiro capítulo da obra,
humanos. Segundo tal versão, o homem fora feito de no qual se narra a experiência fantástica do
barro, e a mulher, modelada a partir de sua costela.
Os animais, por sua vez, teriam sido gerados apenas protagonista em sua viagem a Jerusalém dos
depois de Adão, a quem coube a tarefa de nomeá-los. tempos da Paixão de Cristo. Já na Terra San-

Livro ◆ 109
¶ l e it u r a s

8. “Dor Sanglé. Pag 189”. Anotação de Graciliano na lateral de Mateus, 8, 24-25, que faz referência
ao livro La Folie de Jésus (1908) do médico francês Binet-Sanglé.

ta, depois de dormir em um acampamento, missas; porém, ao se perceber diante de um


após uma de suas excursões aos caminhos momento único na história da humanidade,
sagrados, Teodorico é acordado pelo arqueó­ imagina-se como “São Teodorico Evangelis-
logo alemão Topsius e percebe que se en- ta”, dando vazão, de modo vaidoso, a seus
contra no século I da era cristã e se coloca sonhos de grandeza49.
como testemunha ocular da prisão, suplício Dessa posição de espectador in loco da
e morte de Jesus. Trata-se de um delírio apa- Paixão de Cristo, percebe que entre aqueles
rentemente digressivo, mas revelador dos que pediam a crucificação de Jesus estavam
profundos mecanismos da alma da perso-
nagem. Nesse contexto, ele se arrepende de
49. Fernando Marcílio L. Couto, “Apresentação”,
seus pecados ao se deparar com Jesus Cristo, em Eça de Queiroz, A Relíquia, São Paulo, Ateliê,
figura que, até então, falsamente adorava nas 2001, p. 25.

110 ◆ Livro
l e it u r a s ¶

justamente os ditos vendilhões. Como tive- dos mouros; troçou a burguesia, a religião, o
ram sua atividade prejudicada pela atuação hino da carta50.
radical e violenta do Messias, reivindicavam
a punição dele como meio de compensar os Nesse movimento de exaltação do autor
prejuízos que lhes foram causados. Teodori- de A Relíquia, gesto que, segundo o próprio
co palestra com um velhinho, cujo sustento cronista, “chegava às raias do fanatismo”,
da família miserável dependia exclusivamen- Graciliano se vale da analogia e do sarcasmo
te da venda de pedras raras no templo. O co- para assemelhar Eça, “o grande ímpio”, a
mércio de tais artigos fora a única atividade um profeta digno de culto e de adoração
que lhe restara, pois, após ficar doente, não num templo todo feito de mármore. Segun-
tinha mais forças para exercer sua função de do o jovem literato alagoano, em conformi-
pedreiro. Assim, aquilo que, aos olhos cris- dade com tal isotopia zombeteiro-religiosa, o
tãos, parecia uma atitude correta de Jesus, “monstro da ironia” teria “mais ou menos as
acabava por semear, segundo outro ponto proporções de um dos antigos reformadores
de vista, a pobreza deste velhote e de tantos religiosos que a humanidade venera”51. Tal
outros que teriam sido vítimas da ira e do equiparação reforça não só o lugar canônico
arbítrio do dito filho de Deus. do romancista luso no rol de referências de
Tal passagem ilustra bem a relatividade Graciliano52, como também iguala a prosa
dos valores que caracteriza a poética de realista de Eça à suposta verdade transmitida
Eça de Queiroz. O autor duvidava de toda pelos evangelhos, com evidente privilégio
verdade estabelecida, fazendo com que sua para a primeira.
crítica atingisse a religião, a arte, a ciência Na trama intertextual passível de ser iden-
ou quaisquer outras práticas e discursos so- tificada na Bíblia de Graciliano, a referên-
cialmente instituídos. Esse posicionamento cia ao livro La Folie de Jésus (A Loucura de
desmistificador fascinou o jovem Graciliano, Jesus), do Dr. Binet-Sanglé, mostra-se mais
que, em março de 1915, ou seja, um mês
50. Graciliano Ramos, Linhas Tortas, Rio de Janeiro,
antes da carta em que explicita a leitura de Record, 2005, pp. 23-24.
A Relíquia, publica uma crônica em louvor 51. Idem, ibidem.
ao romancista português. Nela, depois de 52. A admiração por Eça permeia toda a trajetória
intelectual de Graciliano. Em sua primeira entrevista
repudiar o ato “sacrílego” de apedrejamento
à imprensa, publicada no Jornal de Alagoas, em 18 de
e destruição do monumento dedicado a Eça setembro de 1910, Graciliano já assinalava que havia
em Lisboa, pontua: predominado sobre ele “a linguagem sarcástica de Eça
de Queiroz” (Graciliano Ramos, Conversas, Organi-
zação de Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn, Rio
Eça é grande em tudo – na forma própria, de Janeiro, Record, 2014, p. 52). Ainda nesse mesmo
única, estupendamente original, de dizer as coi- texto, para exaltar a supremacia da escola realista
ante as demais, recupera a frase que serve de pórtico
sas; na maneira de descrever a sociedade, estu-
para A Relíquia: Antes a “nudez forte da verdade”
dando de preferência os seus lados grotescos, que o “manto diáfano da fantasia” (Idem, p. 55). Os
ridicularizando-a, caricaturando-a […]. Eça era louvores públicos a Eça continuaram na fase adulta.
um ateu, um homem que não respeitava nada, Em entrevista estampada na revista Dom Casmurro,
em 23 de dezembro de 1937, Graciliano menciona:
que não tomava as coisas a sério. Pintou ministros “o escritor português que me deixou maior influência
estúpidos, padres devassos, jornalistas vendidos, foi, em parte, francês: Eça de Queiroz. O seu ritmo,
condessas adúlteras; escarneceu a literatura de a sua construção, o seu riso — tudo teve o seu berço
sob o solo de Paris, muito embora ele construísse os
sua pátria, a política, as respeitáveis cinzas dos seus volumes num hotel de Londres ou mesmo na
brutos e gloriosos antepassados dos vencedores ambiência sossegada de Leiria” (Idem, p. 282).

