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Revista Brasileira de Educação

Número especial
Juventude e contemporaneidade
Angelina Teixeira Peralva
Marilia Pontes Sposito
organizadoras

Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 3 Editorial


Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6
ISSN 1413-2478 5 Juventude, tempo e movimentos sociais
Alberto Melucci

15 O jovem como modelo cultural


Associação Nacional Angelina Teixeira Peralva
de Pós-Graduação e Pesquisa
em Educação 25 Considerações sobre a tematização social da
juventude no Brasil
Helena Wendel Abramo

37 Estudos sobre juventude em educação


Marilia Pontes Sposito

53 Jovens urbanos pobres: anotações sobre


escolaridade e emprego
Jerusa Vieira Gomes

63 Escola noturna e jovens


Maria Ornélia da Silveira Marques

76 O trabalho, busca de sentido


Guy Bajoit, Abraham Franssen

96 O jovem no mercado de trabalho


Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins

110 O trabalho como escolha e oportunidade


Antonio Chiesi, Alberto Martinelli

126 Juventude temporera: relações sociais no campo


chileno depois do dilúvio
Gonzalo Falabella

Revista Brasileira de Educação 1


134 De estudantes a cidadãos: redes de jovens e
participação política
Ann Mische

151 Jovens dos anos noventa: à procura de uma


política sem “rótulos”
Anne Müxel

167 Transgressão, desvio e droga


Carlo Buzzi

180 As gangues e a imprensa: a produção de um mito


nacional
Martín Sánchez-Jankowski

199 Juventude(s) e periferia(s) urbanas


Eloisa Guimarães

209 Short cuts: histórias de jovens, futebol e


condutas de risco
Luis Henrique de Toledo

222 Espaço Aberto


Quando o sociólogo quer saber o que é ser
professor: entrevista com François Dubet
Angelina Teixeira Peralva, Marilia Pontes Sposito

233 Resenhas
251 Notas de Leitura
261 Resumos/Abstracts
267 Normas para Colaborações
269 Assinaturas

2 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Editorial

Depois de um período de constituem elementos centrais infantil e juvenil. Hoje, em um


latência, os estudos sobre dessas transformações, que momento reconhecidamente
juventude reemergem lentamente afetam os jovens, mais do que marcado pelo prolongamento
no cenário acadêmico outras categorias da população, geral da esperança da vida
brasileiro. Com este número, a simplesmente porque se trata escolar, o trabalho
Revista Brasileira de Educação de uma história que está paradoxalmente já não se
pretende contribuir para a nascendo com eles. apresenta para o jovem apenas
aceleração dessa tendência. Ela São mudanças gerais, que como constrangimento do qual
nos parece capital, não somente se observam simultaneamente cabe liberá-lo, mas como
para a compreensão dos em diversos lugares, embora exigência de autonomia
problemas específicos de um cada sociedade as construa sob individual. Vários artigos — os
grupo etário particular — uma forma própria e de acordo de Jerusa Vieira, Heloísa
aquele que as definições com tradições particulares. E Martins, Ornélia Marques, ou
institucionais em uso situam na posto que se trata de abrir um de Chiesi e Martinelli — tratam
faixa dos 15 aos 24 anos —, debate, onde o jovem apareça a aqui deste tema. Mas vale
mas também para a elucidação um só tempo como objeto de talvez destacar que as chances
de alguns dos mais importantes análise, beneficiário de de inserção no mercado de
problemas da atualidade. iniciativas da sociedade civil ou trabalho — e, portanto, de
Em um breve lapso de de políticas públicas, conforme construção dessa autonomia —
tempo, mudanças cruciais se trata artigo de Helena Abramo, são diversificadas em
impuseram a nós. A rapidez e revelador de tendências decorrência de características
com que se processaram tornou emergentes, pareceu-nos da economia e do peso do
nossa sociedade opaca. A tal importante trazer a público, desemprego, dramático como é
ponto, que experimentamos além de reflexões sobre o caso o caso da Bélgica, analisado
hoje uma aguda consciência do brasileiro, outras, capazes de por Guy Bajoit e Abraham
novo, e da obsolescência de apontar o estado da discussão Franssem, que dispõe de
uma parte pelo menos das nos demais países. Ora, o proteção social, mas onde a
categorias através das quais paralelismo em cada um dos sombra do Estado obscurece em
várias gerações de cientistas campos examinados não deixa parte as chances do indivíduo
sociais e educadores pensaram de surpreender. inventar seu próprio futuro.
o mundo. O trabalho, a escola, Historicamente, a escola O caráter aleatório,
os valores, a política se construiu contra o trabalho indeterminado e imprevisível,

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que define um modelo limites das condutas Bordeaux, ele quis saber o que
emergente de relação com o transgressivas da juventude. é, na prática, ensinar para
trabalho, parece definir Martín Sánchez-Jankowski adolescentes pobres em uma
também uma nova relação com aponta, mais além da realidade escola pública de massas.
a política. Enquanto os material das gangues Em todos os casos, não se
instrumentos clássicos de uma americana, o papel da imprensa trata aqui de concluir nada. Os
política representativa (partidos na reconstrução pública desse temas aqui abordados são
e sindicatos) se debilitam, a fenômeno. Eloisa Guimarães e questões em aberto, tratadas
política é, não obstante, Luis Henrique de Toledo sob óticas teóricas e pontos de
reinventada, conforme abordam, através das galeras vista diversos. Nossa intenção
sugerem, a partir de cariocas e da violência no foi resgatar a relevância dessa
experiências diversas, Alberto futebol, casos que têm área de estudos e contribuir
Melucci, Gonzalo Fallabela, despertado a atenção dos para uma discussão que nos
Anne Müxel e Ann Mische. brasileiros. parece importante e que apenas
Em um mundo onde a Encerra este número, que está começando.
violência se juveniza, não se pretende apenas um começo,
poderíamos deixar de abordar entrevista com François Dubet. Angelina Teixeira Peralva
também esse tema. A partir de Sociólogo travestido de Marilia Pontes Sposito
survey realizado na Itália em professor de um colégio
1992, Carlo Buzzi sugere os público da periferia de

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Juventude, tempo e movimentos sociais

Alberto Melucci
Universidade degli Studi di Milano

Tradução de Angelina Teixeira Peralva


Publicado em: Revista Young. Estocolmo: v. 4, nº 2, 1996, p. 3-14.

As atuais tendências emergentes no âmbito da na definição do eu, afetando as estruturas biológi-


cultura e da ação juvenil têm que ser entendidas a ca e motivacional da ação humana. Ao mesmo tem-
partir de uma perspectiva macro-sociológica e, si- po, existe uma crescente possibilidade, para os ato-
multaneamente, através da consideração de expe- res sociais, de controlarem as condições de forma-
riências individuais na vida diária. Neste ensaio, ção e as orientações de suas ações. A experiência é
tentarei integrar esses dois níveis de análise e pro- cada vez mais construída por meio de investimen-
porei que: tos cognitivos, culturais e materiais. Tais processos,
1) conflitos e movimentos sociais em socieda- de caráter sistêmico, são diretamente vinculados às
des complexas mudam do plano material para o transformações, pela produção de recursos que tor-
plano simbólico; nam possível a sistemas de informação de alta den-
2) a experiência do tempo é um problema cen- sidade manterem-se e modificarem-se.
tral, um dilema central; A tarefa não é somente da ordem da domina-
3) pessoas jovens, e particularmente adolescen- ção da natureza e da transformação de matéria-
tes, são atores-chaves do ponto de vista da questão prima em mercadoria, mas sim do desenvolvimen-
do tempo em sociedades complexas. to da capacidade reflexiva do eu de produzir infor-
mação, comunicação, sociabilidade, com um au-
Da ação efetiva ao desafio simbólico mento progressivo na intervenção do sistema na sua
própria ação e na maneira de percebê-la e repre-
Vivemos em uma sociedade que concebe a si sentá-la. Podemos mesmo falar de produção da
mesma como construída pela ação humana. Em sis- reprodução.
temas contemporâneos, a produção material é trans- Tome-se o exemplo dos processos de sociali-
formada em produção de signos e de relações sociais. zação: o que foi considerado no passado como trans-
Uma codificação socialmente produzida intervém missão básica de regras e valores da sociedade é

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Alberto Melucci

agora visto como possibilidade de redefinição e in- conformidade. Os atores nesses conflitos são aque-
venção das capacidades “formais” de aprendizado, les grupos sociais mais diretamente expostos aos
habilidades cognitivas, criatividade. Do ponto de processos que indiquei; eles são cada vez mais tem-
vista do planejamento demográfico e da biogenética porários e sua ação serve de indicador, como se
o que era considerado reprodução de aspectos na- fosse uma mensagem enviada à sociedade, a respeito
turais de um sistema tornou-se um campo de inter- de seus problemas cruciais.
venção social. A ciência desenvolve a capacidade A maneira pela qual os conflitos se expressam
auto reflexiva de modificação da “natureza inter- não é, de qualquer forma, a da ação ‘efetiva’. De-
na”, das raízes biológicas, cognitivas e motivacio- safios manifestam-se através de uma reversão de
nais da ação humana. códigos culturais, tendo então basicamente um “ca-
Isto revela os dois lados da mudança na nos- ráter formal”. Nos sistemas comtemporâneos os
sa sociedade. Por um lado, existe um aumento da signos tornaram-se intercambiáveis: o poder apoia-
capacidade social de ação e de intervenção na ação se de forma crecente nos códigos que regulam o flu-
enquanto tal, nas suas pré-condições e raízes; e por xo de informação. A ação coletiva de tipo antago-
outro, a produção de significados está marcada pela nista é uma forma, a qual, pela sua própria existên-
necessidade de controle e regulação sistêmica. cia, com seus próprios modelos de organização e ex-
Os indivíduos percebem uma extensão do po- pressão, transmite uma mensagem para o resto da
tencial de ação orientada e significativa de que dis- sociedade. Os objetivos instrumentais típicos de ação
põem, mas também se dão conta de que tal possi- política não desaparecem, mas tornam-se pontuais,
bilidade lhes escapa, graças a uma regulação capi- e em certa medida, substituíveis. Eu chamo essas
lar de suas capacidades de ação, que afeta suas raí- formas de ação desafios simbólicos. Elas afetam as
zes motivacionais e suas formas de comunicação. instituições políticas, porque modernizam a cultu-
Os sistemas complexos nos quais vivemos consti- ra e a organização dessas instituições, e influenciam
tuem redes de informação de alta densidade e têm a seleção de novas elites. Mas ao mesmo tempo le-
que contar com um certo grau de autonomia de seus vantam questões obscurecidas pela lógica dominan-
elementos. Sem o desenvolvimento das capacidades te da eficiência. Trata-se de uma lógica de meios:
formais de aprender e agir (aprendendo a aprender), requer aplicação e operacionalização de decisões
indivíduos e grupos não poderiam funcionar como tomadas em nível de aparelhos anônimos e impes-
terminais de redes de informação, as quais têm que soais. Mais uma vez os atores através dos conflitos
ser confiáveis e capazes de auto-regulação. Ao mes- colocam na ordem do dia a questão dos fins e do
mo tempo, seja como for, uma diferenciação pro- significado.
nunciada demanda maior integração e intensifica- Mas pode-se continuar a falar de “movimen-
ção do controle, que se desloca do conteúdo para tos” quando a ação se refere a significados, a desa-
o código, do comportamento para a pré-condição fios face aos códigos dominantes que dão forma à
da ação. experiência humana? Mais apropriado seria falar
O que eu quero dizer é que sociedade não é a de redes conflituosas que são formas de produção
tradução monolítica de um poder dominante e de cultural.
regras culturais na vida das pessoas, ela lembra um
campo interdependente constituído por conflitos e Experiência de tempo
continuamente preenchido por significados cultu-
rais opostos. Os conflitos se desenvolvem naquelas Em uma sociedade que está quase que inteira-
áreas do sistema mais diretamente expostas aos mente construída por nossos investimentos cultu-
maiores investimentos simbólicos e informacionais, rais simbólicos, tempo é uma das categorias bási-
ao mesmo tempo sujeitas às maiores pressões por cas através da qual nós construímos nossa experiên-

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Juventude, tempo e movimentos sociais

cia. Hoje, o tempo se torna uma questão-chave nos diferenciação das nossas experiências do tempo está
conflitos sociais e na mudança social. A juventude aumentando. Os tempos que nós experimentamos
que se situa, biológica e culturalmente, em uma ín- são muito diferentes uns dos outros e às vezes pa-
tima relação com o tempo, representa um ator cru- recem até opostos. Há tempos muito difíceis de me-
cial, interpretando e traduzindo para o resto da so- dir — tempos diluídos e tempos extremamente con-
ciedade um dos seus dilemas conflituais básicos. centrados. Pense na multiplicidade de tempos que
Viemos de um modelo de sociedade, o capita- imagens (televisão, gráficos, propaganda) introdu-
lismo industrial, no qual o tempo era considerado zem na nossa vida diária. Isto também significa se-
em termos de duas referências fundamentais. A pri- parações, interrupções mais definidas que no pas-
meira é a máquina. O tempo que a sociedade mo- sado — muito mais perceptíveis do que em estru-
derna conhece é medido por máquinas: relógios são turas sociais relativamente homogêneas — entre os
máquinas por excelência. A máquina cria uma nova diferentes tempos em que nós vivemos.
dimensão do tempo: não mais “natural” (isto é, Existe particularmente uma clara separação
marcado somente pelos ciclos do dia e noite, as es- entre tempos interiores (tempos que cada indivíduo
tações, nascimento e morte) e não mais “subjeti- vive sua experiência interna, afeições, emoções) e
vo”(isto é, ligado à percepção e experiência dos ato- tempos exteriores marcados por ritmos diferentes
res humanos). O tempo da máquina é um produto e regulado pelas múltiplas esferas de pertencimento
artificial que tem a objetividade de uma coisa. É de cada indivíduo. A presença dessas diferentes ex-
também uma medida universal que permite compa- periências temporais não é novidade, mas certamen-
ração e troca de desempenhos e recompensas, atra- te em uma sociedade rural ou mesmo na sociedade
vés do dinheiro e do mercado. Tempo é uma medi- industrial do século XIX, existiu uma certa integra-
da de quantidade: nos ritmos diários de trabalho ção, uma certa proximidade entre experiências sub-
como nos balancetes anuais das empresas. Aliás, em jetivas e tempos sociais, e entre os vários níveis dos
qualquer cálculo pautado na racionalidade instru- tempos sociais. Em sistemas mais altamente diferen-
mental, a máquina estabelece uma continuidade en- ciados, a descontinuidade tornou-se uma experiên-
tre tempo individual e tempo social. cia comum.
A segunda característica da experiência moder- Tais mudanças refletem tendências amplas no
na de tempo é uma orientação finalista: tempo tem sentido de uma extensão artificial das dimensões
direção e o seu significado só se torna inteligível a subjetivas do tempo por meio de estímulos parti-
partir de um ponto final, o fim da história. A pró- culares ou de situações construídas. Uma experiên-
pria idéia de um curso da história, a ênfase com que cia comum de dilatação forçada do tempo interno
a sociedade industrial tratou a história, deriva de é produzida por drogas. Drogas ocupam um lugar
um modelo de tempo que pressupõe uma orienta- importante em sociedades tradicionais, mas nos li-
ção para um fim: progresso, revolução, riqueza das mites de uma ordem que lhes atribui uma função
nações ou a salvação da humanidade (um tempo específica. Não há separação entre a droga ritual
linear que se move em direção a um fim é a última dos índios americanos e seu papel na vida social e
herança dessacralizada de um tempo cristão). Existe na vida interior dos indivíduos. Essa “fratura” ri-
então uma unidade e uma orientação linear do tem- tual permitida, essa dilatação do tempo subjetivo
po; e o que ocorre nele, o que o indivíduo experi- induzida pela droga, é parte de uma ordem sagra-
menta, adquire sentido em relação ao ponto final: da e contribui para a reafirmação de um equilíbrio
todas as passagens intermediárias são medidas em entre a vida social e o espaço assegurado ao indiví-
relação com o final do tempo. duo no grupo.
Na situação presente, podemos perceber nos- Nas nossas sociedades, no entanto, o extremo
sa distância com respeito a esse modelo porque a exemplo das drogas representa um sinal dramáti-

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Alberto Melucci

co, o mais significativo e ambíguo sintoma de dife- poral. Como medir o tempo? Quando será encon-
rença entre tempo externo e tempo interno. Mas trado o significado ‘certo’ para o tempo individual
existe também, embora em uma escala menos dra- e coletivo? Como podemos preservar nosso passa-
mática, um aumento de oportunidades artificial- do e preparar o nosso futuro em sociedades com-
mente construídas para viver e experimentar emo- plexas? Tais questões sem respostas são alguns dos
ções livres dos limites do tempo social: desde o tu- dilemas básicos com os quais se confronta a vida
rismo exótico ou experiências de “liberação” do humana em sociedades complexas.
corpo até os paraísos totalitários das seitas neo- A juventude, por causa de suas condições cul-
místicas. A ambivalência desses fenômenos deve ser turais e biológicas, é o grupo social mais diretamen-
sublinhada. Eles são sinais de uma tensão não re- te exposto a estes dilemas, o grupo que os torna
solvida entre os múltiplos tempos da experiência visíveis para a sociedade como um todo.
cotidiana.
A diferenciação do tempo produz alguns pro- Adolescência e tempo
blemas novos. Aumenta, em primeiro lugar, a difi-
culdade em reduzir tempos diferentes para a homo- Adolescência é a idade na vida em que se co-
geneidade de uma medida geral. Mas existe também meça a enfrentar o tempo como uma dimensão sig-
uma acentuação da necessidade de integrar essas nificativa e contraditória da identidade. A adoles-
diferenças, tanto em um nível coletivo, quanto, cência, na qual a infância é deixada para trás e os
acima de tudo, dentro da unidade de uma biogra- primeiros passos são dados em direção à fase adulta,
fia individual e de um “sujeito” da ação dotado de inaugura a juventude e constitui sua fase inicial. Esta
identidade (Melucci, 1996a; Csikzentmihalyi, 1988 elementar observação é suficiente para ilustrar o
e 1991). entrelaçamento de planos temporais e a importân-
Além disso, um tempo diferenciado é cada vez cia da dimensão do tempo nesta fase da vida (Le-
mais um tempo sem uma história, ou melhor, um vinson, 1978; Coleman, 1987; Hopkins, 1983;
tempo de muitas histórias relativamente indepen- Montagnar, 1983; Savin Williams, 1987; Schave,
dentes. Então é também um tempo sem um final 1989). Não há dúvida que, se a experiência do en-
definitivo, o que faz do presente uma medida ines- velhecimento está sempre relacionada com o tem-
timável do significado da experiência de cada um po, é durante a adolescência que essa relação se
de nós. Por último, um tempo múltiplo e descontí- torna consciente e assume conotações emocionais.
nuo indubitavelmente revela seu caráter ‘construí- Pesquisas psicológicas e psico-sociológicas têm tido
do’ de produto cultural. A fábrica industrial já can- uma atenção toda especial durante os últimos anos
celou o ciclo natural de dia e noite. Agora todos os para com a perspectiva temporal do adolescente
outros tempos da natureza estão perdendo sua con- (Tromsdorff et al., 1979; Palmonari, 1979; Nuttin,
sistência. A experiência das estações se dissolve nas 1980; Ricolfi & Sciolla, 1980 e 1990; Offer, 1981
mesas de nossas salas de jantar, onde a comida per- e 1988; Cavalli, 1985; Ricci Bitti et al., 1985; Ana-
de qualquer referência a ciclos sazonais, ou em nos- trlla, 1988; Fabbrini & Melucci, 1991).
sas férias, que nos oferecem um sol tropical ou neve Uma análise em termos de perspectiva tempo-
durante todo o ano. Até o nascimento ou a morte, ral considera o tempo como um horizonte no qual
eventos por excelência do tempo natural estão per- o indivíduo ordena suas escolhas e comportamen-
dendo sua natureza de necessidade biológica, tor- to, construindo um complexo de pontos de referên-
nando-se produtos de intervenção médica e social. cia para suas ações. A maneira como a experiência
A definição de tempo torna-se uma questão do tempo é vivenciada vai depender de fatores cog-
social, um campo cultural e conflitivo no qual está nitivos, emocionais e motivacionais os quais gover-
em jogo o próprio significado da experiência tem- nam o modo como o indivíduo organiza o seu “es-

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Juventude, tempo e movimentos sociais

tar na terra”. Nesse sentido, atitudes relacionadas Tais resultados de pesquisas sugeririam que a
com várias fases temporais podem ser levadas em perspectiva temporal do adolescente constitui um
consideração (ex. satisfação ou frustração, abertu- ponto de observação favorável para o estudo da
ra ou fechamento com respeito ao passado, presente maneira pela qual nossa cultura está organizando
ou futuro); ou a direção que cada pessoa atribui a experiência do tempo. Na sociedade contempo-
para a sua própria experiência do tempo (ex. pre- rânea, de fato, a juventude não é mais somente uma
ferência por uma orientação direcionada para uma condição biológica mas uma definição cultural. In-
ou outras fases temporais); ou o grau de extensão certeza, mobilidade, transitoriedade, abertura para
assumido pelo horizonte temporal para cada indi- mudança todos os atributos tradicionais da adoles-
víduo (ex. perspectiva ampla ou limitada, contínua cência como fase de transição, parecem ter se des-
ou fragmentada). A organização de eventos e sua locado bem além dos limites biológicos para torna-
seqüência, a relação entre eventos externos e inter- rem-se conotações culturais de amplo significado
nos, o grau de investimento emocional em várias que os indivíduos assumem como parte de sua per-
situações — tudo se torna meio de organizar a pró- sonalidade em muitos estágios da vida (Mitterauer,
pria biografia e definir a própria identidade. 1986; Ziehe, 1991). Nesse sentido, a adolescência
A perspectiva temporal do adolescente tornou- parece estender-se acima das definições em termos
se um tema interessante de pesquisa, porque a bio- de idade e começa a coincidir com a suspensão de
grafia dos dia de hoje tornou-se menos previsível, um compromisso estável, com um tipo de aproxima-
e os projetos de vida passaram mais do que nunca ção nômade em relação ao tempo, espaço e cultura.
a depender da escolha autônoma do indivíduo. Nas Estilos de roupas, gêneros musicais, participação em
sociedades do passado, a incerteza quanto ao futuro grupos, funcionam como linguagens temporárias e
podia ser o resultado de eventos aleatórios e in- provisórias com as quais o indivíduo se identifica
controláveis (epidemia, guerra, colapso econômico), e manda sinais de reconhecimento para outros.
mas raramente envolvia a posição de cada um na Na opinião que prevalece nos dias de hoje, ser
vida, a qual era determinada pelo nascimento e se jovem parece significar plenitude como o oposto de
tornava previsível pela história da família e o con- vazio, possibilidades amplas, saturação de presen-
texto social. Para o adolescente moderno, por ou- ça. A vida social é hoje dividida em múltiplas zo-
tro lado, a relativa incerteza da idade é multiplicada nas de experiência, cada qual caracterizada por for-
por outros tipos de incerteza que derivam simples- mas específicas de relacionamento, linguagem e re-
mente dessa ampliação de perspectivas: a disponi- gras. Complexidade e diferenciação parecem abrir
bilidade de possibilidades sociais, a variedade de o campo do possível a tal ponto que a capacidade
cenários nos quais as escolhas podem ser situadas. individual para empreender ações não se mostra à
A pesquisa indica várias tendências. A adoles- altura das potencialidades da situação. Esse exces-
cência é a idade em que a orientação para o futuro so de possibilidades, que nossa cultura engendra,
prevalece e o futuro é percebido como apresentan- amplia o limite do imaginário e incorpora ao hori-
do um maior número de possibilidades. Uma pers- zonte simbólico regiões inteiras de experiência que
pectiva temporal aberta corresponde a uma forte foram previamente determinadas por fatores bio-
orientação para a auto-realização, resistência con- lógicos, físicos ou materiais. Nesse sentido, a expe-
tra qualquer determinação externa dos projetos de riência é cada vez menos uma realidade transmiti-
vida e desejo de uma certa variabilidade e rever- da e cada vez mais uma realidade construída com
sibilidade de escolha. Em comparação com o pas- representações e relacionamentos: menos algo para
sado, a tendência aponta no sentido de uma redu- se “ter” e mais algo para se “fazer”.
ção dos limites da memória e de se considerar o O adolescente percebe os efeitos dessa amplia-
passado como um fator limitativo, acima de tudo. ção de possibilidades da maneira mais direta atra-

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Alberto Melucci

vés de uma expansão dos campos cognitivo e emo- outros, como reconhecimento daquilo que fomos e
cional (tudo pode ser conhecido, tudo pode ser ten- do que podemos nos tornar. Para os adolescentes
tado); a reversibilidade de escolhas e decisões (tudo de hoje a experiência de tempo como possibilida-
se pode mudar); a substituição de constructos sim- de, mas também como limitação, é uma maneira de
bólicos pelo conteúdo material da experiência (tudo salvaguardar a continuidade e a duração; uma ma-
pode ser imaginado). neira de evitar que o tempo seja destruído em uma
O que acontece com a experiência? Ultrapas- seqüência fragmentada de pontos, uma soma de
sada e invadida pelo apelo simbólico da possibili- momentos sem tempo.
dade, ela ameaça se perder em um presente ilimi-
tado, sem raízes, devido à uma memória pobre, com Continuidade através da mudança
pouca esperança para o futuro como todos os pro-
dutos do desencanto. A experiência se dissolve no Está agora claro que a maneira pela qual os
imaginário, mas o teste de realidade, na sua dure- adolescentes constróem sua experiência é mais e
za, produz frustração, tédio e perda de motivação. mais fragmentada. Adolescentes pertencem a uma
Os novos sofrimentos, as novas patologias dos pluralidade de redes e de grupos. Entrar e sair des-
adolescentes, estão relacionadas com o risco de uma sas diferentes formas de participação é mais rápi-
dissolução da perspectiva temporal (Laufer, 1975; do e mais freqüente do que antes e a quantidade de
Copley, 1976; Selvini Palazzoli, 1984; Lawton, 1985; tempo que os adolescentes investem em cada uma
Meredith,1986; Noonan,1989). Presenças como a delas é reduzida. A quantidade de informação que
capacidade de atribuir sentido às próprias ações e eles mandam e recebem está crescendo em um rit-
de povoar o horizonte temporal com conexões entre mo sem precedentes. Os meios de comunicação, o
tempos e planos de experiências diferentes, são frá- ambiente educacional ou de trabalho, relações inter-
geis e pouco sólidas. Exatamente ali onde a abundân- pessoais, lazer e tempo de consumo geram mensa-
cia, a plenitude e capacidade de realização parecem gens para os indivíduos que por sua vez são cha-
reinar, nós nos deparamos com o vazio, a repetição mados a recebê-las e a respondê-las com outras men-
e a perda do senso de realidade. Um tempo de pos- sagens. O passo da mudança, a pluralidade das par-
sibilidades excessivas torna-se possibilidade sem tem- ticipações, a abundância de possibilidades e men-
po, isto é, simplesmente um mero fantasma da dura- sagens oferecidas aos adolescentes contribuem to-
ção, uma chance fantasma. O tempo pode se tornar dos para debilitar os pontos de referência sobre os
um invólucro vazio, uma espera sem fim por Godot. quais a identidade era tradicionalmente construída.
Na experiência dos adolescentes de hoje, a ne- A possibilidade de definir uma biografia contínua
cessidade de testar limites tornou-se uma condição torna-se cada vez mais incerta.
de sobrevivência do sentido. Sem atingir-se o limi- Nesse sentido, o significado do presente não
te não pode haver experiência ou comunicação; sem se encontra no passado, nem em um destino final
a consciência da perda da existência do outro, como da história; o tempo perde sua finalidade linear e a
dimensões que compõem o estar-na-terra, não pode catástrofe (nuclear, ecológica) torna-se uma possi-
haver ação dotada de significado ou possibilidade bilidade. Mas esta des-linearização do tempo reve-
de manter uma relação com outros. la a singularidade da experiência individual. O tem-
Consciência do limite, o cansaço produzido po individual e cada momento dentro dele não se
pelo esforço para ultrapassá-lo, a percepção do que repete nunca. Não somente ele não retorna em um
está faltando — sentido de perda — criam raízes ciclo repetitivo sem fim, mas tampouco será porta-
para que se presencie como algo possível a aceita- dor de outro sentido, outra finalidade senão aque-
ção do presente e o planejamento do futuro: como la que os indivíduos e grupos são capazes de pro-
responsabilidade para consigo mesmo e para com duzir para si mesmos.

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Juventude, tempo e movimentos sociais

Nomadismo e metamorfose parecem consti- definição e o reconhecimento de limites pessoais e


tutir respostas para essa necessidade de continuida- externos é a chave para se mover em qualquer dire-
de através da mudança. A unidade e continuidade ção: através da comunicação com o exterior e con-
da experiência individual não pode ser encontradas formidade com as regras do tempo social ou através
em uma identificação fixa com um modelo, grupo de uma voz interna que fala com cada pessoa em
ou cultura definidos. Deve ao invés disto ser basea- sua linguagem secreta. Somente assim um ciclo de
do na capacidade interior de “mudar a forma” de abertura e fechamento pode ser estabelecido, atra-
redefinir-se a si mesmo repetidas vezes no presen- vés de uma oscilação permanente entre os dois ní-
te, revertendo decisões e escolhas. Isso também sig- veis de experiência. Tais passagens marcam a evo-
nifica acalentar o presente como experiência única, lução dinâmica, as metamorfoses da vida pessoal.
que não pode ser reproduzida, e no interior da qual Aprendendo como empreender estas passagens
cada um se realiza. — um problema de escolha, incerteza e risco — os
adolescentes reativam no resto da sociedade a me-
Desafiando a definição dominante de tempo mória da experiência humana dos limites e da liber-
dade. Eles vivem para todos como receptores sen-
Para lidar com tantas flutuações e metamor- síveis e perceptivos da cultura contemporânea, os
foses, os adolescentes sentem que a identidade deve dilemas do tempo em uma sociedade complexa: o
ser enraizada no presente. Eles devem ser capazes tempo como medida de mudança para nossas so-
de abrir e fechar seus canais de comunicação com ciedades que necessitam prever e controlar seu de-
o mundo exterior para manter vivos seus relacio- senvolvimento; o tempo como definição pontual da
namentos, sem serem engolidos por uma vasta quan- identidade indivídual e coletiva; o tempo como uma
tidade de signos. Ainda mais, para abraçar um cam- flecha linear ou como campo de experiência rever-
po amplo de experiências que não pode ser confi- sível e multidirecional. Desafiando a definição do-
nado dentro dos rígidos limites de um pensamento minante do tempo, os adolescentes anunciam para
racional, eles precisam de novas capacidades para o resto da sociedade que outras dimensões da ex-
contatos imediatos e intuitivos com a realidade. periência humana são possíveis. E fazendo isto, eles
Essas exigências alteram os limites entre dentro e apelam à sociedade adulta para a sua responsabili-
fora e apontam para a necessidade de uma maior dade: a de reconhecer o tempo como uma constru-
consciência de si mesmo e responsabilidade para um ção social e de tornar visível o poder social exerci-
contato mais estreito com a experiência íntima de do sobre o tempo.
cada um. Tornar o poder visível é a mais importante
Novamente, como a cadeia de possibilidades tarefa na ordem dos conflitos em nossa sociedade.
torna-se muito ampla comparada com oportunida- Revertendo a definição adulta do tempo, os adoles-
des atuais de ação e experiência, o questionamen- centes simbolicamente contestam as variáveis do-
to sobre limites torna-se um problema fundamen- minantes de organização do tempo na sociedade.
tal para os adolescentes de hoje. Considerando o Eles revelam o poder escondido atrás da neutrali-
declínio dos ritos de passagem que outrora marca- dade técnica da regulação temporal da sociedade.
vam os limites entre infância e vida adulta (Van
Gennep, 1981; Kett, 1977) e sendo exposto a um Ação comunicativa
novo relacionamento com os adultos (McCormack,
1985; Herbert, 1987) eles próprios expostos a uma O antagonismo dos movimentos juvenis é emi-
pressão crescente da mudança, a juventude contem- nentemente comunicativo do ponto de vista de sua
porânea tem que encontrar novos caminhos para natureza (Melucci, 1989, 1996b). Nos últimos trin-
vivenciar a experiência fundamental dos limites. A ta anos a juventude tem sido um dos atores centrais

Revista Brasileira de Educação 11


Alberto Melucci

em diferentes ondas de mobilização coletiva: refi- c) Representação: aqui a mensagem toma a


ro-me a formas de ação inteiramente compostas de forma de uma reprodução simbólica que separa os
jovens, assim como à participação de pessoas jovens códigos de seus conteúdos os quais habitualmente
em mobilizações que também envolveram outras os mascaram. Ela pode se combinar com as duas
categorias sociais. Começando pelo movimento estu- formas acima (movimentos contemporâneos de ju-
dantil dos anos 60 é possível traçar a participação ventude fazem grande uso das formas de represen-
juvenil em movimentos sociais através das formas tação como o teatro, o vídeo, a mídia).
‘sub-culturais’ de ação coletiva nos anos 70 como Nestes três casos, os movimentos funcionam
os punks, os movimentos de ocupação de imóveis, para o resto da sociedade como um tipo específi-
os centros sociais juvenis em diferentes países euro- co de veículo, cuja função principal é revelar o que
peus, através do papel central da juventude nas mo- um sistema não expressa por si mesmo: o âmago
bilizações pacifistas e ambientais dos anos 80, atra- do silêncio, da violência, do poder arbitrário que
vés de ondas curtas mas intensas de mobilização de os códigos dominantes sempre pressupõem. Mo-
estudantes secundaristas dos anos 80 e começo dos vimentos são meios que se expressam através de
90 (na França, Espanha e Itália, por exemplo) e, fi- ações. Não é que eles não falem palavras, que eles
nalmente, através das mobilizações cívicas nos anos não usem slogans ou mandem mensagens. Mas sua
90 como o anti-racismo no norte da Europa, França função enquanto intermediários entre os dilemas
e Alemanha ou o movimento da anti-máfia na Itá- do sistema e a vida diária das pessoas manifesta-
lia. Todas estas formas de ação envolvem pessoas se principalmente no que fazem: sua mensagem
jovens como atores centrais; mesmo se apresentam principal está no fato de existirem e agirem. Isto
diferenças históricas e geográficas com o passar das também significa afirmar que a solução para o
décadas, elas dividem características comuns que problema relativo à estrutura do poder não é a
indicam um padrão emergente de movimentos so- única possível e mais do que isso, oculta os inte-
ciais em sociedades complexas, pós-modernas. Nes- resses específicos de um núcleo de poder arbitrá-
ses sistemas cada vez mais baseados em informação, rio e opressor. Pelo que fazem e a maneira como
a ação coletiva particularmente aquela que envol- fazem, os movimentos anunciam que outros cami-
ve os jovens oferece outros códigos simbólicos ao nhos estão abertos, que existe sempre outra saída
resto da sociedade — códigos que subvertem a ló- para o dilema, que as necessidades dos indivíduos
gica dos códigos dominantes. É possível identificar ou grupos não podem ser reduzidas à definição
três modelos de ação comunicativa: dada pelo poder. A ação dos movimentos como
a) Profecia: portadora da mensagem de que o símbolo e como comunicação faz implodir a dis-
possível já é real na experiência direta dos que o pro- tinção entre o significado instrumental e expressi-
clamam. A batalha pela mudança já está encarnada vo da ação, posto que, nos movimentos contempo-
na vida e estrutura do grupo. A profecia é um exem- râneos, os resultados da ação e a experiência indi-
plo notável da contradição a que me referi. Profe- vídual de novos códigos tendem a coincidir. E, tam-
tas sempre falam em nome de terceiros, mas não po- bém, porque a ação, em lugar de produzir resulta-
dem deixar de apresentar-se a si mesmos como mo- dos calculáveis, muda as regras da comunicação.
delo da mensagem que proclamam. Nesse sentido,
como os movimentos juvenis se batem para subver- Novas redes
ter os códigos, eles difundem culturas e estilos de vida
que penetram no mercado ou são institucionalizados. Movimentos juvenis tomam a forma de uma
b) Paradoxo: aqui a autoridade do código do- rede de diferentes grupos, dispersos, fragmentados,
minante revela-se através do seu exagero ou da sua imersos na vida diária. Eles são um laboratório no
inversão. qual novos modelos culturais, formas de relaciona-

12 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Juventude, tempo e movimentos sociais

mento, pontos de vista alternativos são testados e teza existem, mas eles são esporádicos e até certo
colocados em prática. ponto substituíveis. Tais formas de ação exercem
Estas redes emergem somente de modo espo- efeitos sobre instituições, modernizando seu pensa-
rádico em resposta a problemas específicos. Trata- mento e organização, formando as novas elites. Mas
se de uma mudança morfológica que nos força a ao mesmo tempo, suscitam questões para as quais
redefinir as categorias analíticas de atores coletivos. não há espaço. Enquanto nós aplicamos e executamos
Se os conflitos se expressam em termos de recursos o que um poder anônimo decretou, os jovens pergun-
simbólicos, os atores considerados não podem ser tam para onde estamos indo e por quê. Sua voz é
estáveis. Primeiramente, porque os meios através ouvida com dificuldade porque fala pelo particular.
dos quais se criam e distribuem na sociedade pos- A natureza precária da juventude coloca para
sibilidades de identificação estão continuamente a sociedade a questão do tempo. A juventude dei-
mudando e operando em campos variados. Segun- xa de ser uma condição biológica e se torna uma
do, os atores vivem as exigências contraditórias do definição simbólica. As pessoas não são jovens ape-
sistema como fonte de conflitos, não o fazem du- nas pela idade, mas porque assumem culturalmen-
rante a vida inteira e não estão permanentemente te a característica juvenil através da mudança e da
enraizados em uma categoria social única. transitoriedade. Revela-se pelo modelo da condição
A hipótese de conflitos sistêmicos antagônicos juvenil um apelo mais geral: o direito de fazer re-
pode se manter se preservamos a idéia de um cam- troceder o relógio da vida, tornando provisórias
po sistêmico ou de um espaço no qual os atores decisões profissionais e existenciais, para dispor de
podem variar. O campo é definido pelos problemas um tempo que não se pode medir somente em ter-
e diferentes os atores que o ocupam expõem para mos de objetivos instrumentais.
toda a sociedade questões relacionadas com o sis- Se compararmos agora informações relativas
tema na sua totalidade e não só com um grupo ou a grupos de jovens em diferentes países europeus e
uma categoria social. Evidentemente, as formas em- as diferentes ondas de mobilização mencionadas
píricas de mobilização contêm, como vimos, nume- acima não é difícil encontrar elementos deste siste-
rosas dimensões. Mas através de certos aspectos da ma de ação. Os movimentos de jovens dividem-se
ação a juventude sinaliza um problema relaciona- entre o radicalismo político e a violência de alguns
do não somente com as suas próprias condições de grupos extremistas (às vezes grupos de direita, às
vida mas também com os meios de produção e dis- vezes revolucionários, anarquistas, etc) a expressi-
tribuição de recursos de significado. Os jovens se va marginalidade da contra-cultura, a tentativa de
mobilizam para retomar o controle sobre suas pró- controlar uma parte das organizações políticas e de
prias ações, exigindo o direito de definirem a si mes- transformar grupos juvenis em agências para polí-
mos contra aos critérios de identificação impostos ticas juvenis e uma orientação conflituosa, que to-
de fora, contra sistemas de regulação que penetram ma a forma de um desafio cultural aos códigos do-
na área da “natureza interna”. minantes. Em um ambiente que favorece a “pobre-
A maneira pela qual o conflito se manifesta, za” de recursos internos (desemprego, desintegra-
no entanto, não é a da ação “efetiva”. O desafio ção social, imigração) este último componente não
vem através da inversão de códigos culturais e é por pode ser bem sucedido na combinação com outros
isso eminentemente “formal“. Em sistemas onde os e o “movimento” juvenil se divide. Evapora-se na
signos tornam-se intercambiáveis o poder reside nos pura exibição de signos (variedade de tribos metro-
códigos, nos ordenadores dos fluxos de informação. politanas) produz a profissionalização pelo mercado
A ação coletiva antagonista é uma “forma” que, de recursos culturais inovadores e, de forma ainda
pela sua própria existência, pela maneira como se mais trágica, declina na marginalidade das drogas,
estrutura, envia sua mensagem. Objetivos com cer- da doença mental, do desabrigo. Quando a demo-

Revista Brasileira de Educação 13


Alberto Melucci

cracia for capaz de garantir um espaço para que as __________, (1996b). Challenging codes: collective action
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14 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O jovem como modelo cultural

Angelina Peralva
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo
Centre d’Analyse et d’Intervention Sociologiques, École des Hautes Études en Sciences Sociales

Da cristalização histórica das idades da vida séculos, a educação foi assegurada pelo aprendiza-
do graças à coexistência da criança ou do jovem e
Nós sabemos hoje que as idades da vida, em- dos adultos. Ele aprendia as coisas que era neces-
bora ancoradas no desenvolvimento bio-psíquico sário saber, ajudando os adultos a fazê-las.”
dos indivíduos, não são fenômeno puramente na- A noção de aprendizado, sublinhada no tex-
tural, mas social e histórico, datado, portanto, e in- to original que acabo de citar, opõe-se à de sociali-
separável do lento processo de constituição da mo- zação, do mesmo modo como o caráter inespecífico
dernidade, do ponto de vista do que ela implicou da relação entre adultos e crianças na Idade Média
em termos de ação voluntária sobre os costumes e (quase que reduzida à sua dimensão biológica, fun-
os comportamentos, ou seja naquilo que ela teve de ção da especificidade biológica da fragilidade infan-
intrinsecamente educativo. til) se opõe ao caráter voluntário da ação socia-
O trabalho de Philippe Ariès (1960) constitui lizadora característica da modernidade, a qual ins-
provavelmente o marco mais importante no senti- pirou toda uma série de trabalhos capitais sobre a
do dessa tomada de consciência. Ao afirmar o ca- ordem moderna.
ráter tardio da emergência do sentimento de infân- Pouco importa que a consciência da especifi-
cia e sua natureza eminentemente moderna, ele dis- cidade da infância e da juventude, como objetos de
tingue também (Ariès, 1973, prefácio, 6) o tipo par- uma ação educativa, já estivessem presentes na an-
ticular de vínculo que liga adultos e crianças nas eras tigüidade clássica, conforme relembram François
moderna e pré-moderna. “A transmissão de valo- Dubet e Danilo Martuccelli (1996) ao comparar o
res e saberes, e de forma mais geral a socialização ideal educativo da III República na França a uma
da criança não eram (...) asseguradas pela família, paidéia funcionalista. A perspectiva de Ariès não é
nem controladas por ela. A criança se afastava ra- evolucionista. Ele sabe e afirma que a especificida-
pidamente de seus pais, e pode-se dizer que, durante de da juventude foi reconhecida em outros tempos

Revista Brasileira de Educação 15


Angelina Peralva

e em outras sociedades, anteriores à era medieval. Se a difusão é lenta e progressiva, se as cama-


Mas ao opor esses dois momentos da história oci- das populares durante muito tempo escapam às in-
dental, do ponto de vista da particularidade de suas junções da racionalidade moderna, se esta se expres-
atitudes com respeito à infância e à juventude, re- sa durante muito tempo apenas através de trans-
vela também a particularidade do vínculo social formações imprecisas e fragmentárias no plano da
através do qual a juventude aparece como configu- mentalidade das elites, é também porque esse pro-
ração própria da experiência moderna. blema durante muito tempo escapa à esfera da ação
Textos básicos do pensamento contemporâ- do Estado. Nesse sentido, o período áureo da ex-
neo, alguns anteriores, outros posteriores a Ariès, periência moderna é sem dúvida a era industrial. É
podem ser relidos à luz dessa perspectiva aberta por a partir do momento em que o Estado toma a si,
ele. Em seu estudo sobre a civilização dos costumes, de forma voluntária e sistemática, múltiplas dimen-
publicado pela primeira vez em 1939, Norbert Elias sões da proteção do indivíduo, entre elas e sobre-
(1973, 78, 70) remete a um período situado entre tudo a educação, é quando a escola se torna, no
1525 e 1550 o aparecimento do termo “civilidade” século XIX, instituição definitivamente obrigatória
em sua acepção moderna e atribui sua difusão ao e universal, escapando à iniciativa aleatória e inter-
imenso sucesso de público encontrado por um pe- mitente da sociedade civil (Furet et Ozouf, 1977),
queno tratado, De civilitate morum puerilium, pu- que a racionalidade moderna se torna também im-
blicado pela primeira vez em 1530, e cujo autor é perativo universal. Nesse momento, mais do que
Erasmo de Rotterdam: tratado que, como seu nome nunca, a cristalização social das idades da vida se
indica, tem por objeto a educação dos jovens. Sa- especifica como elemento da consciência moderna1 .
bemos o quanto, para Elias, a civilização dos cos- Ela emerge, diz Ariès (1973), com a escolarização,
tumes é um elemento crucial constitutivo de uma que supõe a separação entre seres adultos e seres em
ordem moderna pacificada. formação, do mesmo modo como o aprendizado
Também para Foucault educação e ordem são supunha, ao contrário, a mistura e a indiferenciação
faces complementares do dispositivo intrínseco à ra- dos grupos etários.
cionalidade moderna. As técnicas disciplinares, que Os processos através dos quais ocorre a cris-
a escola condensa (1975), situam-se no âmago dos talização social das idades da vida são múltiplos e
processos sociais constitutivos de um aparelho de convergentes. Supõem, primeiro, transformações
poder renovado. Também a consciência da infân- essenciais no âmbito da família e em primeiro lu-
cia e da puberdade são inseparáveis da consciência gar da família burguesa, com uma mais nítida se-
da sexualidade infantil e juvenil (sexualidades des- paração entre o espaço familiar e o mundo exterior,
viantes) e da constituição de um dispositivo cientí- e uma redefinição do lugar da criança no interior
fico — dispositivo de saber — que pretende produ- da família. A criança se torna objeto de atenção
zir efeitos de ordenamento sobre os costumes e os particular e alvo de um projeto educativo individu-
comportamentos (1976). alizado, que de certo modo qualifica o lugar que ela
Interessa menos aqui retraçar as diferentes eta- virá posteriormente a ocupar na sociedade adulta.
pas dessa história (que é parte integrante do saber Escolarização e sentimento familiar se desenvolvem
contemporâneo sobre a ordem moderna) que relem-
brar que a difusão desses novos mecanismos de orde-
namento do mundo ocorre, como nos mostram to-
1 Uma representação natural das idades da vida, como
dos esses autores, de cima para baixo, da aristocra-
parte de uma cosmogonia, precede essa representação propria-
cia e da burguesia em direção às classes populares, mente social e é discutida por Ariès (1973) no primeiro tópi-
porque se vincula também, indissociavelmente, aos co do capítulo dedicado à análise da emergência do senti-
processos históricos de construção da democracia. mento de infância, justamente intitulado “as idades da vida”.

