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HUMANIDADES
LITERATURA
Conta
direta do árabe
outra
G ONÇALO J UNIOR
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brasileiro pode se sentir um privilegiado. com o O livro das mil e uma noites.
Graças ao empenho pessoal do tradu- “Não saberia, contudo, precisar tais re-
tor Mamede Mustafa Jarouche, acaba de lações ou se suas histórias são resultado
sair em português (Ed. Globo, 424 págs., dessa habilidade ou se contribuíram
R$ 55,00) o primeiro de cinco volumes para desenvolvê-la.”
traduzidos a partir dos três tomos do Pela pesquisa de Jarouche, existem
manuscrito árabe arquivado na Biblio- em inglês quatro traduções do livro –
teca Nacional de Paris, considerada a Lane, Payne, Burton e Haddawi. E pelo
fonte mais valiosa para a edição do livro. menos duas em espanhol – Vernet e
À semelhança dos contos de fadas Cansinos-Aséns. Foi a partir do século
para crianças, com o O livro das mil e 18 que as histórias do livro começaram
uma noites o leitor adulto aprende o ca- a ser traduzidas para inúmeros idio-
minho exemplar da vida por meio do mas e se tornaram tão populares que
terror, da piedade, do amor e do ódio. Jorge Luis Borges as considerava ‘‘parte
Como todo mundo sabe, trata-se da prévia de nossa memória’’. “E com ra-
história do rei Shahriyár que, depois de zão, pois quem não conhece Ali Babá,
descobrir que sua mulher o traía com Aladim, ou Sindbad (melhor transcri-
um escravo, decidiu casar toda noite ção do que Simbad), o marujo, perso-
com uma nova mulher e matá-la no dia nagens da memória de todas as crian-
seguinte. O terrível ritual só é inter- ças?”, pergunta o tradutor.
rompido com a chegada de Shahrazád, Desde o século 18, vários escritores
filha do vizir mais importante do reino. importantes e distintos entre si inspira-
Culta e inteligente, ela passa a contar ram-se no O livro das mil e uma noites.
centenas de histórias que prendem a Como Voltaire, Macaulay, Edgar Allan
atenção do marido até a noite seguinte, Poe, Marcel Proust, Borges, Jonathan
o que evita sua morte. Faz isso durante Swift e Naguib Mahfuz. “É difícil en-
1.001 noites. Nesse período, seduz o so- contrar boas narrativas que não te-
berano até que ele se apaixona por ela. nham, de um modo ou outro, sofrido a
O primeiro volume reúne as 170 influência dessa obra.”
primeiras noites. Jarouche comparou Embora Machado de Assis tenha sau-
os manuscritos usados com quatro das dado o livro, sabe-se que letrados brasi-
principais edições árabes do livro, com leiros consumiram a obra desde muito
o propósito de suprimir lacunas dos antes, a partir da tradução de Galland.
textos originais e apontar variantes de Circulou em português inicialmente a
interesse para a história das modifica- ratura popular ao longo dos séculos versão do texto de Mardrus, do final do
ções operadas no livro. São elas: a de tanto no Oriente quanto no Ocidente, século 19, publicada na década de 1960
Breislau (1825-1843), de Bulaq (1835), cuja dimensão ainda espera voluntári- pela Saraiva, com ilustrações de Alde-
a segunda edição de Calcutá (1839- os para ser iniciada. “Isso se deve tam- mir Martins. Outra que se tornou po-
1842) e a de Leiden (1984). Utilizou bém às limitações de conhecimento, pular foi a do Clube do Livro na déca-
ainda quatro manuscritos do chama- pois um tal repertório exigiria um sa- da de 1950. Por fim, saiu a do arabista
do ramo egípcio antigo. Se não bastas- ber muito vasto, que certamente pou- René Khawam, pela Brasiliense, em 1990.
se, escreveu uma saborosa e detalhada cos detêm, de muitas literaturas em Pela sua pesquisa, entre as versões in-
introdução que conduz o leitor à fasci- muitas épocas”, avalia Jarouche. Algu- fantis, algumas são assinadas por escri-
nante história do livro. mas pistas podem ser apontadas nesse tores como Ferreira Gullar, Carlos Hei-
Um trabalho de paixão, empenho e sentido.