Livro ◆ 111
¶ l e it u r a s

recorrente. Ao todo, o autor alagoano justa-


põe a indicação de tal obra a seis diferentes
passagens do Evangelho de São Mateus. Em
linhas gerais, por meio desse procedimento,
procura sinalizar alguns versículos deste li-
vro bíblico que foram utilizados pelo médico
francês para documentar a teomegalomania,
a ira e a impotência sexual de Cristo, entre
outros aspectos clínicos supostamente con-
dizentes com o quadro de degenerescência
física e psíquica do “Messias”.
Os quatro tomos da obra La Folie de Jésus
foram publicados entre 1908 e 1915. Os três
primeiros saíram pela casa editorial pari-
siense Maloine, e o quarto e último volume,
pela argelina Chez l’Auteur53. Nessa extensa
e polêmica obra, o médico Binet-Sanglé,
professor da Escola de Psicologia de Paris,
procura analisar a figura de Jesus Cristo à
luz das ciências naturais oitocentistas. Para
tanto, parte do pressuposto de que o homem
seria produto de sua hereditariedade e do
meio onde vive, bem como considera que
os fenômenos fisiológicos e psicológicos po- 9. Folha de rosto da tradução de La Folie de Jésus,
de Binet-Sanglé, realizada por Manuel Ribeiro e
deriam ser tão rigorosamente determinados
publicada pela editora lisboeta Guimarães & Cia
como os fenômenos físicos e químicos54. em 1908.
Seguindo esse receituário, elege os quatro
evangelhos canônicos como sua base docu- a constituição e a fisiologia de Cristo, discor-
mental e, a partir deles, propõe-se a recu- rendo minuciosamente sobre os aparelhos
perar a ancestralidade de Jesus, os espaços digestivo, vasomotor, respiratório e genital
onde ele nasceu e viveu, bem como analisa de seu paciente.
Por meio desse método, ao escolher a figu-
ra de Jesus como um caso clínico a ser inves-
53. Binet-Sanglé, La Folie de Jésus. Son Hérédité. Sa
Constitution. Sa Physiologie, Paris, Maloine, t. 1, 1908, tigado, Binet-Sanglé procurava especificar a
294 p.; La Folie de Jésus. Ses Connaissances. Ses Idées. tese central que defendera em seu trabalho
Son Délire. Ses Hallucinations, Paris, Maloine, t. 2, 1910, anterior: Les Lois Psycho-physiologiques du
516 p; La Folie de Jésus. Ses Facultés Intelectuelles. Ses
Sentiments. Son Procès. Paris, Maloine, t. 3, 1912, 537 p.; Développement des Religions (Paris, Maloi-
e La Folie de Jésus. Sa Morale. Son Activité. Diagnostic ne, 1907). Nessa obra, afirma que indivíduos
de sa Folie, Alger, Chez l’Auteur, 1915, 489 p. Para o física e mentalmente bem-constituídos se-
português, tem-se notícia apenas da tradução do pri-
meiro tomo da obra, em trabalho realizado por Manuel riam terrenos impróprios ao florescimento
Ribeiro e publicado pela editora lisboeta Guimarães & de ideias religiosas, ainda que estivessem
Cia, em 1908, ou seja, no mesmo ano em que o livro mergulhados num meio místico. Por outro
foi lançado em Paris.
54. Binet-Sanglé, La Folie de Jésus, 4 vols., Paris, Ma- lado, psicopatas hereditários, passíveis de
loine, t. 1, 1908, p. 3. serem enquadrados na mesma categoria de

