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simpósio • Currículo

Currículo para alunos Surdos

Paulo Vaz de Carvalho


pcjanas.vazdecarvalho@gmail.com
Instituto Jacob Rodrigues Pereira/ Universidade Católica Portuguesa

Palavras-Chave: Currículo escolar, Educação Bilíngue, Formação e Integração


Profissional, História da Educação de Surdos, Intervenção Precoce, Língua Gestual
Portuguesa, Materiais Bilíngues, Métodos de Ensino de Surdos.

1. Resenha Histórica da Educação de Surdos em


Portugal/ Casa Pia de Lisboa
A História da Educação de Surdos em Portugal está intimamente ligada
à História da Casa Pia de Lisboa (CPL) e mais específicamente à História do
Instituto Jacob Rodrigues Pereira (IJRP). Optou-se como critério para dividir a
História do Ensino de Surdos, os métodos de ensino de surdos utilizados, entre
1823 e 2008 (Carvalho, 2007).
Salienta-se a ideia de que a adopção destes métodos de ensino de surdos
reflectem decisões políticas e necessidades sociais que caracterizam cada um dos
três períodos da História da Educação de Surdos em Portugal (Carvalho, 2007).
Em suma, pode-se considerar o primeiro período como o período da fundação
da Educação de Surdos em Portugal.
Este período foi essencialmente marcado pela criação do primeiro Instituto
de “surdos-mudos”1 no nosso país, em 1823, por acção do rei D.João VI que fez
chegar a Portugal o professor de surdos sueco Per Aron Borg com o objectivo de
implementar este tipo de ensino, em Portugal. Ao nível dos Métodos de ensino
de surdos, todo este primeiro período será influenciado pelo Método do professor
Per Aron Borg2 (Santos, 1913).
Politicamente, este primeiro período foi caracterizado por uma grande insta-
bilidade, ora estando sob a tutela do Rei, ora sob a tutela da Casa Pia de Lisboa,
ora sob tutela dos Asilos Municipais, autonomizando-se, por vezes, mas sem
sucesso. A sucessiva mudança de directores, professores e respectivas instala-
ções do Instituto contribuiu para que o ensino de surdos não se desenvolvesse
da melhor forma.
O segundo período da História da Educação de Surdos, em Portugal, foi
essencialmente caracterizado por uma organização e institucionalização deste
tipo de ensino, pela criação, em 1922, do Instituto Jacob Rodrigues Pereira
(IJRP) e mais tarde, principalmente, a partir dos anos cinquenta, pela acção do
1
Denominação da época
2
Método baseado na Comunicação Gestual com suporte na língua escrita e no Alfabeto Manual sueco.

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Anais do Congresso

Provedor da CPL, o Dr. Campos Tavares. Este Provedor da CPL participou em


vários congressos internacionais3, investiu na especialização de professores para
o ensino de surdos, criou a Associação Portuguesa para o Progresso do Ensino de
surdos, com a publicação da Revista Bi-Anual, A Criança Surda, fundando em
1953 as novas instalações do IJRP, concentrando o ensino de surdos no mesmo
local, que estava dispersa por dois colégios da CPL (Colégio de Pina Manique
e Colégio de D. Maria Pia) (Lourenço, 1956).
Com a organização e institucionalização do ensino de surdos entra-se no
terceiro período da História da Educação de Surdos em Portugal (Carvalho, 2007).
Considera-se este terceiro período como sendo o Período Científico da Língua
Gestual Portuguesa (LGP). Este período tem início com um estudo realizado a
partir 1990, no IJRP, com o objectivo de diagnosticar as reais dificuldades das
crianças surdas ao nível educativo, comunicativo e social. Este estudo deu um
grande contributo para o reconhecimento da Língua Gestual Portuguesa, em
1997, como a língua materna da criança surda profunda, numa aplicação do
modelo Bilíngue para a educação de surdos e em obras de cariz científico como
as obras GESTUÁRIO e Para uma Gramática da Língua Gestual Portuguesa.
Relativamente à História da Educação de Surdos na CPL e em Portugal,
deve- se salientar um aspecto transversal aos três períodos, que é a influência
estrangeira nos métodos de ensino de surdos. No primeiro período com a influ-
ência sueca do professor Per Aron Borg, no segundo período com a influência
da Universidade de Manchester, nos anos cinquenta e depois mais tarde com a
influência do centro Suvag de Zagreb, nos anos oitenta e no terceiro período com
a influência dos estudos desenvolvidos sobre a Língua Gestual Americana (ASL).