16 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O jovem como modelo cultural

como dimensões complementares e contraditórias carga. Esses aprendizes de um gênero novo, sem
da experiência individual: por um lado, enviar a tradição de ofício, são freqüentemente apresenta-
criança ao colégio traduz a atenção particular de dos na literatura patronal como ‘indóceis, indiscre-
que ela passa a ser objeto no seio da família; por tos, mentirosos, grosseiros e algumas vezes insolen-
outro, essa separação necessária é contraditória com tes’, ao passo que seus antecessores eram ‘exatos,
o sentimento de família nascente e com a nova im- assíduos, cuidadosos e habilidosos em seu ofício’.”
portância assumida pelos vínculos afetivos na es- Por outro lado, as formas de inserção da crian-
truturação das relações familiares. ça no mundo do trabalho se degradam. Destacan-
Em segundo lugar, a cristalização social das do sua presença maciça na manufatura e na indús-
idades supõe uma progressiva exclusão da criança tria, Marie-France Morel explica isso como o resul-
do mundo do trabalho. O aprendizado, forma ge- tado da miséria das famílias populares urbanas, que
ral de iniciação ao trabalho que selava precoce- rapidamente tornou indispensável a contribuição do
mente o fim da infância e marcava a entrada na magro salário infantil (um terço a um quarto do
vida adulta, era praticado, diz Ariès (1973, 255), salário adulto). Desde então a regulamentação e a
em todas as camadas da população. À medida que limitação do trabalho das crianças transformam-se
a escolarização se difunde, ela tende a subtrair seg- em objetivo comum do discurso higienista das eli-
mentos progressivamente mais amplos da popula- tes (Perrot, 1977) e do movimento operário nascen-
ção infantil às injunções do trabalho, retardando te. Na França, a lei de 1841 limita a oito horas o
a entrada na idade adulta. Desse ponto de vista trabalho das crianças entre 8 e 12 anos, a 12 horas
também, a experiência das sociedades industriais o dos adolescentes entre 12 e 16 anos. Ao mesmo
no século XIX introduz elementos novos que ace- tempo, a lei obriga os patrões a oferecerem educa-
leram essas transformações históricas, redimensi- ção a seus jovens trabalhadores.
onando-as, mas sobretudo redefinem o processo Mas é a Terceira República que, ao fim do
social de cristalização das idades, institucionali- século XIX, consolida o processo de escolarização
zando as diferentes fases da vida por efeito da ação das crianças das classes populares, tornando-as
do Estado. objeto de uma ação socializadora sistemática por
Um desses elementos é a generalização do tra- parte do Estado. A escolarização avança contra o
balho assalariado na manufatura e na indústria nas- trabalho, contribuindo com sua lógica própria pa-
cente, que altera de maneira importante a organi- ra a modulação social das idades da vida. Mais do
zação familiar e os modos de vida no seio das ca- que isso, ela termina por se tornar, ao longo do
madas populares. Primeiro, as modalidades tradi- tempo, e sobretudo a partir do segundo pós-guer-
cionais de aprendizado se restringem e o aprendi- ra, o verdadeiro “suporte” da família contempo-
zado de modo geral se decompõe. Marie-France rânea (Singly, 1993), que passa cada vez mais a de-
Morel (1977, 21-22) observa que, em Paris, durante pender do Estado enquanto mediador dos dispo-
o Segundo Império, só os ofícios de maior prestí- sitivos que lhe asseguram a reprodução social.
gio e melhor remunerados continuam a praticá-lo, Quanto mais importante é a presença do Estado
da mesma forma que no passado. “Na maior par- na esfera educativa, o que é o caso na experiência
te dos outros ofícios (a tipografia por exemplo), o francesa, mais essa assertiva é verdadeira. Nesse
aprendizado se faz sem contrato e na prática. As sentido, a definição da infância e da juventude en-
crianças percebem uma remuneração — coisa que quanto fases particulares da vida torna-se não ape-
os pais apreciam — mas não recebem uma verda- nas uma construção cultural, mas uma categoria
deira formação profissional; a criança só efetua as administrativa — vale dizer jurídica e institucional,
tarefas subalternas que um aprendiz outrora teria ainda que abrigando fortes diferenças sociais no
considerado indignas dele: é chamada burrinho de seu interior (Touraine, 1993).

Revista Brasileira de Educação 17


Angelina Peralva

Fases da vida e ordem moderna criança vai contra o mundo: a criança precisa ser
particularmente protegida e cuidada para evitar que
Uma vez dotadas de especificidade própria, as o mundo possa destruí-la. Mas o mundo também
fases da vida não se tornam apenas autônomas, umas tem necessidade de proteção, de forma a evitar que
em relação às outras. Permanecem interdependentes ele seja devastado e destruído pela onda de recém-
e mesmo hierarquizadas. Tal hierarquia constrói- chegados que o invade a cada nova geração.” (Grifo
se sobre a base de uma tensão, intrínseca à moder- meu; tradução minha a partir da edição francesa.)
nidade, entre uma orientação definida pela lógica A especificidade portanto da educação no mun-
da modernização (portanto, orientação para o fu- do moderno é que ela é e deve ser intrinsecamente
turo, através da afirmação conquistadora da reno- conservadora. Concepção que está na origem de
vação enquanto valor) e o fundamento normativo uma noção mágica da sociologia, senão da própria
da ordem moderna, que afirma, ao contrário, a pri- sociologia, que inspirará toda uma linhagem de so-
mazia do passado enquanto elemento de significa- ciólogos — e muito especialmente os sociólogos da
ção do futuro. Cabe ao passado, isto é à ordem so- juventude — a noção, é claro, de socialização. Co-
cial já constituída, domesticar, sem destruir, os ele- mo Hannah Arendt, embora talvez de forma mais
mentos de transformação e modernização ineren- radical e mais dura, Durkheim (s.d., 41) dirá da
tes à vida moderna. educação que ela é “a ação exercida, pelas gerações
Hannah Arendt dedicou alguns dos seus mais adultas, sobre as gerações que não se encontram
belos ensaios à análise desse dilema. Já no prefácio ainda preparadas para a vida social.” (Grifado no
de Between Past and Future, na verdade o primei- original.) O velho se impõe sobre o novo, o passa-
ro ensaio da coletânea, ela toma partido e formula do informa o futuro e essa definição cultural da
sua inquietação: “O testamento, que diz ao herdeiro ordem moderna define também as relações entre
aquilo que será legitimamente seu, atribui um pas- adultos e jovens, definindo o lugar no mundo de
sado ao futuro. Sem testamento ou, para elucidar cada idade da vida.
a metáfora, sem tradição — que escolhe e nomeia, Não por acaso, parte considerável da sociolo-
que transmite e conserva, que indica onde se encon- gia da juventude constituir-se-á então como uma
tram os tesouros e qual é seu valor — tudo indica sociologia do desvio: jovem é aquilo ou aquele que
que nenhuma continuidade no tempo pode ser defi- se integra mal, que resiste à ação socializadora, que
nida e conseqüentemente não é possível existir, hu- se desvia em relação a um certo padrão normativo.
manamente falando, nem passado nem futuro, mas Se as formas do desvio variam, em função de níveis
tão somente o devir eterno do mundo e dentro dele distintos de estratificação social e cultural, o des-
o ciclo biológico dos seres vivos.” (1972, 14) vio enquanto tal, ainda que não sempre em suas
Essa perspectiva define diretamente para ela o modalidades extremas, é inerente à experiência ju-
sentido do labor educativo, explicitado nesta pas- venil, conforme propôs David Matza (1961), em
sagem extraordinária de A crise da educação(1972, sua análise das tradições ocultas da juventude. As-
238-239): “com a concepção e o nascimento, os pais sim, embora a tradição boêmia, o radicalismo es-
não somente deram a vida a seus filhos; eles ao mes- tudantil e a tradição delinqüente incidissem sobre
mo tempo os introduziram em um mundo. Ao edu- campos diferentes da prática social, as três, confor-
cá-los, eles assumem a responsabilidade pela vida me Matza (1961:106), tinham forte apelo entre a
e pelo desenvolvimento da criança, mas também juventude e eram “especificamente antiburguesas”,
pela continuidade do mundo. Essas duas responsa- ainda que de maneiras diversas. “O delinqüente, por
bilidades não coincidem de modo algum e podem exemplo, não denuncia os dispositvos da proprie-
mesmo entrar em conflito. Em um certo sentido, dade burguesa, mas ele os viola. Ele rejeita os sen-
essa responsabilidade pelo desenvolvimento da timentos burgueses de método e rotina, particular-

18 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O jovem como modelo cultural

mente quando eles se manifestam no interior do teracionismo tenha renovado profundamente as


sistema escolar. A atitude boêmia com relação aos formas de perceber o desvio, sobretudo deslocan-
dispositivos da propriedade burguesa é tipicamen- do uma problemática até então definida em termos
te de indiferença, embora horrorizada com a dimen- motivacionais para uma outra, definida em termos
são mercantil comumente associada a esses dispo- de interação, ele não rompe com a estrutura bási-
sitivos. (...)Particularmente nas variedades do mar- ca do raciocínio funcionalista, definida pela oposi-
xismo revolucionário, que representa o mais impor- ção entre norma e desvio. O ator goffmaniano é
tante exemplo do radicalismo moderno, o foco pri- extremamente convencional e para Becker (1985)
mário do ataque radical foi o sistema capitalista de as próprias normas são produzidas por empresários
dominação política e econômica e o papel imperi- da moral, num contexto definido em termos de in-
alista alegadamente desempenhado por tais sistemas terações. Nessa perspectiva, se o jovem não cons-
nos assuntos internacionais. (...) Nesse sentido, ve- titui uma categoria exclusiva dos desviantes, cons-
mos que cada tradição subterrânea foi hostil à or- titui com certeza uma categoria importante, pode-
dem burguesa, mas cada uma seguiu uma linha de se dizer mesmo central, nas representações sociais
ataque algo diferente.” (Matza, 1961, 106) do desvio.
Embora a contribuição do funcionalismo, so- Assim, o temor suscitado pelo jovem, o senti-
bretudo norte-americano, para a compreensão das mento de insegurança a ele freqüentemente associ-
práticas desviantes da juventude, através de um nú- ado no imaginário adulto, constituem a outra face
mero considerável de estudos empíricos, seja de im- dessa moeda. Já não se trata aí do jovem cujo des-
portância inegável, é difícil também não reconhe- vio é necessário prevenir ou mesmo punir, mas da-
cer o aspecto quase caricatural de uma sociologia quele que ameaça o adulto indefeso, encarnando
para a qual valores e arcabouço normativo da or- tudo aquilo que, em sua vida, este já não consegue
dem social constituem, não categorias de análise, controlar. Gérard Mauger (1991) dirá, nessa pers-
mas o a priori, a partir do qual a análise será de- pectiva, que o sentimento de insegurança inspira-
senvolvida. Em artigo anterior, também muito co- do pelos jovens não pode ser reduzido a um efeito
nhecido, o próprio David Matza, juntamente com mecânico do crescimento da delinqüência juvenil,
Gresham Sykes (1957), se interroga sobre as técnicas porque lança raízes mais amplamente no conjunto
empregadas pelos jovens para neutralizar o inevi- de representações sociais que cada sociedade e cada
tável sentimento de culpabilidade que experimenta- época constróem sobre a sua própria juventude.
riam ao transgredir valores convencionais. A ordem Tampouco os recortes classistas fogem a essa
social é, simultaneamente, uma ordem moral e nor- oposição estrutural de tipo intergeracional. Quer se
mativa e o desvio, fato excepcional e objeto a ser trate de uma dominação de classe travestida atra-
explicado — mas também fato inscrito no interior vés de categorias administrativas e da ação do Es-
de uma relação intergeracional. Aliás, Solomon Ko- tado, como quer Chamboredon (1971), para quem
brin (1951) registra, observação importante, que a os atores institucionais comportam-se de maneira
delinqüência propriamente juvenil inexiste em áreas muito mais flexível e laxista quando se trata de pu-
fortemente controladas por uma criminalidade adul- nir o desvio em jovens originários de classes médi-
ta estável, de tipo profissional e com capacidade de as ou abastadas do que quando se trata de jovens
integração do jovem nas práticas criminosas. Embo- oriundos das classes populares, quer se trate de uma
ra a delinqüência do jovem esteja presente, ela perde socialização de classe que as transformações histó-
nesse contexto sua dimensão juvenil estrito senso. ricas da sociedade, e particularmente o esgotamento
Vale dizer, de passagem, que os temas da or- da ordem industrial inviabilizaram (Dubet, 1987),
dem e da normatividade estão longe de ser um pro- quer se trate dos prolongamentos dessa temática tal
blema exclusivo do funcionalismo. E, embora o in- como se manifesta na discussão sobre as subculturas

Revista Brasileira de Educação 19


Angelina Peralva

juvenis, sempre subculturas de classe, o binômio Des-ordem na representação


ordem social/socialização permanece inteiro en- social do ciclo da vida
quanto categoria interpretativa central. Significati-
vamente a juventude da greve historiada por Mi- Essa estrutura de oposições significativas que
chelle Perrot (1984) refere-se ao mesmo tempo ao deu abrigo a uma sociologia da juventude desapa-
caráter violento das greves protagonizadas por jo- rece ou se dissolve, no bojo da aceleração das trans-
vens no século XIX, no bojo de um movimento ope- formações contemporâneas e hoje só se mantém na
rário nascente, e à juventude dessa forma de luta, ótica da crise ou de uma reação conservadora. Foi,
enquanto tal. para Mead (1979), a aceleração, justamente, des-
A ruptura com uma problemática fortemente sas transformações que constituiu um fosso entre
dominada pelos temas da ordem e do desvio, cris- as gerações e deu-lhes a brusca consciência de suas
talizou-se em torno da idéia de geração. Nos termos identidades geracionais, alterando as relações entre
em que foi originalmente formulada por Mannheim elas. Como para Hannah Arendt (mas também co-
(1990), ela havia significado uma valorização do mo para Tocqueville que Hannah Arendt evoca), o
novo na área da sociologia do conhecimento. Re- passado não mais iluminando o futuro, a consciên-
nasce nos anos 60, em meio aos debates sobre o cia “caminha nas trevas”: “enquanto os adultos
engajamento político da juventude. Culture and pensarem que, como seus pais e os senhores de ou-
Commitment, de Margaret Mead (1979), tinha co- trora, eles podem proceder por introspecção, invo-
mo subtítulo a Study of the Generation Gap. São cando sua própria juventude para compreender a
duas faces do mesmo problema: é o engajamento juventude atual, eles estarão perdidos”. (Mead,
político dos jovens que revela o fosso entre as ge- 1979, 93)
rações. Esse engajamento público maciço a que se A consciência da identidade geracional deriva
assiste então nos mais diferentes países tem, diz portanto de uma tensão entre duas ordens de sig-
Mead, um único elemento comum: o fato de ser nificados expressos por gerações diferentes e é tanto
uma expressão política juvenil. A noção de geração mais forte quanto mais forte a própria tensão. Se a
estará, pelos mesmos motivos, no centro da análi- tensão se dissolve, ou por mudança excessivamen-
se empreendida por Marialice Foracchi (1964) so- te lenta, ou por mudança excessivamente rápida, já
bre o papel do estudante na transformação da so- não há também possibilidade de cristalização de
ciedade brasileira. A juventude não é apenas vigia- identidades geracionais diferenciadas. É o que pa-
da e desviante: sua marginalidade inova e transfor- rece estar ocorrendo agora: o prosseguimento em
ma (Perrot, 1986). ritmo acelerado das mesmas transformações históri-
É preciso, não obstante, reconhecer que os fun- cas, que para Mead constituíram o fosso entre as ge-
damentos da sociologia da juventude estão original- rações, impossibilita hoje paradoxalmente a emer-
mente ligados a uma representação da ordem social, gência de uma consciência geracional.
e do lugar dos grupos etários e de suas responsabi- Tal questão, de resto, já havia sido considerada
lidades respectivas na preservação dessa ordem, na por Mannheim (1990, 66-67). “Temos”, dizia ele,
sua observância, na ruptura com relação a ela, ou “a prova contrária de que a aceleração da dinâmi-
na sua transformação. Quer o passado imprima ao ca social é a causa da entrada em atividade da po-
futuro o seu significado, quer o futuro se imponha tencialidade de criação de novos impulsos de gera-
ao passado como perspectiva de renovação. ção, no fato de que comunidades profundamente
estáveis ou que se transformam pelo menos muito
lentamente — como o mundo camponês — não co-
nhecem o fenômeno das unidades de geração que
se destacam, alimentadas por enteléquias comple-

20 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O jovem como modelo cultural

tamente novas, porque as novas gerações crescem Marie Guillemard (1995, 177): “Estamos assistin-
em meio a transformações contínuas de gradação do a um remanejamento profundo da transição da
invisível. (...) Portanto, quanto mais o ritmo da di- atividade para a aposentadoria, que parece anun-
nâmica sócio-intelectual se acelera, maiores são as ciar uma desinstitucionalização do modelo do ciclo
chances de que situações de geração determinadas de vida ternário. Este último ordena o percurso etá-
reajam às mudanças com sua própria ‘enteléquia’ rio em três tempos sucessivos com funções bem dis-
a partir de sua nova situação de geração. Por ou- tintas: a juventude se forma, a idade adulta traba-
tro lado, um ritmo excessivamente rápido pode con- lha e a velhice tem direito ao repouso.”
duzir a um recobrimento dos germes das enteléquias Partindo da constatação da queda brutal dos
das gerações uns pelos outros. Nós, contemporâ- índices de atividade na faixa de 55 a 64 anos na
neos, podemos talvez perceber, graças a uma obser- maioria dos países desenvolvidos, com exceção da
vação mais atenta, que faixas etárias diferentes se Suécia e do Japão, Guillemard (1995, 179) consta-
seguem, exatamente escalonadas, e coexistem em ta que isso acarretou uma modificação na arquite-
sua maneira de reagir, mas sem conseguir alcançar tura dos dispositivos institucionais que regulam a
a formação de novas enteléquias de geração e princí- saída definitiva da atividade econômica. “O modelo
pios estruturadores correspondentes.” (Grifo meu.) tradicional de saída definitiva da atividade, que im-
Assim, a cristalização geracional se dissolve plicava simultaneamente um ingresso no sistema de
pela dissolução da oposição entre o passado e o aposentadoria, tornou-se mesmo claramente mino-
futuro. O futuro se torna presente e absorve o pas- ritário para três países: a França, a Alemanha, os
sado. O tempo linear aparentemente se esgota, ce- Países Baixos.” Em 1988, na França, somente 26,5%
dendo lugar a um tempo funcionalmente diferen- dos ativos passavam diretamente da atividade à apo-
ciado, conforme sugerem alguns autores, inclusive sentadoria: 35% vinham do sistema de pré-aposen-
Alberto Melucci em artigo publicado neste núme- tadoria e 20% do seguro desemprego. Na Alema-
ro. Importantes mudanças sociais e culturais inci- nha, também a passagem direta à aposentadoria
dem sobre as representações relativas à especifici- tornou-se minoritária: entre 1980 e 1984, metade
dade das fases do ciclo vital, alterando-as profun- dos que se aposentavam vinham de um regime de
damente. As transformações nas relações de traba- pensão por invalidez. Além disso, os próprios cri-
lho e o prolongamento da escolarização são prova- térios de atribuições de pensões por invalidez foram
velmente as mais importantes. modificados para fazer face às novas injunções de
A incidência da transformação das relações de funcionalidade do trabalhador assalariado em re-
trabalho sobre a representação social do ciclo da lação ao mercado de trabalho, contribuindo para
vida é naturalmente mais visível ali onde a ação a multiplicação e a diversificação das modalidades
sistemática do Estado mais fortemente contribuiu possíveis de saída precoce do mercado de trabalho,
para institucionalizá-las, o que é o caso na experiên- por outras vias que não a da aposentadoria.
cia das social-democracias européias. Ali, a distri- Essas alterações não são inócuas, elas incidem
buição do trabalho ao longo do ciclo da vida so- diretamente sobre a representação social do ciclo da
freu mudanças significativas nos últimos vinte anos. vida. “O desenvolvimento dos sistemas de aposen-
Os jovens entram mais tardiamente no mercado de tadoria ajudou, juntamente com outras políticas so-
trabalho, enquanto os adultos saem mais cedo, exa- ciais (a educação entre outras), a acentuar o peso
tamente em um momento em que o ciclo biológico dos critérios cronológicos entre as referências que
também se alterou, pelo prolongamento da esperan- marcam os limites e balizam as transições entre uma
ça de vida. Isso acarretou ao mesmo tempo um en- idade e outra do ciclo da vida. As aposentadorias
velhecimento demográfico e um envelhecimento mé- contribuíram portanto para a cronologização do
dio da força de trabalho, conforme observa Anne- percurso etário, doravante marcado essencialmen-

Revista Brasileira de Educação 21


Angelina Peralva

te pelas idades cronológicas — a idade obrigatória rio do ciclo da vida. “Não se pode (...) tratar essas
da escolaridade e a idade mínima fixada pelo fim transformações da adolescência como um simples
da escolaridade que delimita a infância e a adoles- alongamento (modelo do postergamento ou do sur-
cência, a idade fixada para o direito à aposentado- sis), nem como uma simples redefinição do perído,
ria integral assinalando a entrada na velhice, etc.” ligada às transformações demográficas gerais. São
Essa definição institucional do percurso etário tinha a estrutura e a composição dos atributos sociais da
como corolário a sua normatização e a sua forte juventude, os modos de acesso à maturidade que se
previsibilidade. Hoje, o ciclo de vida ternário sofre, encontram modificados.” Não se trata de fenôme-
sob a influência da reestruturação da proteção so- no puramente social, mas também cultural. O sig-
cial, duas transformações importantes: uma des- nificado simbólico de certos atributos se altera e
cronologização do ciclo de vida e sua des-estan- certas idades diminuem — a idade do acesso ao re-
dardização. Passa-se de referências cronológicas a lógio, ao voto, ao exercício da sexualidade adulta,
referências funcionais para balizar os limites entre à moradia independente, à detenção de um meio de
uma idade e outra. Isso é particularmente visível no locomoção independente, carro ou moto. (Cham-
que se refere à atividade econômica, onde a prote- boredon, 1995, 17, 18, 20) Mas, ao mesmo tem-
ção social se orienta cada vez mais, conforme foi po, isso não ocorre de maneira homogênea em to-
dito, por critérios de funcionalidade. Mas essa al- das as camadas da população. O desemprego do
teração não é puramene corretiva, ela tende a tor- jovem e a carência de autonomia financeira obri-
nar-se padrão.2 Por outro lado, a descronologiza- gam muitos a permanecerem durante muito tempo
ção do percurso etário induz um ordenamento im- sob o mesmo teto que os pais. Entre as camadas
preciso, aleatório e não controlável. “O tempo ime- populares a separação entre sexualidade precoce e
diato, instantâneo (...) prevalece. Estaríamos evo- reprodução, que já não encontra mais um freio efi-
luindo de um ‘tempo administrado’ para uma ‘re- ciente na definição moral da honra feminina, nem
cusa do tempo’.” (Guillemard, 1995, 189-192) sempre se faz de modo adequado. Etc.
A tendência generalizada a um prolongamento
da escolaridade também estaria contribuindo para Mutação biológica do ciclo da vida:
uma desconexão dos atributos da maturidade e, o jovem como modelo cultural
portanto, para a des-organização do modelo terná-
A desorganização do modelo ternário do ciclo
da vida, vista sob o prisma do reordenamento funcio-
nal das prestações oferecidas pelo Estado no cam-
2 “Assim, no caso dos Estados Unidos, onde invalidez po da proteção social, constitui apenas um dos in-
e desemprego desempenharam um papel restrito, sabe-se que dicadores das transformações mais gerais do mun-
qualquer critério de idade para o exercício, após 40 anos,
do contemporâneo, particularmente no que se re-
da atividade profissional foi abolido desde 1986, no qua-
fere às responsabilidades respectivas e à lógica das
dro da emenda à lei contra a discriminação no emprego. Esse
dispositivo legislativo introduz o princípio de um direito ao reciprocidades entre os diferentes grupos etários.
trabalho e ao prolongamento da atividade ao qual não pode Embora nossa consciência dessas transforma-
ser oposto nenhum critério etário. Esboça, conseqüentemen- ções seja ainda extremamente recente, já parece cla-
te, uma forma de organização social diferente do percurso ro que o modelo educativo da socialização, co-fun-
etário, marcada por um recuo do critério da idade crono-
dador da ordem moderna, entrou em estado de ob-
lógica e a prevalência de critérios funcionais, fundados nas
solescência. Vários indícios apontam para um modo
capacidades e desempenhos do trabalhador. Somente esses
últimos critérios autorizam doravante legitimamente o em- de ordenamento cultural que seria hoje, se recorrer-
pregador americano a despedir ou a aposentar.” (Guille- mos às categorias de Mead (1979), mais cofigu-
mard, 1995, 189) rativo, no sentido de um aprendizado comum rea-

22 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O jovem como modelo cultural

lizado pelos diferentes grupos etários face às injun- tende a ser relativizado e cede em parte lugar ao dos
ções de um mundo que lhes aparece como funda- estilos, gêneros e cenas numa representação da so-
mentalmente novo, do que pós-figurativo, como o ciedade enquanto espetáculo (Abramo, 1994).
foi o modelo da modernidade ocidental, pautado na O novo significado dos estudos sobre juven-
transmissão da experiência passada como elemen- tude emerge ao que parece desse conjunto de trans-
to de ordenação e domesticação do futuro, ou pré- formações. Enquanto o adulto vive ainda sob o im-
figurativo como foi o modelo fundado nas utopias pacto de um modelo de sociedade que se decompõe,
de que foi portadora a geração dos anos sessenta. o jovem já vive em um mundo radicalmente novo,
Mas não se trata apenas de aceleração da mu- cujas categorias de inteligibilidade ele ajuda a cons-
dança social. Trata-se também de uma verdadeira truir. Interrogar essas categorias permite não so-
mutação biológica do ciclo da vida, introduzida a mente uma melhor compreensão do universo de
partir de uma elevação importante da esperança de referências de um grupo etário particular, mas tam-
vida, que já dobrou em menos de um século e cujo bém da nova sociedade transformada pela mutação.
processo de alongamento tende a continuar. Desse
ponto de vista, a definição das fases da vida, pon- Referências bibliográficas
tuada em seus extremos pelo nascimento e pela
morte, sofre também uma alteração profunda, cu- ABRAMO, Helena Wendel, (1994). Cenas juvenis: punks
jas conseqüências permanecem ainda obscuras para e darks no espetáculo urbano. São Paulo: Scritta.

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em modelo cultural do presente. ARIÈS, Philippe, (1960). L’Enfant et la vie familiale sous
Guita Debert (1996, 12 e 13) observa, nessa l’Ancien Régime. Paris: Plon.

perspectiva, que “as novas imagens do envelheci- __________, (1973). L’Enfant et la vie familiale sous l’An-
mento e as formas contemporâneas de gestão da cien Régime. Paris: Seuil.

velhice no contexto brasileiro (...) oferecem (...) um BECKER, Howard S, (1985). Outsiders: etudes de sociologie
quadro mais positivo do envelhecimento, que pas- de la déviance. Paris: Métailié

sa a ser concebido como uma experiência hetero- CHAMBOREDON, Jean-Claude, (1971). La délinquance
gênea em que a doença física e o declínio mental, juvénile, essai de construction d’objet. Revue française
de Sociologie, XII. p. 335-377.
considerados fenômenos normais nesse estágio da
vida, são redefinidos como condições gerais que DEBERT, Guita Grin, (1996). A invenção da Terceira Ida-
de e a rearticulação de formas de consumo e demandas
afetam as pessoas em qualquer fase.” Acrescenta no
políticas. XX Encontro Anual da ANPOCS, 22 a 26 de
entanto que seria ilusório pensar que essas mudan-
outubro de 199. Caxambu, Minas Gerais. (GT: Cultura
ças são acompanhadas de uma atitude mais toleran- e Política).
te em relação às idades. “A característica marcan-
DUBET, François, (1987). La Galère: jeunes en survie. Pa-
te desse processo é a valorização da juventude que ris: Fayard.
é associada a valores e a estilos de vida e não pro-
__________, MARTUCCELLI, Danilo, (1996). A l’école:
priamente a um grupo etário específico.” Mais sociologie de l’expérience scolaire. Paris: Seuil.
do que isso, “a promessa da eterna juventude é um
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mecanismo fundamental de constituição de merca- lo: Melhoramentos, 7. ed.
dos de consumo”. A importância dos meios de co-
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cultural e o crescimento do consumo de massa con-
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24 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Considerações sobre a tematização
social da juventude no Brasil

Helena Wendel Abramo


Departamento de Sociologia, Universidade de São Paulo
Ação Educativa

Tem crescido a atenção dirigida aos jovens nos aos “adultos”, no noticiário, em matérias analíti-
últimos anos no Brasil, tanto por parte da “opinião cas e editoriais, os temas mais comuns são aqueles
pública” (notadamente os meios de comunicação de relacionados aos “problemas sociais”, como violên-
massa) como da academia, assim como por parte cia, crime, exploração sexual, drogadição, ou as
de atores políticos e de instituições, governamentais medidas para dirimir ou combater tais problemas.
e não governamentais, que prestam serviços sociais. Na academia, depois de anos de quase total
Entre os meios de comunicação de massa, da ausência, os jovens voltam a ser tema de investiga-
televisão à grande imprensa, passando pelas rádios, ção e reflexão, principalmente através de disserta-
revistas etc, assistimos a uma avalanche de produ- ções de mestrado e teses de doutorado — no entan-
tos especialmente dirigidos ao público adolescente to, a maior parte da reflexão é ainda destinada a
e juvenil (os cadernos teen nos grandes jornais, pro- discutir os sistemas e instituições presentes nas vi-
gramas de auditório na televisão, programas só de das dos jovens (notadamente as instituições esco-
rock ou de rap nas rádios e canais de televisão, re- lares, ou a família, ou ainda os sistemas jurídicos e
vistas de comportamento, moda e aconselhamento penais, no caso de adolescentes em situação “anor-
etc.), mas também ao crescimento de noticiário a mal” ou de risco), ou mesmo as estruturas sociais
respeito de jovens. De forma geral, e a grosso modo, que conformam situações “problemáticas” para os
pode-se notar uma divisão nestes dois diferentes jovens, poucas delas enfocando o modo como os
modos de tematização dos jovens nos meios de co- próprios jovens vivem e elaboram essas situações.
municação. No caso dos produtos diretamente di- Só recentemente tem ganhado certo volume o nú-
rigidos a esse público, os temas normalmente são mero de estudos voltados para a consideração dos
cultura e comportamento: música, moda, estilo de próprios jovens e suas experiências, suas percepções,
vida e estilo de aparecimento, esporte, lazer. Quan- formas de sociabilidade e atuação.
do os jovens são assunto dos cadernos destinados Com relação às políticas públicas, é necessá-

Revista Brasileira de Educação 25


Helena Wendel Abramo

rio notar que, no Brasil, diferentemente de outros ções beneficientes, instituições de assistência etc.).
países, nunca existiu uma tradição de políticas es- A maior parte desses projetos destina-se a prestar
pecificamente destinadas aos jovens, como alvo di- atendimento para adolescentes em situação de “des-
ferenciado do das crianças, para além da educação vantagem social” (adolescentes carentes é o termo
formal1. Na Europa e Estados Unidos a formula- mais usado, visando adolescentes de família com
ção de políticas para jovens e a designação de ins- baixa renda ou de “comunidades pobres”) ou de
tituições governamentais responsáveis por sua im- “risco”, termo muito empregado para designar ado-
plementação têm se desenvolvido ao longo do sé- lescentes que vivem fora das unidades familiares (os
culo; nos países de língua espanhola da América “meninos de rua”), adolescentes submetidos à ex-
Latina, esse fenômeno, de modo geral, ganha sig- ploração sexual, ou aqueles envolvidos com o con-
nificação a partir dos anos 80, principalmente es- sumo ou o tráfico de drogas, em atos de delinqüên-
timulado por organismos como a CEPAL, ONU e cia etc.
o governo da Espanha, gerando algumas iniciativas Numa primeira visão panorâmica, pode-se ve-
de cooperação regional e Ibero-americana, com in- rificar que a maior parte dos programas desenvol-
tercâmbio de informações e experiências, promoção vidos por estas instituições dividem-se em dois gran-
de capacitação técnica, de encontros para realiza- des blocos, todos eles visando dirimir ou pelo me-
ção de diagnósticos e discussão de políticas. O Bra- nos diminuir as dificuldades de integração social
sil, no entanto, passou ao largo desse movimento. desses adolescentes em desvantagem: programas de
Somente recente e lentamente pode-se obser- ressocialização (através de educação não-formal,
var, no Brasil, a preocupação de responsáveis pela oficinas ocupacionais, atividades de esporte e “ar-
formulação de políticas governamentais com os jo- te”) e programas de capacitação profissional e en-
vens: algumas prefeituras e governos estaduais têm caminhamento para o mercado de trabalho (que,
ensaiado a formulação de políticas específicas para muitas vezes, não passam de oficinas ocupacionais,
esse segmento da população, envolvendo programas ou seja, não logram promover qualquer tipo de qua-
de formação profissional e de oferecimento de ser- lificação para o trabalho). É necessário notar, po-
viços especiais de saúde, cultura e lazer; nota-se tam- rém, que em parte considerável desses programas,
bém uma movimentação no plano federal para fo- apesar das boas intenções neles contidos, o que se
car a questão: foi criada, pela primeira vez, no Bra- busca, explicita ou implicitamente, é uma conten-
sil, uma Assessoria Especial para Assuntos de Ju- ção do risco real ou potencial desses garotos, pela
ventude, vinculada ao gabinete do Ministério da seu “afastamento das ruas” ou pela ocupação de
Educação, e há dois programas do Comunidade “suas mãos ociosas”. Há alguns projetos preocupa-
Solidária destinados a jovens: o Universidade Soli- dos com a questão da formação integral do adoles-
dária e um concurso de estímulo e financiamento cente, na qual se inclui a sua formação para a “ci-
a programas de capacitação profissional de jovens. dadania”, enfoque que vem ganhando corpo mais
Há mais tempo e em número bem maior que recentemente. A grosso modo, no entanto, pode-se
as ações governamentais, tem crescido projetos e dizer que a maior parte desses programas está cen-
programas destinados a jovens por parte de insti- trado na busca de enfrentamento dos “problemas
tuições e agências de trabalho social (ongs, associa- sociais” que afetam a juventude (cuja causa ou cul-
pa se localiza na família, na sociedade ou no pró-
prio jovem, dependendo do caso e da interpretação),
mas, no fundo, tomando os jovens eles próprios
1 Quando falamos de juventude, neste artigo, estamos como problemas sobre os quais é necessário inter-
nos referindo ao momento posterior à infância, que envol- vir, para salvá-los e reintegrá-los à ordem social.
ve a adolescência e a juventude propriamente dita. Toda essa atividade, gerada por uma sensação

26 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil

de urgência frente a situações de desamparo e des- juvenis nas esferas políticas (ao contrário do que
regramento, tem permanecido, na maior parte dos outrora foram as entidades estudantis e as juven-
casos, num registro muito imediatista e desarticula- tudes partidárias), como à baixa adesão de jovens
do. Além disso, com pouca capacidade de gerar uma aos organismos e movimentos políticos. A maior
compreensão mais ampla e aprofundada, por par- parte dos atores políticos queixa-se da distância que
te desses agentes sociais, a respeito do público alvo, os jovens têm demonstrado para com as suas pro-
de suas características, suas questões e modos de posições, bandeiras e formas de atuação, o que re-
experimentar e interpretar essas situações “proble- flete, em primeiro plano, uma preocupação com a
máticas”. Por exemplo, em contraste com a elabo- renovação de quadros no interior dessas organiza-
ração de informação, conceituação, pedagogias e ções, mais do que em tratar e incorporar temas le-
metodologias específicas para lidar com a infância, vantados pelos próprios jovens. Essa preocupação
que se começa a produzir no Brasil, em conseqüên- vem acompanhada de um diagnóstico que identifi-
cia de toda a movimentação em torno da defesa das ca nos jovens um desinteresse pela política e de um
crianças, quase não se encontram subsídios míni- modo mais geral pelas questões sociais, como resul-
mos para um tratamento singularizados dos ado- tado da acentuação do individualismo e do prag-
lescentes, muito menos dos jovens. É quase como matismo que se afirmam como tendências sociais
se, apesar de terem crescido o número de ações e crescentes, tornando-os “pré-políticos” ou quase
programas destinados a adolescentes e jovens, eles que inevitavelmente “a-políticos”.
continuem apenas desfocadamente visíveis, obscure- É curioso notar que, apesar da juventude es-
cidos por uma sensação de que esta falta de instru- tudantil ter tido, durante todo o período dito “de
mentos e “jeito” se deve ao fato de que a “adoles- modernização” do país (dos anos 30 aos 70), des-
cência é mesmo uma fase difícil” de se lidar. É neces- tacada presença em prol dos processos de democra-
sário assinalar que há exceções, por exemplo, aque- tização e combate às estruturas conservadoras, hou-
les projetos que se baseiam na idéia de protagonis- ve sempre certa ressalva com relação à eficácia de
mo juvenil (ou seja, que buscam desenvolver ativida- suas ações: para os setores conservadores, a suspeita
des centradas na noção de que os jovens são cola- de baderna e de radicalismo transgressor; para al-
boradores e partícipes nos processos educativos que guns setores da esquerda, a suspeita de alienação ou
com eles se desenvolvem)2 ; mas a grande maioria de radicalidade pequeno-burguesa inconseqüente.
dos projetos se limita ao enquadramento anterior. No entanto, a partir dos anos 80, o enfraquecimen-
Num outro plano, tem sido constante, embo- to desses atores estudantis levou a fazer notar, e
ra não possamos dizer consistente, a preocupação lamentar, o desaparecimento da juventude da cena
de diferentes atores políticos com a juventude (par- política, erigindo aquelas formas de atuação antes
tidos políticos, sindicatos e centrais sindicais, alguns suspeitas a modelos ideais de atuação, frente aos
movimentos sociais). No entanto, trata-se mais de quais todas as outras manifestações juvenis apare-
uma preocupação com a ausência dos jovens nos cem como desqualificadas para a política. Mesmo
espaços e canais de participação política do que com sua participação nas movimentações de rua pelo
questões políticas relativas a eles. Essa ausência diz impeachment de Collor, em 1992, foram largamen-
respeito tanto à inexistência ou fraqueza de atores te desqualificadas por serem “espontaneistas”, “es-
petaculares”, com mais dimensão de “festa” do que
de “efetiva” politização.
2
Por outro lado, os grupos juvenis que atuam
A maior parte dos programas que lidam com essa
perspectiva têm se desenvolvido nas áreas da saúde (princi-
na esfera do comportamento e da cultura não têm
palmente sexualidade e prevenção de doenças sexualmente sido considerados como possíveis interlocutores pe-
transmissíveis) e da cultura. los atores políticos, salvo raras exceções (entre elas

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Helena Wendel Abramo

assume destaque o movimento negro), seja por se nia”, tal como este termo tem assumido papel de
apresentarem como muito difusos e com baixo grau destaque na conjuntura brasileira: relativamente à
de formalização, seja por levantarem questões não questão dos direitos e da participação de diferen-
consideradas pertinentes para as agendas políticas tes sujeitos sociais. No entanto, toda vez que se re-
em pauta. Os partidos, principalmente os de esquer- laciona a questão da juventude à da cidadania, seja
da, colam-se então, exclusivamente e de um modo pelos atores políticos seja pelas instituições que for-
sufocante, às entidades estudantis, mas sem conse- mulam ações para jovens, são os “problemas” (as
guir apostar, ao mesmo tempo, em sua capacidade privações, os desvios) que são enfocados; todo de-
de representação e mobilização. bate, seminário ou publicação relacionando esses
Pode-se dizer que a preocupação dos atores dois termos (juventude e cidadania) traz os temas
políticos, então, não sai desse plano da preocupa- da prostituição, das drogas, das doenças sexualmen-
ção, não resultando na tentativa de realizar um en- te transmissíveis, da gravidez precoce, da violência.
tendimento mais aprofundado deste setor, nem na As questões elencadas são sempre aquelas que cons-
formulação de ações a eles dirigidas. Resta, assim, tituem os jovens como problemas (para si próprios
de um modo amplo e difundido, a manutenção de e para a sociedade) e nunca, ou quase nunca, ques-
uma desqualificação generalizada da atuação públi- tões enunciadas por eles, mesmo por que, regra ge-
ca dos jovens e um temor relativo à inserção dos ral, não há espaço comum de enunciação entre gru-
jovens nos processos de construção e consolidação pos juvenis e atores políticos. Nesse sentido, o foco
da democracia. central do debate concentra-se na denúncia dos di-
reitos negados (a partir da ótica dos adultos), assim
*** como a questão da participação só aparece pela
Uma análise mais detalhada dessas recentes constatação da ausência. Ou seja, os jovens só es-
interpretações e ações destinadas aos jovens ainda tão relacionados ao tema da cidadania enquanto
está para ser feita3. Contudo, uma questão, desde privação e mote de denúncia, e nunca — ou quase
já, pode ser levantada: parece estar presente, na nunca — como sujeitos capazes de participar dos
maior parte da abordagem relativa aos jovens, tanto processos de definição, invenção e negociação de
no plano da sua tematização como das ações a eles direitos.
dirigidas, uma grande dificuldade de considerar efe- Essa dificuldade está ligada a fatores específi-
tivamente os jovens como sujeitos, mesmo quando cos relativos à formulação de direitos sociais na
é essa a intenção, salvo raras exceções; uma dificul- sociedade brasileira (por exemplo, como a idéia de
dade de ir além da sua consideração como “proble- dádiva e favor sobrepuja a de direito)4 e ao modo
ma social” e de incorporá-los como capazes de for- como as diferenças sociais (sejam étnicas, culturais,
mular questões significativas, de propor ações re- de gênero ou geracionais) têm conseguido se trans-
levantes, de sustentar uma relação dialógica com formar em alteridades políticas5 , assim como ao
outros atores, de contribuir para a solução dos pro- modo como se processam a constituição de espa-
blemas sociais, além de simplesmente sofrê-los ou ços de conflito e negociação política na sociedade
ignorá-los. brasileira. Mas, paralelamente a essa dimensão, tal
Isso pode ser percebido pela discussão que se dificuldade está ligada, de uma maneira mais geral,
faz atualmente a respeito da questão da “cidada- ao modo como a juventude tem sido tematizada na

3 Isto faz parte do projeto que busco desenvolver como


4 Sales, 1994.
tese de doutorado, no Depto. de Sociologia da FFLCH da
USP. 5 Telles, 1996.

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Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil

sociedade ocidental contemporânea. É essa a ques- de, através da aquisição de elementos apropriados
tão que me interessa desenvolver neste artigo, de um da “cultura” e da assunção de papéis adultos. É,
modo ainda apenas sugestivo e sob a forma de anota- assim, o momento crucial no qual o indivíduo se
ção de idéias: a tematização da juventude pelo “sen- prepara para se constituir plenamente como sujei-
so comum”, apoiada em representações construí- to social, livre, integrando-se à sociedade e poden-
das pelo pensamento acadêmico, retrabalhadas e do desempenhar os papéis para os quais se tornou
difundidas pelos meios de comunicação, por atores apto através da interiorização dos seus valores, nor-
políticos, agentes culturais e trabalhadores sociais. mas e comportamentos. Por isso mesmo é um mo-
mento crucial para a continuidade social: é nesse
*** momento que a integração do indivíduo se efetiva
De um modo geral, pode-se dizer que a “ju- ou não, trazendo conseqüências para ele próprio e
ventude” tem estado presente, tanto na opinião pú- para a manutenção da coesão social.
blica como no pensamento acadêmico, como uma É nesse sentido que a ênfase da sociologia fun-
categoria propícia para simbolizar os dilemas da cionalista e quase que de toda sociologia preocupa-
contemporaneidade. A juventude, vista como cate- da com o tema da juventude recai sobre o proces-
goria geracional que substitui a atual, aparece como so de socialização vivido pelos jovens e sobre as
retrato projetivo da sociedade. Nesse sentido, con- possíveis disfunções nele encontradas. Como a ju-
densa as angústias, os medos assim como as espe- ventude é pensada como um processo de desenvol-
ranças, em relação às tendências sociais percebidas vimento social e pessoal de capacidades e ajuste aos
no presente e aos rumos que essas tendências im- papéis adultos, são as falhas nesse desenvolvimen-
primem para a conformação social futura. to e ajuste que se constituem em temas de preocupa-
A tematização da juventude pela ótica do “pro- ção social. É nesse sentido que a juventude só está
blema social” é histórica e já foi assinalada por mui- presente para o pensamento e a para a ação social
tos autores: a juventude só se torna objeto de aten- como “problema”: como objeto de falha, disfunção
ção enquanto representa uma ameaça de ruptura ou anomia no processo de integração social; e, nu-
com a continuidade social: ameaça para si própria ma perspectiva mais abrangente, como tema de ris-
ou para a sociedade. Seja porque o indivíduo jovem co para a própria continuidade social.
se desvia do seu caminho em direção à integração Não é por acaso que a problematização é quase
social — por problemas localizados no próprio in- sempre então uma problematização moral: o foco
divíduo ou nas instituições encarregadas de sua so- real de preocupação é com a coesão moral da socie-
cialização ou ainda por anomalia do próprio siste- dade e com a integridade moral do indivíduo — do
ma social —, seja porque um grupo ou movimento jovem como futuro membro da sociedade, integra-
juvenil propõem ou produz transformações na or- do e funcional a ela. É nesse sentido também que na
dem social ou ainda porque uma geração ameace maior parte das vezes a problematização social da
romper com a transmissão da herança cultural. juventude é acompanhada do desencadeamento de
A concepção de juventude corrente na socio- uma espécie de “pânico moral” que condensa os me-
logia, e genericamente difundida como noção social, dos e angústias relativos ao questionamento da or-
é profundamente baseada no conceito pelo qual a dem social como conjunto coeso de normas sociais.6
sociologia funcionalista a constituiu como catego-
***
ria de análise: como um momento de transição no
ciclo de vida, da infância para a maturidade, que
corresponde a um momento específico e dramáti- 6 Essa idéia de “pânico moral” foi desenvolvida por
co de socialização, em que os indivíduos processam A. Cohen e retomada por Hall & Jefferson, 1978 e por Bes-
a sua integração e se tornam membros da socieda- sant, 1993/94.