112 ◆ Livro
l e it u r a s ¶

Jesus, seriam mais suscetíveis à religião, ain- outros sintomas psíquicos60. Paralelamente,
da que vivessem em ambiente intelectual55. aponta que a atitude de Jesus ante as mulhe-
Tendo em vista tais balizas, Binet-Sanglé res não seria a de um macho, em decorrência
pontua que o meio onde Cristo cresceu na de sua impotência sexual aliada à falta de
Galileia seria marcado pelo isolamento e virilidade e ao desejo de automutilação61.
pelo obscurantismo, o que favorecia o mis- O estudo de Binet-Sanglé não se apre-
ticismo religioso. Especificamente em Naza- sentava como algo novo, pois se enquadrava
ré, terra de vinhos bons e fortes, grassaria o em certa tradição francesa de aplicação das
alcoolismo desenfreado, o que corroboraria ideias científicas do século xix à recuperação
a degenerescência mental das tribos judaicas da suposta psicologia mórbida de Cristo,
que ali viviam56. Com relação mais especi- num contexto de secularização do estudo
ficamente à hereditariedade do “Messias”, da religião62. Destaque para Miron, pseu-
pontua que, dos trezes membros da família dônimo de André-Saturnin Morin (1807-
de Jesus, sete eram devotos e, destes, três -1888), com seu Jésus Réduit à sa Juste Valeur
poderiam ser colocados num patamar mais (Genebra, Imprimerei Rationaliste, 1864),
elevado de loucura mística57. e, sobretudo, para Jules Soury (1842-1915),
Tal carga genética nefasta justificaria o autor de Jésus e les Évangiles (Paris, G. Char-
quadro clínico de demência teomaníaca de pentier, 1878). Nesta última obra, traduzi-
Cristo. Partindo do pressuposto de que have- da para o português por Clóvis Bevilaqua,
ria uma correlação entre debilidade física e João Alfredo de Freitas e Izidoro Martins
debilidade mental, Binet-Sanglé destaca que Júnior e publicada em 1896 pela casa edi-
seu paciente tinha baixa estatura e, conse- torial recifense J. J. Alves de Albuquerque,
quentemente, baixa capacidade intelectual58. o filho de Deus é apresentado como um
Não por acaso, Jesus apresentaria uma inteli- judeu fanático, colérico, com acessos de
gência desprovida de regras, cheia de lacunas violência, megalomania, frenesi e loucura.
e lapsos, que procurava explicar tudo pelo Em virtude desse quadro, Soury diagnostica
“maravilhoso”59. A partir do relato da saída seu “paciente”63 como portador de “demên-
de água e sangue do peito de Jesus, que fora cia paralítica” ou “paralisia geral” em de-
perfurado por uma lança depois de sua cruci- corrência da inflamação das meninges e do
ficação e morte, conclui que Cristo sofria de encéfalo (meningoencefalite)64.
tuberculose, doença diretamente associada ao No Brasil, as teses e conclusões polêmicas
quadro de loucura dos alienados, sobretudo de Binet-Sanglé foram examinadas e dura-
daqueles que manifestavam ideia fixa da mor-
te, desconfiança, caráter sombrio, mania de 60. Idem, p. 257.
perseguição, depressão, irritabilidade, entre 61. Idem, pp. 267 e 284-285.
62. Robert D. Priest, “’After the God and the Man,
the Patient’: Jules Soury’s Psychopathology of Jesus
55. Binet-Sanglé, Les Lois Psycho-physiologiques du and the Boundaries of the Science of Religions in the
Développement des Religions, Paris, Maloine, 1907, Early Third Republic”, French History, Oxford, Oxford
pp. 394-395. University Press, vol. 27, n. 4, abr. 2013, pp. 535-556.
56. Binet-Sanglé, La Folie de Jésus, 4 vols., Paris, Ma- 63. O autor sinaliza, logo no início do prefácio, que a
loine, t. 1, 1908, pp. 63-70. figura de Cristo seria tratada a partir de tal ponto de
57. Idem, p. 176. vista clínico: “Après le dieu et l’homme, le malade.”
58. Binet-Sanglé, La Folie de Jésus, 4 vols., Alger, Chez (“Depois do deus e do homem, o paciente.”) (Jules
l’Auteur, t. 4, 1915, p. 451. Soury, Jésus et les Évangiles, Paris, G. Charpentier,
59. Binet-Sanglé, La Folie de Jésus, 4 vols., Paris, Ma- 1878, p. 5).
loine, t. 1, 1908, p. 182. 64. Idem, pp. 15-16.