competência que bem poderia ser ex- Leon Kossovitch, professor do cur-
portado para outras línguas ocidentais. so de filosofia da USP, observa que, na O PROJETO
A intrincada história das supostas fon- ficção dos iluministas, por exemplo, A retórica nas transformações
tes em persa e sânscrito que teriam sido muitas coisas que parecem ser apropria- narrativas do Livro
a base para o livro é tratada no ensaio ção de As mil e uma noites podem ser das mil e uma noites
também. O tradutor teve o cuidado de efeito da leitura de textos mais antigos
fazer centenas de notas com aspectos que circulavam naquela época. “Eis aí MODALIDADE
lingüísticos, referências aos manuscri- um assunto que exigiria formação de Bolsa no Exterior
tos e edições árabes e anexos com tra- equipes”, acrescenta Jarouche. Apesar
COORDENADOR
duções de passagens que possuem mais de ressaltar que a expressão “influên- MAMEDE MUSTAFA JAROUCHE – USP
de uma redação. cia” pode ser entendida como uma rei-
vindicação de precedência, de priorida- INVESTIMENTO
Influência - Tudo isso ajuda a compreen- de, que seria difícil sustentar, a arte de R$ 71.366,00 (FAPESP)
der melhor a influência do livro na lite- contar histórias tem relações diretas
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tor Cony e Sabá Gervásio. As “adultas”, Jarouche explica que os dois pri- Paulo (USP). Estudou e trabalhou na
sem exceção, foram feitas do francês. meiros heróis não possuem original ára- Arábia Saudita, Iraque, Líbia e Egito,
É fácil perceber essa influência ain- be anterior ao texto de Galland. E não onde fez pós-doutorado. Do árabe, além
da em Raduan Nassar, Milton Hatoum, constam de nenhuma edição árabe das de textos esparsos, já traduziu As cento e
Nélida Piñon, Lima Barreto etc. Isso Noites. Galland os teria ouvido de um uma noites e O livro de Kalila e Dimna.
sem falar do “efeito dominó”, como no sírio, fez a tradução e os incorporou a Somente os dois primeiros volumes
caso de Machado de Assis, que teria ti- seu trabalho. A história de Sindbad está de O livro das mil e uma noites consu-
rado a idéia inicial de Dom Casmurro presente nos manuscritos tardios das miram dois anos de intensa dedicação.
de uma obra do abade Prevost, a qual Noites e foi acrescentada às edições im- A expectativa é de que os outros três se-
por sua vez lhe fora sugerida pela tra- pressas. Faz parte hoje do cânone do li- jam concluídos até 2007. Embora a tra-
dução de Galland de As mil e uma noi- vro. “Não direi que a tradução de Kha- dução de fato tenha começado em
tes – que, por sua vez, não existiria sem wam é incompleta, porque isso seria 2003, faz já alguns anos que ele pesqui-
o original árabe, como observa Gilber- injusto. Lembro apenas que, de acordo sava sobre o livro. Em 2000 passou
to Pinheiro Passos, professor do curso com os critérios que ele estabeleceu, so- temporada de um ano no Cairo como
de francês da USP. mente entraram ali os textos ‘mais anti- bolsista de pós-doutorado da FAPESP.
O tradutor lembra que a versão de gos’, os do ramo sírio, mais três ou qua- “Acho importante destacar isso para
Galland não esclarece qual o texto ser- tro outras histórias que ele considerou não parecer que se trata somente de
viu de base, uma vez que o trabalho, serem também antigas.” uma tradução a seco.” Durante essa ex-
datado do início do século 18, foi so- Além de tradutor, Jarouche é dou- periência encontrou um manuscrito,
frendo modificações perpetradas por tor em letras e professor de língua e li- cuja data corresponde ao ano de 1808,
editores. “A de Mardrus nem se dá o
trabalho de esclarecer qual a sua fonte.
teratura árabes da Universidade de São que tinha 1007 noites. •
E na de R. Khawam faltam trechos,
como pude comprovar, e as notas, pou-
cas, foram eliminadas, numa mesqui-
nharia característica de certa espécie de
editor brasileiro, que felizmente está fa-
dada ao desaparecimento.”