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De um modo ligeiro e quase caricatural, po- na formação de culturas juvenis como antagônicas
demos retomar o modo como a juventude veio sen- à sociedade adulta, resultando no conhecido proces-
do tematizada durante a segunda metade desse sé- so de “demonização” do rock’n’roll, por ex., e na
culo para verificar como acabou sendo sempre de- busca de soluções através da prescrição de uma sé-
positária de um certo medo7, categoria social fren- rie de medidas educativas e de controle para asse-
te à qual se pode (ou deve) tomar atitudes de con- gurar a contenção dessa delinqüência. Mais tarde,
tenção, intervenção ou salvação, mas com a qual é esse pânico cede lugar a um entendimento da “nor-
difícil estabelecer uma relação de troca, de diálogo, malidade” do desconforto e agitação adolescentes,
de intercâmbio. da circunscrição do significado das culturas juvenis
Nos anos 50, o problema social da juventude como espaços de socialização diferenciados e da fun-
era a predisposição generalizada para a transgres- cionalidade desse comportamento momentaneamen-
são e a delinqüência, quase que inerente à condição te desviante como parte do processo de integração
juvenil, corporificadas na figura dos “rebeldes sem à sociedade adulta. Em algumas interpretações, até
causa”. De certa forma, é nesse momento que as- como fonte de inovação e revigoramento sociais 9. O
sume uma dimensão social a noção que vinha sen- consolo se produz a partir da conclusão de que a
do cunhada desde o fim do século passado a respeito maior parte dos jovens, se bem conduzidos, acaba,
da adolescência como uma fase da vida turbulenta depois de alguns percalços, integrando-se de forma
e difícil, inerentemente pertubadora; como um mo- sadia e normal à sociedade; o problema volta a fi-
mento em si patológico, demandando cuidados e car circunscrito, assim, à delimitação dos grupos ou
atenção concentrados de adultos para “pastorear” setores juvenis estruturalmente anômalos, para os
os jovens para um lugar seguro, para uma integra- quais se destinam medidas específicas de controle e
ção normal e sadia à sociedade. “ressocialização”.
Nos anos 50, quando os atos de “delinqüên- Nos anos 60 e parte dos anos 70, o problema
cia juvenil” extravasam os limites dos setores “so- apareceu como sendo o de toda uma geração de
cialmente anômalos” (os marginalizados, os imigran- jovens ameaçando a ordem social, nos planos po-
tes nas grandes metrópoles, as “classes perigosas” lítico, cultural e moral, por uma atitude de crítica
— como foram objeto de atenção na passagem do à ordem estabelecida e pelo desencadear de atos
século por criminologistas como Pestalozzi 8) e se concretos em busca de transformação — movimen-
tornam comuns entre jovens de setores operários in- tos estudantis e de oposição aos regimes autoritá-
tegrados e de classe média, a juventude aparece ela rios, contra a tecnocracia e todas as formas de do-
mesma como uma categoria social potencialmente minação, movimentos pacifistas, as proposições da
delinquente, por sua própria condição etária. O pro- contracultura, o movimento hippie.
blema passa a ser o fato de que jovens que teriam A juventude apareceu então como a categoria
“condições objetivas” de ajuste ao mundo adulto portadora da possibilidade de transformação pro-
manifestam dificuldades nesse sentido, gerando an- funda: e para a maior parte da sociedade, portan-
gústias quanto ao próprio modelo de integração exis- to, condensava o pânico da revolução. O medo aqui
tente na sociedade. A interpretação baseada na ex- era duplo: por um lado, o da reversão do “sistema”;
plicação da “fase inerentemente difícil” leva a lo-
calizar o problema na adolescência enquanto tal, e
9 A sociologia funcionalista norte-americana produ-
ziu intensamente estudos e debates a respeito das ações co-
letivas da juventude, num arco amplo de interpretações,
7 A esse respeito, ver Bessant, 1993/94. tanto no enfoque da anomia como no da inovação e ajuste.
8 Flitner, 1968. Ver, entre outros, Parsons, 1942; Eisenstadt, 1976.

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Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil

por outro, o medo de que, não conseguindo mudar nesse caso, o medo era o de que as ações juvenis atra-
o sistema, os jovens condenavam a si próprios a ja- palhassem a possibilidade efetiva de transformação.
mais conseguirem se integrar ao funcionamento nor- Foi somente depois, quando tais movimentos
mal da sociedade, por sua própria recusa (os jovens juvenis já haviam entrado num refluxo, que a ima-
que entraram na clandestinidade, por um lado; por gem dessa juventude dos anos 60 foi reelaborada e
outro lado, os jovens que se recusaram a assumir assimilada de uma forma positiva, generalizando a
um emprego formal, que foram viver em comuni- ótica da minoria que neles depositava diferentes
dades à parte, com formas familiares e de sobrevi- tipos de esperança: a imagem dos jovens dos anos
vência alternativas etc) — não mais como uma fase 60 plasmou-se como a de uma geração idealista,
passageira de dificuldades, mas como uma recusa generosa, criativa, que ousou sonhar e se compro-
permanente de se adaptar, de se “enquadrar”. meter com a mudança social. Essa reelaboração po-
No Brasil, é particularmente neste momento sitiva acabou, desse modo, por fixar assim um mo-
que a questão da juventude ganha maior visibilida- delo ideal de juventude: transformando a rebeldia,
de, exatamente pelo engajamento de jovens de classe o idealismo, a inovação e a utopia como caracte-
média, do ensino secundário e universitário, na luta rísticas essenciais dessa categoria etária.11
contra o regime autoritário, através de mobilizações É em contraste com essa imagem que a juven-
de entidades estudantis e do engajamento nos par- tude dos anos 80 vai aparecer como patológica por-
tidos de esquerda; mas também pelos movimentos que oposta à da geração dos anos 60: individualis-
culturais que questionavam os padrões de compor- ta, consumista, conservadora e indiferente aos as-
tamento — sexuais, morais, na relação com a pro- suntos públicos, apática. Uma geração que recusa-
priedade e o consumo. Vale a pena lembrar que tal se a assumir o papel de inovação cultural que ago-
medo gerou, aqui, respostas violentas de defesa des- ra, depois da reelaboração feita sobre os anos 60,
sa ordem: os jovens foram perseguidos pelos apa- passava a ser atributo da juventude como catego-
relhos repressivos, tanto pelo comportamento (o ria social. O problema relativo à juventude passa
uso de drogas, o modo de se vestir etc) como por então a ser a sua incapacidade de resistir ou ofere-
suas idéias e ações políticas. cer alternativas às tendências inscritas no sistema
Por outro lado, para alguns setores descontentes social: o individualismo, o conservadorismo moral,
com o sistema (como para pessoas de esquerda e pro- o pragmatismo, a falta de idealismo e de compro-
motores da “contra-cultura”), esses movimentos ju- misso político são vistos como problemas para a
venis condensaram o oposto, a esperança de trans- possibilidade de mudar ou mesmo de corrigir as
formação10. No entanto, mesmo para esse setores, tendências negativas do sistema. Tematizada por
os jovens apareciam mais como uma fonte de ener- aqueles que fizeram parte da geração dos anos 60
gia utópica do que propriamente alguém capaz de e 70, a juventude aparece aqui como depositária de
levar a cabo efetivamente tal transformação; e mui- um certo medo relativo ao “fim da História”, uma
tos setores políticos de oposição à ordem (como os vez que nega seu papel como fonte de mudança.
partidos comunistas e organizações sindicais tradi- Nos anos 90 a visibilidade social dos jovens
cionais) interpretavam tais manifestações juvenis co- muda um pouco em relação aos anos 80: já não são
mo ações pequeno-burguesas inconseqüentes quan- mais a apatia e desmobilização que chamam a aten-
do não ameaçadoras de um processo mais sério e ção; pelo contrário, é a presença de inúmeras figu-
eficaz de negociações para transformações graduais; ras juvenis nas ruas, envolvidas em diversos tipos
de ações individuais e coletivas. No entanto, a maior

10
Ver, entre outros autores, Roszak, 1972; Marcuse,
1970; Foracchi, 1972; Ianni, 1968. 11 Ver Abramo, 1994.

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Helena Wendel Abramo

parte dessas ações continua sendo relacionada aos ginário, tal como ela aparece referida em produtos
traços do individualismo, da fragmentação e ago- culturais, pode ser percebida a partir da observa-
ra mais do que nunca, à violência, ao desregramento ção de dois filmes brasileiros recentes: O que é isso
e desvio (os meninos de rua, os arrastões, o surf companheiro e Como nascem os anjos12.
ferroviário, as gangues, as galeras, os atos de puro À primeira vista esses dois filmes nada têm em
vandalismo). De certa forma há uma retomada de comum, tratando de fatos, épocas e questões mui-
elementos característicos dos anos 50, na concen- to diferentes, a não ser o fato de que os protago-
tração da atenção nos problemas de comportamen- nistas da ação, em ambos, são personagens juvenis.
to que levam a situações de desvio no processo de Sem nenhuma intenção de fazer considerações de
integração social dos adolescentes (drogas, violên- ordem estética, ou a respeito da propriedade das
cia, envolvimento com a criminalidade e compor- abordagens dos fatos tratados pelos filmes (ou mes-
tamentos anti-sociais). Fruto de uma situação anô- mo de entrar na polêmica relativa à “correção” his-
mala, da falências das instituições de socialização, tórica e política que se produziu em torno do filme
da profunda cisão entre integrados e excluídos, de “O que é isso companheiro”), o interesse, aqui, é
uma cultura que estimula o hedonismo e leva a um o de levantar elementos para pensar no modo como
extremo individualismo, os jovens aparecem como os personagens juvenis são enfocados nos dois fil-
vítimas e promotores de uma “dissolução do so- mes, para observar como, sob certo ângulo, eles se
cial”. O pânico, aqui, se estrutura em torno da pró- apoiam em algumas das problematizações aponta-
pria possibilidade de uma coesão social qualquer. das ao longo desse artigo. Para isso, destacaremos,
Como vítimas ou como promotores da cisão e talvez super-dimensionando, alguns traços presen-
da dissolução social, os jovens se tornam depositá- tes nos filmes, exagerando certos traços a partir do
rios desse medo, dessa angústia, o que os faz apare- qual eles podem ser vistos, sem pretender que essa
cer, mesmo para aqueles que os defendem, e que de- leitura seja a única possível. Apenas me interessa
sejam uma transformação social, como a encarna- iluminá-la como uma indicação de uma percepção
ção das impossibilidade de construção de parâmetros presente na opinião pública e que funciona como
éticos, de parâmetros de equidade, de superação das pano de fundo para toda a tematização da juven-
injustiças, de formulação de ideais, de diálogo de- tude no Brasil.
mocrático, de revigoração das instituições políticas, No filme “O que é isso companheiro” os per-
de construção de projetos que transcendam o mero sonagens protagonistas da ação central são jovens
pragmatismo, de transformação utópica. Ou seja, de classe média que, no final dos anos 60, entran-
como encarnação de todos os dilemas e dificuldades do para uma organização de esquerda clandestina,
com que a sociedade ela mesma tem se enfrentado. seqüestram o embaixador americano para forçar o
E nessa formulação, como encarnação de impossi- governo brasileiro a soltar e deixar sair do país pre-
bilidades, eles nunca podem ser vistos, e ouvidos e sos políticos (fato real ocorrido em 1969, documen-
entendidos, como sujeitos que apresentam suas pró- tado e relatado em livro por um dos integrantes da
prias questões, para além dos medos e esperanças dos ação, no qual o roteiro do filme foi baseado)13.
outros. Permanecem, assim, na verdade, semi-invi-
síveis, apesar da sempre crescente visibilidade que
a juventude tem alcançado na nossa sociedade, prin-
cipalmente no interior dos meios de comunicação. 12 O que é isso companheiro? é um filme de Bruno
Barreto, lançado em 1997; Como nascem os anjos é de Mu-
*** rilo Salles e foi exibido em 1996.
Uma indicação desse modo de tematizar os 13 O livro, escrito por Fernando Gabeira, tem o mes-
jovens, particularmente no Brasil, no plano do ima- mo título do filme e foi editado em 1979, pela Ed. Codecri.

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Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil

No filme Como nascem os anjos os persona- a partir do endurecimento do regime e do fechamen-


gens principais do drama são duas crianças a cami- to dos canais de participação democrática, se envol-
nho da adolescência (com cerca de 12 anos), mo- vem na guerrilha, vivendo na clandestinidade, fa-
radores de uma favela do Rio de Janeiro, divididos zendo ações armadas, sendo presos, torturados, exi-
entre a busca por uma inserção “normal” na socie- lados e muitas vezes mortos, são de fato, a face mais
dade (através do estudo) e o mundo do tráfico e da dramática dessa juventude genericamente vista co-
criminalidade; que se envolvem, meio sem querer, mo em busca de mudança.
num seqüestro de um alto executivo de uma multi- Nos anos 90 as figuras juvenis mais em evidên-
nacional americana. Um menino que tenta se man- cia são os jovens pobres que aparecem nas ruas,
ter distante do universo do crime (pertencente a um divididos entre o hedonismo e a violência: meninos
núcleo familiar estável e freqüentando a escola re- de rua, jovens infratores, gangues, galeras, tribos;
gular) e sua maior amiga, que não tem esse tipo de e, principalmente, jovens em “situação de risco”
inserção, e é namorada de um rapaz pertencente à (risco para si próprios e para a ordem social), dos
quadrilha da favela onde moram. Esse rapaz, após quais aqueles envolvidos no tráfico, matando e mor-
um incidente com um dos chefes da quadrilha, tenta rendo muito cedo, são uma das imagens mais dra-
fugir para se estabelecer em outro lugar; na fuga, máticas e ameaçadoras dos nossos tempos.
acompanhado pela menina, que acaba arrastando Figuras paradigmáticas em cada conjuntura
junto seu amigo, roubam um carro e vão para num histórica, mas também genericamente na constru-
bairro rico, onde pedem para usar o banheiro de ção social a respeito da juventude no Brasil, dia-
uma mansão. O motorista do dono da casa, suspei- metralmente opostas nas equações que se montam
tando de assalto, atira no rapaz que, revidando, o a respeito da exclusão e da cidadania e na formu-
mata. O rapaz, muito ferido, decide entrar na casa lação das esperanças e das angústias neles deposi-
e exigir que o executivo providencie curativo para tadas: numa ponta, os jovens estudantes politizados,
o ferimento e meios para a fuga sem chamar aten- idealistas e comprometidos com as causas sociais e
ção da polícia; logo depois fica desacordado, e são políticas da sociedade; na outra, jovens carentes e
as crianças que têm de passar a dirigir a situação. envolvidos com o mundo da criminalidade. O in-
A partir daí o drama se desenvolve em torno das teresse de fazer uma reflexão conjunta desses dois
tentativas dos meninos saírem da casa, sem serem filmes, embora uma comparação possa, em muitos
presos pela polícia, e mantendo os moradores da aspectos, parecer um pouco forçada, é enfatizar co-
casa como reféns. mo há um ângulo comum pelo qual essas duas fi-
São, como se vê, figuras juvenis totalmente guras opostas de nossa juventude são vistas.
diferentes, mas nos dois casos, trata-se de figuras É curioso notar que alguns elementos de en-
emblemáticas para o período enfocado: jovens poli- redo se repetem nos dois filmes: no centro da ação
tizados nos anos 60, jovens pobres envolvidos com de ambos está o seqüestro de norte-americanos, em-
a criminalidade nos anos 90. E também nos dois bora o sentido dos seqüestros seja completamente
casos, encarnam a face mais dramática da juventude diferente. E o seqüestro é um ato que provoca o pior
do período: nos anos 60, a juventude em evidência dos horrores: é crime hediondo, e nas duas diferen-
eram os jovens de classe média, empenhados em tes conjunturas históricas, por motivos e com sen-
propostas de mudança, tanto mudanças políticas tidos completamente distintos, séries de seqüestros
como comportamentais e de valores: estudantes do foram motivo de pânico e de violentas respostas
ensino secundário e universitário, envolvidos nas policiais. Nos dois casos escolhidos para serem re-
suas entidades e manifestações públicas, e jovens tratados nos filmes, a ação desencadeada pelos jo-
envolvidos em movimentos culturais e contracul- vens é uma ação “criminosa” (embora uma seja um
turais, hippies, “tropicalistas” etc. Os jovens que, crime “político” e a outra um crime “comum”),

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Helena Wendel Abramo

desencadeando a violenta resposta de aparatos poli- ou incapazes de se tornarem sujeitos no sentido ple-
ciais. Parodiando frase tristemente famosa, a ques- no da palavra.
tão dos jovens, no Brasil, parece ser sempre um caso No filme O que é isso companheiro?, os jovens
de polícia. são vítimas da lógica política instaurada na ditadu-
Nos dois casos, também existe a figura de adul- ra: o fechamento dos espaços institucionalizados de
tos (ou de pessoas mais velhas que os personagens participação, o endurecimento da repressão a qual-
centrais, mesmo jovens adultos com mais idade ou quer forma de organização e manifestação e de todo
mais experiência, que já não têm uma postura ou canal legal de proposição de mudança, joga os jo-
não se identificam como jovens) que impelem os vens insatisfeitos com o estado de coisas nos parti-
personagens juvenis às situações mais críticas. No dos clandestinos que propunham a luta armada.
caso do filme “Como nascem os anjos” é o rapaz Uma vez nesse espaço, os jovens acabam aparecen-
envolvido no tráfico que joga as crianças na situa- do como vítimas da lógica da esquerda armada, que
ção dramática, e é para salvá-lo que eles pioram parece encerrada numa armadilha, isolada e tenden-
cada vez mais a situação. No caso do filme “O que te a ter de provocar ações cada vez mais extremas
é isso companheiro”, há a figura do velho militan- que, por sua vez, a vão isolando e encerrando cada
te de esquerda e o outro militante, jovem ainda mas vez mais o sentido das suas ações. Nesse esquema,
com uma postura totalmente rígida e já sem nenhu- os jovens que assumem essa posição, no filme, são
ma identificação com a jovialidade (que todos os retratados como jovens idealistas, desejosos de mu-
outros integrantes do grupo inicial conservam), que dança, mas que acabam engulidos por essa lógica
“vêm de São Paulo” para dirigir a operação do se- que lhes escapa (quando não manipulados por adul-
qüestro, e que buscam imprimir uma “racionalidade tos com lógicas externas a eles).
política” (ou de guerra) à ação quase romântica e Protagonistas de uma ação de alto impacto e
fantástica proposta pelos jovens, forçando-os, por intensidade, de tal forma que é quase inacreditável
exemplo, a negar critérios afetivos como os de ami- que jovens tão jovens pudessem tê-la levado a cabo,
zade (ao indicar a lista dos militantes presos que esta acaba ficando, em última instância, sem senti-
deveriam ser trocados pelo embaixador) e a enca- do; embora tenha, no plano mais imediato, sido um
rar “com naturalidade” — ou como imperativo ló- “sucesso”, pois eles conseguem efetivamente a troca
gico — a necessidade de execução, à queima rou- dos presos políticos pelo embaixador, no plano mais
pa, do inimigo. profundo a sua iniciativa, que visava a denúncia do
É nesse ponto que me parece que reside uma regime de exceção e a adesão popular à exigência
idéia comum aos dois filmes, e que se relaciona com da transformação das regras políticas instauradas
a postura geral pela qual normalmente a questão da pelo endurecimento da ditadura, se vê lograda —
juventude é tratada na nossa sociedade. Em ambos, o final do filme acentua o isolamento dos jovens,
há uma mesma idéia subjacente, que é a dos jovens sua decepção, o sentimento de estarem perdidos e
como vítimas das lógicas do sistema e, nesse senti- de toda sua atuação ter sido, em certa medida, um
do, manipulados pelo destino, ou seja, sempre hete- sacrifício inútil: acabam sendo todos presos, tortu-
rônomos, nunca autores reais de suas ações. Embo- rados, alguns são mortos e outros vão para o exí-
ra os jovens sejam os protagonistas das ações que lio por força de outra operação da esquerda arma-
montam o drama, ações de alta intensidade e de da (outro seqüestro de embaixador). Dessa manei-
profundos efeitos, está presente a idéia de que eles ra, sua ação é quase uma ação inconseqüente, quan-
são como que impelidos a essa ação, pela lógica do to ao fim último que eles pretendem, e seu idealis-
sistema e pela lógica de instituições ou de atores que mo acaba aparecendo quase como um desvario.
operam à margem ou contra o sistema. Nunca por No filme Como nascem os anjos, os jovens são
sua própria lógica. Sujeitos incompletos, em suma, vítimas da lógica econômica-social, da desigualda-

34 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil

de, da exclusão, do mundo peculiar que se monta aqui negar a existência dessas dimensões apontadas
nos morros cariocas, como um mundo à parte onde nos filmes, nem a importância de discuti-las. Con-
impera uma outra lógica, a lógica do tráfico, em tudo, o que se busca desenvolver neste artigo é a
guerra contra a sociedade institucionalizada. No observação de que a acentuação da atenção nas di-
meio desses dois fogos, os jovens moradores da fa- mensões de vitimização e heteronomia frente às ló-
vela são vítimas dessas duas lógicas conflitantes e gicas do sistema, acaba por manter invisível, e im-
complementares; as crianças se vêem compelidas a pensável, qualquer tipo de positividade das figuras
assumir o lado da marginalidade, meio por acaso juvenis.
mas quase como destino inelutável. Compelidas por
que o tráfico e a marginalidade impõem padrões ***
culturais e de valores que conformam a vida na fa- O que me interessou ressaltar nesse breve elen-
vela, por que não há outras referências (no caso da co de anotações, é o fato de que, ao privilegiar o
menina), ou mesmo, quando o esforço do menino foco de nossa atenção sobre os jovens como emble-
e da família se faz no sentido de construir um ou- mas dos problemas sociais, muitas vezes não con-
tro caminho, as chances de vivenciar experiências seguimos enxergá-los e entendê-los propriamente;
que os desviam desse caminho são enormes, quase e, como conseqüência, nos livrar de uma postura de
inevitáveis. Mesmo que não estejam envolvidos em desqualificação da sua atuação como sujeitos. Se os
acontecimentos “delinqüentes”, a sociedade age co- jovens que mais se aproximaram de uma atuação
mo se assim fosse, levando os jovens a reagirem com política reconhecida, como os militantes de esquer-
respostas que os acabam conduzindo a o que se ima- da dos anos 60, acabam por, ao fim e ao cabo, se-
gina a respeito deles. É uma lógica inescusável. rem desqualificados como incapazes de uma ação
Assim, crianças, mais ou menos inocentes (umas com eficácia real, isso se acentua com os sujeitos
mais, outras menos), todas acabam envolvidas na juvenis de agora, atuando num plano comporta-
execução de atos que não queriam, não previam, de mental e cultural sempre vizinho aos planos do he-
que quase não têm consciência, sem ao menos en- donismo, por um lado, e da violência, por outro —
tender como chegaram àquilo. Suas ações, assim, e dessa maneira ajudando a compor a impressão
são ações desvairadas, fruto de armadilhas do des- geral de que a juventude hoje está confinada a pro-
tino, ou melhor, da lógica doentia instaurada nes- ceder através de comportamentos de desregramento
sa sociedade tão profundamente dividida. Ações, social.
novamente, inconseqüentes do ponto de vista da ra- Na conjuntura atual, dos anos 90, é muito pre-
cionalidade dos próprios sujeitos, ou melhor dizen- sente e forte a imagem dos jovens que assustam e
do, das vontades das próprias crianças, e com con- ameaçam a integridade social. Vítimas do proces-
seqüências terríveis e desastrosas para si próprios so de exclusão profunda que marca nossa socieda-
e para os outros. de e, ao mesmo tempo, do aprofundamento das ten-
Nos dois casos, trata-se de ações inconseqüen- dências do individualismo e do hedonismo, se com-
tes quanto a seus fins, ações que se voltam contra portam de forma desregrada e amoral, promoven-
os próprios sujeitos que as executam, e ao mesmo do o aprofundamento da fratura e do esgarçamento
tempo, contra a sociedade. Ações que significam social que os vitima. Podem tornar-se, assim, jun-
risco para os jovens e risco para sociedade. Os jo- to com o medo, objeto da nossa compaixão e de
vens tornam-se, assim, fonte de medo e perplexida- esforços para denunciar a lógica que os constrói
de. Mesmo se vistos com “simpatia”, como idea- como vítimas e de ações para salvá-los dessa situa-
listas ou inocentes e como vítimas dos defeitos do ção. Mas dificilmente como sujeitos capazes de qual-
sistema social. quer tipo de ação propositiva, como interlocutores
É importante ressaltar que não se pretende para decifrar conjuntamente, mesmo que conflituo-

Revista Brasileira de Educação 35


Helena Wendel Abramo

samente, o significado das tendências sociais do nos-


so presente e das saídas e soluções para elas.

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36 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Estudos sobre juventude em educação

Marilia Pontes Sposito


Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo

Este artigo apresenta resultados preliminares Inicialmente, torna-se necessário considerar


de investigação que examina a produção de conhe- que os problemas da análise da produção de conhe-
cimento sobre o tema juventude, apontando ques- cimento sobre jovens ou juventude recobrem um
tões advindas do exame de dissertações e teses de- elenco significativo de questões que incidem, prin-
fendidas nos Programas de Pós-Graduação em Edu- cipalmente, sobre o próprio tema eleito para inves-
cação, de 1980 a 19951. tigação e sua eventual presença nos estudos que
constituem o campo da pesquisa educacional.
1 O projeto de pesquisa denomina-se “Juventude e Esco-
Para Mauger, o trabalho “aparentemente ino-
larização: uma análise da produção de conhecimento” e está cente, técnico, de constituição e de apresentação de
sendo desenvolvido em conjunto com Sérgio Haddad (Ação uma bibliografia, de recenseamento de unidades de
Educativa e PUC/SP), com o apoio da FAPESP e CNPq. Agra- pesquisa, de pesquisadores e de trabalhos em cur-
deço aos bolsistas Janaina Vargas, Marco Antonio Edreira, so, coloca um primeiro problema clássico: o da deli-
Paula Gonçalves, Thereza Pozzi e Irene Miashiro pela sistema- mitação do domínio dos objetos” (1994, p.6). Bus-
tização dos dados. Ao Setor de Documentação de Ação Edu-
cando oferecer um quadro amplo do estado das in-
cativa o meu particular agradecimento pelo suporte técnico
competente. Os dados aqui apresentados caracterizam-se pelo vestigações sobre os jovens na França, esse pesqui-
seu caráter ainda inicial, retirados dos resumos das dissertações sador evidencia as dificuldades presentes nesse in-
e teses defendidas na área de Educação, pois em fase posterior tento, pois a primeira questão que se apresenta é a
a análise dos trabalhos será realizada a partir da leitura do da própria definição da categoria juventude.
texto completo. Eventuais falhas do levantamento da produção Poderíamos concluir que, aparentemente, os
ainda estão sendo corrigidas mediante revisão e acesso a ou-
pesquisadores interessados em estudar e realizar ba-
tras fontes, resultando, provavelmente, no acréscimo de traba-
lhos a serem considerados no âmbito da temática. Algumas
lanços sobre essa temática estariam frente a uma
lacunas podem, também, decorrer da existência de trabalhos situação paradoxal de difícil resolução. De um lado,
cujos resumos não foram enviados para a ANPEd ou CAPES. qualquer investigação em torno da produção de co-

Revista Brasileira de Educação 37


Marilia Pontes Sposito

nhecimento exigiria, como pressuposto, a eleição de tica estaria subsumida no interior de outras dimen-
uma definição, ainda que provisória, do objeto de sões da vida social, definida a partir de universos mais
estudo de modo a orientar os critérios de seleção. amplos e diversificados, sobretudo aqueles deriva-
De outra parte, como afirma Mauger, para formu- dos das diferentes situações de classe (p. 140).
lar essa categorização inicial as dificuldades não são É preciso reconhecer que, histórica e socialmen-
desprezíveis, pois seria quase impossível recorrer a te, a juventude tem sido encarada como fase de vida
um uso da categoria jovem que se imporia de modo marcada por uma certa instabilidade associada a de-
igual a todos os pesquisadores. Assim, se para or- terminados “problemas sociais”, mas o modo de
denar fosse preciso recorrer a critérios comumente apreensão de tais problemas também muda3. Assim,
utilizados e se, de fato, é problemática a adoção se nos anos 60, a juventude era um “problema” na
desse mínimo já estabelecido, estaríamos diante de medida em que podia ser definida como protagonista
um impasse de difícil resolução. de uma crise de valores e de um conflito de gerações
Uma das formas de aproximação, tendo em essencialmente situado sobre o terreno dos compor-
vista a exequibilidade do empreendimento investi- tamentos éticos e culturais, a partir da década de 70
gativo, reside em reconhecer que a própria defini- os “problemas” de emprego e de entrada na vida
ção da categoria juventude encerra um problema ativa tomaram progressivamente a dianteira nos es-
sociológico passível de investigação, na medida em tudos sobre a juventude, quase transformando-a em
que os critérios que a constituem enquanto sujeitos categoria econômica (Pais, 1990). Do mesmo modo,
são históricos e culturais. Sendo assim, os estudos Jankowski (1992), ao realizar balanço sobre estu-
sobre tais sujeitos também sofrem essas influências dos de gangues nos EUA — tema que participa do
ao elegerem suas âncoras teóricas e respectivas for- foco de interesses da sociologia norte-americana des-
mas de aproximação do objeto. de o início dos anos 20 com a Escola de Chicago —
Embora ocorra um reconhecimento tácito na verifica que houve um arrefecimento desses estudos
maior parte das análises em torno da condição de nos anos 60. Nesse momento a atenção dos pesqui-
transitoriedade como elemento importante para a sadores voltava-se para os movimentos de contra-
definição do jovem — transição da heteronomia da cultura e para as manifestações estudantis que atin-
criança para a autonomia do adulto — o modo co- giam a sociedade norte-americana. No início da dé-
mo se dá essa passagem, sua duração e característi- cada de 80, as pesquisas sobre gangues ocupam no-
cas têm variado nos processos concretos e nas for- vamente o interesse dos estudiosos, não só em vir-
mas de abordagem dos estudos que tradicionalmente tude do decréscimo da visibilidade das manifestações
se dedicam ao tema2. Pais (1990), ao examinar um anteriores, como em decorrência da escalada de vio-
conjunto expressivo de autores que se dedicaram à lência juvenil que atingiu o país.
investigação sobre juventude, realiza um esforço de Poderíamos considerar, como hipótese, que na
sistematização, configurando, ao menos, dois gran- pesquisa em Educação, ênfases temáticas e catego-
des blocos que indicam a construção social do campo rias de análise não se despem das influências das
de estudos: o primeiro compreenderia os trabalhos conjunturas históricas e dos processos sociais em
que consideram a juventude como um conjunto so- que se movem, tornando-se mais ou menos permeá-
cial derivado de uma determinada fase de vida, com
ênfase nos aspectos geracionais; para outros a temá-
3 No artigo “De quoi parle-t-on quand on parle du
‘problème de la jeunesse’?”, Bourdieu (1986) examina as am-
bigüidades presentes nessa expressão. Pais (1990) também
2 As formulações de Mannheim constituem contribui- alerta para as diferenças existentes entre a definição da ju-
ções fundamentais sobre o tema da juventude a partir da ventude enquanto problema social e a definição da juven-
idéia de transição (MANNHEIM, 1968 e 1982). tude enquanto problema para análise sociológica.

38 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Estudos sobre juventude em educação

veis a essas situações. Parte importante do seu modo mesmo neste caso — a delimitação da faixa etária
de construção se desvela nessa interação. Mas ou- — foi preciso considerar as condições sociais em que
tro elemento a ser considerado é a dinâmica do pró- se opera o desenvolvimento dos ciclos de vida em
prio campo de conhecimento, caracterizado pela sociedades como a brasileira5. Integramos no con-
adoção de matrizes disciplinares que, segundo Oli- junto amplo denominado juventude os segmentos
veira (1988), “articulariam de modo sistemático um etários que vão de 15 a 24 anos, seguindo as ori-
conjunto de paradigmas, a condição de coexistirem entações de trabalhos na área demográfica, sobre-
no tempo, mantendo-se todos e cada um ativos e tudo aqueles desenvolvidos por Felicia Madeira6 .
relativamente eficientes” (p. 15)4 . É preciso considerar os estritos limites em que
Por essas razões cabe realizar, no âmbito da exa- essa delimitação opera e seu caráter preliminar, pois
me da produção de conhecimento, a análise de como há enorme diferenças de tratamento dos dados inclu-
um determinado campo de estudos também vem cons- sive sob o ponto de vista sócio-demográfico. Sob o
truindo teórica e conceitualmente o tema da juventu- ângulo restrito das estatísticas, em alguns países euro-
de enquanto objeto de investigação, seus modos de peus, os estudos tendem a alongar os limites supe-
aproximação do fenômeno em questão, seus recortes riores da faixa etária pela incorporação da população
principais e, se possível, suas relações com os pro- com a idade de 29 anos (Bauby e Gerber, 1996). Esse
cessos históricos que permitem a visibilidade desse alongamento tem sido tratado como um desafio para
segmento na sociedade brasileira nos últimos anos. a investigação, revelador de uma nova fase — a pós-
Mas, a adoção desse escopo não isenta o pesqui- adolescência — que estaria configurando um período
sador da necessidade de utilização de critérios clas- de latência ou de moratória social pois o jovem, ao
sificatórios explícitos, mas essa exigência deve con- concluir sua escolaridade, não consegue se inserir nas
templar a idéia de um certo grau de flexibilidade atividades profissionais do mercado de trabalho for-
para possibilitar, inclusive, o exame de estudos que mal (Chamboredon, 1985 e Müxel, 1994). Mas, pa-
realizaram aproximações indiretas sobre a temática. ra o conjunto da sociedade brasileira, a tendência
A fixação de alguns critérios relativos à faixa maior é a de antecipação do início da vida juvenil
etária constituiu um procedimento inicial e útil para para antes dos 15 anos, na medida em que certas
a seleção dos trabalhos, pois compreende uma pri- características de autonomia e inserção em ativida-
meira delimitação como ponto de partida. Mas, des no mundo do trabalho — típicas do momento
definido como de transição da situação de dependên-
cia da criança para a autonomia completa do adul-
4 Por essas razões Oliveira considera que no âmbito to — tornam-se o horizonte imediato para grande
da Antropologia Social — por extensão creio ser pertinen- parcela dos setores empobrecidos.
te sua análise para o campo da Educação — matriz disci- De qualquer modo, a delimitação da faixa etá-
plinar e paradigma não seriam considerados sinônimos. As-
ria para levantamento das dissertações e teses não
sim, “à diferença das Ciências Naturais, que os registram
em sucessão — num processo contínuo de substituição —
na Antropologia social os vemos em plena simultaneidade,
5 De acordo com Chamboredon o conceito de ciclo de
sem que o novo paradigma elimine o anterior pela via das
‘revoluções científicas’. Discorda assim de Kuhn (1975), pois vida, útil para fins descritivos, pode ser enganador se ele su-
nesse campo pode ocorrer a convivência, muitas vezes em gere a determinação natural dessas etapas e o caráter uni-
um mesmo país ou em uma mesma instituição de várias versal, homogêneo e estável de seu conteúdo (1985,.19).
matrizes. As idéias de Oliveira foram citadas por Maria Ar- 6Para Felicia Madeira, essa ampla faixa por ela estu-
minda Arruda (1995) em seu artigo sobre Florestan Fer- dada compreende de 15 a 19 anos os adolescentes e de 20
nandes e a Escola Paulista de Sociologia. Minha apropria- a 24 os jovens propriamente ditos. Os trabalhos de Madei-
ção do trabalho de Roberto Cardoso de Oliveira decorre, ra (1986; 1988; 1989) a partir dos anos 80 têm se constituído
assim, da leitura do estudo de Arruda (p.123). em uma importante referência sobre o tema no Brasil.

Revista Brasileira de Educação 39


Marilia Pontes Sposito

implica em mera atribuição burocrática, mas deve tência — seria ilustrado pela situação de posse de
sofrer cuidadoso critério de definição da pertinência habilitação profissional oferecida pelo sistema esco-
ou não do estudo em questão, possibilitando, em lar sem o imediato ingresso no mercado de traba-
alguns casos, a incorporação de pesquisas de faixas lho, situação típica de países como a França (Cham-
etárias um pouco anteriores ou superiores ao uni- boredon, 1985, 21). Considerando as relações pre-
verso 15-24 anos. sentes nos modos de reprodução das diversas clas-
As questões acima enunciadas são, visivelmen- ses sociais, torna-se também um desafio conceber
te, expressão de processos históricos peculiares que a multiplicidade e a desconexão das diferentes eta-
resultaram, nos últimos anos, na superação do “mo- pas dessa passagem para a vida adulta incorporando
delo de instalação” na passagem para a vida adul- as situações peculiares da vida urbana e rural7.
ta (Galland, 1991). Para Galland, a entrada na vida Além do critério etário e dos cuidados teóri-
adulta significa ultrapassar três etapas importantes, co-metodológicos de sua adoção, foi preciso recor-
delimitadas pela partida da família de origem, pela rer a outros procedimentos que permitiram incor-
entrada na vida profissional e pela formação de um porar os usos associados, ainda que indiretamen-
casal. Segundo este autor, os segmentos operários te, à noção de juventude8. A seleção dos trabalhos
eram caracterizados, no início do século, pela ins- foi feita, assim, a partir dos principais descritores
tantaneidade da passagem da infância à vida adul- utilizados pelos autores para definir sua aproxima-
ta e pela concordância necessária dessas três etapas. ção ao universo estudado, podendo envolver, cada
Em oposição, o modelo burguês delineava-se pela descritor, temáticas diversas. Um primeiro lote de
idéia do “diletantismo” que possibilitava adiar o trabalhos foi reunido a partir do uso direto da ex-
momento e as etapas definitivas de entrada na vida pressão jovem no corpo da investigação. O segun-
adulta sem renunciar, no entanto, a conhecer cer- do critério foi a seleção dos trabalhos que explici-
tas formas de independência. tamente utilizaram-se da categoria adolescentes e o
As transformações observadas nos sistemas terceiro pela adoção da categoria adolescentes em
escolares ao longo do século, que definiram um alon- situações de exclusão como os assistidos, carentes,
gamento da permanência no interior da escola para menores, meninos e meninas de rua (essa última
novos segmentos sociais e as condições diferenciais categoria foi contemplada pela seleção de estudos
de acesso ao mundo do trabalho — sem significar que incorporaram os adolescentes ou a população
a formação de uma nova unidade conjugal ou o de 14 a 17 anos). O quarto uso diz respeito à cate-
abandono da casa paterna — exigiram novas mo- goria aluno ou estudante e o quinto pela combina-
dalidades de compreensão para essa passagem, so- ção trabalhador-estudante ou aluno-trabalhador9.
bretudo nas sociedades urbanizadas, tanto centrais Finalmente, quanto aos recortes disciplinares
como periféricas. Chamboredon (1985) propõe, as- selecionados, embora a centralidade da investiga-
sim, a multiplicidade e a desconexão das diferen- ção se restrinja aos estudos ancorados nas discipli-
tes etapas de entrada na vida adulta. Em decorrên- nas compreendidas pelas Ciências Sociais (Sociolo-
cia, tanto a descristalização, significando dissocia-
ção no exercício de algumas funções adultas, e a
latência, que separa a posse de alguns atributos do 7 A essas situações poderiam ser acrescentados os te-
seu imediato exercício, seriam elementos importan- mas relativos ao gênero e às etnias.
tes para o estudo dos jovens nos dias atuais. O pri- 8 Esse uso é também reconhecido por Mauger (1994)
meiro caso — a descristalização — oferece como 9 Sob a categoria outros foram reunidos os trabalhos
exemplo o exercício das atividades adultas da se- que, não obstante considerarem a população em questão no
xualidade já na puberdade, dissociado das funções âmbito da faixa etária, utilizaram-se de descritores como
reprodutivas e familiares. O segundo caso — a la- atleta, militares, etc.

40 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Estudos sobre juventude em educação

gia, de forma dominante, seguida pela Antropolo- ção em Educação11. Esse índice comparativo sofre
gia e Política) não foi possível desconsiderar as ên- pequenas alterações no período, atingindo limites
fases derivadas da Psicologia no balanço da produ- superiores em 1981 (8,4%), 1985 (7,9%) e em
ção discente, em decorrência da tradição na pesqui- 1995 (6,4%). No entanto, é preciso reconhecer
sa educacional que sempre contemplou espaços im- que no interior da temática “Estudos sobre Juven-
portantes para estudos examinados à luz dos temas tude” há um sensível crescimento nos últimos
dessa disciplina10. anos, pois cerca de metade da produção está con-
De posse desses critérios iniciais foi preciso centrada nos anos 90. Embora esse incremento
percorrer a vasta produção do período (1980- seja significativo é preciso considerar que nesse
1995), sintetizada pelos resumos publicados nos mesmo período se observa, também, um cresci-
Cadernos da ANPEd, compreendendo 651 Teses e mento expressivo no número total de teses e dis-
5441 dissertações, perfazendo um total de 6092 sertações defendidas. Por essas razões é ainda pre-
trabalhos. Desse conjunto, até o momento foi le- matura qualquer inferência sobre um maior inte-
vantado um total de 217 dissertações e 27 teses resse sobre esse campo de investigações no interior
(Tabelas 1 e 2), correspondendo a 4% da produ- da área da Educação.

Tabela 1
Produção acadêmica discente em juventude 1980-1995
Ano Dissertações % Teses % Total Total %
1980 9 4 0 - 9 3,7
1981 13 6,5 0 - 13 5,2
1982 8 3,6 1 3,7 9 3,7
1983 0 - 0 - 0 -
1984 19 8,8 0 - 19 7,8
1985 16 7,2 2 7,4 18 7,4
1986 9 4 0 - 9 3,7
1987 12 5,5 0 - 12 5
1988 8 3,6 1 3,7 9 3,7
1989 18 8,2 7 26 25 10,2
1990 16 7,2 3 11,1 19 7,8
1991 13 6,5 1 3,7 14 5,7
1992 12 5,5 5 18,5 18 7,4
1993 12 5,5 1 3,7 13 5,2
1994 7 3,2 0 - 7 2,7
1995 45 20,7 6 22,2 51 20,8
Total 217 100 27 100 244 100

10 Não foram classificados os estudos que trataram de

componentes específicos do processo de ensino e aprendiza-


gem — os de natureza estritamente pedagógica — que visa-
11 Embora tenha sido possível levantar os resumos de
vam a uma percepção de questões relacionadas ao modo como
ocorre a absorção de conceitos, conteúdos e novas metodo- trabalhos do ano de 1980, mediante listagens oferecidas pela
logias de ensino. Não constam também do levantamento as ANPED, os dados globais da produção não integram esse
dissertações e teses que examinaram populações portadoras ano porque o CD-ROM, que reuniu as informações conti-
de algum tipo de deficiência. Sobre a presença dos temas psi- das em todos os cadernos, oferece informações a partir do
cológicos na pesquisa em educação consultar Warde (1993). ano de 1981.

Revista Brasileira de Educação 41


Marilia Pontes Sposito

Tabela 2
Participação da produção acadêmica em juventude sobre o total nacional 1981-1995
Série Produção acadêmica discente nacional Produção acadêmica discente em juventude
Ano Dissertações Teses Total Nac. Dissertações % Teses % Total Total %
1980** 9 0 9
1981 150 4 154 13 8 0 - 13 8,4
1982 161 4 165 8 5 1 25 9 5,4
1983 227 11 238 0 - 0 - 0 -
1984 319 17 336 19 6 0 - 19 5,7
1985 205 22 227 16 7,8 2 9,1 18 7,9
1986 211 16 227 9 4,2 0 - 9 4
1987 244 26 270 12 5 0 - 12 4,4
1988 340 31 371 8 2,3 1 3,2 9 2,4
1989 383 58 451 18 4,5 7 12 25 5,5
1990 419 41 460 16 3,8 3 7,3 19 4,1
1991 404 47 461 13 3,2 1 1,7 14 3
1992 537 87 624 12 2,2 5 6,9 18 2,9
1993 526 88 614 12 2,2 1 1,1 13 2,1
1994 612 86 698 7 1,1 0 - 7 1
1995 693 103 796 45 6,4 6 5,8 51 6,4
Total 5441 651 6092 217 4 27 4,3 244 4
* As porcentagens se referem ao total da produção da área de educação catalogadas no CD-Rom da ANPEd.
** O ano de 1980 não está computado no total de porcentagens, uma vez que o CD-Rom da ANPEd não fornece os dados
deste ano.