Livro ◆ 113
¶ l e it u r a s

mente criticadas pelo diplomata e historia- vel67. A respeito de tal questão, Araújo Jorge
dor A. G. de Araújo Jorge em um conjunto também argumentava sobre a impossibili-
de textos publicados no Jornal do Commercio dade de se dirimir o que haveria de verda-
e posteriormente recolhidos no livro Jesus deiro e de imaginoso nos quatro evangelhos
(Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1909). eleitos pela Igreja. Diante dessa constatação,
De início, o intelectual brasileiro volta-se reafirmava que tais textos estariam longe de
contra o olhar enviesado do cientista que se apresentarem como fontes indiscutíveis,
procurava reduzir todas as “manifestações isentas de dúvidas e incorreções, o que aca-
da inteligência, do sentimento e da vontade bava por desacreditar o peso da base factual
humanas” a um desequilíbrio “funccional sobre a qual se assentava o diagnóstico de
do cerebro, mania que ameaça transformar Binet-Sanglé. Continuando nesse diapasão,
a Terra num vasto manicomio” 65. Em oposi- o diplomata brasileiro conclui que o livro
ção a esse movimento voraz e generalizante, do médico francês, além de desinteressante,
recomenda que Binet-Sanglé deveria limitar seria falso68.
seu campo de atuação aos degenerados e Não se sabe se Graciliano compartilhou
deixar em paz as grandes figuras históricas dessas críticas feitas naquele momento. Pa-
da humanidade66. Mais do que se valer de ralelamente, não se tem notícia dos exem-
argumentos de cunho religioso para criticar plares que ele utilizou para estudar La Folie
o médico francês, Araújo Jorge, norteando-se de Jésus. Em sua biblioteca, que foi doada ao
pela premissa da coexistência entre loucura Instituto de Estudos Brasileiros, não há sinal
e genialidade, procura mostrar a parcialida- do livro. Ficaram tão somente a indicação,
de das conclusões do autor de La Folie de em carta, de que lera a obra e a confirma-
Jésus. A “psicologia mórbida” ou “medicina ção dessa leitura por meio das marcações
retrospectiva” orientava-se tão somente pelo feitas no Evangelho de São Mateus da Bíblia
lado escuro das personalidades, o qual havia que lhe pertenceu. De qualquer maneira,
sido preterido pelos historiadores, focados a descoberta do contato do escritor com o
em narrar os atos e feitos públicos das dife- trabalho de Binet-Sanglé deixa evidente seu
rentes individualidades. interesse, na condição de bom autodidata,
Com relação a esse último ponto, cum- pelo cientificismo oitocentista, que recebeu
pre ressaltar a perspectiva desistoricizada do grande acolhida no Brasil entre o final do sé-
estudo clínico proposto por Binet-Sanglé. culo xix e o início do xx69. Além do referido
Os livros bíblicos e casos comparativos uti- médico francês e de sua psicologia mórbida,
lizados por ele apresentam valor histórico- o autor alagoano viria ainda a ter grande fa-
-documental questionável, além de levarem miliaridade com autores do dito positivismo
a uma leitura do passado tão somente em criminológico, com destaque para as figuras
chave teleológica, ou seja, exclusivamente de Cesare Lombroso e Enrico Ferri70. Em
segundo os parâmetros da ciência do século
xix. Além do mais, o médico francês tratava 67. Binet-Sanglé, op. cit, pp. 49-57.
os evangelhos como biografias ingênuas e 68. A. G. de Araújo, op. cit, p. 32.
69. Benito Bisso Schmidt, “O Deus do Progresso: a
sinceras de um valor histórico incontestá- Difusão do Cientificismo no Movimento Operário
Gaúcho da I República”, Revista Brasileira de História,
São Paulo, vol. 21, n. 41, 2001.
65. A. G. de Araújo, Jesus, Rio de Janeiro, Imprensa 70. Em crônica na qual recupera a redação dos contos
Nacional, 1909, p. 13. que teriam sido esboços iniciais dos romances S. Ber-
66. Idem, p. 17. nardo e Angústia, Graciliano relembra: “Em 1924, em

