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GRANDES conto

( Tiro Parte final)

ALEXANDRE PUSHKIN
>> P.08

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ACHILE
MBEMBE

“O MUNDO
EM ESTADO
DE SÍTIO” >> P. 06

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06 17 Janeiro 2014

Entrevista
Achille Mbembe

“As sociedades contemporâneas


sonham com o apartheid”
Com o seu novo livro “Crítica da Razão Negra”, o politólogo camaronês Achille Mbembe cumpre a sua parte na luta
por um futuro do mundo para além das raças. Um longo caminho ainda está por fazer.

“Eu queria simplesmente ser um O negro, homem-mercadoria,


homem entre os outros homens … homem-mais valia
ser um homem, nada mais que um A força da demonstração de Achi-
homem”, escrevia Fantz Fanon em lle Mbembe está em repensar a ori-
“Pele negra, máscaras brancas”. A gem do conceito de “negro”, esse
cor da sua pele foi constantemente “homem-coisa, homem-metal, ho-
um entrave a este desejo vital de mem que dá lucro” e de inscrever a
igualdade e fraternidade. Estáva- escravatura e a colonização no co-
mos em 1952. A África libertava-se ração da história europeia. Ambas
do jugo colonial. A África do Sul lan- não decorreram apenas no chama-
çava as bases de um dos sistemas do Ultramar. Tiveram repercussões
mais abjectos de segregação racial, nas metrópoles, nomeadamente,
o mesmo que vingava então nos Es- pela via dos manuais escolares, da
tados Unidos. Depois, Mandela lan- imprensa, nos “acontecimentos
çou as bases de uma nação arco-íris. populares” que foram os campos
Malcolm X, os Panteras Negras, Mar- zoológicos humanos – formatan-
tin Luther King, batalharam pelos do mentalidades e instalando nos
direitos civis dos afro-americanos e espíritos o veneno do racismo.
Barack Obama foi eleito para a pre- Que toma uma forma nova depois
sidência dos EUA. do 11 de Setembro, apoiando-se já
Olhando para estas conquistas, o
tempo em que o também psiquiatra
da Martinica sonhava a igualdade
parece remoto e longínquo. No en-
tanto, em 2008, comentadores de
todo o mundo “glorificaram” a elei-
ção do primeiro presidente negro do
Ocidente. Um presidente negro…
nascido de mãe branca e de pai que- Com esta obra,
niano (negro n.t). Um acontecimen- Achille Mbembe
to pretensamente comum cruza-se
com as práticas segregacionistas escolhe “lutar
americanas segundo as quais uma
gota de sangue negro que seja faz de
pelo futuro de um
cada um ser desprezível. E demons- mundo arracial”
tra, caso fosse ainda necessário, que
a ideologia racista está sempre pre-
sente na nossa forma de apreender
o mundo… Razão pela qual o poli-
tólogo camaronês Achille Mbembe
escolheu demonstrar até que ponto
o nosso mundo de hoje se articula à
volta do racismo. “A crítica da moder-
nidade estará inacabada enquanto não apenas na questão racial, uma
não compreendermos que o seu ad- “operação do imaginário”, como
vento coincide com o princípio da também na religião e na cultura.
definição da raça e da lenta trans- “A transformação da Europa numa
formação deste princípio em matriz fortaleza e o conjunto de legisla-
privilegiada de dominação, ontem ções anti-estrangeiras de que o
como hoje” – escreve Mbembe, no Velho Continente se dotou neste
seu mais recente livro, “Crítica da Ra- princípio de século, aprofunda
zão Negra”, um olhar atento e lúcido as suas raízes numa ideologia de
à “Crítica da Razão Pura”, de Kant, selecção das diferentes espécies
tratado filosófico sobre os limites da humanas que fazem o possível por
racionalidade, desenvolvido no mo- mascarar, para o bem e para o mal”,
mento em que a Europa se solidifica- constata o professor de História
va por sobre o tráfico de escravos. na Universidade de Witwatersrand
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«A “razão negra” reflecte o conjunto


de discursos que afirmam quem é este homem-
objecto, homem-mercadoria, homem-coisa»

em Joanesburgo e da Universidade
Duke, na Carolina do Norte. Como
duvidar destas afirmações, quan-
do a ministra francesa da Justiça,
Christine Taubira, é vítima de uma
infame campanha racista?
Com esta obra, Achille Mbembe
escolhe “lutar pelo futuro de um
mundo arracial” e parafraseando
Fanon, coloca a seguinte questão
essencial: “Como pertencer a este
mundo comum em absoluto plano
de igualdade?”