Tabela 3
Distribuição geográfica da produção acadêmica discente por Ufs e regiões
Região/Estado Dissertações Teses Total % Total
Centro-Oeste 8 0 8 3,2
Distrito Federal 3 0 3 1,2
Goiás 1 0 1 0,4
Mato Grosso 1 0 1 0,4
Mato Grosso do Sul 3 0 3 1,2
Nordeste 21 0 21 8,4
Bahia 7 0 7 2,8
Ceará 6 0 6 2,4
Paraíba 6 0 6 2,4
Piauí 1 0 1 0,4
Rio Grande do Norte 1 0 1 0,4
Sudeste 129 20 149 61,3
Espítito Santo 4 0 4 1,6
Minas Gerais 7 0 7 2,8
Rio de Janeiro 53 2 55 22,6
São Paulo 65 18 83 34,3
Sul 54 7 61 25,1
Paraná 8 0 8 3,2
Rio Grande do Sul 45 7 52 21,5
Santa Catarina 1 0 1 0,4
sem identificação 5 0 5 2
Total 217 27 244 100

42 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Estudos sobre juventude em educação

A distribuição geográfica da produção sobre nal (34,3% e 22,6%, respectivamente) (Tabela 3)12 .
o tema revela que a região Sudeste reuniu 61,3% No entanto verifica-se a presença marcante do es-
dos trabalhos defendidos nesse período, seguida da tado do Rio Grande do Sul, com 21,5% da produ-
região sul com 25,1%. Os estados de São Paulo e ção nacional nos estudos sobre juventude, reunida
Rio de Janeiro concentram 56,9% da produção nacio- em duas instituições (PUC/RS e UFRGS) (Tabela 4).

Tabela 4
Distribuição da produção acadêmica discente por entidades mantenedorasa
Instituição Dissertações Teses Total % Total
PUC/SP 25 9 34 14,1
UFRGS 25 6 31 12,8
PUC/RS 20 1 21 8,7
UNICAMP 17 2 19 7,9
PUC/RJ 13 2 15 6,2
UFRJ 14 0 14 5,8
USP 7 6 13 5,4
UFSCar 10 1 11 4,5
UFF 10 0 10 4,1
IESAE 10 0 10 4,1
UFPR 8 0 8 3,2
UFBA 7 0 7 2,8
UERJ 6 0 6 2,4
UFCE 6 0 6 2,4
UFMG 6 0 6 2,4
UFPB 6 0 6 2,4
UFES 4 0 4 1,6
PUCCAMP 3 0 3 1,3
UFMS 3 0 3 1,2
UnB 3 0 3 1,2
UNIMEP 3 0 3 1,2
UFGO 1 0 1 0,4
UFMT 1 0 1 0,4
UFPI 1 0 1 0,4
UFRN 1 0 1 0,4
UFSC 1 0 1 0,4
UFU 1 0 1 0,4
sem identificação 5 0 5 2
Total 217 27 239 100
a Faltam os dados sobre as entidades mantenedoras relativos a cinco dissertações do ano de 1980

12 A concentração dos Programas de Pós-Graduação


na Região Sudeste e Sul, aliada à sua longevidade, explica,
à primeira vista, a maior incidência de trabalhos defendi-
dos, pois os dados coletados seguem, praticamente, as pro-
porções do conjunto da área, como demonstra o estudo de
Warde. No período de 1982/1991 a região Sudeste ficou
responsável por 67,7% e a região sul por 19,5% do total
da produção discente.

Revista Brasileira de Educação 43


Marilia Pontes Sposito

Os descritores utilizados pelos autores referem- Em termos de grau de ensino, a escolaridade de pri-
se, sobretudo, às definições do sujeito a partir de sua meiro e segundo graus recobre a maioria desses in-
condição de aluno ou estudante, compreendendo teresses temáticos e a pesquisa sobre ensino superior
59,1% dos trabalhos. Desse conjunto (144), 38 es- dedicou-se, principalmente, ao estudo do destino
tudos se referiram diretamente à categoria estudante- ocupacional e expectativas profissionais dos alunos,
trabalhador (15,6,% sobre o total dos descritores). buscando traçar seu perfil13. Os temas relativos aos
O restante criou formas de aproximação do sujeito aspectos psicossociais dos sujeitos investigados, tais
a partir de outras categorias tendo como foco de in- como valores, julgamento moral, capacidade críti-
vestigação, os adolescentes (15,2%), jovens (13,5%), ca e representações integram 21,7% da produção,
adolescentes em situação de exclusão (9%) (Tabela 5). sendo desenvolvidos por estudos que utilizaram so-
O tema constitui um dos elementos importan- bretudo o termo adolescente como descritor, em sua
tes para descrever e caracterizar essa produção. Con- grande parte caracterizados por abordagens mais
siderando-se apenas o tema principal é possível per- próximas das orientações da Psicologia.
ceber que as relações dos jovens com as formas ins- As relações entre trabalho e educação no âm-
titucionais do processo educativo, compreendendo bito da faixa etária ocuparam 17,3% dos temas e o
a escola (primeiro e segundo graus), os cursos no- conjunto restante de assuntos investigados, compre-
turnos e ensino superior, significaram 44,8 % dos ende 16,2% das dissertações e teses distribuídas em
assuntos tratados nas dissertações e teses (Tabela 6). âmbitos diversos. Nesse último bloco, caracterizado

Tabela 5
Distribuição da produção acadêmica discente por descritores
Descritores Dissertações Teses Total % Total
Estudante 95 11 106 43,5
Estudante-trabalhador 34 4 38 15,6
Adolescente 32 5 37 15,2
Jovem 28 5 33 13,5
Adolescente excluído 20 2 22 9
Outros 8 0 3 3,2
Total 217 27 44 100

Tabela 6
Distribuição da produção acadêmica discente por temas pesquisados
Tema Dissertações Teses Total % Total
Escola 41 1 42 17,3
Trabalho e Educação 36 6 42 17,3
Cursos noturnos 29 3 32 13,1
Ensino superior 22 8 30 12,3
Aspectos psicossociais 27 1 28 11,5
Representações 21 4 25 10,2
Participação política 11 1 12 4,9
Projetos de atendimento 8 2 10 4,1
Meios de comunicação 6 0 6 2,4
Grupos juvenis 4 1 5 2
Violência 2 0 2 0,8
Outros* 10 0 10 4,1
Total 217 27 244 100
* Inclui prática de esporte, educação ambiental, educação militar, prostituição infanto-juvenil

44 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Estudos sobre juventude em educação

pela sua baixa freqüência, concentram-se alguns te- lises sobre grupos juvenis (gangues, galeras, grupos
mas mais próximos dos estudos clássicos da Socio- musicais) que foram objeto de investigação de apenas
logia da Juventude. Dentre eles estão presentes as 5 trabalhos (2%) ou violência (0,8%) constituem os
investigações desenvolvidas em torno do movimento últimos grupos em termos de freqüência. A categoria
estudantil e da participação política compreendendo outros, reunindo estudos muito díspares quanto ao
12 trabalhos (4,9% do total da produção sobre ju- tema, inclui educação ambiental, educação militar,
ventude). Temas como projetos e instituições destina- prostituição infanto-juvenil e prática de esportes.
das aos adolescentes em situação de risco, envolven- Se considerarmos a seqüência temporal tanto
do propostas alternativas estão presentes em 4,1% na utilização dos descritores como nas preferências
dos trabalhos selecionados e, em menor número, as temáticas alguns indícios importantes de mudança
pesquisas envolvendo jovens e mídia (2,4%). As aná- de ênfase podem ser verificados (Tabelas de 7 a 10).

Tabela 7
Distribuição (ano a ano) da produção acadêmica discente por descritores
Descritores Jovem Adolescente Estudante Estudante Adolescente Outros Total
Ano trabalhador excluído
1980 - 2 6 - 1 - 9
1981 - 3 7 1 1 1 13
1982 1 1 4 - 3 - 9
1983 - - - - - - -
1984 - 3 14 1 1 - 19
1985 3 6 6 2 - 1 18
1986 2 2 4 1 - - 9
1987 2 - 7 1 1 1 12
1988 3 1 4 1 - - 9
1989 1 4 10 5 4 1 25
1990 3 1 9 5 - 1 19
1991 3 3 3 3 2 - 14
1992 1 2 8 5 1 - 17
1993 3 1 3 6 - - 13
1994 1 - - 5 1 - 7
1995 10 8 21 2 7 3 51
Total 33 37 106 38 22 8 244
Total % 13,5 15,2 43,5 15,6 9 3,2 100

Tabela 8
Distribuição (a cada 5 anos) da produção acadêmica discente por descritor
Descritores 80-84 85-89 90-95 Total
Jovens 2% 15% 17,4% 13,5%
Adolescente 18% 17,8% 12,4% 15,2%
Estudante 62% 42,5% 36,4% 43,5%
Estudante trabalhador 4% 13,7% 21,5% 15,6%
Adolescente excluído 12% 5,5% 9% 9%
Outros 2% 5,5% 3,3% 3,2%
Total 100% 100% 100% 100%

13 Como exemplo, citaríamos estudos que trataram de

carreiras, como o perfil do estudante de enfermagem, etc.

Revista Brasileira de Educação 45


Marilia Pontes Sposito

Quanto ao uso de descritores pode ser obser- cançando proporção maior já nos primeiros cinco
vado o decréscimo gradativo da utilização do ter- anos da década de 90 (17,4%) (Tabelas 7 e 8). A
mo adolescente (de 18% no período 80-84 para este dado pode se acrescentar um decréscimo nas
12,4% na fase mais recente); verifica-se o aumen- categorias relativas à condição escolar — de 66%
to da freqüência para o descritor jovem, pratica- no primeiro período para 57,5% — aliado a uma
mente inexistente no início dos anos 80 (2%), al- significativa alteração no modo de sua abordagem.

Tabela 9
Distribuição (ano a ano) da produção acadêmica discente por temas pesquisados
Ano 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 Total
Tema
Escola 3 4 1 - 2 3 1 3 1 5 4 1 2 1 - 11 42
Educação e
Trabalho 1 2 1 - 5 2 - 2 1 5 - 4 5 5 2 7 42
Cursos
Noturnos - - - - - 3 1 - 1 1 6 2 6 1 4 5 30
Ensino
Superior - - 1 - 6 1 2 2 1 6 4 1 2 3 - 3 32
Aspectos
Psicossociais 5 4 3 - 3 2 1 - 1 1 1 2 1 - - 5 28
Representações - 1 - - 2 4 1 - 2 5 - 1 1 3 - 5 25
Grupos
juvenis - - - - - 1 - - - - - - - - 1 3 5
Projetos de
Atendimento - 1 2 - 1 - - - - 1 - 1 - - - 3 10
Participação
política - - - - - 1 2 1 1 - 2 1 - - - 4 12
Violência - - - - - - - - - - 1 - - - - 1 2
Meios de
Comunicação - 1 1 - - 1 1 - - - 1 - - - - 1 6
Outros - - - - - - - 4 1 1 - 1 - - - 3 10
Total 9 13 9 - 19 18 9 12 9 25 19 14 17 13 7 51 244

Tabela 10
Distribuição (a cada 5 anos) da produção acadêmica discente por temas pesquisados
Descritores 80-84 85-89 90-95 Total
Escola 20% 17,8% 15,7% 17,3%
Trabalho e educação 18% 13,7% 19% 17,3%
Ensino Superior 14% 16,5% 10,8% 13,1%
Cursos Noturnos - 8,2% 19,9% 12,3%
Aspectos psicossociais 30% 6,9% 7,4% 11,5%
Representações 6% 16,5% 8,2% 10,2%
Participação política - 6,9% 5,7% 4,9%
Projetos de atendimento 8% 1,3% 3,3% 3,7%
Meios de comunicação 4% 2,7% 1,7% 2,4%
Grupos juvenis - 1,3% 3,3% 2%
Violência - - 1,7% 0,8%
Outros - 8,2% 3,3% 4%
Total 100% 100% 100% 100%

46 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Estudos sobre juventude em educação

O descritor estudante atingia 62% dos trabalhos e e, sobretudo, cursos noturnos tenderam o ocupar
passa, no último período, para 36,4%, ao passo que espaços mais relevantes, diminuindo as investiga-
estudante-trabalhador de 4% no período 80-84 ções em torno da escola sem o recurso a essas adje-
atinge 21,5% nos anos 90. tivações. As temáticas emergentes dos anos 90 com-
O modo de aproximação do sujeito expresso preendem o exame dos agrupamentos e as formas
no uso dessas categorias oferece alguns elementos de violência no horizonte da sociabilidade juvenil,
importantes para a reflexão. De um lado parece que ampliando os estudos sobre jovens, anteriormente
a ênfase em categorias consagradas da Psicologia — restritos à participação política (sobretudo no mo-
adolescente — tende a diminuir, envolvendo um mo- vimento estudantil).
vimento contrário de aumento da categoria jovem,
mais próxima da tradição sociológica. Por outro la- Algumas considerações para a análise
do, o advento e disseminação da categoria estudan-
te-trabalhador revelam a busca de mecanismos de Várias interrogações se impõem ao investiga-
aproximação da realidade escolar capazes de inte- dor, após o exame desses dados ainda preliminares,
grar outros aspectos das relações sociais — o traba- resultantes do levantamento empreendido sobre a
lho — em que parte significativa de seus sujeitos está produção discente na Pós-Graduação em Educação
mergulhada. Chama a atenção a presença de estu- de 80 a 95.
dos no início dos anos 80 sobre adolescentes em si- A pequena participação do que amplamente
tuação de exclusão e uma pequena recuperação de poderíamos designar como Estudos sobre Juventu-
sua freqüência nos anos 90. Esses dados indicam, de em Educação decorre das características da pró-
ainda, pequeno grau de permeabilidade da academia pria produção, marcada pela dispersão e variação
à problemática desses segmentos. Intensamente de- temática, de acordo com as análises responsáveis
batido na segunda metade dos anos 80 e consagra- pela avaliação acadêmica da área (Gatti, 1983 e
do em nova ordenação institucional em 1990 com Warde, 1993). Assim, a “dispersão e a variação te-
o Estatuto da Criança e do Adolescente, o tema na mática continuam a ser características predominan-
área educacional não sofreu tratamento acadêmico tes sobre a unidade e a continuidade. Não se trata
suficiente de modo a oferecer uma contribuição crí- de diversidade, traço positivo a ser conquistado e
tica para a formulação de políticas públicas. preservado, mas de: a) fragmentação dos temas nu-
As ênfases temáticas (Tabelas 9 e 10), ao lon- ma multiplicidade de subtemas ou assuntos; b) pul-
go desses 15 anos, também oferecem elementos para verização dos campos temáticos e c) descontinuida-
reiterar certas observações já verificadas na análi- de no trato dos assuntos” (Warde, 1993, 69).
se dos descritores. A sensível diminuição da freqüên- Mas a investigação realizada por Warde apon-
cia de assuntos em torno dos aspectos psicossociais ta, também, a preferência por temas pedagógicos,
da faixa etária parece indicar um decréscimo da apresentando um índice rápido de crescimento na
presença de matrizes disciplinares da Psicologia na época (1982-1991) principalmente os trabalhos so-
análise dos sujeitos (de 36% para 15,6% nos anos bre o ensino de disciplinas ou áreas de estudo, com-
90) 14. Os assuntos relativos a educação e trabalho preendendo gama variável de aspectos tais como
metodologias, técnicas de ensino, didáticas, plane-
jamento, entre outros (Warde, 1993, 57).
14 Tanto o decréscimo da presença da vertente psico-
A ênfase nas pesquisas de natureza estritamen-
lógica como o incremento de uma possível abordagem an-
te pedagógica, de acordo com Warde, parece decor-
corada nas Ciências Sociais não indicam, em si mesmos,
progressos ou regressões no campo de estudos. A análise rer da entrada na Pós-Graduação, nos anos 80, de
mais detida dessas inflexões só poderá ser empreendida me- um número não desprezível de professores e técni-
diante avaliação em profundidade dos trabalhos. cos de ensino ligados, por formação e atuação, ao

Revista Brasileira de Educação 47


Marilia Pontes Sposito

ensino de primeiro e segundo graus e, em menor dução discente, a inexistência de relativa porosidade
quantidade, ao ensino superior. Ao que tudo indi- capaz de absorver dimensões da sociabilidade do
ca, interessados em compreender a escola, esses pes- educando que afetariam os patamares em que se dá
quisadores voltaram-se, sobretudo, para a investi- a sua experiência escolar. As pesquisas estariam
gação de aspectos pedagógicos, revelando forte in- privilegiando no desvelamento do sujeito apenas a
teresse no processo de aprendizagem mas com es- sua condição mais visível de aluno.
cassa ênfase no conhecimento do aluno, em nosso Um ponto importante de inflexão nesse uni-
caso adolescentes ou jovens, enquanto sujeito ao verso de dissertações e teses se verifica na adoção
qual se destina a atividade educativa da escola. da categoria estudante-trabalhador no âmbito das
Tal fato parece auxiliar, também, na explica- investigações que também procuraram entender a
ção do isolamento da área em relação às demais escola noturna e as relações entre educação e tra-
ciências humanas, estabelecendo apenas em alguns balho 15. Ou seja, para grande parte da população
temas e por parte de alguns pesquisadores “um di- escolar, a categoria aluno não possibilitaria uma
álogo diferençado com outras áreas de investigação aproximação mais global de suas práticas escola-
social” (Warde, op. cit., 69). res, interesses e formas de sociabilidade. Por essas
Essas questões iniciais já permitem uma inda- razões a pesquisa voltou-se para o exame dessas
gação importante. Nesse campo de estudos levan- formas híbridas que caracterizariam a experiência
tados pelo conjunto de dissertações e teses, cujos educativa da maioria da população de origem tra-
dados preliminares foram aqui apresentados, per- balhadora ou excluída da sociedade brasileira. Se
cebe-se a sua fraca participação no conjunto da pro- essa suposição é correta, as investigações mais re-
dução da área nos últimos quinze anos. Mas, nas centes recorrem a novas abordagens, incluindo aque-
teses e dissertações reunidas estaria ocorrendo esse las que dizem respeito às formas associativas e de
diálogo apontado por Warde, mediante a constitui- expressão cultural dos segmentos juvenis na medi-
ção de uma área, ainda que incipiente, de estudos da em que se acentua a crise da escola e sua capa-
de natureza sociológica sobre jovens no interior da cidade de intervenção socializadora sobre a popu-
pesquisa em Educação? Ou, reduzindo as expecta- lação em idade escolar. A compreensão da vida es-
tivas, e propondo a questão de forma mais modes- colar estaria, assim, exigindo novos aportes da pes-
ta, poderíamos admitir a hipótese de que no inte- quisa, uma vez que além da sua escassa capacida-
rior dos estudos sobre a Educação estaria sendo de de transmissão de conhecimentos e valores con-
contemplada, ainda que em caráter incipiente, uma siderados legítimos pela sociedade, estaria ocorren-
forma de aproximação inspirada nas disciplinas do no seu interior a emergência de formas de soci-
compreendidas pelas Ciências Sociais para a análi- abilidade juvenil não contempladas nas investiga-
se do sujeito ao qual se destina o processo educativo, ções (Dubet, 1987 e 1991, Dubet e Martuccelli,
particularmente na faixa etária que recobre os seg- 1996). Ao que tudo indica estaria ocorrendo um
mentos juvenis? Seriam apenas os temas psicológi- padrão de esgotamento das análises sobre a escola
cos o campo privilegiado de interlocução com ou- no Brasil que privilegiariam apenas a experiência
tras áreas de investigação social? pedagógica e os mecanismos presentes na distribui-
Se considerarmos que a maioria dos pesquisa-
dores, conforme já apresentado, utilizou-se do tema
15 O primeiro trabalho localizado data de 1981, em-
escola e dos descritores que examinam a condição
bora não utilize a expressão estudante-trabalhador, trata do
de aluno ou estudante, poderíamos supor, ao con-
estudante que trabalha, como forma de aproximação do
trário, que este seria, ainda, um aspecto reiterador sujeito, tentando apreender as especificidades da escola no-
das características gerais da produção discente na turna. A dissertação foi posteriormente publicada sob o tí-
área. Seria então observada, nesse universo da pro- tulo Ensino noturno realidade e ilusão (Carvalho, 1984).

48 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Estudos sobre juventude em educação

ção do conhecimento escolar sem levar em conta situações pedagógicas desenvolvidas no âmbito da
outras dimensões e práticas sociais em que está mer- escola, eixo central mas não exclusivo do processo
gulhado o sujeito16 . educativo na sociedade moderna (Cândido, 1973).
Por outro lado, seria preciso reconhecer que Utilizando-se da significação heurística atribuí-
uma certa abertura da pesquisa em Educação às da por Znanieck (1973), que considerava a escola
disciplinas constitutivas das Ciências Sociais (em como grupo social instituído, no artigo “A estru-
especial a Sociologia) estaria fortalecida se esse cam- tura da escola” Cândido (1973 a) desenvolve um
po do conhecimento tivesse reservado em seus do- excelente roteiro de investigação para a análise da
mínios uma atenção aos fenômenos educativos e aos unidade escolar. O caminho proposto procurava
estudos sobre juventude. Este, entretanto, não foi dar conta do universo de relações que compunham
o caminho seguido. sua estrutura e funcionamento. Assim, tornava-se
O início dos estudos sociológicos sobre edu- preciso investigar não só os mecanismos que tradu-
cação no Brasil indicava um caminho promissor e zem a ação deliberada dos grupos instituidores, ex-
fecundo para o desenvolvimento de pesquisas so- pressos nas ordenações advindas do Poder Público,
bre a escola que merece ser retomado. Em 1955, ao como sua forma de sociabilidade interna que nas-
realizar um balanço das tendências predominantes ce na dinâmica do próprio grupo, em decorrência
no pensamento sociológico sobre a Educação, An- das orientações e — tomo a liberdade de acrescen-
tônio Cândido identificava três grandes orientações: tar — do padrão de interações de seus agentes: cor-
uma primeira — filosófica-sociológica — qualifica- po administrativo, professores, alunos e suas famí-
da por suas preocupações em definir o caráter so- lias. Essa sociabilidade, dizia Cândido, poderia ser
cial do processo educativo, estabelecendo as articula- investigada tanto nas formas espontâneas de agru-
ções gerais entre o funcionamento da sociedade e pamento e nos mecanismos produzidos para a sua
a educação; a segunda vertente — pedagógico-so- sustentação, como na sala de aula17.
ciológica — buscava os elementos teóricos que pu- Em suas reflexões pioneiras, Cândido não se
dessem ser traduzidos na possibilidade do bom fun- detém nesses aspectos e também aponta não só fe-
cionamento da escola, mas se transformava em com- cundos caminhos para uma nascente Sociologia da
ponente da Pedagogia e da Administração Escolar; Educação, mas contempla o espaço possível para
e, finalmente, um ramo em vias de constituição, a uma abordagem sociológica sobre juventude, arti-
Sociologia da Educação, que tentava ao mesmo culada ao campo dos estudos sociológicos sobre a
tempo afastar-se do caráter especulativo da primeira educação.
tendência e do imediatismo presente na segunda Ao levantar elementos importantes para a aná-
orientação. lise das situações pedagógicas da escola e do proces-
Propunha Cândido que a Sociologia da Edu- so educativo, Cândido assinalava a inevitável ten-
cação voltasse sua atenção para os aspectos sociais são existente entre as gerações. Tratava-se de criti-
do processo educacional, sem transformar a expli- car a “ilusão pedagógica” de Durkheim (Durkheim,
cação dada na chave mestra, que reduziria as situa-
ções particulares ao que estaria estabelecido e in-
terpretado “a priori” em seus aspectos mais gené- 17 Os trabalhos de Luiz Pereira, sua dissertação de
ricos. Sugeria, também, a analise sociológica das mestrado, “A escola numa área metropolitana” (1967) e o
artigo “Rendimentos e deficiências do ensino primário bra-
sileiro”, publicado no livro Estudos sobre o Brasil contem-
16 A tese de doutorado de Guimarães (1995), que pri- porâneo (1971), ilustram a adoção dessas vertentes inspi-
vilegiou no estudo da escola pública da cidade do Rio de Ja- radas em Cândido. João Baptista Borges Pereira (1976) tam-
neiro as suas relações com as galeras de jovens e o narco- bém em sua dissertação de mestrado, publicada sob a for-
tráfico traduz essas tentativas de novos aportes. ma de livro em 1966, se utiliza das formulações de Cândido.

Revista Brasileira de Educação 49


Marilia Pontes Sposito

1975) que examinou o tema da educação sem es- foram desenvolvidas por pesquisadores isolados ou
tabelecer os conflitos entre os adultos e os imatu- por raros grupos de pesquisa19.
ros (jovens e crianças) que condicionariam o pró- Assim, se as Ciências Sociais no Brasil não de-
prio processo de instrução. senvolveram nos últimos 25 anos, com raras exce-
Os estudos de Marialice Foracchi constituem, ções, um campo sólido nos estudos sobre juventu-
até os nossos dias, o exemplo melhor sucedido de de, a pesquisa em Educação, quando se debruçou
tratamento do tema. Na busca da compreensão da sobre os sujeitos do processo educativo não encon-
educação brasileira, dos dilemas nascidos no inte- trou nessa área do conhecimento possibilidades de
rior de uma sociedade dependente, a pesquisadora fértil interlocução.
voltou sua atenção para os jovens. Analisou uma Não obstante o maior desenvolvimento dos
categoria construída historicamente na dinâmica estudos sobre juventude na França, Mauger (1994)
dos embates entre as classes, mas que não se esgo- ainda aponta em seu balanço que a Sociologia da
tava no âmbito dessa relação. Seus trabalhos reve- Juventude, enquanto domínio de pesquisa socioló-
lam as tentativas, impasses e as alternativas gestadas gica nesse país, revestido de forte audiência políti-
no esforço desenvolvido pelos jovens estudantes ca e de intenso teor profético ainda padecia de fra-
universitários para se afirmarem como sujeitos dos ca legitimidade científica e pouca consistência teó-
conflitos e das lutas sociais dos anos 60 (Foracchi, rica no início dos anos 90. Propunha, esse autor, a
1965; 1972; 1982). seguinte questão, é necessário ajudá-la a ser ou a
A evolução das Ciências Sociais no Brasil com- desaparecer? Para nós essa indagação se apresenta
preendeu o abandono da educação que se tornou de forma mais aguda, pois só recentemente o tema
objeto quase inexistente para os sociólogos18 e o da juventude tem aparecido no debate público e
escasso desenvolvimento do tema da juventude, político, recoberto pelos processos de exclusão so-
após a morte prematura de Marialice Foracchi. As cial que atingem crianças e adolescentes nas deno-
dissertações e teses defendidas na própria USP são minadas “situações de risco”. A ampla faixa que
esparsas, não só na Sociologia como na Antropo- completa 18 anos só se constitui interesse pelos ín-
logia e na Ciência Política. Não se configura nem dices de violência associados a esse segmento. A
uma sólida tradição investigativa no campo inicia-
do por Foracchi e, muito menos, a disseminação de
equipes constituídas em torno do tema. Quando a 19 A pesquisa em andamento pretende realizar balan-
preocupação se fez presente, as dissertações e teses ço de dissertações e teses sobre juventude no campo das
Ciências Sociais, esgotando o eixo Rio-São Paulo. Há uma
publicação, em 1987, sobre jovens, “Bibliografia sobre la
18 Sobre as relações entre os sociólogos e a Educação juventud brasilera” que apresenta títulos, reunindo artigos
consultar os artigos de Luiz Antonio Cunha, (1992 e 1994). de periódicos, livros e teses, levantados mediante consulta
Um balanço realizado por Silke Weber sobre a produção aos acervos de centros situados em São Paulo (Celaju, 1987).
recente no país da pesquisa que estabeleceu as relações en- O trabalho importante de balanço da literatura realizado por
tre educação e sociedade, elencou as seguintes linhas de es- Alvim e Valladares (1988), final dos ano 80, abriu perspec-
tudo: Estado e educação, Universidade e sociedade e Edu- tivas no campo dos estudos sobre crianças e adolescentes em
cação Popular, compreendendo a educação de adultos e os situação de exclusão, oferecendo subsídios para a análise do
movimentos sociais pela escola pública. Weber reitera o desenvolvimento dos estudos sociológicos sobre juventude.
relativo desinteresse dos sociólogos pela educação apoian- A publicação de Cardoso e Sampaio (1995) em torno da
do-se em levantamento realizado por Clarice Baeta Neves produção na área, reúne estudos importantes mas não ofe-
em 1991, que havia localizado apenas 4 programas, dentre rece um quadro sistemático da produção devido a um vo-
os 13 existentes no país na área de Sociologia, que desen- lume significativo de trabalhos que não foram considerados
volviam pesquisas em temas explicitamente ligados à edu- e à ausência de periodização e classificação das fontes na
cação (Weber, 1992). forma como a bibliografia foi apresentada.

50 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Estudos sobre juventude em educação

fraca visibilidade da questão na esfera pública bra- CHAMBOREDON, Jean-Claude, (1985). Adolescence et
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ção, a partir de meados dos anos 90, tendem a in- CEDES, 27)
corporar categorias sociológicas e parecem acenar
CUNHA, Luiz Antonio, (1992). Reflexões sobre as condi-
com novas perspectivas. Talvez estejam sendo cri- ções sociais de produção da sociologia da educação: pri-
adas as condições para um diálogo mais fecundo e meiras aproximações., Tempo Social, São Paulo, v. 4, n.
promissor com os cientistas sociais interessados no 1-2. (Editado em 1994)
tema, de modo a se constituir uma área sólida de DUBET, François, (1987). La galère: jeunes en survie. Pa-
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52 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Jovens urbanos pobres
Anotações sobre escolaridade e emprego

Jerusa Vieira Gomes


Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo

Muito se tem escrito sobre a relação entre po- ças que ingressam nas escolas de primeiro grau apre-
breza, escolaridade e oportunidades de emprego nas senta dificuldades de aprendizagem e de ajustamen-
últimas décadas. Algumas das idéias de maior im- to, o que explica, em grande parte, os elevados ín-
pacto foram disseminadas e apropriadas como cer- dices de repetência, de fracasso e de evasão-expul-
tezas, a despeito do cuidado de seus respectivos auto- são escolar; a luta pela estrita sobrevivência é res-
res no sentido de evitar totalizações. Em conseqüên- ponsável pelo trabalho precoce de amplo contingen-
cia, a tentativa de rediscutir qualquer uma delas te infanto-juvenil que, por esse motivo, abandona
constitui, sempre, um empreendimento de alto risco1. a escola; as oportunidades de emprego dependem
No Brasil, as principais dessas certezas talvez do nível de escolaridade alcançado; as novas tecno-
sejam: é crescente a demanda por educação nas ca- logias e a globalização da economia tendem a im-
madas populares, o que indica o valor a ela atribuí- por exigências mais elevadas de escolaridade quer
do nesse nível de classe; a grande maioria das crian- para o ingresso quer para a permanência no empre-

1 Bourdieu usa a expressão certezas partilhadas, em re- A força do pré-construído está em que, achando-se inscrito
lação às quais cabe a dúvida radical. Nas ciências sociais “as ao mesmo tempo nas coisas e nos cérebros, ele se apresenta
rupturas epistemológicas são muitas vezes rupturas sociais, com as aparências da evidência, que passa despercebida por-
rupturas com as crenças fundamentais de um grupo e, por que é perfeitamente natural. A ruptura é, com efeito, uma
vezes, com as crenças fundamentais do corpo de profissio- conversão do olhar(...). E isso não é possível sem uma ver-
nais, com o corpo de certezas partilhadas que fundamenta a dadeira conversão, uma metanoia, uma revolução mental,
communis doctorum opinio. Praticar a dúvida radical em socio- uma mudança de toda a visão do mundo social. (ibidem, p.49)
logia é por-se um pouco fora da lei.” (1989, p.38-9). É ainda Porém, temas como o tratado neste texto implicam riscos ain-
ele quem diz: “Tratando-se de pensar o mundo social, nun- da maiores. Afinal, a falácia da neutralidade científica já foi
ca se corre o risco de exagerar a dificuldade ou as ameaças. suficientemente desmistificada em nosso tempo.

Revista Brasileira de Educação 53


Jerusa Vieira Gomes

go, em todos os níveis da hierarquia ocupacional; pela literatura, a vida escolar de cada sujeito depen-
os índices de desemprego e de exclusão social ten- de, também, de sua história singular de socializa-
dem, doravante, a afetar, prioritariamente, as po- ção no seu grupo doméstico de origem3. Ou seja: a
pulações menos escolarizadas. Em vista disso, pre- história de escolarização de uma família particular
vê-se que as desigualdades escolares repercutam ca- ilumina a história singular de seus filhos. No caso
da vez mais nas oportunidades de emprego dispo- de famílias populares a escolarização é uma expe-
níveis ao trabalhador e, em especial, ao jovem tra- riência recente, o que se reflete na escolarização das
balhador pobre2 . novas gerações4. Não bastasse isso — e por mais
Por certo essas idéias são verdadeiras, mas nem paradoxal que esta afirmação possa soar em tem-
são conclusivas nem estão livres de interpretações pos de modernização da produção —, a escolarida-
equivocadas. É o que parece ocorrer em relação de parece constituir um critério ainda secundário
àquelas que dizem respeito à evasão/expulsão esco- quando estão em jogo os emprego acessíveis ao jo-
lar e ao elevado valor atribuído pelos jovens pobres vem nesse nível de classe. À medida que o jovem se
à educação escolar. E, ainda, àquelas que, implíci- dá conta disso é-lhe mais difícil reconhecer a impor-
ta ou explicitamente, reconhecem na escolaridade tância do saber escolar.
o critério mais relevante a ser requerido para o in- As proposições acima assumidas fundamen-
gresso e a permanência no emprego, em decorrên- tam-se em dados da literatura, internacional e na-
cia das novas condições de trabalho. No sentido de cional, e em resultados de pesquisas de campo de-
contribuir para o esclarecimento delas, este artigo senvolvidas com jovens pobres na região metropo-
assume o desafio de recolocar duas questões: Em litana de São Paulo, conforme veremos a seguir.
que medida a escola é verdadeiramente valorizada
pelo jovem pobre e por seu grupo doméstico? Qual Pobreza e escolaridade: breve
a perspectiva de valorização do critério escolaridade (re)leitura de alguns escritos
no caso dos empregos acessíveis ao jovem urbano
pobre? Respondê-las talvez nos ajude a desvendar Paul Willis (1977), um dos autores mais influen-
uma outra face do processo de evasão/expulsão, tes sobre o pensamento construído nesse campo,
ainda insuficientemente estudada, e que se relacio- aponta-nos as dificuldades de escolarização de crian-
na à história familiar de socialização. Ou, mais es- ças e de jovens urbanos da classe operária. Ele tece
pecificamente, à história familiar de escolarização. sua explicação em termos culturalistas, de oposição
Sem dúvida, a justificativa para retomar duas entre as esferas (zonas) formal e informal da vida
questões tão antigas assenta-se na suposição de que, quotidiana. Para ele, o grupo informal é a unidade
além dos diversos fatores já sobejamente analisados básica de uma cultura e, nessa medida, a sua fonte
de resistência. Assim, explica a indisciplina e a eva-
são escolar entre esses jovens em termos de respos-
2 O fato de o sistema escolar brasileiro reproduzir as
desigualdades sociais e os altos índices de reprovação e de
evasão no 1º Grau foi reconhecido, no início do corrente ano
3 A importância da socialização familiar e, nela, da
letivo, pelo atual Ministro da Educação que, em entrevista
à imprensa, afirmou: “O número de alunos que concluem mediação foi por mim analisada em textos anteriores. Veja-
o primeiro grau é apenas a metade dos que ingressam, e os se, especialmente: Gomes (1990, 1993 e 1994).
níveis de evasão escolar e repetência são muito elevados.(...) 4 No caso brasileiro, embora os estudos realizados e/
O sistema reproduz a injustiça social. (...) Na medida em que ou orientados por Maria Helena Souza Patto (ex. Patto,
os os filhos da classe média entrem na escola pública, os pais 1990) expliquem a produção/reprodução pelas instituições
vão se interessar pelo ensino. (cf. Jornal do Brasil, 16-02- escolares, cabe, ainda, aprofundar o conhecimento sobre os
97, p.12). aspectos sociais e familiares envolvidos nesse processo.

54 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Jovens urbanos pobres

ta (oposição) do grupo informal às demandas da sociais, Boudon já aconselhava-nos que, embora


zona formal, ou seja, da escola5. fosse extensa a literatura sobre a relação entre he-
A despeito das inúmeras críticas que lhe foram rança cultural e desigualdades sociais, duas propo-
e ainda são dirigidas, seu trabalho constitui um mar- sições essenciais (segundo ele estabelecidas pelos
co, uma referência obrigatória, e contém pistas para trabalhos de Girard e colaboradores na França) de-
outras pesquisas. A mais importante delas, tendo em veriam ser retidas: “a primeira é que a herança cul-
vista o propósito deste artigo, consiste nesse reco- tural joga um papel importante na geração das de-
nhecimento de uma certa resistência à escolariza- sigualdades sociais diante do ensino; a segunda que
ção, quando tantos acadêmicos talvez ainda acre- esta influência é particularmente sensível na juven-
ditassem que o desejo de saber, implícito nos mo- tude” (Boudon, 1979, 99).
vimentos pró-escolarização, já seria suficiente para Além disso, Boudon também chamava a aten-
o bom êxito dos empreendimentos individuais. Mes- ção para os “fatores ligados à estrutura familiar.”
mo considerando discutível a interpretação em ter- E, a partir de dados fornecidos pela literatura in-
mos de cultura (e contra-cultura) de classe, tão em ternacional, dizia:
voga naqueles tempos, esse fenômeno de resistên-
Estes diferentes resultados sugerem que o nível
cia tem-se revelado persistente nos mais diversos
de aspiração escolar do filho depende da imagem so-
países.
cial que a família tem dela mesma. Esta imagem é o
Porém, Willis vai ainda mais longe quando:
produto complexo, não somente do status sócio-pro-
refere-se à organização social da escola, discute a
fissional do pai, mas igualmente da história da família
influência parental sobre a escolarização dos filhos
e da história escolar dos membros da família nuclear
e, sobretudo, quando chama a nossa atenção para
(Boudon, 1979, 101).
a influência dos valores e das atitudes que os pais
manifestam em relação à escola sobre os valores e E é em função dessa história familiar que o
as atitudes dos filhos, pelo menos até que eles am- autor explica a decisão a ser tomada pelo sujeito e
pliem o círculo de relações sociais e escapem à in- sua família no sentido de dar ou não continuidade
fluência parental direta. Em suma, o que Willis aca- ao projeto individual de escolarização. Segundo ele,
ba pondo em jogo, penso, é a necessidade de estu- todo sistema de ensino contém momentos críticos
dos comparativos sobre a educação familiar e a edu- nos quais o aluno se depara com a necessidade de
cação escolar. decidir sobre continuar ou não sua vida escolar. E
Alguns anos antes, revendo os principais estu- permanecer ou não “depende de um processo de
dos até então divulgados sobre as desigualdades decisão cujos parâmetros são funções da posição
social ou posição de classe. A partir de sua posição,
os indivíduos ou as famílias têm uma estimativa
5
diferente de custos, riscos e benefícios antecipados
“A oposição à escola manifesta-se principalmente na
que estão associados a uma decisão” (cf. Boudon,
luta para conquistar espaço físico e simbólico da instituição
e suas regras e para derrotar aquele que é percebido como op.cit., 117).
o principal propósito dela: fazer você ‘trabalhar.’ (...) O Mas, na análise de Boudon, além da importân-
faltar às aulas dá apenas uma medida imprecisa — até mes- cia atribuída à história familiar — em termos de
mo sem sentido —, da rejeição à escola. Isso acontece não relação estreita entre nível escolar e status social de
apenas por causa da prática de passar na sala para registrar
origem —, deve interessar-nos o fato dele reconhe-
a presença antes de sair (...) mas também porque mede ape-
cer que o nível escolar é um dos “mecanismos es-
nas um aspecto daquilo que podemos descrever mais acura-
damente como a mobilidade estudantil informal.(...) Eles senciais de determinação do status de destinação”
constróem virtualmente seu próprio dia a partir daquilo que (Boudon, ibidem 305).
lhes é oferecido pela escola.” (Willis, 1977, 26-27) E é isso que o sujeito individual pesa em cada

Revista Brasileira de Educação 55


Jerusa Vieira Gomes

momento decisivo: permanecer na escola é garan- gem rural e uma história familiar de analfabetismo
tia de melhores condições de vida e de trabalho no ainda recente. Ou seja, o jovem contemporâneo,
futuro? Ou seja, o quanto um grau escolar mais habitante dos cortiços e das periferias metropolita-
elevado é capaz de garantir, nesse nível de classe, nas é, em geral, filho e neto de semi-alfabetizados
melhores empregos? ou de analfabetos. Dito de outro jeito, a vida esco-
A antecipação desses riscos e benefícios é, ain- lar dos avós e dos pais do jovem metropolitano po-
da hoje, facilitada pela história de vida dos compa- bre, na melhor das hipóteses, foi bastante incom-
nheiros ou dos vizinhos mais velhos. Esta suposi- pleta e precária, a maior parte sequer chegou a con-
ção implica outra: para esses jovens a escola (e o cluir o primeiro grau7.
saber por ela promovido) tem pouco ou nenhum Se assumirmos também dois dos conceitos cen-
valor em si; o valor a ela atribuído depende de suas trais de Bourdieu — de capital cultural e de apren-
possíveis conseqüências para a vida adulta de cada dizagem por familiarização insensível —, o nosso
um deles. E a escola perde valor para os mais novos problema pode, então, ser colocado nos seguintes
à medida que eles vão se dando conta do fraco im- termos: o valor que as pessoas atribuem à educa-
pacto da escolaridade na vida da geração anterior 6. ção escolar é propocional à familiaridade delas com
Mas, por que a escola parece destituída de um as coisas que dizem respeito à escola. No caso das
valor em si? A resposta a esta pergunta talvez tam- populações pobres essa familiaridade — a partir da
bém explique de maneira mais satisfatória a chama- experiência direta e/ou vicária — é, historicamen-
da resistência encontrada por Willis e por ele in- te, recente. Em conseqüência, é possível supor que,
terpretada, conforme vimos anteriormente, em ter- nesse nível de classe, é recente e ainda está em cur-
mos de contra-cultura escolar. A pergunta que se so o processo de incorporação da escola e do valor
nos apresenta é: o que têm em comum esses jovens atribuído à escolaridade ao capital cultural famili-
urbanos pobres que os leva a atribuir tão frágil valor ar a ser herdado pelas novas gerações. À medida que
à escolaridade? O que há de comum entre eles, além essa apropriação é recente e, pois, incompleta a ma-
da pobreza, que funciona como aspecto distintivo nifestação dela só pode ser frágil8.
de seus grupos informais quando comparados a gru- Em contrapartida, para os jovens oriundos de
pos informais de jovens urbanos pertencentes a ou- outros níveis de classe, e com uma história familiar
tros níveis de classe? de escolarização mais antiga, este já é um valor in-
Seguindo a pista de Boudon, e reconstruindo corporado ao capital cultural herdado. Na verda-
a história dessas populações, descobriremos (em de, a grande distinção entre uns e outros reside no
diversos países, embora em graus variados) um as-
pecto distintivo dos mais relevantes, penso: a ori-
7 Sobre a escolarização de crianças e de jovens em
regiões semi-rurais de Portugal, exemplo quase extremo des-
6 Ao comentar os dados por ele obtidos em pesquisa ses conflitos, dadas as peculiaridades do país, dentre os estu-
sobre a relação família, escola e trabalho, com jovens do dos já divulgados veja-se: Araújo e Stöer (1993); Esteves
Norte de Portugal, diz Esteves: “a escolarização já não tem (1995); Teixeira (1993); Vieira (1992).
o mesmo impacto motivacional nos diversos grupos sociais, 8 Estudos sobre bairros populares reconhecem a exis-
não sendo por isso de estranhar — bem pelo contrário — tência, neles, de populações pertencentes a diversos níveis
que assuma formas muito desiguais o investimento que nela de classe, ou melhor, de diversos níveis de pobreza. Porém,
se faz. (...) A medida desse (des)investimento é indiretamente neste trabalho os níveis de pobreza não são levados em con-
dada pelo facto e pelo grau de exclusão ou admissão de situa- ta. A expressão mesmo nível de classe baseia-se na suposi-
ções de vida que concorrem com a escolarização na utiliza- ção de que, do ponto de vista da estrutura de classes, a gran-
ção de recursos tão escassos e tão importantes como o tempo, de maioria é de pobres e possui uma história sócio-cultural
o dinheiro, a energia psíquica, etc (Esteves, 1995, p. 53-54). mais ou menos assemelhada.