114 ◆ Livro
l e it u r a s ¶

depoimento ao filho Ricardo Ramos, Gra- Eça: “antes a ‘nudez forte da verdade’ que
ciliano pontuava que, sem o estudo de tais o ‘manto diáfano da fantasia’”74. Se a reali-
pesquisadores, ele jamais teria composto a dade deveria sobrepujar a ficção, o grande
figura de Luís da Silva71. artista Graciliano, em sua descida aos po-
Essa afirmação revela a importância de rões da sociedade brasileira, não poderia
tais estudos científicos para o trabalho fic- prescindir do artifício, muito pelo contrário.
cional do escritor que, desde sua primeira Mais do que representar a verdade, cabia
entrevista à imprensa, em 1910, declarava- ao escritor construir a ideia de verdade. E
-se adepto do realismo, escola marcada, se- o que notabilizou o autor de Vidas Secas
gundo ele, pela ruptura da “trama falsa do foi, justamente, a combinação entre rigor
idealismo” e por apresentar a “verdade nua e formal e tratamento de temas de caráter
crua”72. Para além do reducionismo mecani- social que, ainda hoje, marcam o caráter
cista e da parcialidade absolutizada que lhes conflitante da realidade brasileira. Dessa
seriam inerentes, as teorias cientificistas pro- mistura entre contenção (formal) e revolta
curaram romper com explicações abstratas e (temática), o escritor encontrou sua força,
metafísicas da vida, concedendo privilégio que o elevou e o distanciou de qualquer
à observação empírica do mundo. De certa esquematismo redutor.
maneira, tal diretriz se coadunava com a
convicção poética valorizada por Graciliano ¶ A Bíblia em chave irônica
de que o artista deveria colocar-se como Ao mesmo tempo, a proposta do realismo
testemunha ante os fatos a serem ficcionali- crítico de Graciliano não poderia prescindir
zados. Quando se examina toda a produção da prerrogativa de desmistificar e de, até mes-
cronística e ensaística do autor alagoano, mo, escarnecer verdades supostamente in-
percebe-se que ele considerava missão dos contestáveis. O exame em perspectiva da obra
homens de letras realizar o estudo objetivo do escritor revela o papel fundante exercido
da “realidade” do país e corroborar o conhe- pela ironia entre seus postulados poéticos.
cimento e a transformação desta última73. Em linhas gerais, o procedimento retórico
Todavia, como o próprio autor alagoano da antífrase viabiliza a promoção de uma
destacava em sua primeira entrevista, fazen- relação negativa e não unívoca entre sujeito
do referência ao pórtico de A Relíquia de e mundo, reforçando a atitude questionadora
do artista ante os discursos estabelecidos sobre
Palmeira dos Índios, interior de Alagoas, encontrei difi- a realidade. Tal estratégia, portanto, visa à
culdade séria, pus-me a ver inimigos em toda a parte e
captação da conivência do destinatário em
desejei suicidar-me. Realmente julgo que me suicidei.
Talvez isto não seja tão idiota como parece. Abando- novas leituras de velhos episódios, opção que
nando o contas-correntes, o diário, outros objetos da gera dúvidas, causa polêmicas, desmascara
minha profissão, havia-me embrenhado na sociologia aparências e, por sua vez, exige uma postura
criminal. Que me induziu a isso? Teria querido matar
alguns fantasmas que me perseguiam?” (Graciliano ativa dos receptores, capaz de ler pelo avesso
Ramos, Garranchos, organização de Thiago Mio Salla, aquilo que se afirma. Não por acaso, esse ardil
Rio de Janeiro, Record, 2012, p. 272). acaba por criar sentidos que vão do gracejo
71. Ricardo Ramos, op. cit., 2011, pp. 137-138.
72. Graciliano Ramos, Conversas, organização de até o sarcasmo, passando pelo escárnio, pela
Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn, Rio de Janeiro, zombaria, pelo desprezo75. Em chave poli-
Record, 2014, p. 55.
73. Thiago Mio Salla, O Fio da Navalha: Graciliano
Ramos e a Revista Cultura Política, São Paulo, eca- 74. Graciliano Ramos, op.cit., p. 55.
-usp, 2010, p. 128 (Tese de Doutorado). 75. José Luiz Fiorin, op. cit., p. 70.

