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POR MOTIVO DE FORÇA MAIOR


Thiago Nascimento, São Paulo – SP.

Personagens:
O PAI – Por volta de 70 ou 80 anos.
A FILHA – Por volta de 40 anos.
O FILHO – Por volta de 40 anos.
A SENHORA – Por volta de 50 anos.
Cena I

Um homem está com uma arma apontada para uma mulher. É um revólver. Ele
aponta um revólver para uma mulher. Ele está sentado em uma cadeira. De rodas.
Ela treme. Ela segura alguns papéis: contratos, fotografias, e materiais gráficos de
alguma coisa ou lugar. Ele treme também. Ele treme porque tem 70 ou 80 anos.
Ele treme porque vai matá-la. Não sabemos como ele conseguiu esse revólver.
Como pode um homem que passou a viver em uma cadeira de rodas, que sofre de
graves problemas de saúde, ter conseguido um objeto tão perigoso? Não sabemos.
Ela já chorou todas as palavras. Tudo. Ela é a filha dele. Dele. Que vai matá-la. Ela
irá morrer no final. No final ela estará morta aqui. Aqui no tapete da sala. Aqui
nesta casa. Tudo depende dele agora. Tudo depende do pai.

O PAI – Assassina! Você quer que eu apodreça de uma vez, não é?


A FILHA – Abaixa essa arma papai! O senhor não tem domínio dos seus movimentos.
O PAI – Daqui eu não saio. Se for pra morrer, que eu morra em minha própria casa.
A FILHA – Papai, por favor! Abaixa! O senhor não sabe mais mexer nas coisas direito.
O PAI – Posso aprender de novo!

O pai destrava a arma. Está pronto para atirar. Ele ainda sabe. Ele ainda sabe
mexer num revólver.

A FILHA – Com essas coisas não se brinca!


O PAI – Cala a sua boca! Agora quem fala aqui sou eu. De quem foi a ideia? De quem
foi essa ideia brilhante?
A FILHA – Papai, isso não vem...
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O PAI – Sua? Ou do seu irmão?


A FILHA – O senhor tem que entender... A correria do dia-a-dia... Eu preciso
trabalhar… Eu não tenho mais tempo pra…
O PAI – Sua? Ou do seu irmão?
A FILHA – Se ao menos o senhor quisesse uma empregada…
O PAI – Sua? Ou do seu irmão?
A FILHA – Dele! A ideia foi dele.

Ela está mentindo. A ideia foi dela. O pai acredita, o pai acredita porque não gosta
do filho, nunca gostou. O pai sempre deu mais atenção à filha do que ao filho. O
pai entende que tenha sido o filho que tenha tido a ideia. Se fosse a filha, não. Se o
pai soubesse que foi a filha o pai não entenderia mais nada.

A FILHA – Eu preciso que o senhor…


O PAI – Eu?
A FILHA – Não. Eu. Eu preciso…
O PAI – Quem precisa?
A FILHA – Eu.
O PAI – Quem é eu?
A FILHA – O quê?
O PAI – Quem é você?

Agora é a filha quem não entende nada. De uns tempos pra cá o pai passou a se
esquecer de tudo. Se esquece até da filha de vez em quando, mas logo, tem a
habilidade de voltar ao seu estado natural. O pai volta ao seu estado natural.
Sempre apontando a arma para a filha.

O PAI – Ah, é você!


A FILHA – Sim, sou eu papai, sua filha.
O PAI – Ah, sim. Deixa eu ver melhor que negócio é esse! Passa pra cá.
A FILHA – O quê?
O PAI – Os papéis.
A FILHA – O quê?
O PAI – Surda!
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A filha entrega os papéis para o pai. Ele tenta ler, mas não consegue. Ele não
enxerga letras formatadas no tamanho 12. Só ela. Ela enxerga. Ela tem uma boa
visão.

O PAI – Lê pra mim minha filha. Lê. Igual quando você era pequenininha que eu lia
historinhas pra você. Eu quero que você leia pra mim agora.

O pai devolve os papéis para a filha. Ela pega. Ela vai ler. Igual quando ele lia. Ela
não se lembra mais das histórias, mas se lembra que o pai lia com carinho algumas
coisas para ela. Ela esqueceu todas as histórias. Ela, ás vezes também tem
problemas de memória. Ela se esqueceu do carinho do pai. Ela, ás vezes se esquece
de algumas coisas. Ela pega os seus óculos em algum lugar e se prepara para ler. A
sua visão nem é tão boa assim.