56 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Jovens urbanos pobres

grau em que esse valor foi aprendido, ou não, no população. Nesse sentido, refere-se aos dados obti-
interior dos grupos domésticos de origem. À guisa dos por Schmidt e Miranda (1977) na região metro-
de exemplo, consideremos: é notória a irregulari- politana de Belo Horizonte, os quais são indicativos
dade da freqüência às aulas entre as populações do efeito positivo da elevação da renda familiar so-
pobres. De outra parte, nas demais camadas a ex- bre a escolaridade. Em contrapartida, levanta a pos-
periência escolar é vivida com toda a força de sua sibilidade de que em grupos economicamente mais
inevitabilidade tão logo ela tenha início, desde os favorecidos outros fatores podem ser relevantes.
primeiros anos de vida.
Nesses casos, a análise de trajetórias individuais
A idéia de uma apropriação ainda incomple-
a partir da condição familiar haveria certamente de
ta do valor atribuído à escolaridade ajuda, sem dú-
revelar a influência, ora de atitudes altamente favo-
vida, a esclarecer aspectos ainda obscuros da rela-
ráveis a uma escolaridade mais prolongada, relacio-
ção família-escolaridade, especialmente no que con-
nadas inclusive com o valor simbólico que um diplo-
cerne às escolhas dos jovens de ambos os sexos em
ma superior possa ter para a família, ora de capital
momentos decisivos da existência de cada um de-
cultural, consolidado através de duas ou mais gerações
les. De acordo com a literatura, a jovem vê-se tes-
(Gouveia, op. cit. 114).
tada em três momentos decisivos quando deve es-
colher entre a vida doméstica e a escolar, ou a ma- A pergunta inevitável é: por que só nos casos
ternidade e a escola, ou o emprego e a escola. No de grupos em “situação econômica mais favorável”
caso do jovem o conflito é, quase sempre, entre es- as atitudes famíliares, consolidadas através de gera-
cola e trabalho. Em todos esses momentos em que ções sucessivas, influenciariam a extensão da escola-
a vida lhes impõe uma escolha, a preterida costu- ridade dos mais novos? Com base na breve (re)lei-
ma ser a escola 9 . tura levada a cabo até agora, é lícito supor uma
Dentre os estudos que, direta ou indiretamen- estreita relação entre atitudes familiares e duração
te, lidam com a relação pobreza-escolaridade no da escolaridade. Em outras palavras, as atitudes
Brasil retomemos, tendo em vista os propósitos e familiares influenciam a extensão da escolaridade
os limites deste artigo, os de Gouveia (1981), Spo- individual sejam elas: favoráveis consolidadas, ou
sito (1993) e Fonseca (1994). favoráveis pouco consolidadas ou até mesmo as des-
Gouveia é, na comunidade científica brasilei- favoráveis. Ou seja, o grau de influência deriva da
ra, uma das pioneiras no estudo da relação entre localização de um grupo familiar particular em uma
desigualdades educacionais e origem social. Ao re- escala de variação que abrange desde as atitudes
ferir-se à persistência do fenômeno em diversos paí- mais favoráveis já consolidadas até às mais desfa-
ses, ela também sugere que a questão talvez não se voráveis. Eis, pois, uma das preciosas pistas de tra-
resolva “inteiramente com a oferta de vagas ou in- balho legadas por Gouveia: a necessidade de inves-
centivos governamentais e nem mesmo com a alte- tigar, além da renda, quais características da famí-
ração das condições materiais que, na família, res- lia de origem podem estar relacionadas ao nível de
tringem ou dificultam a freqüência à escola e o pros- escolaridade alcançado pelo sujeito individual.
seguimento da escolaridade” (Gouveia,1981, 113). No que concerne a Sposito, em seu criterioso
E considera a possibilidade de influência de trabalho sobre movimentos populares e a luta por
outros fatores sobre a extensão da escolaridade, educação em São Paulo nos anos 80, ela faz referên-
dentre os quais as necessidades ou aspirações da cia explícita ao que denominou “a recusa da escola”.

As críticas e a recusa da escola contêm também


9A esse respeito, dentre outros, veja-se os trabalhos percepções diferenciadas da prática escolar. Os jovens
de: Gouveia, 1981; Teixeira, 1993). que conseguiram permanecer na escola, concluir o

Revista Brasileira de Educação 57


Jerusa Vieira Gomes

primeiro ou o segundo grau, exprimem suas insatis- ser buscada na força da apropriação (ou inculcação,
fações ante a educação a que têm acesso; ocorre um se preferirem) do valor atribuído à escolaridade, nas
processo de ‘desfetichização’ do saber escolar. Na ver- diversas camadas sociais.
dade, quanto mais existe a possibilidade de frequen- Quanto a Fonseca (1994), a sua é uma pesqui-
tar a escola, quanto mais longo é o percurso escolar, sa antropológica realizada com moradores de um
maior a crítica. Manifesta-se uma forma de desencan- bairro popular de Porto Alegre, com o objetivo es-
to, de descrédito diante do conjunto de expectativas pecífico de apreender as prioridades por eles esta-
que produziram a vontade de acesso à instrução (Spo- belecidas e que, supostamente, determinam a edu-
sito, 1992, 381). cação dos filhos, tendo em vista a preparação de-
les para a vida adulta. Pressupondo que a hierar-
Assim, na linha anteriormente apontada por quia de prioridades deriva da escala de valores de
Gouveia, Sposito também estabelece a estreita re- quem a estabelece, quer se trate de indivíduos ou
lação entre atendimento às expectativas familiares de grupos ou de instituições, essa pesquisa lida, ine-
e a extensão da vida escolar. Porém, em decorrên- vitavelmente, com os valores predominantes nas
cia do modelo de pesquisa de campo adotado, ela populações estudadas. No que tange à vida escolar,
aprofunda a análise dessa relação e nos oferece uma os dados obtidos por Fonseca são aparentemente
contribuição significativa sobretudo ao reconhecer desconcertantes, embora corroborem a suposição
que: à conquista da escola, após árduos e intensos assumida neste artigo. Vejamos algumas de suas
movimentos protagonizados pelos habitantes de um principais afirmações: a educação formal faz aparen-
bairro, seguem-se, por uma série de motivos, o de- temente pouca diferença na vida das pessoas; a vida
sencanto, o descrédito e, finalmente, a recusa à es- escolar não é uma experiência “familiar” para todos
cola (recusa que pode ser meramente temporária ou eles; a escola não ocupa um lugar central nas preo-
definitiva). cupações das pessoas, que têm suas rotinas cotidi-
Mas, embora desencanto, descrédito e recusa anas ordenadas por outras prioridades; há consen-
sejam experiências singulares, lembremo-nos: cada so quanto à necessidade de saber ler e escrever e de
sujeito compartilha sua experiência com familiares, que cabe à escola promover essas aprendizagens.
amigos, vizinhos, parentes e até mesmo com com- A partir desses e de outros resultados, a auto-
panheiros de trabalho. Nesse sentido, também os ra conclui: “Para entender o lugar da escola no sis-
sentimentos e as representações a elas associados tema de valores dos grupos populares no Brasil ur-
são, progressivamente, disseminados no meio social bano, é necessário refletir sobre o processo amplo
de pertencimento. Portanto, tendem a ser compar- de socialização que, neste contexto, prepara a crian-
tilhados por contingentes populacionais cada vez ça para a vida, dotando-a de conhecimentos úteis
mais amplos e significativos. Não faltará quem nos e integrando-as às redes sociais adequadas” (Fon-
aponte a generalidade desse fenômeno, verificável, seca, op. cit., 155).
inclusive, em camadas abastadas da sociedade bra- É exatamente isto que venho fazendo há mais
sileira atual10 . A diferença, contudo, também pode de uma década: estudos sobre a socialização de jo-
vens e a trajetória deles da família à escola e ao traba-
lho. Algumas de minhas descobertas, penso, ajudam
10
De acordo com notícia veiculada em jornal cario- a esclarecer o tema proposto neste artigo.(cf. Gomes,
ca, a educadora Zaia Brandão, ao comentar sobre a quali- 1987 e 1996) Porém, elas só podem ser melhor com-
dade de ensino no Rio, além de defender as escolas próxi-
preendidas à luz de alguns dos mais relevantes es-
mas às casas, teria reconhecido que: “No fundo, a escola é
muito menos importante do que nós imaginamos.” (Jornal
tudos anteriores, especialmente daqueles em cuja
do Brasil,16/02/97, p. 27) E a população pobre, mais do que tradição, de certo modo, inscrevem-se os meus pró-
qualquer outra, cedo se apercebe disso. prios trabalhos (p. ex. Willis, Boudon e Bourdieu).

58 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Jovens urbanos pobres

O retorno aos autores revela, vimos, a antiguidade lho dependem do nível de escolaridade alcançado
de muitas questões e de tentativas de interpretações — crê-se que as novas tecnologias imponham exi-
delas com as quais nos debatemos até hoje. E, so- gências mais elevadas de escolarização —, de que
bretudo, repõe a família e a socialização no cerne maneira o jovem conseguia empregar-se sem sequer
da análise da relação entre pobreza e escolaridade. concluir o primeiro grau?
Para responder a essas e outras perguntas re-
Transição família, escola, trabalho alizei (de 1988 a 1992) uma segunda pesquisa: um
estudo longitudinal das trajetórias de adolescentes
Minha primeira pesquisa sobre socialização e de jovens (participantes da pesquisa anterior) da
consistiu em um estudo geracional (três gerações família à escola e ao trabalho. Para complementá-
consecutivas) acerca da ação socializadora familiar, la, foi aplicado um questionário aos alunos matri-
com base na reconstrução das histórias de vida (Go- culados em uma escola pública das redondezas (27
mes, 1987). Nela, também foram colhidas informa- alunos de uma mesma turma), de maneira a obter
ções sobre as experiências escolares dos sujeitos e dados sobre a história escolar e ocupacional deles
de seus familiares, mas essas informações não cons- e de seus respectivos grupos domésticos (Gomes,
tituíam o objetivo primordial. No curso do tempo 1996).
dei-me conta de um dado assaz intrigante e insti- O conjunto dos dados, ao mesmo tempo em
gante: portadores de uma tradição rural e de anal- que confirma as suposições iniciais assumidas nes-
fabetismo recente, todos os entrevistados — avós, te texto, aponta-nos outras descobertas ainda mais
mães, crianças e jovens — manifestavam, em suas desconcertantes e instigantes do que as anteriores.
falas, interesse, valorização e expectativas razoavel- Senão, vejamos: com raras exceções, esses jovens
mente elevadas no que diz respeito à escolaridade; são filhos e netos de semi-alfabetizados e de analfa-
em contrapartida, a grande maioria daqueles que betos; até, aproximadamente, a idade de 11 a 12
freqüentavam a escola apresentava fraco empenho anos a escola constitui, junto com a família, o cen-
em sua vida escolar particular. A cada dia eviden- tro da vida infantil, a partir de então começa a per-
ciava-se uma discrepância maior entre discurso e der importância; quanto à expectativa de escolari-
vida, sobretudo à medida que alguns deles entravam zação enquanto os mais velhos deles fazem refe-
e saíam da escola sem que estivessem, de fato, pre- rência à oitava série, os mais novos mencionam o
midos por qualquer necessidade material mais ime- segundo grau; quase todos os discursos contém o
diata. Ao contrário, alguns jovens manifestavam reconhecimento do valor da escolaridade prolon-
acentuada intolerância à rotina escolar, e pareciam gada mas, em contrapartida, é comum a história
buscar no trabalho um substitutivo dela. Ou seja, de repetências sucessivas; há quem assuma sem
para esses, o trabalho parecia ser mais atraente e constrangimento visível o fato de não gostar de es-
mais convincente do que a escola. Aliás, um avô tudar; a grande maioria limita a importância da
chegou mesmo a dizer-me, com muita naturalida- escola a ensinar leitura, escrita, aritmética e alguns
de: “a escola não tem importância mesmo, só ser- conhecimentos gerais. Em suma, parece generali-
ve para ensinar a viver com os outros.” zada a discrepância entre a fala que idealiza a es-
As perguntas que se me colocavam, então, cola e a vida escolar da maioria deles. Por certo há
eram: por que esses jovens deixavam a escola? A exceções, mas raras. É o caso de uma jovem, par-
precariedade das escolas e o trabalho docente ina- ticipante da pesquisa longitudinal: cultivou desde
dequado eram explicações suficientes para as ati- criança o gosto pelo estudo; com obstinação en-
tudes escolares de crianças e de jovens? Em que me- frentou os sucessivos obstáculos impostos pela po-
dida a história familiar de escolaridade ajudava a breza e, finalmente, acabou ingressando em um
explicá-las também? Se as oportunidades de traba- dos cursos de Ciências Humanas (USP). Quando

Revista Brasileira de Educação 59


Jerusa Vieira Gomes

ainda cursava a oitava série já relacionava escola- larizados. Ou a jovens com uma qualificação edu-
conhecimento: cacional mínima. De fato, os primeiros empregos
são conseguidos em empresas, comerciais ou fabris,
Se você encarar a escola como uma coisa de obri-
de pequeno ou de médio porte localizadas na região.
gação aquilo fica chato. Você tem que ir à escola pen-
E quase todas elas já são informatizadas e adotam
sando que você vai aprender uma coisa legal, tendo
modernos padrões de gerenciamento e de produção.
em mente que vai aprender uma coisa importante para
Dessa aparente contradição deriva a terceira
você. Conhecimento é bom para as pessoas. A escola
pesquisa, com o objetivo de identificar os critérios
serve para outras coisas também, por exemplo, seu
de seleção e de recrutamento utilizados em uma des-
relacionamento com outras pessoas.
sas fábricas — uma metalúrgica de médio porte,
Mas, nem mesmo essa jovem — uma exceção fabricante de componentes microeletrônicos. (Go-
entre seus companheiros e em seu meio — considera mes, 1996) É uma fábrica moderna, razoavelmen-
necessária a escolarização prolongada para todos. te informatizada, sobretudo no setor de produção.
E esclarece: “não precisa ir até a oitava série. No Porém, a escolaridade está longe de constituir um
meu caso é porque eu quero saber, quero aprender, critério relevante de recrutamento. De acordo com
quero estudar, quero ir ao máximo que eu puder, a encarregada de selecionar os candidatos a empre-
só por vontade de saber. Eu sei que quero, não sei go, os critérios são: “ser não-fumante; ter boa apa-
justificar porquê.” rência (ser digno, limpo, honrado); ser dinâmico,
Nessa mesma época, rapazes e moças entre 14 flexível, rápido; uma pessoa atirada; ter boa coor-
e 21 anos, alunos da escola pública, revelam uma denação motora e habilidade manual; e, sem ser
apreensão vaga e elementar da importância da es- eliminatório, talvez o primeiro grau.”
cola. Até mesmo nas respostas mais consistentes, Esse testemuho é confirmado pela Gerente de
claras e objetivas também acabam restringindo essa Qualidade (engenheira), que esclarece enfaticamente:
importância ao ensino e à aprendizagem da leitu-
Antes da escolaridade, bem antes, é a boa von-
ra, da escrita e da aritmética. Há, todavia, quem a
tade, a vontade de trabalhar naquela empresa. Gos-
justifique relacionando essas aprendizagens às exi-
tar da empresa, gostar de trabalhar, querer trabalhar.
gências do mercado de trabalho: “se você não sabe
Esta é a qualificação exigida e que deve funcionar co-
ler, tem dificuldade em qualquer trabalho” (moça,
mo critério de seleção. Ela precisa saber fazer conta,
16 anos). Generalizada mesmo, entre eles, é a cons-
precisa conhecer matemática e precisa saber escrever,
ciência de ser suficiente e bastante um domínio ape-
o resto ela vai aprender aqui dentro. Bastaria o pri-
nas elementar dessas habilidades para o sujeito con-
meiro grau.
quistar e garantir o emprego. Nesse sentido, é exem-
plar a fala de um dos jovens informantes: “a gente Quanto às perspectivas futuras, essa mesma
vê cara que só tem terceira série de hoje e trabalha engenheira (formada em escola de renome) é céti-
na mesma fábrica, no mesmo setor que o outro mais ca em relação à maior exigência de escolaridade. E
estudado.” justifica:
Aliás as biografias dos jovens participantes da
a informática não preocupa; precisa ter cursi-
pesquisa atestam a veracidade dessa assertiva: a gran-
nho? Não. Todos os bons que eu conheço aprende-
de maioria realiza a transição para o trabalho en-
ram sozinhos. No futuro vai mudar a escolaridade?
tre 12 e 14 anos de idade, antes mesmo de concluir
Na minha opinião isso é uma pré-seleção de pregui-
o primeiro grau. Dado no mínimo intrigante em
çoso, de firma que não tem diretrizes.
tempos de modernização empresarial e de globa-
lização da economia. É visível a existência de uma O Gerente de Produção (engenheiro), por seu
massa de empregos acessíveis a jovens pouco esco- turno, revela-se reticente e evasivo. Ao final, após

60 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Jovens urbanos pobres

salientar a importância atribuída à educação esco- Qual as vantagens desse tipo de análise? A prin-
lar em sua família de origem, diz: “Claro que a es- cipal delas, penso, é a de obrigar-nos a enfrentar as
colarização maior será importante. Se não for para dificuldades inerentes à história cultural e social
ingressar e/ou se manter no emprego, será impor- familiar. Reconhecer a força da resistência deriva-
tante para viver melhor.” da de uma história recente de analfabetismo fami-
Por certo podemos estar diante de um caso liar é condição sine qua non para que a escola atue
isolado, não generalizável. Todavia, as histórias dos no sentido de vencer tais resistências. Para tanto os
jovens participantes das pesquisas corroboram todas esforços dela precisam ser redobrados. A sua tare-
essas afirmações: nenhuma empresa exigiu deles um fa primordial, inicialmente, haverá de ser a de con-
certo grau de escolaridade por ocasião da seleção. vencer as novas gerações de estudantes de que o
E não eram fabriquetas de fundo de quintal11. saber escolar é importante para a vida pessoal e
Ora, se é frágil a atribuição de valor ao saber social, a despeito das atuais exigências associadas
escolar em si e se, de outra parte, a escolaridade é ao mundo do trabalho. Este é o desafio posto.
percebida como tendo pouco impacto, conseqüên-
cias insuficientes na vida adulta de cada um deles, Referências bibliográficas
de fato o esforço a ser dispendido na condição de
aluno é sentido como demasiado, é desproporcio- ARAÚJO, Helena, C.; STÖER, Stephen, (1993). Genea-
nal, não lhes parece compensador. logias nas escolas: a capacidade de nos surpreender. Por-
to: Afrontamento.
E tudo indica que esse esforço é percebido e
sentido pouco compensador porque os custos en- BOUDON, Raymond, (1979). L’inégalité des chances. Pa-
ris: Armand Colin.
volvem, também, aspectos subjetivos. A maior es-
colaridade traz, em si mesma, a ameaça de afasta- BOURDIEU, Pierre, (1987). A excelência e os valores do
sistema de ensino francês. In: MICELI, Sérgio (org). A
mento dos grupos de pertencimento: da família, dos
economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva.
amigos, dos vizinhos e dos parentes em geral. Ou
__________, (1989). O poder simbólico. Lisboa: Difel
seja. Nos custos são avaliadas as possíveis perdas
de laços afetivos significativos, que é mais ameaça- BROWN, Phillip, (1989). Schooling for inequality? Ordi-
nary kids in school and the labour markert. In: COSIN,
dora à medida que são apoios da identidade.
Ben (org). School, work & equality. London:Hodder and
Essa percepção talvez ajude a esclarecer o es-
Stoughton,
tabelecimento prévio do grau escolar a ser atingi-
CAPECCHI, Vittório, (1993). École et formation profes-
do, em cada geração (oitava série ou segundo grau).
sionnelle en Italie. La Documentation Française: Paris,
É possível supor que esse nível reflita o os novos (44):67-80.
patamares econômicos e sociais alcançados pela ESTEVES, Antonio J., (1995). Jovens e idosos: família, es-
família singular. Mas, sobretudo, tal determinação cola, trabalho. Porto: Afrontamento,
se realiza em coerência com a história familiar e do
FONSECA, Cláudia, (1994). Preparando-se para a vida:
grupo de pertencimento. reflexões sobre escola e adolescência em grupos popula-
res. Em Aberto. Brasília: INEP, (61):144-155.
GOMES, Jerusa V, (1987). Socialização: um estudo com fa-
mílias de migrantes em bairro periférico de São Paulo. São
Paulo: IPUSP, Tese (Doutorado em Psicologia). (mimeo).
11 Sobre as exigências de escolaridade em empresas,
__________, (1990). Socialização: um problema de media-
veja-se: a) Capecchi,V. École et formation professionelle en
ção?. Psicologia-USP. São Paulo: IPUSP, (1):57-65, 1990.
Italie. La Documentation Française, Paris (44):67-80, 1993;
b) Kawamura, L. e Noronha, O.M. (coord.). Qualificação __________, (1993). Relações família e escola: continuida-
do trabalho face às novas tecnologias: parâmetros culturais. des e descontinuidades no processo educativo. Idéias. São
Campinas, FE-UNICAMP, 1993 (mimeo). Paulo: FDE, (16):84-92, São Paulo.

Revista Brasileira de Educação 61


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62 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Escola noturna e jovens

Maria Ornélia da Silveira Marques


Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia

Este artigo faz parte de reflexões desenvolvidas na tese de doutoramento defendida pela autora na Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo (USP), em dezembro de 1995.

A qualidade da escola noturna leva para uma compreensão do papel da escola no-
turna, tanto no âmbito da oferta de vagas, quanto
A discussão sobre a democratização e a qua- da qualidade dos seus cursos, pois é nessa escola de
lidade da escola brasileira tem gerado calorosos de- terceiro ou quarto turno que se encontra a maioria
bates. Todos os que se debruçam sobre essas ques- dos jovens estudantes que tentam conciliar a neces-
tões concordam que houve um considerável aumen- sidade de sobrevivência e os estudos. Em alguns
to da oferta de matrículas e que esse aumento da estados do Nordeste, a escola noturna representa
oferta não foi acompanhado pela melhoria da quali- mais de 80% da matrícula do segundo grau. Segun-
dade da escola. As divergências surgem quanto aos do dados de matrícula de 1993 para todo o Estado
indicadores de qualidade, o que implica uma com- da Bahia, fornecidos por técnicos da Secretaria de
preensão do papel da educação no processo de de- Educação do Estado, mais de 50% da matrícula de
senvolvimento do país. Se, para alguns, seu papel 5ª a 8ª séries do 1º grau está concentrada no perío-
é formar cidadãos conscientes, participativos, com- do noturno. Há regiões administrativas do interior
prometidos com um novo modelo de sociedade, pa- do Estado em que este percentual chega a ser de
ra outros, a educação é concebida como a possibili- 78% nas 8ª séries. Em Salvador, os maiores per-
dade do país sair da crise em que se encontra e como centuais estão nas escolas localizadas nas periferias
estratégia de desenvolvimento. No âmbito dessa da cidade.
segunda concepção se coloca o conceito liberal de Será essa presença significativa da escola no-
qualidade de ensino. Nesta perspectiva, os indica- turna uma forma de democratização do ensino?
dores de qualidade estão submetidos a critérios de Seus destinatários são todos trabalhadores? Parti-
competitividade, produtividade, controle, etc. mos do princípio de que não é somente a situação
Essa discussão sobre a democratização e a qua- de trabalhadores que esteja provocando a ida dos
lidade da educação brasileira, necessariamente, nos jovens para a escola noturna. Talvez, mais do que

Revista Brasileira de Educação 63


Maria Ornélia da Silveira Marques

a situação de trabalho, a exclusão através de re- na de 1º grau (5ª a 8ª séries) a partir de um de seus
petências e o abandono da escola seja um fator de- atores — o aluno. É possivel que na luta cotidiana
terminante dessa busca pela escola noturna. Pude- desses pequenos atores, na luta por um espaço de
mos verificar, em estudo feito em uma escola no- sociabilização1, na busca do poder da escola como
turna de um bairro da periferia de Salvador, que a forma de sobrevivência, na conciliação entre esco-
maioria dos alunos já passou pelo processo de re- la e trabalho possa ser gestada uma nova identida-
petência (72%) e 41% já abandonou a escola. Do de coletiva. Acreditamos, também, que ao tentar-
total de alunos da 5a série somente 26% tem idade mos decifrar suas angústias, esperanças e sonhos
entre 14-15 anos, quando, em tese, já deveriam es- podemos estar contribuindo para que estes jovens
tar concluindo a 8a série. sejam portadores de uma nova utopia, construto-
Por outro lado, a abertura dos cursos notur- ra de um novo projeto pedagógico para a escola
nos tem sido um dos artifícios utilizados pelos sis- brasileira, em particular para a escola noturna.
temas estaduais de ensino para responder às pres- A tentativa de fazer uma nova leitura dessa
sões sociais, ampliando a rede sem grandes inves- realidade foi se constituindo como nosso problema.
timentos. Discutir, pois, a democratização e a qua- Tínhamos a certeza de que as análises pautadas na
lidade do ensino básico exige um olhar especial para centralidade do trabalho já não eram suficientes,
a escola noturna, lugar por excelência onde os jo- embora importantes, para explicar a presença dos
vens trabalhadores buscam não só a qualificação jovens na escola noturna. Estávamos convictas, tam-
para o trabalho, uma ocupação mais digna, o sa- bém, que à essa escola se reservava uma outra fun-
ber para a sobrevivência, mas também um espaço ção social. Nossas dúvidas eram muitas. Como com-
de sociabilidade e de troca de experiências que ul- preender esse aluno? A partir de que categorias de
trapassam as dimensões do processo instrucional. análises? Onde buscar um referencial teórico que
Qualquer diretriz democratizadora da escola contemplasse outras dimensões do aluno na sua du-
pública deve resgatar a discussão político-pedagó- pla condição de jovem e trabalhador? Qual seria a
gica da qualidade do ensino noturno na direção de função dessa escola noturna? O que os jovens es-
um novo projeto para este curso que não signifique, peram dessa escola? Quais as suas necessidades?
a exemplo do que vem ocorrendo em alguns pro- Onde se estruturam essas necessidades? Por que o
gramas de educação básica para jovens e adultos, jovem, mesmo após várias repetências e abandono,
o aligeiramento ou a banalização das finalidades retorna à escola? O que representa essa escola no-
básicas do ensino de 1º grau. Um modelo próprio turna para os jovens?
para os cursos noturnos só será construido a partir Assim, construimos nosso referencial teórico
de uma avaliação mais densa, sistemática e objetiva em autores que centram seus estudos da sociedade
da sua prática e das representações dos seus princi- em paradigmas mais amplos, limitando a influên-
pais atores: os professores e alunos.Temos clareza
que as respostas às questões que envolvem dimen-
sões relativas à qualidade do ensino não se esgotam 1 Neste estudo, o conceito de sociabilidade e/ou socia-
no plano pedagógico, pois uma discussão meramen- bilização é aquele referendado por Gilberto Velho no livro
te técnica do problema qualitativo escamoteia seus Subjetividade e sociedade: uma experiência de geração
aspectos políticos na medida em que não se analisa (1986). Citando Simmel, o autor fala de sociabilidade como
uma forma lúdica da associação e sua principal caracterís-
a qualidade do ensino no âmbito das questões relati-
tica é não estar presa a necessidades e interesses específicos,
vas aos grupos sociais que estão tendo acesso ou não
ou seja a sociabilidade tem um fim em si mesma. A sociabi-
à atividade pedagógica, à cultura sistematizada. lidade é entendida como valorização da amizade, das reu-
O presente estudo pretendeu, pois, contribuir niões, das conversas, das festas, dos encontros e dos diálo-
para o conhecimento da realidade da escola notur- gos, despidos de um caráter mais instrumental.

64 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Escola noturna e jovens

cia da classe social e a centralidade do trabalho nas a família. Portanto, trata-se de compreender as di-
determinações da sociedade. Suas análises tentam versas formas de socialização e sociabilidade dos jo-
recuperar a perspectiva do ator, seu ponto de vis- vens filhos da classe trabalhadora, que moram nos
ta, sua identidade. Identificam novos sujeitos, pe- bairros periféricos das grandes cidades brasileiras
netram na esfera do cotidiano. Ampliam, portan- e que estudam em escola noturna. Esta, por sua vez,
to, as possibilidades de explicação das formas de será analisada e compreendida, também, como um
organização da ação e de mobilização nas socieda- dos espaços prováveis da sociabilidade do jovem
des contemporâneas, afastando-se dos paradigmas trabalhador, possível de gestar novas identidades
clássicos da sociologia marxista da luta de classes. coletivas.
Buscam construir uma nova teoria do social, dos O conceito de juventude gerado pelo modelo
processos que levam à produção e reprodução da urbano industrial de desenvolvimento se baseia nu-
sociedade. Esse referencial permitiu-nos estruturar ma transformação das relações existentes entre a
o nosso trabalho tendo como objetivo traçar o perfil família e o trabalho no que se refere ao processo de
do aluno do ensino de 1º grau regular noturno da socialização (Sandoval, 1986). Essa transformação
escola pública e analisar como esse aluno representa se dá quando o processo de sociabilização do jovem
a escola. Apesar da precoce inserção do jovem no passa a ser de responsabilidade da educação e esta
mercado de trabalho, seja pela premência das ne- é concebida como meio de formar mão-de-obra
cessidades de sobrevivência da família, seja como qualificada para o modelo de vida urbana, para as
busca de autonomia e consumo, o mundo do traba- ocupações que requerem um certo grau de escola-
lho não é mais uma referência central para os jovens ridade. Nesse momento, o jovem é identificado com
trabalhadores. Ao buscarem a escola como forma o estudante.
de “melhorar de vida”, de “subir na vida”, estes jo- Para Eisenstadt (1976), o sistema escolar sur-
vens estão construindo nos seus interstícios situa- ge porque a família e as relações de parentesco não
ções propiciadoras de afirmação de suas identidades. são mais capazes de assegurar uma transmissão con-
tínua e fácil dos conhecimentos e das disposições dos
A juventude como categoria social papéis. Assim, o mundo da escola é o mundo de gru-
pos etários bem definidos. A escola seria, portanto,
A constatação de que a escola noturna é fre- o primeiro estágio de transição da vida familiar para
quentada, na sua maioria, por jovens entre 14 e 24 uma sociedade regulada por princípios universalistas.
anos nos mostrou a necessidade de se construir um Segundo o autor, a juventude aparece como uma
conceito de juventude como categoria social. Nes- categoria social de forma e momentos diferentes de
se momento, o retorno ao estudo de alguns clássi- acordo com as formas de socialização de cada socie-
cos da sociologia da juventude foi muito importan- dade. Porém, ele admite algo de universal comum a
te. Assim fomos buscar em Ianni (1968), Mannhein toda sociedade quando se trata de delimitar faixas
(1982) e Foracchi (1982) elementos para a compre- de idade que correspondam ao ciclo vital do homem,
ensão da juventude e do estudante como categorias mesmo que cada sociedade defina e atribua signifi-
sociais. Entender a juventude como um conceito cados diferentes a essas faixas de idade ou etapas do
cultural e histórico levou-nos a contextualizar a sua crescimento. Isso ocorre em sociedades que são orien-
visibilidade como categoria social na sociedade bra- tadas por critérios universalistas, distintos dos cri-
sileira e procurar compreender os diversos proces- térios que regem relações familiares.
sos de construção da sua identidade. Sua condição Nas sociedades modernas, a educação escolar
de jovens exigiu uma aproximação com outros es- do jovem tem um papel muito importante pois ela
tudos que tratam das suas relações com a cultura, atua como o “tempo da espera”, o tempo de pre-
com o consumo, com o lazer, com o trabalho, com paração do jovem para a sua saída da infância para

Revista Brasileira de Educação 65


Maria Ornélia da Silveira Marques

a idade adulta. François Dubet (1991) analisa essa se rebelavam contra a ordem estabelecida, através
situação na sociedade francesa e conclui que o pro- da música, da arte, de modos de vida e até mesmo
longamento da juventude operária francesa, via pro- com o “niilismo” (Abramo, 1994).
longamento do tempo da escola, tem como objeti- Na América Latina, a juventude torna-se vi-
vo deixar o jovem fora do mercado de trabalho, sível somente a partir da década de 60 com a crise
“atenuando” a crise do desemprego no país. do modelo econômico excludente que atinge a maio-
Segundo Melucci (1991), nas sociedades in- ria dos jovens filhos de trabalhadores. Segundo Otá-
dustriais modernas o tema da juventude se trans- vio Ianni:
forma como um dos problemas da modernidade.
a história do capitalismo tem sido a história do
Melucci vê no estudo da juventude a possibilidade
advento político da juventude. Para instaurar-se ou
de compreensão do agir coletivo das sociedades con-
durante o seu desenvolvimento o capitalismo transfor-
temporâneas. O interesse sociológico pelo estudo da
ma de forma tão drástica as condições de vida de gru-
juventude estaria no fato mesmo de os jovens se
pos humanos, que a juventude se torna rapidamente
constituírem como atores de conflito.
um elemento decisivo dos movimentos sociais (1968,
Ariès (1978) afirma que a juventude como uma
p. 159).
fase socialmente distinta foi-se constituindo no de-
senvolvimento da sociedade ocidental através da Entre as décadas de 60-70, os estudiosos da
progressiva instituição de um espaço separado de sociologia da juventude brasileira (Ianni, 1968, Fo-
preparação para a vida adulta. Segundo ele, no pe- racchi, 1972) centram suas análises no comporta-
ríodo medieval não havia separação entre o mun- mento político da juventude tendo como certo sua
do infantil e o mundo do adulto. Ambos conviviam capacidade de desenvolver uma postura crítica e
no mesmo espaço. Também, não havia a separação transformadora da sociedade. A condição juvenil
entre o universo familiar e o universo social mais era identificada com os jovens universitários filhos
amplo. Nesta sociedade, a família não era o núcleo das classes médias. A grande maioria da juventude
básico da socialização, pois esta era feita no espa- brasileira não era visível. Os estudos sobre esta ju-
ço coletivo. ventude ou tratavam da sua marginalidade ou das
A transformação da família, a partir do século suas relações com o trabalho/desemprego.
XVII, altera suas relações de sociabilidade, em par- Ao analisar o comportamento radical (de di-
ticular entre as gerações, passando a retrair-se na reita ou de esquerda) do jovem, Ianni discorda das
vida privada e delegando à escola o papel de socia- explicações da emergência dos conflitos da juven-
lizar suas crianças. Assim, a criança perde dois es- tude como uma crise específica de uma idade soci-
paços importantes para a sua socialização até aquele al das pessoas, pois, segundo ele, o que gera a crise
momento; perde o convívio com o adulto, com a é a própria natureza do sistema social criado com
comunidade mais ampla e, em seguida, perde o con- a sociedade industrial: “O inconformismo juvenil
vívio com a família. Nesse momento, com a exten- é um produto possível do modo pelo qual a pessoa
são da escola, do tempo de preparo para a vida adul- globaliza a situação social”.
ta, a fase de transição entre a infância e o mundo Ianni retoma também as análises feitas por
do adulto vai adquirindo visibilidade, constituindo- Mannheim (1982) quando este afirma que o pro-
se na adolescência e juventude. Porém, é somente blema da adolescência em nossa sociedade está no
a partir de meados do século XX que a juventude conflito entre o desejo de autonomia do jovem e a
passa a se constituir como um problema para a so- insistência paterna em manter a dependência. Con-
ciedade. Sua presença inicial como categoria social testando a tese de Mannheim, Ianni afirma que ela
vai surgir na Europa através de movimentos de jo- não explica o comportamento do jovem em socie-
vens delinqüentes, contestadores, excêntricos, que dades urbanas industriais, pois seu comportamen-

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Escola noturna e jovens

to radical está estreitamente vinculado às condições a sua percepção da realidade. Portanto, toda iden-
materiais da existência, isto é, ele é histórico, social- tidade é socialmente construída no plano simbóli-
mente determinado. co da cultura. Ela é um conjunto de relações e de
Sem negar a importância atribuída à família, representações.
a exemplo de Eisenstadt, porém com outra cono- Se queremos pensar a identidade dos jovens
tação, o autor explica que outros mecanismos ope- frente aos outros com os quais eles se relacionam,
ram nas relações entre as gerações, entre esses, a se confrontam na família, na escola, no trabalho,
grande importância atribuída pelos adultos aos jo- no espaço da rua, temos que pensar qual é a rede
vens na sua capacidade de preservar e renovar, se- de significados que a vida social constrói no plano
guindo os sistemas de valores, instituições e ideais simbólico da cultura e que é movida pela própria
coerentes com o “status quo” (Ianni, 1968). No seio dinâmica da sociedade. Rede de significados fren-
da família apenas se inicia o processo de “estranha- te à qual os jovens estão dizendo quem são eles, se
mento” do jovem com os valores da sociedade, mas aceitam ou não as identificações que lhes são atri-
é no grupo mais amplo dos amigos e da escola que buídas pelos adultos, se estabelecem campos de ne-
ele vai perceber as contradições do sistema sócio- gociação com os outros atores, com os quais se con-
cultural e econômico desigual das sociedades capita- frontam, se transformam ou manipulam as repre-
listas. Instaura-se assim a relação de negatividade sentações que os outros fazem de si.
com o presente, daí o seu comportamento radical. Em graus diversos de complexidade, podemos
Foracchi (1972), ao analisar os movimentos pertencer a várias identidades: a identidade pessoal,
estudantis da década de 60, conclui que estes se afir- a identidade de pertencer a uma família, uma identi-
mam como um “poder jovem, potência nova que, dade social, etc. O que muda é o sistema de relações
desconhecendo sua força, recria na imaginação e na ao qual nos referimos e a respeito do qual temos nos-
utopia, a práxis de um mundo que apenas se esbo- so reconhecimento. Assim, o jovem tem uma iden-
ça”. Segundo a autora, a juventude representa a tidade na família, na escola, no pedaço, no trabalho.
categoria social sobre a qual se manifestam de for- A capacidade de se reconhecer e de se fazer reconhe-
ma mais visível as crises do sistema. Para Foracchi, cido nestas diversas situações consiste no que Melucci
a noção de juventude se impõe como categoria his- (1992) chama de afirmação da identidade. No qua-
tórica e social, no momento em que se afirma como dro desta complexidade da sociedade moderna ten-
produto histórico, como movimento de juventude. tamos compreender como os alunos da escola no-
turna de 1º grau, vivendo no seu cotidiano diversos
A busca de uma identidade jovem papéis, estabelecendo relações pautadas por diver-
sas lógicas, estão construindo suas identidades in-
Toda identidade é um conjunto de represen- dividual e coletiva. Esses novos processos de so-
tações que a sociedade e os indivíduos têm sobre cialização dos jovens moradores dos bairros perifé-
aquilo que dá unidade a uma experiência humana, ricos das grandes cidades brasileiras exigem a bus-
que por definição é múltipla e facetada, tanto no ca de novos referenciais, de novas interpretações.
plano psíquico como no plano social. Essas repre- Até meados da década de 80, a maioria des-
sentações, evidentemente, são construídas de forma sas interpretações tem como ponto de referência a
diferente segundo os diversos tipos de sociedade, comparação com os movimentos juvenis dos anos
segundo o lugar social que o indivíduo ocupa na 60, em relação aos quais os movimentos espetacula-
sociedade, segundo os conjuntos de valores, de res da década de 80 apareciam como significativos
idéias e normas que pautam o código de leitura atra- de uma juventude carente de idealismo e de empe-
vés do qual ele interpreta a sua visão de mundo. É nho transformador, sem nenhum interesse pelas ques-
a partir desses referenciais que o indivíduo organiza tões públicas ou coletivas (Abramo, 1994). Nessas

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Maria Ornélia da Silveira Marques

análises, os jovens são considerados como incapa- mundo do consumo, da produção de imagens, sím-
zes de formular propostas de transformação social, bolos, etc. O apelo ao consumo, estimulado pela
permanecendo no seu individualismo e pragmatis- indústria cultural, colabora para que esses jovens
mo, muito identificados como os novos consumi- entrem precocemente no mundo do trabalho e, al-
dores da indústria cultural. gumas vezes, no mundo da droga e da criminali-
Hoje, o agravamento da crise social, com a dade. Todos esses espaços por onde o jovem vai
retração ou diminuição do poder de mobilização construindo e/ou afirmando a sua identidade são
dos movimentos populares, impõe a busca de ou- importantes como potencialidades de gestar novas
tros referenciais para a compreensão das novas identidades coletivas.
ações coletivas que se gestam em meio à crise dos
modelos da modernidade. Nesse panorama, as ques- O trabalho — uma categoria necessária
tões da juventude alcançam outras dimensões. Os
estudiosos estão mais preocupados em perceber as A compreensão da presença dos jovens na es-
formas de um agir coletivo entre os jovens, os di- cola noturna nos coloca a necessidade de perceber
versos processos de sua socialização nos espaços da como estes jovens vêem o trabalho e de como este
cidade, da rua, do trabalho, da escola. Procuram pode constituir-se como afirmação de suas identi-
dirigir suas análises para o reconhecimento de que dades. Os estudos que tratam da relação entre edu-
os jovens, em particular os filhos da classe traba- cação e trabalho, na sua maioria, têm como eixo
lhadora, são atores sociais portadores de novas estruturador o caráter reprodutor da escola nas re-
identidades coletivas (Sposito, 1994). Nessas aná- lações entre capital e trabalho.
lises, a escola não é mais vista somente como o es- Na década de 70, no bojo das discussões sobre
paço onde se reproduz a força de trabalho, mas, o caráter reprodutor da escola, as análises sobre a
também, como um espaço de socialização, de afir- escolarização dos jovens filhos da classe trabalha-
mação da identidade do jovem, como espaço de dora refletem uma estreita relação entre o trabalho
práticas sociais libertadoras. e a escola como forma de “educar” o futuro traba-
Entretanto, no Brasil, a maioria dos estudos lhador. São os chamados teóricos da reprodução que,
dedicados aos jovens tem voltado a atenção para as baseados em estudos de Bourdieu, Establet, Passeron,
relações entre trabalho e educação. Nesses estudos, Althusser, entre outros, ao denunciarem o caráter
os jovens são identificados como trabalhadores e a reprodutor da escola brasileira romperam com a tra-
escola como instituição a serviço do capital. Assim, dição liberal segundo a qual a ação educativa era
o tratamento da juventude é, geralmente, subordi- concebida como possibilidade transformadora ca-
nado à ótica das questões maiores referentes às for- paz de romper as desigualdades sociais, econômicas
mas de exploração e de reprodução da força de tra- e políticas de uma dada sociedade. Essas análises
balho, ou dos problemas gerais que a estrutura edu- tiveram entre seus méritos o de romper com as ilu-
cacional do país coloca em termos de qualificação sões do liberalismo e do economicismo educativo
e aproveitamento escolar. representadas pela teoria do capital humano.
Falar das questões juvenis é ampliar as análi- Os estudos realizados a partir desse momen-
ses para além das relações com o trabalho e a es- to, ressalvadas algumas especificidades, tratam da
cola. Cada vez mais a juventude se apresenta como relação entre educação e trabalho nas sociedades
uma problemática cultural e política. Suas novas capitalistas, tendo em comum o trabalho como ca-
formas de ação, seus modos espetaculares de exis- tegoria central na explicação dessas relações. Seus
tir através da música, dança, vestuário, indicam que eixos norteadores tratam ora da negatividade, ora
esses jovens paradoxalmente buscam a integração, da positividade das relações de trabalho na educa-
mesmo que essa integração se faça pela inserção no ção do trabalhador. Suas análises, na maioria das

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Escola noturna e jovens

vezes, não captam os desejos, aspirações, expecta- engajados na força de trabalho do mercado de tra-
tivas, a subjetividade e as formas de socialização e balho informal? O que essas análises teriam para lhes
sociabilidade no e pelo trabalho. dizer quando estes afirmam que querem estudar para
conseguir um emprego melhor que, em síntese, sig-
A crise da sociedade do trabalho nifica escapar da pobreza? É possível falar hoje da
centralidade do trabalho para a análise do social
Nos anos noventa, novos estudos começam a diante de tantos desempregados? O que dizer sobre
questionar as reflexões que têm o trabalho como o trabalho para jovens que não se sentem trabalha-
categoria central na análise da sociedade. Esses ques- dores que estudam mas estudantes que trabalham,
tionamentos perpassam as discussões presentes so- inclusive para manter os estudos?
bre a função da educação diante do rápido proces-
so de desenvolvimento da sociedade, do avanço cien- Perda da centralidade do trabalho
tífico e tecnológico e seus impactos na força de tra-
balho, na educação escolar e na formação da mão- Toda essa reflexão retoma a discussão sobre a
de-obra. centralidade do trabalho como categoria de análise
Os autores que falam da “crise da sociedade do social. Segundo Offe (1989), na elaboração do
do trabalho” negam que este esteja perdendo cen- moderno pensamento social — de Marx a Durkheim
tralidade na explicação da sociedade e continuam — a categoria trabalho é fundamental porque, en-
afirmando que as “chances de participação social, tão, o mundo do trabalho era o universo inclusivo
política e cultural dos indivíduos ainda são deter- onde se inseriam os atores sociais. A tradição clássica
minadas, em parte, por sua posição no sistema pro- concebia a sociedade moderna e sua dinâmica como
dutivo”. Estes autores, geralmente, problematizam uma sociedade de trabalho. Porém hoje, com o de-
questões tais como o fenômeno da globalização da senvolvimento, o essencial da existência dos atores
economia, da crise do fordismo e do pós-fordismo, se desenrola para além do mundo do trabalho.
dos novos problemas tecnológicos e organizacionais Perseguindo o raciocínio do autor, poderíamos
que configuram o novo contexto do processo de dizer, numa primeira aproximação com a questão,
terceirização nas sociedades modernas. que a racionalidade que foi capaz de compreender
No momento, as análises em torno da crise da a dinâmica do mundo moderno já não basta para
sociedade do trabalho e a sua tradução no discurso apreender a dinâmica da sociedade contemporânea.
pedagógico através da relação trabalho e educação A dialética do trabalho, embora importante, se não
estão sendo pautadas por discussões calorosas sobre combinada com a dialética de outras relações sociais,
a “qualidade total da escola” que, em linhas gerais, torna-se inoperante para explicar o nosso tempo.
pretende transferir para a escola os mesmos crité- O que dizer da sociedade brasileira em que,
rios de qualidade utilizados nas empresas. Mais uma com exceção de um pequeno segmento de mão-de-
vez, o discurso das relações entre capital e trabalho obra mais qualificada e mais valorizada e, conse-
na educação se reveste de uma nova roupagem. quentemente, com maior garantia de emprego, uma
Diante de todas essas observações, nos questio- ampla maioria de trabalhadores tem uma trajetó-
namos sobre quais seriam os campos de possibilidade ria de trabalho regida pela insegurança, pela insta-
do trabalho para a socialização dos jovens e em que bilidade, pela precariedade nos vínculos que esta-
medida as análises sobre a relação entre educação e belecem com o trabalho? Em nossa pesquisa, encon-
trabalho não estariam sendo pautadas em uma re- tramos um pequeno número de jovens que têm um
lação de um trabalhador abstrato com as máquinas emprego regular e com direitos trabalhistas assegu-
e tecnologias de última geração. O que dizer dos mi- rados. Somente 25% dos jovens que trabalham têm
lhares de jovens desempregados e subempregados registro em carteira e estão engajados no setor de