O seu último livro intitula-se


Crítica da Razão Negra. Como de-
fine “razão negra”?
«Como pertencer
O que chamamos de “Negro” é a este mundo
uma invenção do capitalismo à
época em que este sistema econó-
comum em
mico e esta forma de exploração da absoluto plano de
natureza e dos seres humanos foi
posta em prática à beira do Oceano igualdade?»
Atlântico, no séc. 15. Neste contex-
to, o “Negro” é a definição de uma
humanidade que se presume não
ser só uma, ou, sendo apenas uma,
não pode ser nada mais do que uma
coisa, um objecto, uma mercadoria.
A “razão negra” reflecte o conjunto
de discursos que afirmam quem
é este homem-objecto, homem-
-mercadoria, homem-coisa, como
deve ser tratado, governado, em
que condições se deve pô-lo a tra-
balhar e como tirar proveito dele.
Depois, a “razão negra” designa
a retomada do discurso daqueles
que foram “catalogados” (Africa-
nos, Antilhanos, Afro-Americanos, Depois do 11 de Setembro, o de vigilância sem contrapontos le- Porque isso pressupõe que se nos racistas. Porém, o racismo tal como
Afro-Caribenhos) e que devolvem mundo entrou num momento mui- gais tornaram-se comuns. A conse- confrontamos com um problema, se desenvolveu no mundo moder-
e endossam essa responsabilidade to específico, que pode ser cha- quência de tudo isto resulta numa basta eliminar a palavra que define no, implica a existência de meca-
aos responsáveis por este “fabri- mado de “estado de sítio”: uma re-balcanização do mundo sobre o problema. Se os países africanos nismos institucionais coercivos
co”, buscando a reafirmação da sua série de garantias jurídicas funda- um fundo de duas formas obscuras suprimirem a palavra “pobreza”, na atribuição de uma identidade.
humanidade plena e inteira. Logo mentais que permitiam assegurar de desejo que afligem as socieda- ela desaparece? Há qualquer coisa Neste momento, na correlação de
após o 11 de Setembro, o mundo a nossa segurança e a nossa liber- des contemporâneas: o apartheid de estranho neste tipo de raciocí- forças mundial, desculpe, mas o
entrou numa fase muito particular, dade foi posta em causa, de forma (cada um quer viver apenas com os nio. Creio que o presidente faria mundo africano em particular não
a que poderíamos chamar de esta- explicita ou indirecta. O “Acto Pa- seus) e o sonho, funesto no meu melhor se reflectisse sobre as novas dispõe de meios nem de recursos
do de “excepção”. triota”* é um exemplo concreto da ponto de vista, de uma comunida- formas de racismo em França e bus- susceptíveis de estigmatizar pes-
revogação das liberdades. A excep- de sem estrangeiros. casse métodos para as combater. soas de origem europeia.
A negritude e o pan-africanis- ção tornou-se norma. A detenção
mo não renunciaram à questão de pessoas que supõem tratar-se de O presidente francês, François Dois ministros europeus, ne- * Acto Patriota (Patriot Act) –
racial? Será que erraram? inimigos vulgarizou-se, as prisões Hollande ensaiou a ideia de re- gros, em Itália e em França são Lei assinada por George W. Bush,
Não necessariamente. Não re- sem julgamento também, a tortura tirar a palavra “raça” da consti- sistematicamente insultados em 2001 que dá suporte a todas as
nunciaram, imagino, porque o com o objectivo de extrair à força tuição francesa para lutar contra com base na cor da sua pele. A ilegalidades que se possam imagi-
racismo continua a ser uma reali- informações, assassinatos extra- o racismo. Como encara esta ati- classe política europeia está a nar relativas a direitos básicos dos
dade. Porque, face à violência do -judiciais e a submissão das popu- tude? reagir à altura a estes ataques? cidadãos num país livre e demo-
racismo era preciso criar uma co- lações de todo o mundo a sistemas Absolutamente inacreditável! Kyenge** e Taubira são vítimas crático. Invasão de lares, espiona-
munidade que lutasse. O perigo, do tipo de racismo de que falava gem de cidadãos, interrogatórios
como sabemos, é de reintroduzir Fanon: primitivo e idiota, segun- e torturas de possíveis suspeitos
uma luta que procura transcender do o qual o “Negro” é apenas um de espionagem ou terrorismo, sem
a questão racial e que pode con- animal. Mas não são os únicos. Nos direito a defesa ou julgamento. Na
duzir à repetição do mesmo, ou Estados Unidos, Barack Obama é prática, a lei suprime as liberdades
praticamente do mesmo. Então, «Depois do 11 submetido à mesma fúria e à mes- civis. Muitos juristas consideram
o risco de uma certa manutenção de Setembro, ma violência. O nosso mundo está à que essa lei facilita a instituição da
da negritude e de uma particular beira de entrar num ciclo devasta- pena de morte, na eventualidade
forma de pan-africanismo é de dar o mundo entrou dor que, caso não seja interrompi- de qualquer ameaça de terrorismo
espaço a revoluções idênticas a ou-
tras já feitas, e que demonstraram
num momento do, faz-nos correr o risco de resul-
tados e possibilidades horrorosas.
- real ou imaginária.
** Cécile Kyenge é a primeira ci-
ser incapazes de pôr um ponto final muito específico É preciso fazer despertar as forças dadã negra italiana a fazer parte de
nestes problemas. de abertura e de futuro. um governo. É Ministra da Integra-
que pode ser ção.
Está hoje presente, segundo chamado de “estado O que pensa dos que denun-
defende, uma espécie de “racis- ciam um aumento do racismo Entrevista de Séverine Kodjo-
mo sem raça que mobiliza a reli- de sítio”» anti-branco? -Grandvaux
gião e a cultura no quadro da luta Risos). Não devemos brincar. In “Jeune Afrique” – Uma cortesia
contra o terrorismo. Pode apro- Não quero dizer que os não-bran- de José Gonçalves e de Achille Mbembe
fundar esta questão? cos não são capazes de atitudes Tradução livre de C.F.

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