Livro ◆ 115
¶ l e it u r a s

fônica, tem-se ainda a apresentação de duas vos medirão também a vós”77. Na margem
vozes em conflito, uma expressando o inverso do texto, junto dessa passagem, pode-se ler a
do que diz a outra. seguinte notação: “E a crítica literária, santo
Em se tratando de contestar verdades Deus!”. A acidez do comentário parece ter
construídas pelo texto religioso, o autor ala- alvo duplo: a estreiteza do código moral pro-
goano lança mão de um humor ferino e posto pelo livro religioso e os julgamentos
irreverente para debochar, nas margens de temerários e levianos que caracterizariam,
seu exemplar da Bíblia, de toda sorte de de maneira geral, o papel desempenhado
passagens canônicas. Detém-se, sobretudo, pela crítica literária.
no Novo Testamento, com atenção espe- De modo análogo, em Mateus, 5, 27-30,
cial para o Evangelho de São Mateus. De ante a recomendação de Jesus para que os
modo zombeteiro, não se furta a questionar fiéis arrancassem os próprios olhos e as pró-
algumas balizas morais presentes nas pre- prias mãos com o fito de evitarem o pecado
gações de Jesus; a apontar deslizes de tal do adultério e da cobiça à mulher do próxi-
líder religioso; a revelar conteúdos implícitos mo, Graciliano é taxativo: “Ficaria t[o]do
na tessitura argumentativa dos enunciados maneta e cego”. Na medida em que, por
bíblicos; e a propor leituras irreverentes de meio da zombaria, escancara a impossibili-
episódios tradicionais. dade de se respeitar tal mandamento, acaba
De início, convém assinalar que Gracilia- por imputar anormalidade não à grande
no, jocosamente, procura apontar os limites massa de pecadores em vias de serem muti-
da severidade genérica presente nas mensa- lados, mas sim a quem justamente propunha
gens proferidas pelo dito filho de Deus. Em limites tão estritos e punições tão exacerba-
Mateus, 5, 22, Cristo anuncia punições aos das. Não por acaso, Binet-Sanglé explorou
que se colocarem contra seus irmãos: “Pois extensamente essa passagem bíblica quando
eu digo-vos que todo o que se ira contra seu se propôs a tratar do aparelho genital de
irmão será réo no juízo; e o que disser a seu Cristo e, mais especificamente, da supos-
irmão: Raca, será réo no conselho; e o que ta impotência sexual do Messias, que viria
lhe disser: És um tolo, será réo do fogo do acompanhada de apetites sexuais ardentes
inferno”76. Junto a tais versículos, o escritor e do desejo de automutilação. Segundo o
alagoano comenta que, tendo em vista a médico francês, ao lado do eunuquismo, o
inviabilidade de se evitarem oposições e de- oedipismo ou enucleação dos olhos (forma
sentendimentos entre os homens, só restaria de dar cabo ao órgão que transmite imagens
um destino a eles: “estão todos no inferno”. voluptuosas) e a amputação manual (meio
Em atitude semelhante, Graciliano debocha de se evitar o onanismo) seriam procedimen-
do conselho de Jesus expresso em Mateus, 7, tos recorrentes entre os loucos-místicos.78
1-2. Nessa passagem, o Messias adverte: “Não O jovem Graciliano, ainda em confor-
queirais julgar, para que não sejais julgados, midade com a leitura de Binet-Sanglé, não
pois com o juízo com que julgardes sereis deixava de apontar a aparente megaloma-
julgados, e com a medida com que medirdes nia de Jesus. Em Mateus, 12, 30, Cristo se
mostrava taxativo: “O que não é comigo é

76. Evangelho de São Mateus, Português, em Bíblia


Sagrada, tradução de António Pereira de Figueiredo, 77. Evangelho de São Mateus, op. cit., t. 2, cap. 7,
Rio de Janeiro, B. L. Garnier, [1864], t. 2, cap. 5, vers. vers. 1-2, p. 352.
22, p. 350. 78. Binet-Sanglé, op. cit., pp. 280-286.

116 ◆ Livro
l e it u r a s ¶

10. De cima para baixo, à direita: “Estão todos no inferno” e “Ficaria t[o]do maneta e cego.” Comentários
irônicos de Graciliano a pregações de Jesus recolhidas no quinto capítulo do Evangelho de São Mateus.