Revista Brasileira de Educação 69


Maria Ornélia da Silveira Marques

serviços. Outros 62% estão trabalhando no merca- mos desconhecer que o trabalho é um campo de
do informal, sem nenhuma garantia. possibilidades de estruturação de suas identidades.
Portanto, é preciso rever o poder do trabalho Neste sentido concordamos com Gilberto Velho
na determinação das relações sociais mais amplas, que, ao privilegiar a subjetividade e a sociabilida-
em particular na socialização do jovem, na constru- de nas relações sociais, sugere o retorno e a valori-
ção de sua identidade, mesmo porque estamos dian- zação da amizade, dos encontros, das reuniões, des-
te de uma situação nada promissora na qual o de- pidos de um caráter mais instrumental, como forma
semprego já é uma experiência normal da popula- de garantir a constituição de sujeitos plenos, integra-
ção brasileira. Apesar de os jovens apresentarem um dos. Segundo ele, esses espaços de sociabilidade per-
maior índice de escolaridade que seus pais, o que mitem a construção de identidades sociais num con-
de certa forma lhes protegeria mais do desempre- tínuo processo de interação entre seus atores.
go, esta é uma realidade em suas vidas. Também Lapeyronnie, ao analisar as relações
dos jovens na sociedade contemporânea fala da ne-
E os jovens como pensam o trabalho? cessidade da busca legítima do individualismo, res-
gatando a dimensão pessoal da existência, da rea-
O trabalho para os jovens funciona quase co- lização pessoal e da dignidade. Segundo o autor, a
mo um rito de passagem do mundo infantil para o construção da identidade individual não passa mais
mundo adulto, mas principalmente, como um pro- pelo trabalho.
jeto de família em melhorar de vida o que significa
Procura-se, eventualmente, um emprego para
encontrar possibilidades de fugir da pobreza. A fre-
poder satisfazer paixões pessoais. As idéias de uma
quência à escola faz parte desse projeto entre os
relação necessária entre o progresso social e a valori-
trabalhadores, daí o grande esforço que as famílias
zação do trabalho desapareceram (Dubet e Lapeyron-
fazem para manter seus filhos na escola, inclusive
nie, 1992, 22).
com um redimensionamento dos parcos orçamen-
tos domésticos e a inserção precoce de alguns filhos Concordamos com Lapeyronnie, quando diz
no mercado de trabalho. que a vida social não é mais estruturada em torno
Nosso contato com os jovens da escola notur- da produção, pelo conflito no interior de um mes-
na permitiu-nos buscar outras abordagens para mo espaço. O espaço da fábrica não constitui ape-
essas relações. Permitiu-nos também perceber for- nas relações conflituosas de trabalho versus produ-
mas de socialização que extrapolam as determina- ção. No seu espaço, nos seus interstícios, uma rede
ções de classe e estão vinculadas a uma rede de rela- de relações significativas vai sendo construída. São
ções significativas para a constituição de suas iden- relações pautadas pelo cansaço, pela solidariedade,
tidades. Para os jovens pesquisados, o trabalho não pelo desejo de mudar a vida. E é nesse sentido que
significa apenas a garantia da sobrevivência do nú- compreendemos a fala da jovem que anseia encon-
cleo familiar e a capacidade de consumo. Ao dei- trar um emprego:
xar o espaço do bairro onde mora para ir trabalhar
Há mais de um ano que estou desempregada e
em outros locais, o jovem amplia suas possibilida-
não agüento mais ficar parada em casa. Já consegui
des de sociabilidade através de laços de amizade, de
um para trabalhar em casa de família, mas eu quero
coleguismo, de solidariedade, etc. A fala desses jo-
ver gente, quero ter colegas, me arrumar, me produ-
vens revela uma outra razão, revela necessidades
zir para ir trabalhar (aluna da 6ª série).
diversas, outras referências, vai muito além da razão
prática ou da lógica mercantil do mundo capitalista. Em relação à inserção dos jovens no mercado
Apesar de reconhecermos que os jovens trans- de trabalho, partimos do princípio de que é muito
figuram suas necessidades em virtudes, não pode- limitado tentar compreender as causas dessa inser-

70 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Escola noturna e jovens

ção precoce no mundo do trabalho somente atra- Essa relação contraditória entre ser menor de-
vés da sua situação de marginalidade e pobreza. pendente e ser trabalhador termina por influenciar
Não consideramos que a necessidade de trabalho as formas de socialização dos jovens tanto na famí-
seja unicamente uma realidade imposta pelas con- lia como na escola. Segundo Zaluar (1992), o con-
dições de pobreza das famílias, mas que essa neces- flito dos jovens com seus pais, principalmente com
sidade se constrói no próprio processo de socializa- as mães, aparece como resultado dos novos padrões
ção do jovem, na afirmação da sua identidade. Tra- de consumo que lançam os jovens no mercado do
balhar, receber algum salário para quem tem uma vestuário e das atividades de lazer variadas, muitas
autonomia relativa, mas está procurando aumen- vezes incompatíveis com a economia doméstica e a
tar seu grau de autonomia, só pode significar liber- sua hierarquia de consumo.
dade (Madeira, 1986). Alguns estudos brasileiros, Quando questionamos os jovens sobre os mo-
entre eles os de Gouveia (1982), Madeira (1986) e tivos de sua inserção no mundo do trabalho, a maio-
Spindell (1985) falam com muita procedência do ria respondeu porque era pobre e precisava ajudar
significado de liberdade contido na decisão de tra- a família. Porém, quando aprofundamos a discus-
balhar por parte dos jovens. Para eles, ser livre sig- são nas entrevistas individuais e em grupo, outros
nifica ter liberdade para tomar decisões sobre a pró- motivos ficaram evidentes como: ter mais liberda-
pria vida; é ter autonomia em fazer uso do seu di- de, garantir os estudos, ter dinheiro para comprar
nheiro, de comprar, de consumir os bens culturais roupas e gastar no fim de semana, ter uma carteira
que os identifiquem como jovens. de trabalho, etc. Entre esses jovens, o trabalho, ao
Enfim, não podemos compreender as relações mesmo tempo em que os coloca numa situação de
que os jovens estabelecem com o trabalho sem re- explorados, possibilita a afirmação de sua identi-
conhecer a importância da sua condição juvenil que dade. Ao contrário do discurso moralizante de seus
se expressa, freqüentemente, na necessidade de os- pais sobre a necessidade do trabalho para trans-
tentar marcas visíveis de pertencer à categoria jo- formá-los em pessoas responsáveis, eles vêem no
vem, principalmente àquelas transmitidas pelos trabalho seu caráter de provedor.
meios de comunicação. Nossas análises nos levam a concluir que o
trabalho do jovem aluno da escola notuna faz par-
Trabalho e família: uma relação delicada te do cotidiano das famílias pobres de toda a soci-
edade brasileira, faz parte das obrigações familia-
res e, na maioria das vezes, possibilita a frequência
Esses jovens, educados pelas famílias na ética
à escola. Trabalhar, mesmo sendo parte de sua obri-
do trabalho, estabelecem com esse uma relação con-
gação de filho, não deixa de significar a afirmação
traditória. Ao mesmo tempo em que vêem na sua
de sua identidade, ou abrir a possibilidade de con-
ocupação presente um momento de aprendizagem
quistar um espaço de liberdade (Madeira, 1986), na
para um trabalho futuro, falam com orgulho da
tentativa de ter acesso a bens de consumo e a pa-
autonomia que têm em relação à família, principal-
drões de comportamento que definem as marcas dos
mente com as mães. Suas falas deixam bem clara
jovens nas grandes cidades, nos centros urbanos: o
essa situação:
som, o tênis, a roupa etc. (Sarti, 1994). Essa inte-
(...) Um dia meu pai quis me bater porque eu es- gração no mercado pela via do consumo nem sem-
tava namorando um colega e estava chegando tarde pre é valorizada pelos pais, marcados pela ética do
em casa todo dia. Daí eu disse pra ele que eu sou dona trabalho árduo em seu processo de socialização.
da minha vida, que já posso comer e beber sem depen-
der dele. Na minha casa a conta da luz fica por mi-
nha conta (aluna da 7ª série).

Revista Brasileira de Educação 71


Maria Ornélia da Silveira Marques

A escola como espaço de sociabilidade balhador, sublinhando, desta forma, o caráter de


reprodução do sistema escolar. Sem desconhecer os
A educação dos jovens trabalhadores, sua ex- problemas estruturais da sociedade brasileira e que
clusão da escola em função de várias repetências, se refletem na escola, propomos analisar a escola
da ausência de um projeto pedagógico que atenda noturna a partir da ótica de seus atores, no nosso
a sua dupla condição de jovem e de trabalhador e caso, alunos jovens, percebendo na sua prática pos-
seu retorno à escola através dos cursos noturnos, sibilidades de sociabilização e de construção da
não tem merecido muita atenção dos estudiosos identidade de seus atores.
(Sposito, 1989).Porém, entre as análises feitas po-
demos identificar duas orientações. A experiência da escola:
A primeira centra-se na estrutura escolar, en- discutindo com alguns autores
fatizando sua organização interna como forma de
seletividade: horários, conteúdos, relação professor/ As análises mais frequentes sobre o processo
aluno, instalações físicas e recursos humanos da de escolarização dos jovens, filhos de trabalhado-
escola pública. Ao mesmo tempo em que reconhe- res, evidenciam que a necessidade de trabalhar os
ce a condição de trabalhador do aluno, suas análi- força a abandonar a escola ou impede o seu aces-
ses tratam do trabalho como algo negativo para o so. Porém, as estatísticas têm demonstrado que uma
processo de escolarização do jovem. O trabalho é parcela cada vez maior de adolescentes tem acesso
visto pela sua negatividade e não pelas possibilida- à escola de 1º e 2º graus exatamente porque está
des como princípio educativo e como espaço de so- exercendo uma atividade remunerada. A necessida-
ciabilidade. Trata o aluno trabalhador de forma de de ajudar a família, aliada à pressão do consu-
genérica, pertencente às camadas mais pobres da mo, além de outros fatores, impulsiona os jovens a
população e, como tal, excluído da possibilidade de procurar trabalho.Por outro lado, as afirmações de
frequentar a escola na idade correta. Nessas análi- que o aluno da escola noturna a procura por moti-
ses, os cursos noturnos são justificados sob o argu- vo de trabalho nem sempre revelam a realidade. Em
mento de viabilizar o ensino escolar aos jovens e muitos casos, o trabalho vem como conseqüência
adultos que, por serem inseridos no mercado de da freqüência à escola noturna. Há um medo gene-
trabalho de forma precoce, não tiveram acesso à ralizado entre as famílias pobres sobre os perigos
escola em idade regular. da rua e uma alternativa viável para minimizar esse
As análises mais recentes destacam a escola medo é manter o jovem sempre ocupado. Entre a
noturna na sua especificidade no atendimento ao casa e a escola sobra muito pouco tempo para a rua,
aluno trabalhador. Negam as soluções técnico-pe- para o ócio. A rua deixou de ser uma das referên-
dagógicas propostas pelas análises anteriores e pro- cias tradicionais da socialização do jovem e passou
põem que o estudo da escola noturna seja feito de a ser o “espaço do perigo”. Afastar os filhos do
forma mais abrangente, que leve em conta a reali- perigo da rua significa para as famílias pobres uma
dade dos alunos. Os estudos nessa linha de inter- crença no poder da escola em fazer de seus fillhos
pretação trazem a realidade de trabalho dos alunos não apenas futuros trabalhadores mas “gente ho-
para a escola, ressaltando a ausência de um diálo- nesta”. Porém, os jovens atribuem à escola uma
go entre o trabalho e o conteúdo real da aprendi- outra função que se tornou bem evidente durante
zagem. Essa ausência de diálogo impossibilita ao a nossa pesquisa — a função sociabilizadora, enten-
aluno a sistematização do conhecimento construí- dida como um conjunto de relações significativas,
do e/ou assimilado no cotidiano do trabalho. (Ca- porém sem necessidades e interesses específicos. Pa-
poralini, 1991). Ressaltam, também, o caráter do ra esses jovens, a escola pode constituir-se num es-
currículo oculto como forma de disciplinar o tra- paço diferente. Entre o cansaço do trabalho e os

72 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Escola noturna e jovens

problemas com a família, eles preferem a escola, Também Guimarães, em estudo sobre a escola
mesmo que sua freqüência se restrinja, muitas ve- noturna observou que os alunos são capazes de:
zes, aos espaços dos corredores e do pátio. Marca-
(...) metamorfosear o ambiente de trabalho e a
dos por um cotidiano denso de relações conflituosas
própria escola em espaços agradáveis onde há lugar
com o trabalho, com a família, esses jovens trans-
para a brincadeira, o encontro com o amigo confidente
formam o ambiente da escola em espaços agradá-
(...) Esses momentos de reconstrução cotidiana se dão
veis, onde há lugar para o namoro, a brincadeira,
nas situações mais diversas, assumindo formas tão
o encontro com os amigos. Esses espaços são recria-
surpreendentes, quanto gratificantes (1992, 61).
dos nos interstícios da organização escolar, entre
uma aula e outra, nas ausências dos professores: Acreditamos que uma das saídas possíveis para
que a escola se transforme num espaço de sociabi-
Eu fico o dia todo tomando conta de meus ir-
lidade entre os jovens, seja justamente essa capaci-
mãos, lavando, cozinhando, arrumando meus irmãos
dade de subverter o convencional, buscar outros
prá ir prá escola que fico doida que chegue de noite
objetivos para a escola. Acreditamos, também, que
prá eu vir pra escola e ficar com minhas amigas. Eu
o modo como os jovens reconstróem o próprio co-
já disse pra minha mãe que quando eu acabar a 8ª série
tidiano da escola aliviando o tempo de trabalho,
eu vou arranjar um emprego. Aqui na escola a gente
repensando a escola para além da simples transmis-
conversa com os professores, arranja alguma paquera,
são do conhecimento, é uma forma efetiva de lutar
eu estou até namorando um colega da sala (aluna da
por uma nova sociedade (Guimarães, 1992).
7ª série).

Essas falas levantam questões pouco aborda- Cultura e lazer como afirmação
das nas análises sobre a escolaridade dos alunos da identidade do jovem
trabalhadores. Para esses, que têm um cotidiano
tomado por responsabilidades, a escola passa a ter Se no início da pesquisa pensávamos que os
uma importância como espaço do encontro e encon- jovens da escola noturna construiam suas identida-
tro com pessoas com as quais mantêm uma relação des pessoal e coletiva nas suas relações com a fa-
diferente do que na família e no trabalho. A rua para mília, a escola e o trabalho, os dados empíricos, as
alguns e a escola para todos é o lugar privilegiado entrevistas e contatos com esses jovens permitiram-
para estabelecerem relações sociais mais amplas, o nos perceber o quanto é importante para eles os
que pode contribuir na formação da sua identida- momentos de lazer, de descontração. Daí os cons-
de. A maioria dos alunos fala da presença marcan- tantes conflitos com a família que, educada na éti-
te da escola enquanto espaço de novas relações. ca do trabalho árduo, vê no ócio dos jovens o peri-
Magnani (1984) afirma que: go da rua. Ficávamos impressionadas com a presen-
ça dos jovens nos corredores da escola na 6ª feira
Curiosamente, a escola pela sua desorganização
à noite, mesmo com a ausência de seus professores.
interna e pela falta constante dos professores torna-
Por que esses jovens vinham para a escola, mesmo
se um ‘pedaço’ bastante frequentado pelos jovens.
sabendo que não haveria aula? Aos poucos, fomos
Por outro lado, as relações transitórias e instá- nos aproximando desses jovens e descobrimos que
veis diante do trabalho, aliadas a outras instabilida- a escola era o ponto de encontro para a ida do grupo
des no meio da família, nos processos de migração aos bailes de pagode do bairro e de outros bairros
de um bairro a outro, dificultam a criação de laços vizinhos.
mais perenes entre os jovens, tornando a escola um A aproximação com uma literatura pertinente
dos espaços possíveis para uma vinculação mais permitiu-nos uma compreensão de que o tempo livre
duradoura com os amigos, com os colegas. das imposições normativas do trabalho, da escola

Revista Brasileira de Educação 73


Maria Ornélia da Silveira Marques

e da família, apesar de ocorrer em situações contra- maioria do grupo, principalmente dos rapazes. Alia-
ditórias, pode ser o tempo dos jovens recriarem a da ao pagode, a música também é um referencial
liberdade em direção a seus próprios interesses. En- forte entre o grupo. Nas respostas ao questionário,
tre a dureza do trabalho e a disciplina da escola, há nas conversas informais e nas entrevistas pudemos
o espaço da brincadeira, do “gozar a vida”. O di- depreender que o aparelho de som ocupa um lugar
vertimento e a recreação são explicados pelos so- privilegiado nas suas casas. Comprar um aparelho
ciólogos do trabalho como uma ruptura com o tra- de som, para muitos jovens, foi a porta de entrada
balho, com a monotonia, com a quebra da rotina, no mercado de consumo.
da disciplina. Para alguns estudiosos esta função Enfim, concluímos que a juventude nas clas-
pode ser um recurso à vida imaginária, daí a busca ses populares é vivida como um tempo de liberda-
do teatro, do cinema, do jogo (Zaluar, 1994). de, de viver com intensidade todo o tempo livre, o
Na relação entre a ética do trabalho e a ética que sobra entre a escola e o trabalho. Aproveitar
do lazer que impõe um estilo de vida entre os jo- da vida como ela é, como nos dizia uma aluna. Para
vens, cria-se uma zona de conflito entre estes e seus o aluno da escola noturna, divertimento e estudo
pais. A indústria cultural coloca à disposição do são faces de uma mesma moeda que só pode ser
jovem uma série de bens de consumo que, dentro comprada com o seu trabalho precoce. Trabalho
da perspectiva de uma cultura de massa, cria um que, na maioria das vezes, não lhe dá o status de
estilo de vida jovem. Este estilo de vida cria neces- trabalhador, o que o leva a considerar-se um estu-
sidades de lazer, de consumo que se incompatibili- dante que está aprendendo a ser trabalhador. Tra-
zam com as necessidades imediatas de suas famílias, balho para esses jovens é coisa de futuro, só depois
o que gera o conflito, pois são formas diferentes de de estudar e com carteira assinada. O caráter tran-
hierarquizar as necessidades. sitório de sua condição juvenil permite o estranha-
Também Gilberto Velho, em suas análises so- mento das agruras do trabalho e da pobreza. É na
bre a cultura popular e a sociedade de massas, re- complexidade dessas relações entre família, escola,
toma a discussão sobre as possibilidades do consu- trabalho, consumo e lazer que eles constroem a sua
mo ampliar, através do lazer, as redes de relações subjetividade, que estabelecem redes de relações
sociais e, ao mesmo tempo, garantir a individuali- sociais significativas, ampliam a sociabilidade. É
dade dos sujeitos. Segundo o autor, uma das carac- nessa multiplicidade de papéis de aluno, filho, tra-
terísticas marcantes da sociedade contemporânea é balhador, colega, amigo, que eles tentam construir
o seu caráter de massificação advindo do processo suas identidades.
de urbanização e desenvolvimento das grandes ci- Ver no aluno da escola noturna somente o jo-
dades, dos meios de transporte e comunicação, dos vem que trabalha sem considerar suas característi-
avanços tecnológicos que alteraram os padrões de cas e papéis assumidos, inviabiliza qualquer proje-
sociabilidade e interação entre os sujeitos. to pedagógico que procure responder às suas neces-
Em síntese, a análise dos dados empíricos so- sidades.
bre o lazer dos jovens sujeitos da pesquisa, permi- Nossa pesquisa demonstrou o quanto a escola
te-nos concluir que, apesar das influências dos meios está distante desses jovens. Queremos crer que o
de comunicação social, da indústria cultural, esses modo como eles reconstroem o próprio cotidiano,
jovens recriam, nos limites do bairro e de suas con- aliviando o tempo de trabalho e repensando a escola
dições materiais, no seu cotidiano, formas de lazer para além da simples transmissão do conhecimen-
que garantem a sua identidade jovem. Neste senti- to, é uma maneira efetiva de tomar parte em uma
do, a música e a dança têm uma influência muito luta pela busca de uma nova sociedade. Poderão,
grande na conformação de suas identidades. A ida assim, tornar-se portadores de uma nova utopia.
ao pagode nos fins de semana faz parte do lazer da Concordamos com Alberto Melucci quando

74 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Escola noturna e jovens

diz que os jovens, como categoria social, podem __________, (1986). Os jovens e as mudanças estruturais
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48, ago.
si mesmos o destino de suas vidas. Reivindicam para
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Revista Brasileira de Educação 75


O trabalho, busca de sentido

Guy Bajoit
Abraham Franssen
Universidade Católica de Louvain

Tradução de Denice Barbara Catani


Publicado em: Les Jeunes dans la compétition et la mutation culturalle, Rapport de recherche au Fonds de la
Recherche Fondamentale Collective, Univ. Catholique de Louvain. Cap.VIII: Le travail, quête de sens.

As expectativas e as atitudes com relação ao > a retribuição é sempre postergada: há,


trabalho, ao emprego e ao desemprego são uma di- inicialmente, o esforço, o sacrifício que é pre-
mensão privilegiada para apreender a crise e a muta- ciso fazer a fim de preparar-se para o traba-
ção das referências culturais entre os jovens. O mo- lho e em seguida para executá-lo e então como
delo cultural da sociedade industrial se caracteriza pela uma conseqüência, a retribuição legítima;
centralidade da ética do trabalho. Além disso, o mer-
> a contribuição é medida pelo esforço
cado de trabalho é o campo em que se exercem mais
que é preciso dispender a fim de se preparar
diretamente as coerções materiais e simbólicas da
para o trabalho e para realizá-lo;
competição. Examinando os “modos de gestão de si”,
pudemos constatar que para numerosos jovens, a > enfim, no modelo tradicional de traba-
experiência ou inexperiência do mercado de trabalho lho, o trabalhador participa do mundo do tra-
constitui um momento decisivo da sua redefinição balho por intermédio de instâncias coletivas:
identitária. Aliás, caracterizado o modelo central de o sindicato, a classe de origem, a comunida-
trabalho da sociedade industrial, a ética do rendimento de. Sua participação não é exclusivamente in-
que está no cerne desse modelo contém várias idéias: dividual: ele não está só face ao seu emprega-
dor, faz parte de um grupo, mais ou menos
> o trabalho deve contribuir para um pro-
estruturado, de trabalhadores.
jeto coletivo: deve ser socialmente útil para a
coletividade (donde a ociosidade é sempre mais
Nossas interrogações remetem às formas de
ou menos vergonhosa);
desagregação do modelo cultural do trabalho, e à
> a contribuição e a retribuição devem se emergência de novas orientações com relação ao
equivaler: a tal contribuição deve correspon- trabalho. Examinamos também quais são as repre-
der uma “justa” retribuição; sentações e as atitudes dos jovens com relação ao

76 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho, busca de sentido

desemprego. Mas, antes, vamos apresentar Hervé, dois anos, ganho a vida durante esse tempo e de-
cuja história ilustra esse conjunto de questões. pois procurarei outra coisa”.
Em seguida a essa experiência, conheceu um
Hervé período de desemprego de mais de um ano. Viveu
essa experiência com um forte sentimento de degra-
Ele é oriundo de uma família numerosa. Seus dação social e pessoal. O tempo do desemprego foi
pais, operários, lhe prometiam um futuro que rea- um tempo socialmente inútil: “O dia de um desem-
lizaria seu projeto de promoção social, caracteriza- pregado leva cinco minutos”. Insiste bastante sobre
do por uma forte preocupação com o status. as limitações de dinheiro. Depois de pagar o que
deve aos seus pais, restam-lhe-talvez “1000 francos
Meus pais diziam, é uma boa, um belo ofício,
por mês para sair um pouco do mofo onde se está
de muito futuro. Olha o senhor e a senhora Fulano de
metido”; “Quando você está desempregado, uma
Tal, que moram aqui nos fundos. Eles têm uma grá-
semana, é duro, você vê o tempo passar, você apren-
fica há não sei quantos anos, olha que belos carros eles
de a contar os minutos”. “A coisa do desempregado
têm, olha que bela oficina, olha isso, olha aquilo, e era
é terrível, é verdade que enquanto jovem você real-
assim o tempo todo...
mente carrega um rótulo”; “quando fui rebaixado
Depois de duas reprovações no primário, Her- para 8.500 francos, isso foi o mais difícil, entrei em
vé começa a escola profissional técnica de tipogra- pânico, noites inteiras eu não conseguia dormir...”
fia, em seguida é orientado para a joalheria — o que Nessa época, a única fonte de ganhos ocasio-
lhe agrada muito, tanto mais que na época ele era nais de que dispunha era a venda de bijouterias de
“meio hippie”. Contudo, interrompe seus estudos sua confecção, nos mercados. É para a prática da
aos dezoito anos para fazer o serviço militar. A in- moto que Hervé reporta então seus sonhos de eva-
terrupção dos estudos é motivada pela vontade de são e suas necessidades de relações sociais. A moto
adquirir independência financeira, mas também, de é um prazer solitário (“é a única coisa que me faz
maneira mais expressiva, de realizar seus sonhos de sair de mim mesmo”): ela é sua companhia, ele lhe
adolescência. Se ele se engajou no exército por di- fala e ela o compreende, mas ela é também um fa-
nheiro, escolheu a marinha para realizar um sonho: tor de sociabilidade importante, especialmente pe-
“Eu só via realmente uma coisa, os barcos... eu via los clubes de motociclistas que ele freqüenta.
os barcos à vela partir pelos oceanos”.
Meu objetivo é a viagem, a comunicação... aliás,
A experiência cotidiana nas forças armadas, a
minha moto me permite viajar, conhecer gente nova,
maior parte do tempo confinado a tarefas subalter-
e me comunicar com outras pessoas.
nas, destrói seu sonho. “Não é isso que eu queria
Quando visto meu casaco de couro, ele é minha
fazer, queria era viajar, mas não ficar a bordo de
segunda pele, é quase uma carapaça como se diz. A
um pequeno barco com a missão de dragar, ao que
gente é quase como as tartaruga nas estradas, mas tar-
parece, dragar minas no mar belga...”1 . A dificul-
tarugas que se movem rápido. As pessoas têm medo
dade de concretizar suas expectativas de auto-rea-
de nós... não sei por que. Blusões negros, o couro negro.
lização explica a justificativa puramente instrumen-
tal que ele oferece para o prolongamento do seu “Por interferência de amigos”, ele obtém um
contrato. “Estava cheio, mas tudo bem, vou ficar contrato temporário de seis meses para um mutirão
de desobstrução de sítios históricos. Dessa experiên-
cia ele guarda sobretudo a lembrança das más re-
1 Trata-se de minas militares submersas, abandona- lações de trabalho. Diante do chefete que o provo-
das pelos alemães ao fim da II Guerra Mundial. (Nota de ca, Hervé reage referindo-se aos seus direitos: “Se
revisão.) você continuar tentando me botar prá fora, eu cha-

Revista Brasileira de Educação 77


Guy Bajoit, Abraham Franssen

mo a inspeção do trabalho”. De maneira geral, Her- que a gente encontra aqui têm outra mentalidade”.
vé se afirma resistente a toda autoridade, pelo me- A comunicação, sobretudo, é um eixo central de
nos quando exercida de uma forma arbitrária ou suas orientações no trabalho. Além do ganho finan-
absurda. Como na canção de Renaud em que se ceiro e da ocupação, o trabalho é antes de mais nada
escuta: “ele tinha vontade de arrebentar o crânio do valorizado pelos contatos sociais que favorece, o
chefete que não sabia suportá-lo”. conteúdo desses contatos sendo menos importante
Segue-se um breve período de desemprego, um do que a própria comunicação. Embora encontre
emprego interrompido três dias depois de ele haver nessa cultura da comunicação e da convivialidade
sido contratado, por causa de um acidente de moto um substitutivo para a identidade profissional não
(que serve de pretexto para seu empregador não realizada pelos canais tradicionais, Hervé não con-
recontratá-lo) e um novo período de desemprego sidera, entretanto, seu emprego como um verdadei-
com duração de quinze meses com prestações do ro trabalho, isto é, como aquele que lhe traria status
seguro-desemprego que vão sendo reduzidas pro- e estabilidade.
gressivamente. Para ele, realizar-se é: “eles têm uma casinha,
filhos, um carrinho e... Bom, eles chegaram a um
Caro senhor, sentimos muito, o senhor tem 25
ponto onde eu gostaria de chegar. Eu não cheguei
anos, e apenas um ano de experiência, que podemos
aí, mas isso vai acontecer um dia... de qualquer for-
fazer pelo senhor? Não dá para contratá-lo, não é
ma, eu poder ter o que quero.”
mesmo...?
Enquanto isso, num futuro previsível, seu ho-
Nos últimos meses de desemprego, não supor- rizonte inelutável é o desemprego e uma nova bus-
tando mais o tédio e o vazio de seus dias, Hervé ca para encontrar um emprego.
trabalhará voluntariamente um dia por semana nu-
Agora estou bem porque tenho um trabalho,
ma associação cultural. Depois ele será contratado
mas dentro de três anos terei de recomeçar, e isso vai
para um cargo de serviços gerais no quadro dos
ser o quê, recomeçar? Vai ser, talvez, dois anos de
programas de reinserção para desempregados. Se
desemprego ou dois meses, como podem ser dois dias.
seu emprego tem muito pouco de conteúdo próprio,
ele valoriza muito, no entanto, o novo tipo de re- A precariedade constitui seu universo de refe-
lações que experimenta (“é jóia, você encontra pes- rência, desencadeando efeitos de ruptura, de frag-
soas”) e o caráter expressivo das atividades que o mentação ou de desarticulação que impedem a for-
constituem. mação de uma relação estável com o trabalho. No
plano profissional, Hervé aspira de modo impreciso
Não dá nem para dizer que é meu patrão, por-
e flutuante a um trabalho, ao mesmo tempo coo-
que não é um cara como os meus patrões de antes. É
perativo e independente (“ser meu próprio patrão”),
outra coisa. É um cara muito legal, é muito agradá-
que lhe assegure um status social condizente com
vel trabalhar com ele. Desde que estou aqui, eu me
suas expectativas iniciais e uma auto-realização atra-
esforço muito, até um pouco demais, acredito, para
vés de uma atividade criativa.
que a gente faça alguma coisa que valha a pena. Bom,
o que se chegou a fazer foi um mini-festival com os Se eu tivesse podido ser joalheiro, aí eu teria uma
“hard-rockers” que foi muito bom. loja... eu gostaria de ter feito dessa loja ou desse atelier,
um atelier de criação, do gênero Van Cleef e Arpels.
Essa inserção profissional lhe dá ocasião de se
Teria sido Van... Hervé. Seria meu próprio patrão e
abrir, de ter acesso a um novo universo cultural e
faria uma associação cooperativa. Acho normal bene-
relacional suscetível de lhe proporcionar novos pon-
ficiar outros operários como eu... que seria operário
tos de referência: “eu me sinto crescer com esse tra-
também, já que faço a criação... Nesse pequeno meio
balho cultural, eu evoluo, acredito nisso, as pessoas
da criação, faria só um modelo de jóia por pessoa...

78 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho, busca de sentido

Eu acredito que as pessoas teriam mais vontade de vir chega a um ponto sem volta. Se você não acha traba-
comprar comigo do que com qualquer outro. Além lho nos próximos seis meses, você embarca p’ro hos-
disso, seria legal de fazer...” pital, como alcoólatra ou então como... louco.

As afirmações de Hervé são assim constante-


O trabalho na vida
mente divididas entre uma aspiração à normalida-
de e à conformidade social (“se eu conseguisse en-
Contra as apreciações lapidares (“os jovens
trar na pequena burguesia”) e uma busca de eva-
perderam o sentido do valor do trabalho”) é pre-
são e de encontros (“Meu objetivo é a viagem e a
ciso sublinhar que o trabalho continua sendo uma
comunicação”). Aliás, se ele fosse joalheiro, com-
fonte importante de normatividade e uma expe-
praria um barco.
riência central de socialização. Trabalhar — quer
Suas condições atuais de existência tornam hi-
dizer, exercer uma atividade produtiva com cará-
potética a realização de seus projetos e Hervé ten-
ter social assegurando uma independência finan-
de a refugiar-se numa situação de moratória, entre
ceira — permanece, para todos os jovens que en-
sonhos malogrados e projetos indefinidos: “No mo-
trevistamos, uma expectativa básica, por vezes es-
mento estou aqui, daqui a três anos, vamos ver”.
sencial, sempre importante. Entretanto, por trás da
Essa situação de moratória é acentuada pela depen-
aparente homogeneidade das expectativas — um
dência financeira que o obriga, aos vinte e cinco
trabalho de que se gosta num ambiente positivo,
anos, a continuar morando na casa dos pais. Ao to-
que assegure ganho e reconhecimento social — as
do, no momento da entrevista, fazia seis anos que
experiências vividas e as significações atribuídas ao
Hervé havia saído da escola. Os dois anos no exér-
trabalho são múltiplas. As palavras são as mesmas
cito, os trinta meses de desemprego e os empregos
(trabalho-emprego-desemprego), mas as significa-
precários que ele conheceu não lhe permitiram in-
ções são diversas.
vestir em tarefas de conteúdo importante.
Ele é o exemplo banal de um jovem cuja socia-
A crise do modelo tradicional do trabalho
lização de trabalho foi, desde o início, fragmenta-
da e precária. Longe de constituir uma etapa inicial,
O modelo tradicional de trabalho é ainda bem
a precariedade de sua inserção profissional é a cons-
presente e desejável para muitos jovens, mesmo ten-
tante em sua trajetória no mercado de trabalho.
do-se tornado mais ou menos difícil de praticar.
Essa fragmentação e essa heterogeneidade, impedin-
Para Patrick, encarregado numa pequena em-
do a realização das expectativas ligadas ao projeto
presa metalúrgica da região de Liège, como para
familiar inicial, são fontes de desestruturação pro-
Bernard, torneiro-fresador numa empresa metalúr-
funda e de ameaças de anomia. O modelo de tra-
gica próxima de Bertrix, o trabalho é ao mesmo
balho ao qual ele se refere é bastante impraticável.
tempo uma necessidade vital, uma obrigação social
Para Hervé, face à sociedade fechada e desorgani-
e um dever moral, cuja contrapartida é o status so-
zada, os indivíduos ficam reduzidos à impotência
cial que ele confere e a satisfação pessoal que pro-
existencial e vivem uma ameaça de desagregação
porciona. O trabalho tem uma dimensão instrumen-
psíquica. Ele evoca assim o horizonte negativo de
tal (ganhar a vida) mas, apesar de seu caráter pe-
uma desorientação pessoal, que ele teme.
noso, ele comporta também uma forte dimensão
No fim das contas, são os nervos que sofrem e expressiva (realizar-se social e pessoalmente). Ao
eu não sei se é a maioria dos desempregados que são lado do salário, que é um critério importante que
assim, e os jovens, porque muitos jovens... depois de justifica as mudanças de empresa, trata-se “gostar
um ano, um ano e meio de desemprego, a bebida co- do trabalho”, “de se sentir bem” e “de estar num
meça a chegar... A bebida faz com que — bom, você bom ambiente”.

Revista Brasileira de Educação 79


Guy Bajoit, Abraham Franssen

Uma grande parte do discurso é espontanea- recuar, este aparece como uma referência longín-
mente voltado para a descrição do processo de tra- qua. Além disso, o prolongamento da escolarida-
balho no qual estão engajados, com sua rotina e de obrigatória até os dezoito anos e o esgotamento
seus incidentes. Sua identidade orgulhosa está liga- das fontes tradicionais de empregos operários, tem
da ao conteúdo técnico do trabalho (trabalhar com contribuído para manter muitos jovens num espa-
uma máquina de tipo digital), à sua dificuldade, ço relativamente indeterminado, impedindo a socia-
até mesmo à sua sujeira, e às competências mobi- lização precoce no mundo do trabalho, tal como
lizadas. A valorização está igualmente ligada ao geralmente foi vivida por seus pais.
nível de responsabilidade exercida, à “importância
de seu papel”. Patrick, como Bernard — que deta- O “garantismo”
lha longamente o funcionamento de sua máquina:
“uma máquina suíça de 39 que trabalha com mi- Ao fim de um longo período de desemprego
cron” — são reveladores de uma cultura do ofício, sem estar registrado no organismo competente,
com seus códigos, seu ritmo, suas relações, e que Pierre, cujo pai é chofer caminhoneiro, está disposto
ocupa um lugar central nas suas existências. As a encarar qualquer trabalho: A pessoa que vai bater
etapas e os mecanismos de sua entrada no mundo ponto (no organismo de registro dos desemprega-
do trabalho, e de sua carreira operária são clara- dos) acaba tomando gosto nisso, e o trabalho... ela
mente balizados. É o tempo do trabalho que deter- está pouco ligando, se lixa, isso não é para mim”;
mina o ritmo de vida, distinguindo claramente “Se me dissessem para ser desentupidor de priva-
tempo de trabalho e de lazer. (“o domingo é sagra- das, eu seria desentupidor de privadas... o que eu
do”). O tempo do trabalho vem primeiro, e o da precisava era de uma entrada mensal de dinheiro.”;
recuperação é secundário. Nem um nem outro re- “Eu pedi para ser varredor de rua. Mas isso não deu
clamam por efetuar horas suplementares em fun- porque era preciso ser bilíngüe”. Pierre acabou sen-
ção das exigências da produção. do engajado no Governo belga: “Eu tive de me fa-
Se esse modelo tradicional é ainda bastante zer de criança nessa hora... eu tive quase que cho-
desejável, sua impraticabilidade relativa o leva a rar para conseguir o lugar. É verdade que eu era
entrar em crise. 2 Hoje, para muitos jovens, como casado, que meu filho havia acabado de nascer, eu
para Hervé, a experiência do desemprego e da ins- tinha necessidade absoluta de dinheiro”3 .
tabilidade, o confinamento em tarefas pouco qua- Ao fim de seus estudos de auxiliar de enferma-
lificadas, a consciência das exigências dos contra- gem Solange experimentou um longo período de
tos e a ausência de perspectivas profissionais des- desemprego, que significou, para ela, o tédio, o de-
truíram a maior parte de suas referências ao modelo sânimo, o sentimento de inutilidade, os dias em que
tradicional do trabalho. Ameaçado e obrigado a se está só, sem nada para fazer: “eu procurei mui-
to, muito trabalho, respondi aos anúncios, escrevi...
no começo procurei no meu ramo, mas depois, qual-
2 Esse parágrafo apóia-se bastante numa pesquisa an-
terior levada a efeito sobre as orientações de trabalho dos
jovens e apoiando-se na análise aprofundada de uma dúzia
de entrevistas com jovens em situação precária no merca- 3 Essa atitude de implorar emprego, na qual o regis-
do de trabalho. É preciso observar que algumas das entre- tro afetivo (“Tenho necessidade de um trabalho. Obriga-
vistas evocadas aqui (Pierre, Solange, Laura, Hervé) foram do...) prevalece sobre a transação mercantil, pode ser igual-
realizadas em 1985 e 1986, num contexto fortemente mar- mente encontrada, de quando em quando, na página “jo-
cado pela crise do empego indusrial. Ver Molitor, M. e A. vens que procuram emprego” do jornal Le Soir, no qual uma
de Ronge Jeune et identité au travail, rapport de recherche, vez por semana uns trinta jovens dispõe de 12 centímetros
departement de Sociologie UCL, 1987. quadrados para atrair a atenção de um empregador.