A FILHA – (Lendo) “O Lar Recanto da Esperança, oferece o que existe de melhor e


mais moderno em acomodações, serviços e assistência à terceira idade”... Papai! Tem
certeza?
O PAI – Continua!

O pai continua apontando a arma para a filha. A filha obedece. A única coisa que
ela sabe fazer agora é obedecer. Ela recebeu uma boa educação.

A FILHA – (Lendo) “São mais de 28 mil metros quadrados com muita área verde,
conforto e carinho tanto para o morador quanto para seus amigos e familiares. Os
moradores do Lar Recanto da Esperança decidem livremente o que desejam fazer e
de quais atividades participar. As atividades são: Em Janeiro, Festa do Japão. Em
fevereiro, Baile de Carnaval. Em Março, Dia da Mulher. Em Abril, Festa da Páscoa.
Em Maio”...

Não adianta continuar. O pai dormiu. Sim. Dormiu. Assim como a filha
antigamente. O pai, depois de certo tempo passou a dormir em qualquer
ocasião. A qualquer hora. Em qualquer lugar. O pai dormiu com a arma na
mão. A filha, percebendo o descuido do pai, retira a arma de sua mão. O pai
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respira no seu sono profundo. Nada o fará acordar. Só mesmo o choque de um


pesadelo poderá lhe fazer esse favor.

Cena II

O pai está sentado em sua cadeira de rodas. Ele está acordado. Ao seu lado, em
outra cadeira, não de rodas, está uma senhora de aproximadamente 50 anos. Ela
está terminando uma longa fala explicativa. Ela termina.

A SENHORA – Bom, acho que é isso. Espero que eu não tenha esquecido de nada.
Você quer me perguntar alguma coisa? Tem alguma dúvida?
O PAI – Não.
A SENHORA – Não é tão ruim assim, não. Têm yoga todas as quartas...
O PAI – Obrigado.
A SENHORA – Obrigado?
O PAI – É. Obrigado.
A SENHORA – Por que obrigado?
O PAI – Obrigado por tentar me enganar.
A SENHORA – Você acha que eu tô te enganando?
O PAI – Escuta aqui sua velha!
A SENHORA – Velha? Velha, não! O senhor me respeite! Eu não sou velha.
O PAI – Quem você pensa que é?
A SENHORA – Eu só estou tentando ajudar, é o máximo que eu posso fazer.
O PAI – Tudo bem, mas você é uma velha!
A SENHORA – E você? Quem você pensa que é?
O PAI – Eu não penso, eu sou… Quando olho no espelho e vejo as rugas ao redor dos
meus olhos, a pele flácida do meu pescoço, os pelos nas minhas orelhas e as veias nos
meus tornozelos: não consigo acreditar que seja eu mesmo. Quando eu era criança, eu
pensava que talvez eu fosse especial, que, de alguma forma, o destino me escolheria pra
ser um grande homem, no mínimo alguém “semi-importante”… Mas eu fui um
fracasso. Não há como ignorar isso. Eu vou morrer em breve. Talvez daqui a alguns
anos, talvez amanhã. Isso não importa. Quando eu estiver morto e quem me conheceu
também morrer será como se eu nunca tivesse existido. Que diferença minha vida fez
para alguém?
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Nada. O pai não disse absolutamente nada. Só pensou. Tudo que ele disse agora
brotou apenas nas palavras dos seus pensamentos e não da sua voz. Ele talvez
quisesse ter dito, mas não disse. Ele sabe que suas palavras não mudariam em
nenhum grau a sua condição. Por isso, aquietou-se.

A SENHORA – Tá pensando na morte da bezerra?


O PAI – Não.
A SENHORA – Não?
O PAI – Não. Tô pensando em como matar a bezerra.

Silêncio. Cada um imagina como seria essa bezerra. Eles pensam na bezerra.
Silêncio.

A SENHORA – Os calçados! Eu me esqueci de falar dos calçados. Os calçados são


muito confortáveis. São antiderrapantes. Ah! Os tapetes dos banheiros também são
antiderrapantes. Eu tenho certeza que o senhor nunca irá escorregar.
O PAI – Eu também tenho certeza.