Livro ◆ 117
¶ l e it u r a s

contra mim, e o que não ajunta comigo ficaria, necessariamente, em segundo plano,
desperdiça.”79 A essa afirmação, o autor ala- pois “o dia de á manhãa a si mesmo trará
goano alfineta: “É como o Kaiser”. Apesar seu cuidado”81. O autor alagoano, diante de
do anacronismo de tal paralelo, que preten- tamanha leniência em relação às necessi-
dia aproximar a figura do propalado filho de dades concretas de sobrevivência, entende
Deus a de um imperador alemão (ou do an- tal exortação de Cristo como um “Elogio
tigo Sacro Império Germânico)80, o escritor à preguiça”. Ainda em chave zombeteira, o
procurava desnudar o caráter impositivo de jovem escritor também não deixa de divisar
Jesus. Nesse processo de desmistificação, re- o lado aparentemente propagandístico dos
velava que a humildade divinal comumente atos de Cristo. Ao trecho no qual Jesus pede
atribuída ao messias cedia espaço ao desejo a todos para se guardarem dos falsos profetas
dele de autoafirmar-se e que, para tanto, (na verdade, lobos travestidos de ovelhas –
Cristo, longe de oferecer a outra face, não Mateus 7, 15-17), Graciliano apõe o seguinte
poupava o confronto contra quem dele dis- comentário: “Pequeno reclamo a seu próprio
cordasse. E havia mais. Graciliano também valor”. De modo semelhante, trata como
comenta outras passagens em que avultaria “Magnífico reclamo”, aquilo que vem ex-
a suposta mania de grandeza do “filho de presso em Mateus, 9, 29-31. Nessa passagem,
Deus”. Por exemplo, quando em Mateus, informa-se que o filho de Deus havia feito
12, 41-43, o dito salvador se autoproclama dois cegos tornarem a enxergar. Apesar de ele
“mais” do que o profeta Jonas e do que o pedir, severo, para que guardassem segredo
rei Salomão, o romancista das Vidas Secas, do milagre, os dois homens saem espalhando
irônico, escreve ao lado do trecho: “Modés- a fama do Messias por toda a região onde se
tia”. Em tal contexto, a inversão decorrente encontravam naquele momento.
do uso da antífrase termina por intensificar o A leitura dessacralizada e desmistifica-
deboche ante a postura vaidosa e pretensiosa dora proposta por Graciliano também pri-
do “redentor”. vilegia a revelação de conteúdos implícitos
O olhar irônico de Graciliano também presentes no texto bíblico. Em Mateus, 1,
não deixa de propor novas leituras de pas- 25, o evangelista afirma que José não teria
sagens bíblicas tradicionalmente interpre- “conhecido” Maria antes do nascimento
tadas sob o prisma da religião. Em Mateus, de Jesus. A partir da abertura interpretati-
6, 25-34, Jesus prega que a busca do reino de va proporcionada pelo advérbio “antes”, o
Deus deveria vir antes de tudo. Qualquer autor alagoano escancara, na marginália,
outra preocupação imediata com o futuro a informação pressuposta pelo enunciado:
“Assim, a virgindade não continuou depois
79. Evangelho de São Mateus, op. cit., t. 2, cap. 12, do nascimento de Jesus”. Vale-se, portanto,
vers. 30, p. 358. do próprio texto bíblico para advogar contra
80. Muito provavelmente, mediante tal comparação,
Graciliano faz referência a Guilherme II, último Kai- o dogma da virgindade perpétua de Maria.
ser da Alemanha, que, no começo da Primeira Guer- Em conformidade com tal questionamento,
ra Mundial, teve de enfrentar praticamente sozinho ante a enumeração dos irmãos de Jesus em
França, Rússia e Inglaterra. Esse personagem histórico
também é citado pelo escritor alagoano na crônica Mateus, 13, 54-56, escarnece: “Nunca vi uma
“Coisas do Rio”, publicada no período de sua primeira virgem parir tanto”.
permanência no Rio de Janeiro, entre 1914 e 1915 (Cf.
Graciliano Ramos, Garranchos, pp. 32-35), quando se
supõe que o referido comentário nas margens de sua 81. Evangelho de São Mateus, op. cit., t. 2, cap. 6, vers.
Bíblia tenha sido feito. 25-34, p. 352.