80 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho, busca de sentido

quer coisa, cheguei até a pedir numa usina de fa- qüentemente, através de empregos pouco qualifica-
bricação de plástico... como empregada doméstica... dos no setor dos serviços ou no quadro de sub-status
babá e tudo”. Por fim, teve a sorte de encontrar um do setor não-mercantil, as relações de trabalho não
primeiro emprego, temporário, como auxiliar de são mais vividas como relações de produção, mas
enfermagem num lar para pessoas idosas, substitu- como estritamente hierárquicas e burocráticas (va-
indo outra pessoa: “Eu gosto de trabalhar, tenho zias de conteúdo) ou, inversamente, como relações
medo de ficar desempregada de novo”. interpessoais, ligadas às categorias do afetivo (“sim-
Para esses jovens cuja experiência da precarie- páticos”, “legais”...); “O GB é uma família”; “para
dade origina-se freqüentemente numa socialização mim, o GB é, como diria, um lugar público, a gen-
familiar que oferece recursos frágeis ou inadequa- te está entre amigos, a gente discute, se diverte, é
dos e é confirmada pelo veredito do sistema esco- isso mesmo.” (Pierre)
lar, as dificuldades prolongadas de inserção no mer- A dimensão coletiva e conflitual das relações
cado de trabalho impedem a estabilização no mode- de trabalho desaparece aqui completamente, subs-
lo de trabalho ao qual aspiram e se traduz por uma tituída seja por um sentimento de isolamento e de
desestruturação de suas referências identitárias. Con- impotência, seja por uma identificação total à em-
trariamente a Bernard ou a Patrick, há aqui a ausên- presa: “No GB, eles são boa gente...A prova: eu fui
cia de uma cultura do trabalho estável e constituída. uma vez surpreendido fumando nos banheiros, o
Nessas condições, as preocupações econômi- que é proibido pelo regulamento, fui chamado pelo
cas (“um trabalho a qualquer preço”) ou de status gerente, discutimos e ele, vendo minhas possibili-
(“não estou contente de ter um emprego provisó- dades de trabalho, me disse: ‘bom, vamos deixar
rio remunerado pelo Estado”) prevalecem sobre as passar’”. (Pierre)
características próprias do trabalho. O percurso no A ausência de mediação pelo trabalho e, de
mercado de trabalho é descrito mais em termos maneira geral, a fragilidade de suas redes sociais,
administrativos (“fiz um estágio para desemprega- reforçam o sentimento de vulnerabilidade social
dos...”; “naquele momento, estava fazendo um es- com relação às diferentes instituições (Ofício para
tágio de espera”; “obtive meu certificado 4”) mais os desempregados, sindicatos, administrações) ao
do que em termos de ofícios, de conteúdos. As ex- arbítrio das quais eles sentem-se particularmente ex-
pectativas com relação ao trabalho são reduzidas postos, na medida que elas constituem seu elo com
à sua dimensão instrumental: uma fonte de ganhos, o sistema social.
uma ocupação do tempo, um status social. Pode-se, com Michel Molitor, falar da figura
Nesse sentido, para esses jovens em situação do “garantismo” para caracterizar a degradação das
precária, a dimensão expressiva do trabalho desa- referências de trabalho que se observa entre os jo-
parece: o sentimento de participar de um processo vens confrontados com o fracasso relativo de seu
de produção global, de ser útil, de se realizar pes- projeto de integração. A cultura do trabalho, capaz
soalmente. A organização do trabalho é então sen- de proporcionar uma identidade digna e positiva ao
tida como heterônoma. Ela tende a ser reduzida ao trabalho, torna-se uma referência distante, mas sem-
organograma que lhe assinala um lugar, na falta de pre desejada. A dimensão expressiva do trabalho
um status real e de uma função. A ocupação não é como locus da realização de si é progressivamente
percebida em termos de ofício, mas de tarefas a re- abandonada em favor unicamente da lógica do em-
alizar (“arrumo as prateleiras”) ou de uma defini- prego, o tema da retribuição prevalece sobre o da
ção institucional (“Trabalho como estagiário”) ou contribuição, as categorias administrativas ou afe-
ainda, permanece indefinida e marginal (“sou pau tivas substituem as categorias sociais e profissionais.
mandado”). Pierre, Solange, Stéphane, Luc, Hervé, Didier
Para esses jovens cuja inserção se efetua, fre- e tantos outros agarram-se aos farrapos da norma-

Revista Brasileira de Educação 81


Guy Bajoit, Abraham Franssen

lidade do trabalho, sem realmente questioná-la, nem se mantêm bem ou mal, provisoriamente, mas sem
dela distanciarem-se. Trata-se, por certo, de uma esperanças realistas de encontrar uma saída, nessa
lógica de crise no sentido de que a impraticabilidade zona brumosa que separa as exigências do merca-
das normas adquiridas é vivida dolorosamente e dá do de trabalho dos seus recursos e das suas aspira-
lugar a diversas estratégias de compensação e de ções. Por exemplo, nas conversas de Hervé ele evo-
racionalização, sem alternativa positiva. ca o grupo dos “irredutíveis” com o qual se vêem
É a lógica do gato escaldado e da nostalgia que “confrontadas” as instituições de reinserção profis-
melhor caracterizam a atitude desses jovens no mer- sional que se habituaram a distinguir, no seu públi-
cado de trabalho e, de maneira mais geral, face a co, os jovens “aptos à formação para o trabalho” e
uma sociedade da qual eles se sentem marginalizados os jovens que é preciso antes “ressocializar”. Esses
e à qual se agarram. Experimentando a precariedade, jovens — maciçamente encontrados nas diferentes
eles se retraem sobre as referências de que dispõem, iniciativas públicas e privadas de formação através
sem contar com recursos culturais e sociais que lhes do trabalho (escolas de aprendizado, formação em
permitiriam viver diferentemente sua situação. alternância), onde se insiste em fazê-los adquirir uma
qualificação de base (construção civil) — são tam-
O transitório bém os mais conscientes das imposições do merca-
do de trabalho e sem ilusões sobre suas próprias pos-
Ao mesmo tempo, por freqüentarem a diver- sibilidades de exercer um trabalho interessante. Para
sos meios, por força da necessidade de uma aven- aqueles que, decididamente, resistem à socialização
tura sempre recomeçada, a própria heterogeneida- pelo trabalho (e tanto mais na medida em que esta
de de sua experiência propicia uma socialização se efetua sob a forma de estágios mal remunerados
inédita e a aquisição de novas referências e orien- no quadro de pequenas e médias empresas marca-
tações com relação ao trabalho. No caso de Hervé, das pelo autoritarismo das relações de trabalho), a
como no de muitos outros jovens, essa modificação “apatia” é apenas a distância que os salva.
das orientações com relação ao trabalho está liga- Verifica-se, nesse caso, ao mesmo tempo, uma
da à experiência de empregos “alternativos” do se- desestruturação das referências tradicionais de tra-
tor não mercantil no quadro de sub-status (diver- balho tornadas completamente impraticáveis e a ma-
sos mecanismos institucionais especialmente cria- nifestação de orientações novas, particularmente em
dos pelo governo para atendê-los...), onde eles têm torno da temática da comunicação e da auto-reali-
a oportunidade de experimentar outros tipos de zação expressiva. Essas aspirações, na medida em que
relações de trabalho. não podem se realizar no âmbito do mercado de tra-
De uma maneira mais global, podemos nos balho, transformam-se em atitude de auto-preserva-
interrogar com relação aos efeitos, em termos de ção, entre desestruturação psíquica e o distanciamen-
socialização, da experiência de trabalho, decorren- to lúcido. Às ofertas tradicionais de formação, ain-
tes de políticas de emprego destinadas aos jovens. da amplamente elaboradas com base nas normas do
Com relação à experiência de Hervé, é possível for- modelo tradicional de trabalho, esses jovens respon-
mular a hipótese de que esses empregos de substi- dem freqüentemente com indiferença, manifestan-
tuição não permitem uma integração real no mun- do em contrapartida mais interesse por atividades
do do trabalho, mas induzem uma socialização que, com forte dimensão expressiva (“teatro”).
com Michel Molitor, se poderia qualificar de “so-
cialização do transitório”, fortemente marcada pela Novas Aspirações ao Trabalho
lógica da precariedade.
O exemplo de Hervé esclarece a lógica interna Na ética tradicional, o trabalho é considerado
dos jovens que galeram no mercado de trabalho, que como um dever moral e social. É através de sua parti-

82 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho, busca de sentido

cipação no processo de produção que o indivíduo A recusa do trabalho-alienação


pode pretender a uma auto-realização, tanto no pla-
no da satisfação pessoal quanto do status social. Aca- De maneira defensiva, negativamente, essa
bamos de ver que para um certo número de jovens, aspiração exprime-se por uma rejeição ao trabalho
esta referência tornou-se longínqua e impraticável assalariado na fábrica e por uma recusa do traba-
e que esta degradação é vivida sob a forma da crise. lho-alienação. Muitos jovens manifestam assim
Ao mesmo tempo, paralelamente, a crise de pratica- sua rejeição a uma carreira operária normal tal
bilidade e de legitimidade das normas tradicionais como a que foi vivida por seus pais. Assim, Chris-
de trabalho dá também ocasião a uma mutação es- tian, 22 anos, interrompeu a escola aos dezoito
trutural das orientações com relação ao trabalho. para ir trabalhar.
O que muda não é tanto a importância do tra-
Eu trabalhava numa usina química. Rompi meu
balho, mas sim a relação com ele. Enquanto no mo-
contrato. O ambiente não me agradava. Tinha muito
delo tradicional a realização pessoal estava subor-
barulho. Era meio que trabalho em cadeia. No começo
dinada ao trabalho, hoje é o trabalho que tende a
para guardar o lugar, você tem que trabalhar. E com
estar subordinado à realização pessoal, permane-
isso os outros operários aproveitam. Eles vêem que
cendo entretanto como um elemento e um locus
você é o otário... Havia relações entre os operários,
essencial, embora não exclusivo. Nesse sentido, não
mas para mim não dava. Eu não teria conseguido con-
se trata tanto de uma rejeição do trabalho, mas sim
tinuar ali. Vê-los todos os dias, não dava. É o tempo
da reivindicação de um trabalho que tenha sentido
todo a mesma coisa, e depois, no final do ano, vamos
para o próprio indivíduo e/ou que lhe deixe tempo
todos ao restaurante e você tem a impressão de que é
para uma vida própria.
o carrossel encantado. Não, eu não quero... Eu prefi-
Em outras palavras, o trabalho continua sen-
ro achar alguma coisa melhor, que eu esteja seguro de
do importante, mas diferentemente. Enquanto an-
gostar mais...
tes ele era importante em si, pela participação que
assegurava ao projeto coletivo da sociedade indus- Christian encontra-se agora desempregado há
trial, agora ele se torna importante para o próprio seis meses (“com o desemprego eu posso aprovei-
indivíduo, na medida que pode contribuir para o seu tar melhor a vida”), situação que ele sabe que é
projeto singular. O valor do trabalho tende a não provisória sem que por isso seus projetos estejam
ser mais sacralizado, mas autoreferido, isto é, a ser claramente definidos (“Eu não sei, a gente vê, a
submetido às aspirações e à crítica do indivíduo. gente vê”). Embora faça rock com um grupo de
Não é mais o indivíduo que é referido ao trabalho, colegas, não tem ilusões quanto às exigências do
o trabalho é referido ao indivíduo. mercado musical e não imagina que vai poder vi-
ver disso. De qualquer forma, sabe que não volta-
Para mim, é importante ter sucesso no plano
rá à fábrica. E quando lhe perguntam se está inte-
profissional, mas mantendo um distanciamento com
ressado numa formação em trabalho com madei-
relação a isso. Não esquecer que o resto também tem
ra, organizada em sua região no quadro de uma
importância e que o fundamental é estar bem na pró-
AID (ação integrada de desenvolvimento) destina-
pria pele. A melhor profissão é, antes de tudo, aquela
da aos jovens “excluídos”, sua resposta é inequívo-
de que a gente gosta, (posto que representa uma gran-
ca: “Não, a poeira, eu não suporto, sou alérgico a
de parte da nossa vida) (Jean Pierre).
isso. Essa coisa de poeira, eu já conheço.”
Essa reivindicação se exprime muito nitida- Esta experiência de sujeição à máquina e à agres-
mente na vontade de “não se deixar consumir pelo sividade nas relações de trabalho, Silvana também
trabalho” e de realizar um trabalho que tenha sen- já viveu. Para ela, o choque da entrada no “mun-
tido, no qual o indivíduo possa realizar-se. do do trabalho” foi tanto mais violento quanto sua

Revista Brasileira de Educação 83


Guy Bajoit, Abraham Franssen

socialização anterior, no universo protegido da fa- senão submeter-se, interiorizando as coerções. É


mília e no quadro convivial da escola, não a tinha precisamente essa perspectiva que é rejeitada de for-
preparado de maneira alguma para isso: “Quando ma explícita por Christian, Silvana ou Isabelle (que
você está na escola, você tem a impressão que é trabalha como secretária): não terminar como eles,
mimada... você é protegida.” rotinizados, escravizados e aviltados pelo ritmo de
Da fábrica onde Silvana trabalhou três anos, trabalho e suas relações convencionais.
ela guarda uma experiência heterônoma, sem con- Para esses jovens, a primeira experiência de
teúdo próprio, sujeita ao ritmo da máquina, con- trabalho — às vezes depois de muitos anos — lon-
frontada com a vulgaridade e com as rivalidades de ge de conduzir a uma confirmação do modelo de
suas colegas mais velhas: trabalho (como no exemplo de Patrick que “está re-
começando tudo de novo”) conduz a uma rejeição
Numa fábrica, é preciso sempre andar rápido.
total ou parcial. Passado o primeiro choque de en-
A máquina gira todo o tempo, você não pode parar a
trada no mundo do trabalho, eles tentam se acomo-
máquina... É depressa demais, é rápido demais. Ali,
dar: “Eu não queria dizer aos meus pais que esta-
oito horas, você só pode ir (ao banheiro) duas vezes.
va infeliz nessa fábrica” (Silvana) “É verdade, eles
Cinco minutos... Porque nas fábricas, freqüentemente,
têm razão, vou fazer como todo mundo” (Isabelle).
a briga é essa: os banheiros. Eu emagreci cinco qui-
Mas acabam desistindo, antes de se perderem como
los, porque não conseguia comer em vinte minutos...
sujeitos:
Então eu não comia nada. Com isso você fica sono-
lenta e isso é mau porque... você pode meter os dedos
Faz mais ou menos 6 meses que estou desempre-
na máquina. As antigas se aproveitavam das mais jo-
gada, no começo eu fiquei, admito, feliz, porque pas-
vens... te deixam o tempo todo no mesmo lugar... fa-
sei cinco anos de minha vida numa fábrica abominá-
zer o trabalho mais duro e o mais chato, o dia inteiro.
vel onde o patrão era o patrão e a operária um ins-
Desempregada há quinze dias (“eu mereci”) trumento de trabalho. Fiquei tão horrorizada com esse
Silvana não voltará a trabalhar na fábrica para não cara que me arrependi realmente de ter parado de estu-
perder a sua humanidade: dar. Mas o fato de ter trabalhado como um cão me
ajudou a pensar. Por isso, quando me registrei no Ofí-
Se eu trabalhar toda a minha vida num lugar
cio do desemprego, me senti em férias e foi depois de
assim, vou ficar como elas, vou me tornar ruim.. Não,
dois, três meses que comecei a refletir e disse a mim
isso eu não quero. (...) Para mim, o trabalho ideal é o
mesma que não queria mais voltar a trabalhar numa
de mãe de família...criar os filhos... cuidar das pes-
fábrica. Eu penso que os desempregados não devem
soas...permanecer humana.
se deixar abater, porque, ainda que se duvide, os de-
A dimensão alienante do trabalho assalariado, sempregados não são necessariamente pessoas que não
o sentimento de monotonia e de vazio que o acom- prestam para nada, ou pessoas à parte. Eles também
panha não são novos. Toda a literatura sociológi- têm sua vida, mesmo se eles não têm os meios finan-
ca sobre a condição operária, e em particular as ceiros como os outros. Quanto a mim, é verdade que
pesquisas junto às operárias, ressaltaram abundan- eu não gasto mais tanto como antes, mas por enquanto
temente essa escravização da pessoa à máquina e as estou vivendo muito bem e espero poder achar um
micro-estratégias individuais ou coletivas acionadas trabalho, mas desta vez um trabalho que me agrade
para escapar a isso (psicossomatização, fuga atra- (agência de viagem) porque gosto de estar em conta-
vés do sonho, greve tartaruga...).Não obstante, ape- to com as pessoas. Só agora me dou conta disso, foi
sar de seu caráter penoso, o trabalho determinava primeiro preciso que eu tivesse uma experiência ruim
uma condição operária vivida como uma razão so- para adquirir vontade e caráter. Eu não voltarei jamais
cial, com relação à qual não havia outra escolha a uma fábrica (Gabriella, 23 anos, atelier de escrita).

84 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho, busca de sentido

O trabalho desinvestido como eu já caí na armadilha, me envolvo um


e o trabalho sonhado... mínimo... Para mim, o trabalho é como um negócio.
E vejo família como realização... Eu não sou diretor
Tudo se passa como se a experiência de tra- de empresa, então não vejo como poderia... Se eu fosse
balho de numerosos jovens fosse caracterizada por chefe de empresa, seria milionário, talvez fosse desse
uma distância importante, sentida e expressa, en- jeito. Não é o meu caso.
tre suas aspirações e a realidade (conteúdo e ambien-
te) do seu trabalho. Freqüentemente a decepção os Quanto a Ana, recepcionista de uma agência
espera na entrada do “mundo do trabalho”: “Na de viagens,
realidade, de início, você imagina muita coisa com
“Isso depende do trabalho. Se eu tivesse um traba-
relação ao trabalho...”, “há um certo desencanta-
lho de que gostasse muito, não me incomodaria de tra-
mento”. Numa pesquisa realizada com jovens de
balhar dez horas por dia. De bom grado eu trabalharia,
camadas populares, Daniel Ruquoy e Jean-Pierre
mas... Quando é um trabalho de que você não gosta
Hiernaux mostraram bem a defasagem entre a im-
muito, 4 horas bastam... Só para ganhar a vida, é só isso.”
portância atribuída a priori ao trabalho e a satis-
fação advinda da experiência concreta com o mes- Essa recusa de um trabalho que impõe suas li-
mo. Uma maioria de jovens vão, assim, lamentar a mitações ao conjunto da existência (“o trabalho que
falta de interesse qualitativo de seu trabalho, esti- absorve vida inteira”) é expressa, de maneira mais
mando-se, ao contrário, mais satisfeitos com suas ou menos aberta e declarada, pela maior parte dos
características extrínsecas (ganhos, status...)4. jovens, qualquer que seja seu nível sócio-profissio-
nal: “Não quero uma vida em que você se sacrifica
Bem, eu procuro emprego com contrato inde-
pela empresa” (Joy). O trabalho no quadro de um
terminado, um pouco o que me cai nas mãos. Rara-
emprego não é considerado como o único modo de
mente são coisas que eu gosto (Ana).
autorealização. Na medida em que não seja realiza-
A consciência e a gestão desse descompasso dá dor, ele tende a ser minimizado, para justificar uma
lugar a diferentes estratégias, atitudes e representa- auto-redefinição, na esfera familiar para alguns, ou
ções, que permitem ao indivíduo existir como su- a partir de uma atividade pessoal para outros. “Eu
jeito dissociando-se de sua situação, ou mesmo de não me definiria pelo trabalho, eu me definiria prin-
sua condição profissional. A figura mais clássica cipalmente pelo que faço paralelamente” (Isabelle).
dessa gestão da insatisfação é a do trabalho desin- O trabalho então é apenas um “bico”, o “trabalhi-
vestido. O trabalho é, no máximo, reduzido à sua nho”, o “contrato”, “temporário”, enquanto o ver-
função instrumental (pelo dinheiro) enquanto toda dadeiro trabalho é a atividade autônoma.
a dimensão da autorealização é reportada à esfera Esta lógica é particularmente presente entre
privada e à sociabilidade escolhida. os jovens que seguiram estudos do tipo artístico ou
Mathieu, que ao fim de um contrato de apren- literário e que experimentam sua frágil rentabilida-
dizagem de 6.000 francos belgas por mês durante de no mercado de trabalho. É na medida que não
dois anos, acabou de ser contratado como repara- encontram um trabalho que corresponda a suas as-
dor de caixas registradoras, precisa bem o alcance pirações profundas e no qual eles possam investir,
de seu investimento no trabalho: que alguns adotam uma atitude estritamente mini-
malista e instrumental com relação ao emprego.
Inclusive para Mike e Antoine, aparentemente os
mais alérgicos ao trabalho, a minimização às ve-
4 Hiernaux, J.P., Ruquoy, D.
Travail Ras-le-bol? Jouis- zes desdenhosa da implicação de si no trabalho
sance? Ed. Vie Ouvrière, Bruxelles, 1986. (“um trabalho, mas era só para ter direito ao de-

Revista Brasileira de Educação 85


Guy Bajoit, Abraham Franssen

semprego, faço questão de deixar claro”, “um tra- de de ter os pés no chão e uma consciência lúcida
balho tranqüilo, sem chateação...”) aparece como das obrigações. A maior parte dos jovens não pro-
a contrapartida das aspirações não concretizadas cura enfeitar, nem assumir com orgulho sua própria
de autorealização “num trabalho que não seja mais situação: ao contrário, eles depreciam seu “traba-
um trabalho”. lho de paus mandados” para dele melhor se distan-
ciarem. (“É uma questão de lucidez”).
Eu quero fazer alguma coisa interessante, estu-
dei fotografia, e gostaria muito de me fixar na foto-
Tempo de trabalho e tempo de vida
grafia, no teatro, numa coisa artística, ou pelo menos
cultural. Eu me sentiria útil à beça e faria uma coisa
Essa aspiração à autorealização e essa relação
que gosto (Antoine).
dessacralizada com o trabalho se traduzem tam-
Daí se eu pudesse achar outra coisa, qualquer
bém em uma outra relação com o tempo, quer se
coisa mais — como dizer —... onde eu me envolvesse
trate do tempo cotidiano ou da divisão das etapas
mais, por assim dizer... Assistente social, isso é um
da vida. No modelo tradicional de trabalho, o tra-
treco que eu bem que gostaria de fazer (Mike).
balho é um dado indiscutível que determina o rit-
No horizonte, subsiste freqüentemente o so- mo da existência. A norma é a do emprego em
nho de um trabalho que propiciasse a auto-reali- tempo integral e para toda a vida. A estabilidade
zação pela realização de um projeto próprio. Joy — do emprego é uma dimensão importante e é o mo-
atualmente desempregada e que, desde que parou delo progressivo e cumulativo da carreira que cons-
de estudar com dezessete anos, só trabalhou em titui a norma (sancionada por uma medalha depois
secretariado, “uma pura exploração” ou “peque- de 25 anos de fidelidade). Trata-se de ter “um bom
nos serviços ingratos” — tenta lançar as bases que lugar” que permita efetuar toda uma carreira — os
a aproximariam de seu sonho: papéis profissionais são papéis para toda a vida,
com a possibilidade de “reconversão” sob o impé-
Meu grande sonho e minha grande ambição se-
rio da necessidade, mas o termo mesmo de “recon-
ria trabalhar um pouco mais na área do espetáculo ou
versão”sugere a amplitude da reorientação que
do canto, tudo o que é um pouco público, isso é a
isso significa. Se ainda se encontra entre os jovens
minha grande ambição. Mas é evidente que é preciso
esta aspiração a uma segurança na existência, for-
viver de coisas que não somente sejam sonhos, e daí,
çoso é constatar que há menos empregos estáveis
por isso, eu gostaria muito de ter uma formação como
e que a norma do emprego em tempo integral e
vitrinista, isso seria minha base...
para toda a vida tende a aparecer como um con-
Ana, que sofre no balcão de uma agência de tra-modelo. O receio da monotonia supera o de-
viagens, gostaria de viajar “organizar viagens para sejo de segurança e de retorno financeiro (“o di-
as pessoas e tudo isso” ou então fazer fotografia. nheiro, a gente precisa, mas é para gastar”). Mui-
Isabelle que “fica lendo atrás de sua máquina de tos jovens reivindicam assim o caráter temporário
escrever enquanto o chefe não está lá”, gostaria de da sua ocupação atual: “eu vou sair logo”, “não
escrever ou então “ir para o Terceiro Mundo”. E vou envelhecer lá dentro”.
para Didier, amarrado há muitos anos entre uma Jovens com maiores recursos inquietam-se às
situação de desemprego e um status indetermina- vezes de se verem confinados em um lugar “confor-
do, o emprego ideal seria trabalhar em postes de tável” (estabilidade, bom salário, mas pouco inte-
eletricidade, um trabalho perigoso e ao ar livre, lá resse intrínseco) que não se teria mais coragem de
no alto. deixar. Os jovens executivos tendem a afirmar seu
A imprecisão e a grandeza do projeto pura- desprendimento e sua capacidade de ruptura não
mente virtual permitem a evasão. O que não impe- somente com relação ao emprego, mas também com

86 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho, busca de sentido

relação à carreira. (“parar”, “fazer qualquer outra Numerosos jovens falam assim do trabalho
coisa”). Mesmo que isso não venha a ser feito. manifestando um sentimento de isolamento como
se fossem os únicos a conservar uma distância crí-
Eu me vejo muito mal num escritório sempre
tica, em meio a colegas rotinizados. O mau ambien-
com o mesmo patrão, sempre com as mesmas ordens
te e o caráter hierárquico e competitivo das relações
o dia todo. É isso que me dá muito medo no traba-
de trabalho são freqüentemente evocados como o
lho, é de fato a rotina que para mim vai um pouco de
primeiro fator de desgaste e de rejeição ao traba-
encontro à vida, que desgasta, que é constrangedora,
lho assalariado.
que te imobiliza e é enfadonha (Joy).
Bom, eu diria que entre os colegas aqui embai-
Quanto ao tempo cotidiano, a motivação pe-
xo na agência, não há problemas, entre os quatro, não
lo salário é aqui secundária com relação ao desejo
há problemas, é principalmente no nível da hierarquia
de ter tempo para a própria vida, de que o tempo
enfim porque eles se acreditam talvez um pouco su-
todo não seja consagrado à recuperação da “for-
periores pelo fato de serem secretárias ou contadores,
ça de trabalho”.
tendem a te rebaixar um pouco (Ana).
O trabalho, na verdade, toma espaço demais.
Positivamente os jovens são sensíveis à quali-
Quando você pára, termina o trabalho às duas horas,
dade das relações de trabalho, às quais eles tendem
chega em casa são duas e meia, você faz o quê? Você
a aplicar as exigências da comunicação, da auten-
descansa no sofá porque você não agüenta mais. E, às
ticidade, da reciprocidade das relações pessoais. Es-
vezes, no começo, nos primeiros meses, eu ficava no
sa importação de categorias do afetivo pode ser am-
sofá e dormia, às vezes até 7, 8 horas. Depois você não
bígüa, a relação social empregador-empregado di-
tem mais vontade de fazer nada no começo. Você fica
luindo-se, por vezes, atrás da relação interpessoal
meio abatida porque você acha que é horrível, horrí-
“legal”, “jóia” ou da personalidade simpática do
vel mesmo o que você faz (Silvana).
empregador.
Você vive só p’ra isso (Christian).
Quanto às instâncias de mediação e defesa dos
Eu acho que isso toma um tempo enorme, e ener-
interesses coletivos dos trabalhadores, elas são, com
gia também... Freqüentemente, no final da semana eu
freqüência, julgadas pouco legítimas e inoperantes
estou realmente a nocaute....completamente exausta,
para responder às situações particulares dos jovens.
liquidada (Isabelle).
O recurso ao sindicato tende, a partir daí, a ser estri-
tamente instrumentalizado ou rejeitado em proveito
O trabalho: uma experiência individual de um protesto individual que se traduz mais dire-
tamente pela desimplicação e a saída expressiva do
Esta vontade de considerar o trabalho a par- que pela reivindicação e a negociação. “Eu rompi
tir das categorias da experiência manifesta-se, en- com esse sistema que assegurava vantagens demais
fim, nas expectativas de comunicação e de convi- para o patrão”, “eu acumulo toda a minha raiva,
vialidade nas relações de trabalho. A maioria dos depois me desabafo e vou-me embora...” (Ana).
jovens não viveram as condições de constituição
de uma identidade coletiva a partir do trabalho. O trabalho-paixão
Para a maior parte dos jovens, a individualização
das trajetórias profissionais e a precariedade dos Como antípodas do trabalho alimentar, e sem
diferentes empregos ocupados fazem da experiên- envolvimento, um número reduzido de jovens che-
cia do trabalho uma experiência vivida indivi- gam a conciliar, isto é, a confundir sua atividade
dualmente, sem referência a um coletivo (a um profissional e seu projeto de auto-realização. Tra-
“nós”). ta-se, com freqüência, de jovens com grandes recur-

Revista Brasileira de Educação 87


Guy Bajoit, Abraham Franssen

sos sociais, culturais, econômicos, cujo percurso é E eu me dei conta de que o que me interessava
caracterizado pelo controle de suas escolhas. Esse era justamente... justamente esse aspecto total: gestão
modelo do trabalho como paixão encontra-se en- de uma equipe e criação de um produto. E ter todos
tre os jovens executivos e entre as profissões criati- os elementos nas mãos.
vas, que incluem um forte componente tecnológi-
Além disso, importa ser confrontado, incessan-
co (informática) e/ou artístico (música, desenho,
temente, com novos desafios, colocar-se em ques-
engenharia de som): “eu desejo que meu trabalho
tão, evoluir, fazer o tempo todo coisas excitantes e
seja um hobby, de fato” (Martial).
apaixonantes escapar à rotina.
Na imagem desse jovem executivo que indica
em pós-scriptum de seu curriculum vitae: “Uma Penso que meu trabalho não evolui mais na me-
paixão: O trabalho é uma paixão se é envolvente”. dida que sou obrigada a refazer a mesma coisa que já
Os critérios de medida, de equilíbrio entre a pres- foi feita... depois de dois anos, trata-se de ver outras
tação e a retribuição, de estabilidade, de separação pessoas.
entre tempo de trabalho e tempo de lazer apagam-
se aqui em proveito total de um modelo hiper-pro- As gratificações material, de status e simbóli-
fissional, sem concessão ao diletantismo. ca não são o mais importante: elas não são busca-
Melhor do que outros, Sophie resume as ca- das enquanto tais, e sim consideradas como a con-
racterísticas desse modelo. Deixemos, de início, que trapartida normal do investimento.
ela defina suas funções numa agência de comuni- E que para mim é importante ter o reconheci-
cação para cuja fundação ela contribuiu: mento dos outros, isso é claro. Meu salário, minha

Eu tenho uma função de coordenação que me função, eu os mereço.

permite, ao mesmo tempo, bancar a jornalista quan-


Assiste-se assim a um reinvestimento e a uma
do tenho vontade, e escrever; que permite bancar a
relegitimação, às vezes ambígua, das normas tradi-
mulher de marketing quando tenho vontade e orga-
cionais da ética do esforço, em nome de uma bus-
nizar as campanhas de promoção; que me permite ter
ca do sujeito e de uma vontade de auto-realização.
o luxo universitário de pensar e elaborar projetos, mes-
A retribuição do esforço não é postergada, mas ime-
mo que eles não se concretizem nunca; ter um papel
diata pela auto-realização para a qual ela contribui.
de diretor de projetos e obter subsídios junto à CEE
para um caderno complementar; que é um papel de Isso não me incomoda, estar sob stress dez ho-
RP quando nos convidam nas conferências da impren- ras por dia, se os projetos me interessam.
sa, para uma viagem para jornalistas.
A intensidade do investimento liga-se também
O critério fundamental do êxito é a satisfação à vontade de vencer no jogo da competição plena-
que se experimenta. É um critério que deve se apli- mente assumida. O registro de Sophie é o da admi-
car permanentemente. nistração de empresas, com termos como “investi-
mento”, “competição”, “performance”, “ser hiper-
Eu tenho necessidade de um trabalho no qual
rentável”, ela “recruta” seus “colaboradores”em
possa me envolver, com o qual eu me divirta todos os
função do seu “potencial”, de sua propensão a in-
dias. Porque no dia em que levanto dizendo: ‘merda,
tegrar-se numa equipe”e como há um turn-over im-
não tenho vontade de ir trabalhar’, então devo refle-
portante (o tempo de se fazer um nome no mundo
tir e ver como reconstruir alguma coisa.
da publicidade), é preciso que sejam “pessoas que
O grau de satisfação é ele próprio ligado ao aprendam rápido”. “Todo mundo na casa sabe que
fato de poder envolver-se totalmente, fazer alguma está permanentemente sobre um assento ejetável”,
coisa de que se gosta. inclusive ela mesma. Sophie integra totalmente a lei

88 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho, busca de sentido

da empresa, da concorrência, da performance. A tado a inserir-se nesse meio, trabalhando muito, não
norma é “estar sob stress dez horas por dia” e aqueles se incomodando de se deixar explorar um pouqui-
que não sabem acompanhar não há lugar para eles. nho desde que isso lhe permitisse encontrar pessoas
Não se cria uma estrutura para agradar às pes- interessantes.” Sua família teria preferido que fizesse
soas com quem se trabalha. Sobretudo, quando se estudos mais clássicos, como engenheiro, mas “para
está em condições econômicas tão difíceis, só se terminar isso deu certo, sem problema”. Encontra-
paga pessoas que sejam hiper-rentáveis: se aqui uma forte vontade estratégica em proveito
de um projeto-paixão clara e precocemente defini-
Chega um momento em que se tem que tomar
do: “era realmente aquilo que me interessava, eu
a devida atitude com uma série de colegas e isso é re-
gostaria de ir fundo”, “me comprometi bem antes
almente duro. É... a grande limpeza. Da equipe do
de largar os estudos”, “eu tinha começado bem afia-
início, sobram apenas três. Todos os outros cairam,
do o trabalho lá dentro”.
cairam antes. A partir do momento em que viram que
Para os jovens que rejeitam resolutamente a
não tinham a responsabilidade que deles se esperava,
perspectiva de um trabalho alimentar, há a combi-
procuraram outro rumo (...) E... desapareceram. E é
nação, em proporções variáveis, de um projeto de
verdade que eu estou consciente de que estou senta-
auto-realização e de um modelo competitivo. A so-
da em um assento ejetável.
ciedade é apreendida como um mercado que ofe-
Uma segunda figura do modelo de trabalho- rece recursos a serem mobilizados e que impõe obs-
paixão encontra-se nas conversas dos jovens artis- táculos a serem ultrapassados. Esta atitude estraté-
tas. Para Bill, o desenhista, para Pascal, o fotógra- gica a serviço de um projeto de auto-realização su-
fo, ou para Yves, o engenheiro de som, o trabalho põe uma forte confiança em si mesmo, apoiando-
é, antes de tudo, apreendido como lugar de reali- se sobre uma facilidade natural de classe ou sobre
zação e de expressão de uma essência pessoal — a convicção de um “fogo sagrado” interior.
“qualquer coisa que está neles”, “em sua natureza”.
Isso é uma vocação: eles não são chamados de fora, Os jovens independentes
mas de dentro. Não é mais um papel socialmente
reconhecido como útil: eles não pretendem seguir Esta figura do “trabalho-paixão” deve distin-
caminhos batidos e balizados por outros. Mesmo guir-se das orientações para o trabalho dos jovens
quando eles vinculam seu projeto a um papel, não independentes. Se esses não cedem nada aos primei-
é sua concretização enquanto tal o que eles buscam, ros quanto à intensidade e ao volume horário de seu
mas a sua auto-realização através dele. E pretendem investimento pessoal, a finalidade visada e a signifi-
também ser os únicos juízes de seu êxito ou fracas- cação atribuída ao trabalho são outras. Assim, Eric,
so. O trabalho encontra seu sentido a serviço des- que ao fim de uma aprendizagem em marcenaria de
se projeto, que é vivido como singular, único, pes- luxo lançou-se na restauração de móveis antigos, ou
soal. E eles consagram todo o seu tempo a ele, con- Stéphanie, que acabou de abrir um snack, estão
fundindo trabalho e lazer e envolvendo-se muito mais próximos da ética protestante de trabalho do
intensamente. que de um projeto “pour le fun”.
Aos 22 anos, ao terminar seus estudos de en- O êxito de sua empresa confunde-se com o seu
genheiro de som no IAD, Yves já tinha muitas rea- êxito pessoal do qual eles são a encarnação e a ex-
lizações profissionais a seu favor: jingles para a te- pressão. A importância do envolvimento é vivida
levisão, músicas de filmes publicitários, arranjos em como forma de sacrifício, mais do que como for-
estúdios... É preciso dizer que desde a idade de 15 ma de prazer ou de alegria.
anos, encorajado por um ambiente familiar em que Digo que é preciso um mínimo de sacrifícios du-
“todo mundo se interessava pela música” foi “ten- rante alguns anos e depois... No momento, é impos-

Revista Brasileira de Educação 89


Guy Bajoit, Abraham Franssen

sível economizar porque o que se pega é realmente o rado para atividades pessoais que desemprego per-
que sobra no fim do mês. Isto é realmente o mínimo mite. O período do desemprego é considerado
para viver. Apesar de tudo é preciso não ceder, ser como transitório e apreendido sob o ângulo dos
forte, poderoso... e não se desesperar (Eric). recursos (tempo-dinheiro) assim colocados à dis-
posição pela busca de um projeto pessoal. O de-
Nesse sentido, trata-se mesmo de um prazer semprego postergado é o desemprego vivido na
postergado: “temos a riqueza de nossas obrigações” forma de “como se”. A situação de desemprego
Vence-se graças ao trabalho, partindo do nada (“eu não é verdadeiramente apreendida como tal, po-
tinha 600 francos na minha conta”), com a força rém mais como um período ativo de busca de em-
de vontade, superando todas as limitações, sendo prego e de formação profissional.
feliz com o que se realiza. As diferentes lógicas assim distinguidas podem
nos ajudar a dar conta das experiências vividas pelos
O desemprego jovens de nossa amostra desde que sejam entendi-
das como simultâneas.
As representações e as vivências do desempre-
go são o oposto do trabalho. A insatisfação expressa O desemprego: o tédio e a desvalorização
com relação ao emprego e ao trabalho não implica
de modo algum uma valorização positiva da situa- Apesar da banalização objetiva do fato — mais
ção de desemprego. Longe disso, impressiona ao de 25% dos menores de vinte e cinco anos estão
contrário, a intensidade negativa da experiência de desempregados: e se levarmos em conta o fluxo con-
desemprego entre os jovens. Na melhor das hipó- tínuo dos que entram e dos que saem, isso faz do
teses, ele é considerado como um período de mo- desemprego uma experiência comum — a situação
ratória, que permite tomar fôlego ou autoriza uma de desemprego, quando se prolonga, além de alguns
redefinição de projetos. Se as expectativas e as as- meses, é certamente uma experiência muito nega-
pirações com relação ao trabalho são, com freqüên- tiva, isto é, traumatizante para a maior parte dos
cia, frustradas, o desemprego é quase sempre vivi- jovens que encontramos. Para eles, o emprego con-
do negativamente e isso, inclusive para os jovens que tinua sendo o lugar privilegiado da participação
se definem mais diretamente por um projeto de au- social, e um elemento essencial de sua identidade.
to-realização. Não ter emprego é ser excluído. A preocupação fi-
Num artigo, já antigo, sobre a vivência do de- nanceira, que não é geralmente citada nas motiva-
semprego, Dominique Schnapper 5 distingue três ções principais do emprego, torna-se aqui a primei-
tipos de experiências de desemprego. O desempre- ra. Um emprego satisfatório, que assegure um gan-
go total caracterizado pela humilhação, o tédio e ho e se possível que permita “fazer um trabalho que
a dessocialização, designa a experiência do desem- se gosta”, num bom ambiente é sentido pela maior
prego vivida como um tempo vazio, desfeito, sem parte dos jovens desempregados como a condição
atividade de substituição e com o sentimento de necessária da participação social.
sua própria inutilidade. O desemprego invertido A maioria vive o desemprego sob a forma de
indica uma vivência do desemprego totalmente culpabilidade ou da vergonha: “é duro com relação
desdramatizada, isto é, valorizada pelo tempo libe- aos outros da família que trabalham, e eu estou
desempregado e não faço nada dos meus dias”. (Do-
minique). Difícil nessa situação é, principalmente o
5
Schnapper, D. “Crise Economique, chômage, ano- sentimento de desvalorização social que daí provém.
mie” in La crise dans touts ses états: ouvrage collectif, Os jovens desempregados não se reconhecem na
CIACO, Louvain-La-Neuve, 1984. imagem que a sociedade cria deles. O status do de-

90 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho, busca de sentido

sempregado está, freqüentemente, “engasgado”, afe- go. Às vezes tenho a impressão de que todas as pes-
tando sempre a identidade social e às vezes a iden- soas que encontro sabem que estou nesse lugar horrí-
tidade pessoal. É o caso de Dominique: vel. Tenho um pouco de vergonha” (Solange).
Também me refugio no sono, quanto mais eu
O desemprego, foi um horror, o inferno da mi-
durmo, menos eu penso. Entretanto sei que é covar-
nha vida, eu penso (risos). Psicologicamente, para mim,
dia, o aborrecimento vem, com freqüência, me visitar
foi muito difícil aceitar estar desempregado, aceitar
e tenho dificuldade em vencê-lo (Texto de Florence,
esse status, foi terrível. Não era nada do que eu tinha
22 anos, esteticista).
vontade de fazer, eu nem sonhava com uma coisa se-
melhante. Para me colocar, foram precisos meses e
Inclusive para os jovens que escolheram volun-
meses e somente agora começo a...
tariamente a situação de desemprego ou que o apro-
Acho que eu valho mais que isso, tenho realmen-
veitam para realizar um projeto pessoal, o tempo
te uma imagem negativa do desemprego e acho que
no desemprego é uma variável fugaz cujo controle
isso não vai comigo mesmo.
requer uma auto-disciplina forte:
Para mim, uma pessoa que ganha 50.000 fran-
“É por isso, eu tenho um pouco de medo de
cos vale 50.000 francos e uma pessoa que ganha
ficar desempregado, porque não sei se teria a dis-
10.000 francos vale 10.000... Meu problema é que me
ciplina para fazer tudo que tenho vontade”. O de-
sinto diminuído.
semprego é sempre visto como uma armadilha, com
Dizem que os desempregados não servem para
o risco para a pessoa de se instalar aí confortavel-
nada, mas são pessoas como as outras.
mente e o próprio Bill, que está tenso com relação
Ter o rótulo de desempregada, de mulher que
ao seu futuro profissional fica apreensivo com o
não faz nada, que não tem vontade de fazer, que não
prolongamento de sua situação.
sabe fazer mais nada, isso me deixa doente.
O desemprego também é horrível porque a gente
Outras características do desemprego total es-
se sente muito isolado. Mas também isso tranqüiliza,
tão presentes nas conversas dos jovens desemprega-
porque a gente tem alguma coisa no fim do mês. Me
dos. Passado o primeiro mês, o tédio e o sentimento
vejo acabar mal, desempregado: de qualquer forma
de desestruturação do tempo são freqüentemente evo-
isso acaba sendo insuportável. E de toda forma não
cados para caracterizar a experiência do desemprego.
há... nada de interessante nisso (Bill).

Quando estou sem trabalho, a tendência é me O sentimento de desvalorização social, a vivên-


deprimir. Fico com raiva, vou perturbar minha mãe e cia de desestruturação do tempo, o mal estar liga-
meu pai... vou estar atrapalhando alguém. Ou então do ao caráter provisório da situação são, além da
destruo minha saúde. E é o caso, no momento. Depois diversidade de situações, os traços comuns e gene-
de um tempinho, minha saúde não vai tão bem (Luc). ralizados da experiência do desemprego.
O tempo me parece longo, os dias não passam,
o tédio ocupa a maior parte dos dias. Não chego a me O desemprego moratório e
interessar pelo que quer que seja, tanto a leitura quan- o projeto de auto-realização6
to a limpeza da casa. Não tenho mais conversa com
meu pessoal que já está restrito. Às vezes tenho a im- Ao lado dos jovens que vivem o desemprego
pressão de não ter nada para comunicar, mesmo com como uma verdadeira doença, um certo número den-
meu companheiro. Eu me deixo viver sem reagir, de tre eles vão manifestar com relação a ele um ponto
verdade, às vezes eu me repreendo, me esforço para
não me afundar e depois é o tédio de novo. Meus des- 5 Le Movel, Jacques. Le chômage des jeunes: des vécus
locamentos diários se limitam ao ofício do desempre- très differents.

Revista Brasileira de Educação 91


Guy Bajoit, Abraham Franssen

de vista mais desenvolto e banalizado em relação a nem do ponto de vista financeiro, na medida em que
ele (sem, no entanto, transformá-lo numa experiência a situação é um pouco delicada... eu levo uma vida da
positiva). Trata-se geralmente de jovens com maio- qual aproveito cada instante... estou meio na expec-
res recursos escolares e culturais, isto é, que se be- tativa de uma boa idéia (Joy).
neficiam de ajuda econômica familiar, para quem o
desemprego é, antes de tudo, compreendido como O desemprego postergado
forma de redefinição de projetos pessoais. Os auxí-
lios de desemprego permitem destinar um momen- O “desemprego postergado” é aquele que en-
to para tomar fôlego ou para buscar uma atividade contramos principalmente entre os jovens executivos
considerada como um verdadeiro trabalho, isto é, de nossa amostra, de modo geral aqueles que dispõe
como uma vocação pessoal (escrever, fazer fotogra- de diploma negociável no mercado de trabalho.
fia...), não reconhecida pela sociedade mercantil... Jacques, 23 anos, casado há cinco meses, ter-
minou uma graduação em informática como ana-
Agora eu me dou uma chance no desemprego
lista programador. Perseguindo um objetivo de es-
(Bill).
tabilidade, no respeito às normas tradicionais, ele
O desemprego vai bem alguns meses, quando
considera o trabalho como um elemento estruturan-
você tem necessidade de se situar, de fazer outra coi-
te de sua existência: “um lugar que seja estável e que
sa que não trabalhar. Há momentos em que a gente
me traga ao menos alguma coisa”; “a informática
tem necessidade de uma vida mais calma para se en-
é apesar de tudo, uma paixão.
contrar um pouco (Isabelle).
Desempregado há seis meses, ele tende a viver
Como os jovens que vivem um desemprego- esta experiência sob a forma da negação. Trata de
doença, esses jovens que se definem freqüentemente fazer como se não houvesse nada, fazendo do tem-
a partir de uma sensibilidade artística, exprimem po do desemprego um tempo ativo. (“não incomo-
um ideal profissional que assegura tal projeto de dar em casa”, “ocupar ativamente seus dias”, “man-
auto-realização, mas diferentemente dos primeiros, ter-se construtivo”: buscar emprego sistematica-
manifestam geralmente uma capacidade de concre- mente, fazer cursos complementares, consertar coi-
tizar seu projeto, instrumentalizando suas relações sas em casa). O tempo de desemprego é vivido como
com diversas instituições sociais (ONEM, sindica- o do exercício de um ofício em tempo integral, o
to, academia...) e ao preço de uma auto-disciplina daquele que procura. Essa atividade torna-se obje-
incessantemente ameaçada de relaxamento. to de uma verdadeira cultura profissional, necessi-
Entre a vivência do desemprego-doença e aque- tando da aquisição de competências ad-hoc.
la do desemprego-projeto pessoal, alguns jovens
Dizem que eu deveria aprender por mim mes-
querem essencialmente experimentar o desempre-
mo a ver as cartas que dão resultado e as cartas de
go como um período de expectativa, um prolonga-
candidatura que não dão resultado (...) Observei que
mento da moratória da adolescência, com saída in-
alguns empregadores respondiam, outros não respon-
determinada (“a gente vê”), cuja duração está ligada
diam nunca; então passei a ficar atento aos termos da
à coerção financeira.
minha carta, a fim de redigi-la com a clareza em rela-
ção aos problemas que ela poderia ter.
Vou me dar um ano tranqüilo no desemprego
(Antoine). O critério de validade da atitude é aqui a ade-
Tanto melhor, aquele que não tem vontade de quação à forma esperada pelos empregadores, à
trabalhar, que pode ter dinheiro assim, apesar de tudo. qual é preciso conformar-se: escrever um bom curri-
Se o sistema é feito assim, tanto melhor (Julie). culum, apresentar-se bem, dar boas respostas na
Não é uma situação sustentável a longo prazo, entrevista.