2. Organização do IJRP e seus objectivos


Como se referiu, o IJRP tem sido, desde a sua fundação a principal escola
de referência para o ensino de surdos em Portugal. Foi nesta instituição da CPL
que se introduziram os principais métodos de ensino de surdos desenvolvidos
no nosso país ao longo dos 187 anos da história da educação de surdos em
Portugal. A introdução e desenvolvimento dos referidos métodos nesta escola
viriam a influenciar todas as outras escolas e institutos de surdos que seriam
criados em Portugal.
Foi nesta escola que, em 1905, foi introduzido o Método Oral Puro de ensino
de surdos que tinha como modelo o Instituto Nacional de Surdos de Paris. Em
1953, foi introduzido o método Materno-Reflexivo, influenciado pela Universi-
dade de Manchester. Em 1976, foi implementado a técnica Suvag com grandes
ligações à então Jugoslávia. Durante este período, a LGP permaneceu no IJRP
e, embora de forma clandestina, continuou a desenvolver-se. Foi por essa razão
que, em 1992/93, esta língua é recuperada da clandestinidade e aos poucos
inserida como meio de instrução dos alunos surdos, dando origem à introdução
3
Congresso Internacional de Groningen e de Roma.

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sistemática e científica do modelo de ensino bilíngue de surdos tendo como
modelo a Universidade de Gallaudet, nos Estados Unidos da Amárica (EUA) e
o Instituto de Surdos de Manilla, na Suécia. A referida recuperação da LGP no
IJRP viria a ter uma grande influência no reconhecimento legal desta língua em
1997 na Constituição da República Portuguesa. Todavia, várias crianças surdas
continuavam a chegar ao Instituto em idades ainda bastante avançadas (6,7, 8
anos e mais velhos) comprometendo em parte o período sensível de aquisição
da linguagem.
Assim, em 2005, o IJRP desdobra-se em contactos com os vários hospitais
da área da Grande Lisboa no sentido de fazer chegar o mais cedo possível as
crianças surdas à escola. Assim, com o rastreio neo-natal, é criado nesta escola o
serviço de Intervenção Precoce que viria alterar por completo o panorama nacional
de intervenção em crianças surdas. A partir desta data, as crianças começam a
desenvolver desde cedo as suas capacidades num ambiente linguístico que as
potencia a um desenvolvimento cognitivo semelhante ao das crianças ouvintes.
Paralelamente, o IJRP tem vindo, também, a efetuar um trabalho de fundo com
as famílias de crianças surdas nomeadamente facultando cursos gratuitos de LGP.
Em 2008, é então publicado o decreto-lei 3/2008 que cria as Escolas de Re-
ferência para a Educação Bilíngue de Crianças e Jovens surdos a nível nacional e
que o IJRP tem cumprido escrupulosamente, embora não seja ainda reconhecida
como escola de referência para o ensino bilíngue de alunos surdos, situação que
remete para a necessidade de entendimento entre o Ministério da Educação e
Ciência e o Ministério da Solidariedade e Segurança Social ainda não objetivada.
Por essa razão considera-se fundamental descrever aqui o funcionamento
atual do Instituto:

3. Caracterização do IJRP População


População Surda: 217 pessoas
População Ouvinte: 200 pessoas
População-alvo do IJRP: - Surdos profundos, severos e ligeiros sem implante
coclear, surdos parciais, surdos com implante coclear, surdos com problemas
associados. Relativamente à surdo-cegueira a CPL.IP dispõe o CED Aurélio
da Costa Ferreira que dá resposta a esta população específica.
Metodologias utilizadas: - Ensino bilíngue/ Programas bilíngues
Organização Escolar:
Serviço de Intervenção Precoce
Ensino Pré-escolar
1º CEB bilíngue
2º CEB bilíngue
3º CEB bilíngue
Ensino Secundário Artístico Especializado Bilíngue (10º, 11º e 12ºanos) CEF
Tipo 1 bilíngue (CEF bietápico tipo 1 + tipo 2 bilíngue)

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Anais do Congresso

CEF Tipo 2 bilíngue


Departamento de Língua Gestual Portuguesa Departamento Curricular de
Ciências Sociais e Humanas Departamento de Ciências Exatas e Experimentais
Departamento de Expressões
Departamento de Línguas
Departamento de Educação Especial (DEE) - Docentes do grupo de recru-
tamento 920 e 910
Serviços Técnicos de Apoio Socioeducativo (STASE) Unidade de Investi-
gação (UI)
Serviço de Audiologia
Unidade de Formação e Integração Profissional (UFIP)
Elevado número de professores especializados (dupla profissionalização:
formação inicial; área da surdez e LGP)

4. Um currículo igual para todos?


Os currículos seguidos no IJRP são obrigatoriamente iguais aos das restantes
escolas nacionais para ouvintes por exigência do Ministério da Educação e não
por opção do IJRP, dos professores de surdos (surdos e ouvintes) e técnicos que
trabalham com surdos.
Como é do conhecimento dos investigadores desta área, cerca de 96% das
crianças surdas são filhas de pais ouvintes (Mitchell & Karchmer, 2004) e que não
dominam a LGP. Assim, estas crianças não têm um ambiente familiar favorável
ao nível linguístico. As crianças surdas não participam das conversas familiares
ou quando participam apenas captam cerca de 30% da informação, na melhor
das hipóteses; não são beneficiadas com a informação circundante da sociedade
que é maioritariamente ouvinte e onde a acessibilidade não é ainda mais que uma
utopia; não interagem com adultos surdos que sejam bons modelos linguísticos.
Em suma, estas crianças chegam à escola sem os pré-requisitos necessários para
cumprir o currículo que lhes é exigido.

5. Para uma aplicação efetiva de programas bilíngues


Tendo consciência da sua responsabilidade histórica, o IJRP continua na
vanguarda do ensino de surdos, em Portugal. Presentemente e colhidos os frutos
do trabalho desenvolvido pelo serviço de intervenção precoce, o grande objectivo
IJRP é a implementação efetiva do ensino bilíngue de surdos, ou seja, efetuar
a difícil tarefa que é a passagem de um modelo bilíngue teórico (que defende a
aquisição da LGP como primeira língua e a aprendizagem da Língua Portuguesa
(LP) como segunda língua na sua vertente escrita e eventualmente oral pelas
crianças surdas), a um modelo bilíngue prático, de sucesso a todos os níveis
de ensino. Esta implementação passa por duas grandes áreas de intervenção: a
produção de materiais bilíngues desde o ensino pré-escolar ao ensino secundário
e o ensino da leitura e da escrita da Língua Portuguesa como segunda língua