Ela, na sua euforia funcional, mal percebeu que o pai, andar, já não pode. Nesse
momento, ela percebe. Ela percebe que o pai está sentado em uma cadeira de
rodas.

O PAI – Você precisa de antiderrapantes?


A SENHORA – Não. Eu não preciso. Eu ainda consigo fazer muita coisa. Eu não sou
tão velha assim não. Eu fico super irritada porque o meu plano de saúde só me
encaminha pra consultórios de geriatria. Eu tenho a idade que tenho, mas eu tenho
saúde. Outro dia mesmo, eu estava lá esperando pra ser atendida…
O PAI – Lá onde?
A SENHORA – Você tá ouvindo o que eu tô falando?
O PAI – Sim. Um pouco.

Um pouco. O pai escuta tudo, mas entende apenas um pouco. Muito pouco. A sua
audição identifica com dificuldade os substantivos e as palavras pouco articuladas.
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A SENHORA – Eu estava lá no consultório de geriatria esperando pra ser atendida e de


repente, eu menstruei. Ninguém. Ninguém...

Ela vai repetir de novo a palavra “ninguém” com uma boa articulação e uma
excessiva força na emissão sonora.

A SENHORA – Ninguém! Nenhuma alma viva tinha um absorvente! Eu passei a maior


vergonha da minha vida. Fiquei lá toda melada!

Quando ela disse a frase “fiquei lá toda melada”, entraram a filha e o filho. O filho
traz consigo uma mala. Essa mala não é dele. É do pai.

O FILHO – É essa?
A FILHA – Essa é a assistente social que eu falei. Foi ela que veio explicar pro pai
sobre o... Resort... Como é mesmo o nome?
A SENHORA – Lar Recanto da Esperança, e não é um resort, é um asilo.
A FILHA – Ah, sim. Asilo.
A SENHORA – Eu já expliquei absolutamente tudo.

O pai já esqueceu tudo o que a assistente social explicou no início da conversa. Ele
não se lembra de quase nada. Só se lembra dos calçados antiderrapantes, que para
ele, são inúteis.

O FILHO – Papai, ficou tudo claro?


O PAI – Um pouco.
A FILHA – Como assim, um pouco?
O PAI – Eu já me esqueci.
A FILHA – Como assim esqueceu?

A filha se irrita toda vez que o pai esquece algo. O filho não se irrita com isso.
Nunca se irritou. Nunca se importou com as coisas do pai.

O PAI – Cadê?
O FILHO – Cadê o quê?
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O PAI – O revólver!
A FILHA – Mas que revólver papai? De que revólver o senhor tá falando?

Ou a filha está se fazendo de desentendida, ou o pai sonhou essa história. Talvez a


primeira cena tenha acontecido apenas na imaginação do pai. Talvez não. Só eles é
que podem saber quem tem razão. Só eles o sabem. Só eles sabem se existiu ou não
um revólver… Eu também sei. Eu sei.

A FILHA – A senhora tá vendo como ele delira?


A SENHORA – Olha… Que história é essa de revólver?
O FILHO – Escuta, nós não temos tempo a perder. Eu imaginei que já estava tudo
encaminhado. Eu tenho que apresentar uma palestra daqui a meia hora e eu preciso que
a senhora resolva esse problema o quanto antes, por favor!
A SENHORA – Tudo bem, a caminhonete já tá lá fora estacionadinha esperando pela
gente. Eu só preciso que vocês assinem o contrato.
A FILHA – É a senhora quem vai dirigindo?
A SENHORA – Sim. Não entendi o estranhamento.
A FILHA – Estranhamento nenhum...
A SENHORA – Ok, o senhor assine aí, e a senhora também.

A filha sentiu um leve arrepio ao ser chamada de “senhora”. Ela talvez tenha
sentido nesse momento o calor do envelhecimento; mas com a firmeza de uma
mulher de quarenta anos, assinou o contrato logo depois que o irmão o fez. A filha
devolve para a assistente social a caneta e a prancheta que ela entregou. O pai
continua sentado, indiferente a tudo que acontece.

A SENHORA – Muito bem. Vocês vão me desculpar, mas eu preciso preencher esse
campo que está em branco. A questão número 1 do cadastro online vocês não
preencheram. Podem falar pra mim, por favor, qual é a resposta?
O FILHO – Mas qual é a pergunta?
A SENHORA – (Lendo) O motivo da internação do idoso no Lar Recanto da
Esperança, é?
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Os filhos se olham. O pai olha os filhos e os filhos olham o pai. Nesse momento, se
houvesse uma trilha sonora, ela preencheria com a sua melancolia esse momento
de profunda tristeza. Mas não há trilha sonora. Não há nada. Só o ar seco que
preenche esse momento tão familiar.