118 ◆ Livro
l e it u r a s ¶

Comentários de Graciliano
Passagens bíblicas
na marginália de sua Bíblia
Gên., 1, 24-25. Trecho que trata da criação de toda sorte de animais, “Animais domésticos feitos
entre eles os animais domésticos, como penúltima etapa da criação antes de existir o homem...”
operada por Deus. Em seguida, viria o homem.
Gên., 29, 21. Fala em que Jacob diz a Labão: “Dá-me minha mulher, “Franqueza(?)...”.
pois que já o tempo está completo, para eu entrar nela.”
Mat., 1, 25. Trecho em que se comenta o fato de José não ter “Assim, a virgindade não
“conhecido” Maria antes do nascimento de Jesus. continuou depois do
nascimento de Jesus.”
Mat., 5, 22. Passagem sobre as punições para aquele que se voltasse “Estão todos no inferno.”
contra seu irmão e o xingasse de “raca” (idiota).
Mat., 5, 27-30. Trecho sobre como evitar o adultério e a cobiça à “Ficaria t[o]do maneta e
mulher do próximo. Antes de pecar seria melhor arrancar os próprios cego.”
olhos e as próprias mãos.
Mat., 6, 25-34. Pregação na qual Jesus defende que a busca do reino “Elogio da preguiça.”
de Deus deveria vir antes de tudo, pois “o dia de amanhã a si mesmo
trará seu cuidado”.
Mat., 7, 1-2. Sermão em que Jesus aconselha: “Não queirais julgar, “E a crítica literária, santo
para que não sejais julgados, pois com o juízo com que julgardes Deus!”
sereis julgados, e com a medida com que medirdes vos medirão
também a vós.”
Mat., 7, 15-17. Passagem em que Jesus pede para que todos se “Pequeno reclamo a seu
guardem de falsos profetas. próprio valor”.
Mat., 9, 29-31. Jesus faz com que dois cegos tornem a enxergar. Apesar “Magnífico reclamo.”
de pedir, severo, para que guardassem segredo do milagre, eles saem
espalhando a fama de Cristo pela região.
Mat., 12, 6-8. Jesus fala da supremacia da misericórdia ante o “Incoerência?”
sacrifício.
Mat., 12, 30. Fala de Cristo: “O que não é comigo é contra mim, e o “É como o Kaiser.”
que não ajunta comigo desperdiça.”
Mat., 12, 41-43. Jesus se coloca acima de Jonas e de Salomão, “Modéstia.”
contrariando o ditado de que elogio em boca própria seria vitupério.
Mat., 13, 54-56. Enumeração dos irmãos de Jesus. “Nunca vi uma virgem parir
tanto.”
Mat., 15, 19. Sermão em que Jesus lista os males que saem do coração: “Protesto... Adultério não.”
maus pensamentos, homicídios, adultérios, fornicações, furtos, falsos
testemunhos, blasfêmias.
Mat., 14, 20-21. Trecho referente ao milagre da multiplicação dos pães. “Vá pregar esta ao diabo.”
Mat., 20, 1-15. Parábola dos operários da vinha em que se afirma: “os “Bonita equidade”.
últimos serão os primeiros.”
Jo., 9, 9. Dúvida em relação a um milagre divino assinalada por “Fraude?...”
Graciliano: “Não é; mas é outro que se parece com ele” (em
referência a um mendigo que teria recuperado a visão).

Livro ◆ 119
¶ l e it u r a s

11. Graciliano ironiza o dogma da virgindade perpétua de Maria: “Assim, a virgindade


não continuou depois do nascimento de Jesus.”

120 ◆ Livro
l e it u r a s ¶

interpretativas mobilizadas pelo escritor ala-


goano na apreensão do texto religioso – sem
nunca perder de vista o lugar ocupado pela
persona literária do autor de Vidas Secas
nas letras brasileiras. A articulação desses
elementos permitiu surpreender diferen-
tes facetas do artista: o revisor cruel, que,
sem qualquer pudor religioso, escancarava
equívocos e imperfeições da tradução do
texto bíblico e, nesse processo, aperfeiçoava
seu domínio do idioma; o intelectual afeito
ao rea­lismo crítico, interessado em estudos
científicos, avesso a qualquer tipo de idea-
lismo e construtor do sentido como negati-
vidade; e, sobretudo, o galhofeiro insolente
interessado não apenas em desmistificar,
mas também em escarnecer verdades soli-
damente estabelecidas ao longo do tempo.
Da correlação de todos esses aspectos, a
12. A Crucificação (1822, Paris, Museu do Louvre), partir das marcas de leitura deixadas pelo
de Pierre-Paul Prud’hon, em gravura incluída na autor alagoano em sua Bíblia, pode-se divi-
Bíblia Sagrada editada pela Garnier (1864). sar uma lição hermenêutica orientada em
duas vertentes intrinsecamente ligadas: de
um lado, o cuidado com a palavra escrita,
¶ Vestígios de leitura e lição a necessidade de depuração da linguagem
hermenêutica como meio de se amenizarem desconfianças,
Ao longo deste texto, procurou-se recu- incompreensões e incongruências; de outro,
perar, categorizar e investigar o mosaico de o imperativo da interpretação, a contrapelo,
vestígios da leitura que Graciliano Ramos dos discursos sobre o mundo, com ênfase na
empreendeu de sua edição da Bíblia Sagra- demolição irreverente de dogmas e lugares-
da, um belíssimo trabalho de B. L. Garnier -comuns. Tanto a desautomatização da pena
datado da segunda metade do século xix. quanto a desnaturalização do olhar conver-
Tal processo analítico privilegiou a materia- gem para a apreensão crítica da realidade por
lidade do suporte em questão, a recuperação meio de uma prosa literária substantiva, mar-
de dados históricos e o exame das estratégias cante em toda a obra de Graciliano Ramos.

Livro ◆ 121

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