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dos educandos surdos. Só o desenvolvimento destas duas áreas de intervenção,
em articulação com todas as equipas de trabalho do IJRP (STASE, UFIP, UI,
DEE), com as outras escolas de referência nacionais e ligação a várias universi-
dades nacionais e estrangeiras poderá viabilizar uma implementação efetiva do
ensino bilíngue de surdos no nosso país. São estas as linhas gerais orientadoras
do decreto-lei 3/2008. A aplicação do modelo bilíngue à Educação de Surdos
tem dados resultados inequívocos no IJRP como comprova a plena integração
profissional dos ex-educandos e inclusive o prosseguimento de estudos para as
universidades. Embora tendo consciência do muito que há a fazer pelo desenvol-
vimento da Educação de Surdos não podemos deixar de assinalar o sucesso que
esta escola tem obtido no que diz respeito à educação desta população específica.
Devemos realçar que este sucesso tem sido possível porque muito antes da
publicação das linhas orientadoras do Decreto-Lei 3/2008 já o IJRP colocava
em prática muitas dessas orientações. Também, a articulação entre as várias
valências que a escola dispõe contribuiu para o sucesso deste modelo educativo.
Embora o IJRP se reveja nas orientações gerais e na filosofia subjacente ao
decreto- lei 3/2008 consideramos que alguns aspetos poderão e deverão ser aperfei-
çoados para que o ensino bilíngue de alunos surdos seja uma realidade no nosso país:
• Promoção da articulação entre as várias escolas de referência para o
ensino bilíngue de alunos surdos através de linhas orientadoras comuns;
• Definição das funções dos docentes e técnicos que trabalham nas escolas
de surdos (docentes especializados, intérpretes de LGP, docentes de
LGP, docentes de educação especial e técnicos de apoio terapêutico);
• Criação de equipas para desenvolver materiais bilíngues para surdos;
• Formação contínua sobre o ensino bilíngue de alunos surdos;
• Assegurar a continuidade de docentes e técnicos nestas escolas dada a
elevada formação de que são alvo;
• Respostas educativas efetivas aos Programas Educativos Individuais
(PEI) dos alunos surdos;
• Supervisão que garanta um efetivo ensino bilíngue: o respeito pela LGP
como primeira língua dos alunos surdos e a LP como uma segunda língua;
• Diminuição do número das escolas de referência para o ensino bilíngue
de crianças surdas proporcionado que se concentrem mais alunos surdos
num mesmo local com vista a um efetivo desenvolvimento da LGP
promovendo a criação de comunidades linguísticas;
• Promoção da existência de modelos linguísticos surdos nas escolas;
• Exame nacional de LGP e não apenas para Língua Portuguesa como
segunda língua (LP2);
• Criação do grupo de docência de LGP (360) garantindo o estatuto de
igual direito às restantes Línguas a esta Língua;
• Promoção de equipas científico-pedagógicas direcionadas não só para o
desenvolvimento de materiais bilíngues mas para o estudo e implementa-
ção de estratégias pedagógicas diferenciadas e modelos de aprendizagem

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Anais do Congresso

adequados às diferentes populações, passando por planos de estudo e


currículos próprios.

Conclusão
O trabalho que tem vindo a ser desenvolvido no IJRP, nas suas diversas
vertentes, assenta num conhecimento prático, de experiência acumulada mas,
também, um conhecimento académico fruto do investimento pessoal de docentes
e técnicos que ao longo dos anos têm sentido necessidade de melhorar a sua
prática profissional e um investimento da CPL que tem permitido e facilitado a
experimentação de novas práticas e/ou metodologias pedagógicas. Por essa razão,
várias têm sido as universidades e escolas de surdos nacionais e estrangeiras
que têm procurado estabelecer protocolos com o IJRP reconhecendo, assim,
o trabalho que a IJRP/ CPL tem desenvolvido nesta área do ensino de surdos,
a nível nacional. Embora, o Ministério da Educação não permita a construção
de um currículo específico para surdos, o IJRP tem investido no ensino profis-
sional com a escolha de cursos profissionais que vão ao encontro da população
surda. Por outro lado, criou valências que permitem o acesso dos alunos surdos
ao currículo através da produção de materiais didáticos bilíngues e a aplicação
efetiva de um Programa de Língua Portuguesa para surdos, como segunda língua
e não um Programa de Língua Portuguesa para surdos, como primeira língua.

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