A SENHORA – Por favor, eu não posso sair daqui sem tá com o cadastro totalmente
preenchido.
O FILHO – Escreve aí… O motivo é que eu trabalho dez horas por dia… Eu não moro
mais aqui com o meu pai… Eu tenho mulher, filhos pra criar, educar… E não tenho
disponibilidade para cuidar do meu pai nessas condições… Não tenho tempo necessário
para lhe proporcionar momentos de lazer…
A FILHA – Eu, além da paciência, já perdi inúmeros trabalhos porque não pude deixar
meu pai sozinho… Ele não tem condições de se vestir, de ir ao banheiro e nem de se
alimentar sozinho… A comida que ele come sou eu quem compra… Mas não consigo
ter dinheiro pra comprar comida se eu não trabalhar… Eu preciso trabalhar, eu sou
professora…
O FILHO – Pretendemos visitá-lo com frequência assim que nossa agenda estiver um
pouco mais livre de grandes afazeres… Temos certeza que lá ele encontrará o carinho e
o amor necessário que nós nesse momento não estamos conseguindo lhe fornecer
devido à nossa loucura cotidiana…
A FILHA – Minha vida virou de ponta a cabeça depois que a nossa mãe se foi... Aqui
ele se sente muito sozinho e isolado, temos certeza que lá ele encontrará grandes amigos
e quem sabe até uma namorada… Visando o bem estar e qualidade de vida de nosso pai
é que lhe depositamos no Lar Recanto da Esperança.

Não. Eles não disseram isso. Disseram outra coisa.

O FILHO e A FILHA – Por motivo de força maior!

Disseram que o motivo era de força maior. A assistente social anota o motivo e se
prepara para ir em direção ao Lar Recanto da Esperança.

O FILHO – Acho que vou precisar de ajuda pra colocar ele na caminhonete. Você me
ajuda?
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A FILHA – Pode ser. Você sustenta?


O PAI – Não. Eu não preciso de ajuda. Eu vou sozinho. Não preciso de nada.

O pai começa a sair em direção à porta da rua empurrando a sua cadeira de rodas.
Ele pega a sua mala. Não precisa de ajuda. Nem dos filhos. Nem da assistente
social. No meio do caminho o pai para. Ele olha para os filhos. Vira o seu corpo
com a sua cadeira de rodas e se prepara para atirar. A sua arma matará
fortemente a sua filha. O filho não. Só a filha irá morrer aqui no tapete da sala. O
pai se prepara para atirar as suas palavras. Ninguém sabe de onde ele irá tirá-las.
Eu sei. Apenas eu. O pai, então, atira.

O PAI – Era uma vez uma menina chamada Alice. Numa tarde de verão, ela estava sob
a sombra de uma árvore, ao lado de sua irmã mais velha, que lia um livro sem nenhuma
figura. Achando aquilo muito chato, Alice foi ficando cada vez mais sonolenta quando,
de repente, apareceu um coelho apressado com um enorme relógio exclamando:
“Nossa! É tarde, é tarde, é tarde, muito tarde!”. O coelho entrou numa toca e a menina
foi atrás. De repente, ficou tudo muito escuro e Alice sentiu que estava caiiindo,
caiiindo, caiiindo num poço que parecia não ter fim. Aí... De repente, plaft!

Quando o pai diz “plaft”, a filha cai no tapete. A lembrança da história infantil, fez
com que ela fosse acertada em cheio por uma súbita lembrança que chegou
violentamente. A filha, que olhava para o pai e antes lhe parecia coisa nenhuma, o
viu agora com alma. Divino desabrochar. A filha se sentiu à altura do pai. Nem
mais, nem menos. Igual. O pai cansou de ser coisa. Era quase desesperador viver
como coisa, se de fato, coisa não era. O pai sente, vibra, arde. Coisa nenhuma
reproduz sensação parecida. As palavras do pai trouxeram essa consciência para a
filha e essa consciência a matou. Ali está ela. Caída no tapete.

FIM

Thiago Nascimento
31/08/2012

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