92 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho, busca de sentido

Agora, encontrei um livrinho que se chama: co- felizes que resplandecem e de outro, desemprega-
mo achar um emprego e ser contratado?O subtítulo dos doentes que se deprimem. Trata-se de uma ex-
é: você sabe se vender? Explicam como se apresentar periência multidimensional e que evolui ao longo
bem e propõe respostas para questões que funcionam do tempo.
como armadilhas. Cecília é “um pouco à parte”. Ao cursar a uni-
versidade conforme as expectativas da sua mãe, ela
Jacques dirigiu-se igualmente ao CRAE - Clu- cumpriu seu contrato até o fim. Optou por estudar
be de Busca Ativa de Emprego, uma divisão do Fó- filosofia (“a rever, eu deveria estudado marketing”)
rum de Arlon — que organiza sessões intensivas de ela está frustrada de não rentabilizar o diploma e
busca de emprego, via um “método ativo, eficaz e queria trabalhar. Mas, por outro lado, constata que
dinâmico, oito horas por dia durante três semanas”. a agrada estar desempregada, ela se realiza: ela pró-
O CRAE já fez muito sucesso na França e em ou- pria faz o pão, retomou o curso de guitarra que
tros lugares: Canadá, Suécia, Áustria. Essa organi- havia abandonado por causa dos estudos, (“uma
zação reivindica 80% de colocações bem sucedidas, bobagem”), restaura móveis velhos e ocupa-se de
ao preço, é verdade, de uma seleção prévia de can- seu companheiro que lhe diz que ela deve aprovei-
didatos... e com grande pesar para Jacques que não tar enquanto pode e que a situação financeira de-
foi selecionado! les não é crítica.
É curioso esse fetichismo do curriculum ou da
Na prática, se você olhar bem, sou um pouco
entrevista para contratação, tanto para Jacques,
diferente. De um lado, é verdade que faço uma por-
quanto para outros executivos desempregados que
ção de coisas, aprendo muitas coisas que me agradam.
nós encontramos. O essencial é negar ao máximo
Aprendo a bordar, faço montanhas de coisas. Queria
a situação de desemprego na ótica do “como se” e
aprender a fazer pão. Mas por outro lado, estou an-
desenvolver uma atitude positiva e internalizante,
gustiada e descontente com os empregadores que nem
que lhe permite viver como ator o seu próprio de-
sempre são muito honestos e o mercado de trabalho
semprego. Esse modo de gestão da situação de de-
que é uma verdadeira porcaria.
semprego só é sustentável a médio prazo. Com o
Bom, depois... não sei... quando tiver que fazer
prolongamento da situação, esse sistema de defesa
minhas oito horas de trabalho, se ainda vou me diver-
progressivamente, se esboroa.
tir amassando o pão.
Digamos que eu me fixe como objetivo que es-
O que concluir? A diversidade das experiên-
pero trabalhar daqui... digamos, o mais cedo possível...
cias dos jovens no trabalho e no desemprego reve-
No entanto, no fim não trabalhar torna a gente em-
lam a fragmentação das diferentes dimensões do
brutecido. Se eu tiver que continuar... a não fazer nada,
modelo tradicional do trabalho. Enquanto no pas-
ainda durante um ano ou dois, acho que vou ficar co-
sado articulavam-se trabalho e emprego, participa-
mo um verdadeiro leão na jaula (Jacques).
ção social e realização pessoal, dimensão instrumen-
Sobre a mesa de carvalho do apartamento, aca- tal e dimensão expressiva, as entrevistas dos jovens
ba de ser instalado um computador e os arquivos: ilustram a dissociação dessas diferentes dimensões.
cartas expedidas, respostas... O trabalho não corresponde mais necessariamente
ao emprego: para um certo número de jovens, o
Uma experiência multidimensional trabalho é sentido como um obstáculo à realização
pessoal, quando antes constituía a condição; o su-
É preciso insistir na simultaneidade das dife- perinvestimento de alguns no trabalho coincide com
rentes lógicas presentes na experiência concreta do a desimplicação de outros, o elo entre a contribui-
desemprego. Não há de um lado, desempregados ção e a retribuição se atenua numa atitude garan-

Revista Brasileira de Educação 93


Guy Bajoit, Abraham Franssen

tista, quer dizer se investe em nome da auto-reali- tegido da escolaridade. A maior parte dos jovens
zação pessoal. experimentam um fosso entre suas aspirações e a
Esta modificação de orientações com relação realidade concreta do mercado de trabalho. A ges-
ao trabalho pode estar ligada à experiência da ins- tão dessa defasagem dá lugar a diversas estratégias
tabilidade. Para os jovens de meio popular, o mun- de minimização do envolvimento no trabalho e de
do do trabalho organizado a partir do processo de reinvestimento na esfera privada, em proveito do
produção cede lugar a múltiplos serviços, empregos trabalho “autônomo”. À exceção dos jovens que
cujos próprios titulares não sabem se devem quali- dispõem de meios para concretizar um projeto de
ficar de “trabalho” ou designá-los em termos ad- auto-realização no campo profissional, a maioria
ministrativos: TCT, estágio, substituição... não encontra mais num emprego assalariado um
Esta ruptura da normalidade esperada das tra- modo satisfatório de auto-realização.
jetórias profissionais é vivida sob a forma de crise Se o emprego continua sendo uma dimensão
por um certo número de jovens. As preocupações central da identidade e a base da normalidade so-
com o emprego, a sobrevivência econômica, o aces- cial, o trabalho não é mais considerado como o úni-
so a um salário, trazem sobretudo outra conside- co modo de auto-realização de si, ele tende a entrar
ração, particularmente, no que se refere a afirma- em concorrência com outras experiências que lhe
ção de uma cultura do trabalho e do ofício que se impõem seus próprios critérios.
tornaram bastante inviáveis. Quanto à experiência do desemprego, apesar
Através das formas degradadas do antigo mo- de sua banalização objetiva, ela continua muito pro-
delo e as atitudes de distanciamento com relação aos blemática e negativa a médio prazo. Se se pode opor
conteúdos e ao ambiente tradicional do trabalho duas maneiras distintas de viver e de se represen-
assalariado manifestam-se, também ora sob a for- tar o desemprego, distinguindo o desemprego vivi-
ma de recusa (“eu não voltarei jamais à fábrica”) do sob a forma do tédio e da desestruturação de
ora sob a da alternativa, uma série de atitudes no- alguns, e o desemprego-moratória ou projeto pes-
vas com relação ao trabalho. soal de outros, é preciso entretanto sublinhar a si-
Pode-se resumi-las, falando de uma orientação multaneidade dessas lógicas e a permanência do
de fundo com relação ao trabalho que tende a ser sentimento de desvalorização social que acompanha
apreendido a partir das exigências de auto-realiza- sempre o “rótulo de desempregado”.
ção. Estas já não se definem pelo fato do indivíduo Em suma, a diversidade e a fragmentação das
conformar-se às exigências de um trabalho até dele experiências de trabalho e de desemprego dos jo-
adquirir ethos e a cultura, e sim está no trabalho de vens ocupam os cenários desenvolvidos por André
levar em conta as aspirações individuais. É, especi- Gorz7 quando se inquieta com a cisão crescente en-
almente, através de uma modificação da relação tre uma minoria fortemente qualificada, que dispõe
com o tempo e com o ambiente de trabalho que se de empregos com altos ganhos e nos quais se realiza
pode apreender essa exigência. O tempo de traba- e uma maioria confinada a tarefas subalternas. O
lho, quando não se está envolvido, tende a ser opos- uso do tempo é um bom indicador dessa distância.
to e subordinado ao tempo de vida “para si”. As Entre Robert que afirma que seu tempo é precioso,
identidades coletivas e a cultura do ofício dão lu- e que permanece preso ao trabalho até nos engarra-
gar a uma sensibilidade à comunicação e ao cará- famentos, e Enzo para quem os dias decorrem, longos
ter convivial, isto é, interpessoal das relações de
trabalho.
Com respeito a essas diferentes dimensões, o
mercado de trabalho é freqüentemente o lugar da 7 Gorz, André Métamorphoses du Travail: quête du
decepção e do desencantamento, após o espaço pro- sens, Ed. Galilée, Paris, 1988.

94 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho, busca de sentido

como uma jornada sem trabalho, há a distância que


separa aqueles que têm recursos para participar do
jogo da competição e aqueles que são obrigados a
suportar a mutação do mercado de trabalho.
Enfim, é preciso considerar que as diferentes
experiências e representações do trabalho e do de-
semprego aparecem como socialmente diferencia-
das. Globalmente os jovens do meio popular con-
tinuam mais ligados às normas tradicionais do tra-
balho e sua vivência do desemprego se aproxima da
figura do desemprego total. Os jovens das classes
médias tem, com freqüência, mais recursos para
redefinir seu projeto existencial e marginalizam o
lugar do trabalho assalariado em proveito de um
projeto de auto-realização.

Revista Brasileira de Educação 95


O jovem no mercado de trabalho

Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins


Departamento de Sociologia, Universidade de São Paulo

As discussões a respeito do destino do traba- hoje, no interior das ciências sociais, aponta-se a
lho no limiar do século 21 têm favorecido a elabo- limitação dos modelos de sociedade “centradas no
ração da imagem de uma sociedade onde o traba- trabalho”, de tal forma que até mesmo as experiên-
lho não teria mais lugar, ou não se constituísse mais cias feitas no trabalho e o potencial de conflitos daí
como a referência a partir da qual homens e mu- resultantes receberiam interpretações elaboradas
lheres pudessem construir a sua identidade. O que fora do ambiente do trabalho. Outras variáveis são
parece se colocar hoje como questão central é a abo- apontadas como mais significativas do que aquelas
lição do trabalho (Gorz, 1982), pois as pessoas es- relacionadas com o trabalho, como por exemplo,
tão encontrando cada vez menos empregos perma- a religião. Mesmo na pesquisa social aplicada, os
nentes, estão trabalhando menos horas. Diante da temas são buscados em áreas à margem da esfera
diminuição do tempo de trabalho disponível e do do trabalho, tais como a família, os papéis do sexo,
comprometimento das concepções éticas do traba- a saúde, o comportamento divergente, etc. Isto tudo
lho (Offe, 1989), tem sentido falar em sociedade do leva Offe a concluir pela “implosão da categoria
trabalho? Pode-se pensar ainda na existência do trabalho”(p. 19) e que a sustentação de “modelos
proletariado ou de uma classe trabalhadora? de sociedade e critérios de racionalidade centrados
Tomando em consideração a observação de no trabalho ‘assalariado’, representa, hoje, uma po-
Offe, a respeito das temáticas de pesquisa, das te- sição conservadora”(p. 18).
ses, as conferências e as publicações atuais nas ciên- Creio que aqui está o ponto central da crise
cias sociais, vemos o surgimento do que ele chama que permeia o pensamento sociológico em nossa
de “novo subjetivismo sociológico” na análise da época. Privadas da utopia que inspirou trabalhado-
sociedade e do espaço vital, que rompe com a pri- res, sindicatos, partidos e intelectuais, todas essas
mazia da categoria trabalho na “determinação da análises, impregnadas de pessimismo e negativida-
consciência e da ações sociais” (1989, 17). Ou seja, de, acentuam a falta de perspectivas e possibilida-

96 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O jovem no mercado de trabalho

des de pensar a construção do futuro. De fato, que antigas habilidades, mas, de outro, enfrenta a ne-
projetos podem ser elaborados diante das transfor- cessidade de reconstruir habilidades e se requalificar
mações que ocorrem no mundo do trabalho, com para o trabalho nessas novas condições (Abramo,
os novos processos e organização do trabalho, com 1988).
a introdução de novas tecnologias, que alteraram Informações referentes às montadoras de car-
não só o modo de trabalhar, mas provocaram mu- ros no Brasil revelam que no período de 1991 a
danças nas qualificações dos trabalhadores, nas con- 1995 houve um crescimento da produção de 70%
dições de trabalho, nas relações existentes no local e de 78% na produtividade, enquanto verificou-se
de trabalho? uma redução no emprego de 5%. No setor de auto-
Uma das principais consequências do chama- peças, no mesmo período, houve um aumento no
do regime da acumulação flexível (Harvey, 1992) faturamento de 74%, de 97% na produtividade, e
diz respeito ao mercado de trabalho, com a pre- uma diminuição de 12% no emprego (DIEESE,
valência de formas precárias de trabalho — carac- 1996a). O que esses dados demonstram é o cresci-
terizadas por redução de salários, ausência de ga- mento econômico acompanhado pela redução dos
rantias ou benefícios sociais e por condições infe- postos de trabalho e que, apesar da exigência cada
riores quanto à segurança e instalações — e o au- vez menor de mão-de-obra, obtem-se cada vez mais
mento das taxas de desemprego. Nestes tempos de bens e serviços.
economia globalizada, o que se tem observado é a O setor da economia que tem sido mais atin-
constituição de um padrão segmentado do merca- gido é o industrial, com acentuada redução no
do de trabalho, com um núcleo cada vez mais re- contingente de trabalhadores. Tomando em consi-
duzido de trabalhadores qualificados, com empre- deração o relatório elaborado pela subseção do
go permanente, em tempo integral. A nova realidade DIEESE em Osasco, vemos que só nos treze muni-
imposta pela reestruturação produtiva é marcada cípios abrangidos pela base territorial do Sindica-
pela introdução de novos termos, que são usados to dos Metalúrgicos, a distribuição dos ocupados
para explicar o que está acontecendo. Fala-se hoje no setor industrial, que era de 32,4% em 1989, cai
em um processo de produção enxuto, onde os des- para 24,5% em 1995. Em contrapartida, observa-
perdícios de material e mão-de-obra, irracionali- se um crescimento significativo nos setores do Co-
dades e grandes estoques devem ser evitados; o tra- mércio e de Serviços: no primeiro, a distribuição de
balhador agora não é mais especializado, é poliva- ocupados era de 15,3% em 1989, aumentando
lente, ou seja, realiza mais de uma tarefa, operan- para 17,4% em 1995; em Serviços, a ocupação
do mais de uma máquina; o trabalhador não fica passou de 37,4% em 1989 para 43,6% em 1995
mais fixo a um posto de trabalho na linha de pro- (DIEESE, 1997). O que se tem argumentado é que
dução, mas trabalha em grupos ou equipes, sejam a abertura de emprego no setor terciário da econo-
os chamados semi-autônomos (quase inexistentes mia, entretanto, não consegue absorver o número
no Brasil), sejam as ilhas ou células de fabricação; de desempregados. Dados referentes ao desempre-
o trabalhador não é mais visto como mero executor go em 1995, em algumas regiões metropolitanas,
das determinações vindas da gerência, mas espera- mostram que a taxa de desemprego foi, em média,
se que ele participe das decisões, fornecendo idéias de 12,9%, sendo que as maiores se verificaram nas
para melhorar a produção. Diminue-se, assim, a regiões metropolitanas do Distrito Federal, com
distância entre os gerentes e os trabalhadores, re- 15,7% e de São Paulo, com 13,2% (DIEESE,
feridos como parceiros envolvidos nos interesses 1996). Considerando somente esta última região,
comuns de aumento de produtividade e da quali- vemos que a procura de trabalho, segundo os di-
dade do produto; diante de todas essas mudanças, ferentes tipos de desemprego, levava, em 1995,
o trabalhador tem, de um lado, destruídas as suas cerca de quatro meses no caso do desemprego

Revista Brasileira de Educação 97


Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins

aberto, cinco meses no desemprego total e de seis Assim, mesmo os trabalhadores que, aparen-
a sete meses no desemprego oculto (DIEESE, temente, estariam protegidos pelo contrato de tra-
1996). balho, são atingidos pela “insegurança do traba-
Na discussão do emprego/desemprego quero, lho”(Mattoso, 1994), a precariedade das formas de
ainda que rapidamente, destacar alguns aspectos trabalho, pelo temor de desemprego, pela superex-
que considero importantes para o objetivo deste ploração do trabalho, pela acentuação das desigual-
texto. Dados da Pesquisa de Emprego e Desempre- dades. O depoimento de um metalúrgico trabalhan-
go, realizada mensalmente pelo Dieese/Seade, para do em uma montadora da região do ABC revela a
o período de março de 1986 a março de 1995, evi- pressão a que estão submetidos:
denciam como o trabalho assalariado foi desvalo-
Hoje os trabalhadores se matam de trabalhar,
rizado. As informações referem-se à População
tão implantando um tal de Q1, PMC quadrado. Aon-
Economicamente Ativa (PEA), ou seja, a parcela
de você vai, você vê quadro da empresa com palavras
da população com 10 anos e mais de idade que
jogando a responsabilidade para o trabalhador, dizen-
está ocupada ou desempregada na região da Gran-
do que se nós não vendermos aqui, a Fiat ganha no
de São Paulo. Assim, para aquele período, enquan-
mercado, se não vender aqui, vai dá desemprego (...)
to a PEA cresceu 24,5% (2,5% em média, ao ano),
tem companheiros que vão no domingo lá, além de
a ocupação aumentou 22,1% (2,2% ao ano). Mas
trabalhar no sábado, na hora extra, é chamado para
o crescimento do desemprego foi maior: 42,0%
ir no domingo, para aprender o que é o Q1 (...) a em-
(4,1% ao ano), praticamente o dobro do número
presa joga tudo na cabeça do companheiro: ‘tem que
de empregos. Entretanto, o dado mais significati-
dar qualidade, tem que produzir com eficiência’, faz
vo diz respeito à composição da ocupação: enquan-
com que o cara se bitole. Quando eu estava na A1 até
to o emprego assalariado cresceu 11,3% (1,2%, em
86, eles tinham mais companheirismo, eles conversa-
média, ao ano), o trabalho autônomo aumentou
vam com o outro na fábrica. Hoje, o que eu sinto é
57,1%. Em grande parte, o trabalho autônomo,
que o companheiro não conversa com o outro, só pen-
ou por conta própria, se caracteriza pela precarie-
sa realmente na produção. Ela (empresa) conseguiu
dade, pela ausência de vínculos empregatícios e
pôr na cabeça da peãozada que ‘olha você só tem que
pela insegurança.
produzir’, tá uma coisa assim que não tem aquela coisa
Para completar esse quadro da perda de qua-
que tinha antes de companheirismo, um conversava
lidade do emprego, cito os dados referentes ao re-
com o outro, trocar idéias, fazer com que eu pensas-
gistro em carteira: no mesmo período, o emprego
se não só na produção, pensasse no salário, pensasse
de trabalhadores assalariados com carteira de tra-
em organizar, pensasse em lutar por quarenta horas,
balho aumentou 3,5% (0,4%, em média, ao ano),
e hoje, não, hoje a empresa tá tão avançada que ela
enquanto o dos assalariados sem carteira de traba-
nem obriga, o peão chega a pedir. Nós temos compa-
lho assinada cresceu 72,7% (6,3% ao ano), o que
nheiro lá, por exemplo, que trabalha das sete (da ma-
salienta ainda mais o quadro de insegurança exis-
nhã) às dez da noite, nessa situação.
tente. Se considerarmos apenas o período que vai
de março de 1990 a março de 1995, caracterizado O que esse e outros depoimentos revelam é que
pela recessão que se estendeu até 1993 e pela aber- mesmo o trabalhador que está empregado é indu-
tura da economia brasileira, vemos que é nele que zido à demissão “voluntária”, enfrenta o medo do
ocorrem as principais alterações: neste curto perí- “facão”, a ameaça da perda do emprego. Isso o faz
odo de cinco anos, o emprego assalariado com car- aceitar o salário e as condições de trabalho que lhe
teira assinada diminuiu em 8,2%, o relativo ao sem são oferecidos, submete-se à pressão pela realiza-
carteira assinada aumentou 54,3%, e o emprego ção de horas-extras, desgasta-se no esforço de “ves-
autônomo cresceu 40,5% (DIEESE, 1995). tir a camisa”da empresa e de “mostrar serviço”.

98 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O jovem no mercado de trabalho

Reaparecem, portanto, sob novas formas, as velhas vens1 —, no sentido de verificar como ela tem sido
armas para restabelecer a obediência e a disciplina atingida pelas transformações que ocorrem na es-
na empresa (Gorz, 1982). trutura produtiva e que afetam o trabalho. As mu-
Defrontamo-nos, portanto, com um movi- danças introduzidas tanto na organização do pro-
mento contraditório que nos mostra, de um lado, cesso de trabalho, quanto no conteúdo do trabalho,
a redução dos postos de trabalho com um aumen- ou seja, na natureza das atividades, nas exigências
to significativo da produtividade e do faturamento de qualificação ou requalificação profissional, e que
das empresas, e, de outro, o aumento do número parecem configurar um novo tipo de trabalho e de
de horas trabalhadas, tanto para obter rendimen- trabalhador, se já provocam situações difíceis para
tos maiores, quanto para atender às exigências da os trabalhadores adultos, no caso dos jovens elas
empresa. Desde meados da década de 80, uma das ganham certa dramaticidade.
reivindicações mais constantes do movimento sin- Uma análise do perfil do desemprego em al-
dical foi a da redução da jornada de trabalho. Efe- guns países da Europa, em 1994, mostra que a taxa
tivamente, dados referentes à região metropolita- de desemprego é sempre maior entre as mulheres e
na de São Paulo, indicam que, a partir de 1985, a os jovens. Na Espanha, enquanto a taxa de desem-
jornada legal começa a ser reduzida, sendo que no prego atingiu 23,8% para todas as pessoas, entre
setor industrial ela passa de uma jornada média as mulheres ela chegou a 30,9% e entre os jovens
semanal de 46 horas em 1985, para 43 horas em a 38,3%. Na França, para toda a população ativa,
1995; no setor do comércio passa de uma jornada a taxa foi de 12,5%, atingindo, para as mulheres,
média semanal de 50 horas em 1985, para 46 ho- 13,6% e para os jovens 23,4%. Na Itália, enquan-
ras em 1995; em serviços, a jornada média sema- to a taxa de desemprego para todas as pessoas foi
nal é reduzida de 43 horas em 1985, para 41 ho- de 12,0%, entre as mulheres foi de 13,6% e entre
ras em 1995. Entretanto, para os três setores ob- os jovens de 31,1%. Mesmo nos países de cultura
serva-se a mesma tendência: a redução da jornada não-latina, como a Inglaterra e a Suécia, onde o
legal de trabalho é acompanhada pelo aumento do mercado de trabalho é mais favorável às mulheres,
trabalho, expresso em horas extras. Assim, na in- a taxa de desemprego é maior entre os jovens. Nes-
dústria, enquanto 22,4% trabalharam mais do que ses dois países, em 1994, com a taxa de desempre-
a jornada legal em 1985, uma década depois, go para toda a população atingindo, na Inglaterra,
42,5% dos trabalhadores fizeram horas extras. No 9,5% e 8,0% na Suécia, o desemprego entre as mu-
comércio, verifica-se, também, que em 1985,
41,8% trabalharam além da jornada legal, e em
1995, 55,1% dos empregados fizeram horas ex-
1 Não pretendo, nos estreitos limites deste artigo, dis-
tras. No setor de serviços, a porcentagem dos as-
salariados que trabalharam além da jornada é de cutir mais amplamente a noção de juventude. Remeto para
dois textos que considero importantes para o balanço bibli-
23,8% em 1985 e de 35,9% em 1995 (DIEESE,
ográfico a respeito do uso sociológico desse conceito: o de
1996b). Helena Abramo (1994, especialmente das pp. 1-53) e o de
Todas essas informações parecem-me funda- Pais (1990). Para os objetivos deste trabalho, esclareço que
mentais para a reflexão que proponho neste texto entendo por jovem aqueles que estão compreendidos na fai-
a respeito dos jovens trabalhadores. Diante das ques- xa etária que se estende dos 15 aos 25 anos. O problema
tões que se colocam hoje para o mundo do traba- maior na definição do jovem concentra-se, ao meu ver, no
limite superior da faixa. Segundo a OIT, o corte seria aos
lho, que acentuam as dificuldades de inserção e de
24 anos, sendo que a denominação de adolescentes abran-
permanência no mercado de trabalho para amplas geria aqueles que têm entre 15 e 19 anos e a de jovem os de
parcelas de trabalhadores, tomarei como referência 20 a 24 anos (Madeira, 1996). Afinal, até onde se estende
uma parcela significativa dessa população — os jo- a juventude? Quando o jovem deixa de ser jovem?

Revista Brasileira de Educação 99


Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins

lheres se situava em 7,4% e 6,7%, respectivamen- orientaria para o trabalho nos setores periféricos,
te. Já com relação ao desemprego juvenil, a taxa foi quanto por uma preferência pelo trabalho “inter-
de 14,9% no primeiro país, e de 16,6%, no segun- mitente”, antes de buscarem estabilidade e assumi-
do (DIEESE, 1996). rem maiores responsabilidades.
No caso do Brasil a situação não é diferente. Essa discussão sobre a precarização do traba-
Assim, em 1985, enquanto a taxa de desemprego lho do jovem tem em outro autor, Y. Clot, argumen-
entre os homens era de 10,1%, entre as mulheres tos que apontam, de um lado, as menores oportu-
era de 15,5%. Em 1995, entre os homens era de nidades de trabalho para os jovens com pouca ou
11,8% e entre as mulheres, 15,3% (DIEESE, 1996). nenhuma qualificação e, de outro, as condições des-
Quanto aos jovens, dados da Pesquisa de Empre- vantajosas que enfrentam quando inseridos no tra-
go e Desemprego do DIEESE/SEADE mostram que, balho. Uma citação de Tartakowsky, feita por aque-
em 1985, “enquanto o nível de emprego oscilava le autor, parece-me bastante significativa: “Pode-se
entre 12,2%, a taxa de desemprego entre adolescen- considerar que um jovem em cada dois na França
tes (de 15 a 19 anos) atingiu 25,5% e a de jovens é o que se convencionou chamar de trabalhador
(de 20 a 24 anos) chegava a 14,1%”. Em 1995, precário, o que conhece uma vida marcada pelo
“enquanto o nível de desemprego total variava em signo ‘menos’: ele ganha menos, ele tem menos di-
torno de 13,2%, as taxas de desemprego entre ado- reitos, não tem nenhuma garantia sobre a duração
lescentes e jovens saltavam para 21,4% e 16,7%, do emprego que ocupa e sua eventual recondução”
respectivamente” (Madeira, 1996). (p. 5). São essas condições de trabalho que levam
Vários autores tem discutido as dificuldades do Clot a falar em “marginalização objetiva” do jo-
acesso dos jovens ao trabalho e ao emprego, acen- vem, ou seja, a um afastamento ou recusa do tra-
tuando que isso parece depender das recentes mo- balho. Para ele, isso não pode ser reduzido a uma
dificações nas estruturas produtivas, especialmen- simples mudança de “valores” na juventude, mas
te com a introdução de novas tecnologias, que afe- sim que “a transformação de atitudes, as práticas
tam o perfil setorial do emprego, transformam as novas de inserção constituem muito mais respostas
atividades profissionais, alteram o funcionamento a uma situação nova e não o efeito de uma alergia
do mercado do trabalho e modificam, inclusive os cultural”(p. 5).
modos de vida. Pais (1991), resume essa discussão Assim, para Clot, a experiência de trabalho e
apontando os fatores que exprimiriam essa dificul- de vida do jovem, especialmente da juventude ope-
dade de inserção dos jovens no mercado de traba- rária, com a imagem de seus pais, de suas condições
lho e fortalecem a insatisfação, entre eles, com as insatisfatórias de trabalho, fazem com que os jovens
perspectivas do futuro profissional: a diminuição elaborem negativamente a sua identidade com o
das oportunidades de empregos para os jovens, prin- emprego e o trabalho. Dessa maneira, o trabalho
cipalmente em decorrência da introdução de novas temporário ou “intermitente”, que aparece para
tecnologias, com as exigências de maior qualifica- muitos como uma demonstração da falta de empe-
ção e experiência; a significativa mobilidade ocupa- nho do jovem, para Clot, poderia ser considerado
cional dos jovens, com a circulação por diversas pelo jovem como “uma maneira de viver livre, se
situações seja de trabalho (formação, aprendizagem, reapropriando dos ritmos de inserção social e pro-
precário, temporário, em tempo parcial, etc.), seja fissional” (p. 5/6). Deve-se, então, distinguir entre
de emprego (desemprego, inatividade, emprego); a o trabalho temporário inserido ou como parte de
precarização do trabalho juvenil seria acompanhada um “plano de carreira” e o que aparece como a
pela periferização dos jovens em torno do merca- única possibilidade de sobrevivência para os jovens
do de trabalho secundário, tanto em consequência menos qualificados, ou seja, para aqueles “que não
da sua fraca especialização/qualificação, que os encontram aí senão um meio temporário de esca-

100 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O jovem no mercado de trabalho

par aos ritmos de uma temporalidade imposta por no de geração, o que não pode ser imputável se-
um ‘destino’ de classe” (p. 6). Isto nada mais é do não às transformações nas condições de escolari-
que uma avaliação realística de suas chances no zação e de funcionamento do mercado de traba-
mercado de trabalho, constituindo o que M. Pialoux lho” (p. 4). Tanto Clot como Pais procuram mos-
(Clot, s/d) chama de “realismo do desespero”, que trar, com suas críticas, que não é possível tratar de
exprime, exatamente, a especificidade da relação juventude sem acentuar a diversidade que essa ca-
subalterna que os jovens das classes trabalhadoras tegoria encobre. Para Clot, o recorte privilegiado
estabelecem com o mundo do trabalho. é o de classe, pensando especificamente como as
Pais (1991), chama a atenção para o fato de transformações no processo de trabalho afetam a
que cada vez mais amplas camadas da população juventude operária. Pais também se opõe à gene-
juvenil passam por um período relativamente lon- ralização, à consideração dos jovens como um con-
go de indeterminação antes de ingressarem na vida junto homogêneo e propõe a tese das reações dife-
adulta ou, pelo menos, da inserção profissional. É renciadas dos jovens em relação ao trabalho, ao
o que denomina de “interregno entre a escola e o emprego e ao desemprego.
emprego” (p. 960), que significa um prolongamen- Convém, então, observar mais detalhadamente
to da juventude, seja pela ampliação do tempo na as condições objetivas de inserção do jovem no em-
escola, seja pela permanência na casa dos pais. A prego. Na entrevista realizada com um dos direto-
explicação desse interregno tem sido dada ou pela res do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, temos
tese da “inadequação da escola ao mercado de tra- o relato de como o jovem está entrando hoje na
balho”, ou pela da “alergia do jovem ao traba- produção:
lho”. O autor refuta as duas, mas detenho-me, por
Antes, há dez, quinze anos atrás, ele entrava na
ora, na discussão da segunda, que também foi re-
empresa, a grande maioria, iniciando pelos cursos do
cusada por Clot. Para Pais, a tese da alergia ao tra-
Senai (...) Hoje, a maior parte dos jovens trabalhado-
balho resulta de teorias preocupadas com a análi-
res está entrando nas empresas como ajudantes de
se das atitudes e representações que os jovens têm
produção, como auxiliares, quer dizer, não estão tendo
sobre o trabalho e o emprego. Assim, para essas
a oportunidade de no começo de seu trabalho, no seu
teorias, o interregno vivido pelos jovens entre a
primeiro emprego, ele poder se profissionalizar (...)
escola e o emprego resulta das dificuldades de
Hoje, proporcionalmente, existem menos trabalhado-
adaptação ao modo de vida adulto, marcado pela
res dentro das empresas, quer dizer, diminuiu a quan-
disciplina do trabalho, rigidez de horários, pela
tidade de trabalhadores jovens; apesar de reduzidos
redução do convívio com os amigos, etc. Os jovens
nas empresas, entram para, vamos dizer, serem, na
desenvolveriam, então, uma alergia ao trabalho,
verdade, massa de trabalho. As empresas não estão
que implica em uma desvalorização do trabalho,
fazendo uma qualificação, dando uma oportunidade
uma recusa da ética tradicional do trabalho. Ou
de qualificação desses trabalhadores. Entram para se-
seja, os jovens não constituiriam sua identidade a
rem mão-de-obra mais barata, mão-de-obra com um
partir do trabalho, recusando a possibilidade de
potencial energético muito mais forte do que pessoas
uma realização pessoal e profissional através dele.
com um pouco mais de idade”.
Daí as atitudes de resignação ou indiferança em
relação às escolhas profissionais. Este dirigente refere-se, em seu depoimento, às
É exatamente esse sentido de desencantamen- condições desfavoráveis de inserção no emprego,
to com o mundo do trabalho que Clot, apoiando- acentuando a tendência à subutilização de uma
se em um trabalho de Vincent Merie, pretende des- mão-de-obra de pouca ou nenhuma qualificação.
tacar em sua crítica à tese da alergia ao trabalho, Mas, tanto a sua entrevista, como a de outro diri-
afirmando que não se pode atribuir a “um fenôme- gente, evidenciam, também, a realidade das empre-

Revista Brasileira de Educação 101


Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins

sas metalúrgicas brasileiras. De um lado, temos um oposição entre os jovens e os não jovens e a com-
núcleo de empresas que, buscando enfrentar a con- petição que, nem sempre, é favorável aos primeiros
corrência, modernizam-se, introduzindo inovações (Pais, 1991). Mas há, ainda, um outro aspecto que
tecnológicas, reorganizando o trabalho e mudando nessas entrevistas foi destacado: mesmo os jovens
as formas de gestão empresarial. Nelas, o emprego portadores de alguma qualificação, ou com um grau
e o desemprego decorrem dessas modificações. Mas, maior de escolaridade, estão hoje trabalhando na
na grande maioria das empresas, o que se observa linha de produção, muitos realizando atividades
é o baixo investimento, a falta de competitividade, aquém de sua capacidade e com dificuldades de
a pouca eficiência da estrutura produtiva e a escassa ascensão profissional. É o que nos diz o relato do
experiência e tradição empresarial. Nestas, o desem- operário de uma montadora do ABC:
prego é consequência do encerramento das ativida-
A molecada do Senai, lá tem mais de 100 garo-
des ou da redução drástica dos postos de trabalho.
tos que se formaram no Senai, que era para estarem
Em outra entrevista, realizada com operário
na ferramentaria, na manutenção e estão todos na
empregado em uma montadora da região do ABC,
produção. Então, não vão admitir mais, se precisar de
há uma informação que parece contradizer o depoi-
alguém na manutenção, tem na produção, se precisar
mento anterior, ao mostrar o aumento dos traba-
de ferramenteiro, também tem na produção. Tem mais
lhadores jovens na empresa:
de 100 garotos hoje na produção porque não tem vaga
... é muita gente nova que tá na fábrica hoje, na na ferramentaria, não tem na manutenção, quer dizer,
faixa de 22/21 anos, 23, até 27, tem bastante jovens tem tudo ali dentro.
mesmo (...) bastante molecada (...) (o trabalhador an-
Se, por um lado, essa situação decorre do au-
tigo da empresa) está sendo convidado, depois de 28
mento da terceirização, ou seja, da transferência
anos de companhia, a deixar a companhia, porque ela
para empresas contratadas, de parte ou de setores
quer acabar com todos os velhos, que eles saiam fora,
não adianta, é mudar, ela vai mudar, não quer velho
lá dentro. Pessoal velho de 28/30 anos (na empresa)
é para sair da companhia, não tem nada, é convida-
do, ‘por favor, deixe a companhia’ (...) é uma humi- Ford “contratou, em 1994, quase mil trabalhadores com
lhação, é humilhante. menos de 30 anos e com escolaridade entre o 2º grau e ní-
vel superior, para trabalharem na linha de montagem. A
Na verdade, o primeiro informante quando se maioria desses jovens não tem tradição de mobilização ope-
referia aos jovens, tinha em mente aqueles entre 15 rária, muito menos memória do movimento de lutas e rei-
e 18 anos de idade, enquanto o segundo, como vi- vindicações da classe trabalhadora. Geralmente, não parti-
mos, os que estão situado na faixa etária acima dos cipam de assembléias e quando há paralisações, ao contrá-
rio de tomar parte das discussões ficam, por exemplo, jo-
vinte anos. De qualquer maneira, os dois depoimen-
gando dominó”(p. 140). Um outro aspecto que é salienta-
tos apontam a segmentação do mercado de traba-
do no decorrer do texto, especialmente ao tratar da Ford, é
lho, que não só pode explicar a inserção do jovem a relação de competição e de fiscalização existente, princi-
no mercado de trabalho 2 como, também, impõe a palmente, entre os trabalhadores de mais idade e os jovens.
No caso da Volkswagen, é apontada, também, a existência
de trabalhadores jovens, especialmente na linha de monta-
gem onde se produz o Gol 1000. São trabalhadores com
menos de 25 anos, chamados de “debutantes”, ou seja, es-
2 A pesquisa realizada por Marta Luedemann (1996), tão em seu primeiro emprego, por isso “se apegam mais à
em duas empresas automobilísticas, aponta a relação com empresa e recebem uma atenção especial; a administração
os trabalhadores jovens como um problema enfrentado pelos gosta do perfil jovem, criativo, participativo e que não está
representantes das comissões de fábrica. Ela mostra que a ligado à organização sindical” (p. 171).

102 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O jovem no mercado de trabalho

da produção, por outro, é também uma exigência com seis jovens, com idade variando de 16 a 23
da implantação da polivalência 3 ou da multifunção anos, trabalhando em grandes indústrias da região
no processo de trabalho. Assim, a “molecada” a que metropolitana de São Paulo. Todos enfatizam a for-
o operário se refere está sendo preparada para tra- mação profissional obtida previamente ou a neces-
balhar em vários setores da fábrica, adquirindo uma sidade de ampliação dos conhecimentos para, pelo
mobilidade impensada há alguns anos antes. Mas menos, manter o seu emprego na linha de produ-
esse conhecimento geral de tudo não significa, en- ção. Assim, Daniel, de 20 anos, calibrador na Volks-
tretanto, salários mais altos. wagen, está no terceiro ano do curso de engenha-
ria mecânica e considera difícil ocupar um lugar de
Esses garotos não ficam numa área só, ficam
engenheiro, devido ao número de candidatos. João
dois meses na usinagem, dois meses na funilaria, dois
Américo, de 16 anos, trabalhando na linha de pro-
meses na estamparia, dois meses na pintura. É o pes-
dução da Mercedes Benz, pretende estudar “inglês,
soal que vai conhecer toda a fábrica e, por outro lado,
alemão e engenharia ou computação, para garan-
esse pessoal além de conhecer a fábrica na produção,
tir o seu lugar na linha de montagem”. Já Fernando,
também são mecânicos da manutenção, são ferramen-
de 18 anos, trabalhando no setor de câmbio da
teiros (...) Quando eles foram para a produção há um
Volks, faz escola técnica e cursos extracurriculares,
ano atrás, foram todos empolgados, essa molecada
acreditando que, com isso, possa sair da linha de
ficou entusiasmada porque iriam para o grau 5 (na
produção. Márcio, de 18 anos, montador na linha
hierarquia salarial), só que hoje eles não têm nenhu-
de produção da Siemens, cursa química industrial,
ma perspectiva.
mas já fez cursos de programação, interpretação de
Essas colocações são reiteradas em entrevistas desenho, instrumento e “caminha para ser torneiro
realizadas pelo jornalista Alceu Castilho (1997), mecânico”. César, de 19 anos, operador de máqui-
nas também na Siemens, ao contrário, nunca pen-
sou em trabalhar em indústria. Fez cursos colegial,
3 Gorz (1995), discutindo a polivalência do operário de computação, contabilidade, administração e da-
nas indústrias de processo contínuo, aponta que, na medi- tilografia, destinando-se ao trabalho em escritório.
da em que suas operações possuem qualificações comuns e Pensava em trabalhar em “um lugar sossegado, tran-
formação de base também comum, haveria uma mobilida- quilo, limpinho”. Hoje trabalha das 7 às 17 horas
de potencial desses trabalhadores, que podem circular de
produzindo imãs, “e só imãs”.
uma empresa a outra sem problemas. Mesmo reconhecen-
do que além de uma formação comum, esse operário deve
Como vemos, esses relatos revelam, por par-
ter uma formação específica de acordo com a indústria, esta, te dos jovens, a interiorização das condições obje-
entretanto, não exige muito tempo de treinamento. Esse tivas do mundo do trabalho, que definem as dire-
operário tem, então, uma “autonomia existencial” maior, trizes de seus projetos profissionais, ao mesmo tem-
não sendo um prisioneiro de “sua” empresa. Mas, em con- po que impõem limites aos seus sonhos e esperan-
trapartida, esta também pode substituí-lo muito mais facil-
ças. Parece-nos inteiramente apropriada a denomi-
mente. É isso que torna banalizado o saber profissional. Com
esse termo, Gorz não quer dizer que o trabalho seja des-
nação dada pelo autor do artigo a esse novo tipo
qualificado ou monótono, mas sim que há uma acessibili- de trabalhador — “o peão ilustrado”. Um trabalha-
dade muito grande da qualificação, ou seja, hoje as pessoas dor, afinal, que precisa adquirir ou ampliar os seus
podem muito facilmente ter acesso a certas habilidades ou conhecimentos para manter-se no mesmo lugar. En-
competências. É o processo de banalização das competên- tretanto, o mais significativo nessa reportagem é o
cias que torna o saber ou as capacidades profissionais fácil
fato que todos esses jovens são filhos e, dois deles,
e rapidamente substituíveis. Provavelmente, a presença de
jovens nas empresas, portadores de nível maior de escolari-
também, netos de operários, que trabalham ou tra-
dade, mais “educados”, ainda que menos qualificados, prende- balharam nas mesmas empresas que hoje os empre-
se a essa banalização das competências apontada por Gorz. gam. Aliás, é justamente esse “passado familiar”

Revista Brasileira de Educação 103


Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins

que garantiu a eles a entrada em uma grande em- go e do trabalho. Mas, como insiste Pais, é preciso
presa, especialmente nas montadoras, pois “filhos considerar a existência de reações diferenciadas dos
e irmãos de funcionários têm prioridade na hora de jovens diante do trabalho, do emprego e do desem-
fazer os cursos do SENAI”, ou mesmo na hora da prego. Assim, buscando escapar da tendência de
contratação. E, como nos lembra o operário da mon- apenas ver a juventude como um conjunto homo-
tadora entrevistado, quando um trabalhador sai da gêneo, Pais destaca as diferenças existentes entre os
empresa ou se aposenta, ele pode, “orgulhosamen- jovens, a diversidade de origens sociais, de interes-
te”, indicar um filho para ficar em seu lugar, caso ses, de perspectivas e de aspirações (Pais, 1993), que
haja vaga. os conduzem a trajetórias profissionais específicas,
Concluindo essas considerações sobre a inser- concepções e idéias diferenciadas. Portanto, com re-
ção do jovem no emprego, volto ao depoimento do lação ao emprego e ao trabalho, mais de uma rea-
operário da montadora do ABC, para reintroduzir ção pode ser apontada: “enquanto entre alguns jo-
a questão de como os jovens trabalhadores inter- vens se encontra uma mais disseminada ideologia de
pretam a sua relação com o emprego e o trabalho. realização individualista, aparecendo, muitas vezes,
a obtenção de emprego fortemente associada ao em-
Essa molecada nova que entrou, muitos são fi-
penhamento, ao esforço e à realização pessoal e pro-
lhos de chefe, outros o pai já tem uns vinte e três anos
fissional, para outros jovens, o emprego aparece co-
na empresa, tem sua casa (...) então essa molecada está
mo uma fonte de satisfação meramente instrumen-
preocupada em trocar de carro, moleque que entrou,
tal, parecendo cada vez menos irrelevante a ética do
com um ano lá, dois anos, já tem um carro zero. Cara
trabalho” (Pais, 1991, 962).
que quer fazer hora extra para trocar de carro. Essa
Algumas questões decorrem da análise feita até
molecada não está preocupada com o sindicato, não
aqui: como se formam e são transmitidos os valo-
vai se preocupar com mais nada, o que ganha é só para
res referentes ao trabalho? Como as diferentes re-
gastar mesmo.
presentações sobre o trabalho são elaboradas? Ini-
Essa entrevista, de um operário com vinte anos ciei esta exposição, colocando em dúvida a possi-
de trabalho na empresa, perplexo e sentindo-se im- bilidade de se considerar, na sociedade contempo-
potente diante das mudanças introduzidas no tra- rânea, a centralidade do trabalho na vida de homens
balho dentro da empresa, reproduz a visão genera- e mulheres, jovens e adultos, apontando as dificul-
lizada na sociedade a respeito dos jovens trabalha- dades para a inserção e a permanência no merca-
dores. Trata-se de uma imagem da juventude mar- do de trabalho. Resta agora, contudo, discutir co-
cada pela negatividade, que ressalta o individualis- mo, e porque, na sociedade brasileira, o trabalho
mo, o consumismo, a passividade, a falta de com- ainda se afirma como um valor cultural e simbólico.
panheirismo e o afastamento das questões que afe- Considerando a distribuição dos ocupados,
tam o conjunto dos trabalhadores. pela idade em que começaram a trabalhar, dados
Nas análises sociológicas da juventude, essa re- da PNAD, para o Brasil, referentes a 1993, mostram
lação instrumental com o trabalho tem sido expli- que 86,1% da população empregada começou a
cada como decorrência da mudança nos valores e nos trabalhar antes dos dezoito anos. Olhando apenas
modos de regulação social que afetam a maneira pela a faixa etária de 10 a 14 anos, vemos que 48,6%
qual o jovem é socializado e preparado para entrar dos trabalhadores iniciaram a sua trajetória de tra-
no mundo do trabalho. As exigências de autonomia balho nessa fase de sua vida (DIEESE, 1996). O que
individual, o individualismo exacerbado e a valori- impele essas crianças e adolescentes para o traba-
zação dos modos privados de consumo, constitui- lho, em um momento em que deveriam estar na
riam os elementos sociais básicos que orientam os escola, e só na escola, preparando-se, exatamente,
jovens na elaboração das representações do empre- para uma profissão?

104 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O jovem no mercado de trabalho

A explicação mais frequente nos estudos so- trabalho dessas crianças, pois “são crianças que estu-
ciológicos sobre essa questão, repousa na correla- dam, têm hábitos urbanos, moram com a família em
ção estabelecida entre pobreza e trabalho4. Porque casas relativamente cômodas, em grandes cidades do
pertencentes a famílias de baixa renda, criança e país” (DIEESE, 1997a, 10).Uma das conclusões da
adolescente são inseridos precocemente no merca- pesquisa é que o motivo imediato da entrada dessas
do de trabalho, tendo que, muitas vezes, abando- crianças no mercado de trabalho é a necessidade de
nar a escola. A imposição do trabalho assalariado complementação da renda familiar, em virtude dos
seria, então, decorrente do “aguilhão da fome” (Ma- baixos salários recebidos por seus pais6. Mesmo com
chado da Silva, 1990). sua pequena remuneração, crianças e adolescentes
Assim, por exemplo, considerando o caso do contribuem para o aumento da renda familiar.
município de São Paulo, nos anos de 1994 e 1995, Essas colocações não são suficientes, todavia,
vemos que a média do rendimento familiar médio para explicar porque o trabalho infanto-juvenil, que
era de 4,3 salários mínimos, e que 55,5% das fa- contribui tão pouco com a renda familiar e implica
mílias ganhavam de menos de meio salário mínimo em tantos sacrifícios para essa geração, adquire esse
até três salários mínimos. Dados da PNAD mostram caráter imperioso, constituindo-se em uma ocor-
que, dos 58 milhões de crianças e de adolescentes rência habitual em famílias com as mais diversas
de 0 a 17 anos, mais de 50% vivem em famílias com origens e condições sociais. Outros motivos pare-
rendimento de até meio salário mínimo per capita. cem orientar a inserção precoce da população no
Poderíamos concluir, então, que seria a evidente mercado de trabalho.
pobreza que empurra para o trabalho os filhos des- Pesquisa realizada por Dauster (1992), com
sas famílias. crianças a partir de 7 anos e com jovens que cur-
Mas, a pesquisa realizada pelo DIEESE em seis sam a escola pública em uma favela do Rio de Ja-
capitais brasileiras, nos anos de 1995 e 1996, com neiro, permite avançar nessa discussão. O objetivo
1.419 crianças de sete a catorze anos, revela alguns da pesquisa era estudar o chamado fenômeno do
dados surpreendentes. Contrariando a afirmação de “fracasso escolar” entre crianças pertencentes a fa-
que as crianças trabalham no lugar dos pais, a pesqui- mílias de baixa renda, o que a levou a discutir, mais
sa constatou que em torno da metade delas tem pais amplamente, a relação entre a escola e o trabalho.
trabalhando, em ocupações tipicamente urbanas5. Este é um tema que, como apontam Ferretti e Ma-
De uma maneira geral, os dados não justificam o deira (1992), tem sido discutido pelos analistas no
sentido de apontar a importância da escola na for-
mação das novas gerações para o trabalho. O que
esses dois autores propõem é pensar que “para a
4 Remeto, neste aspecto, para o texto de Felícia R.
grande maioria da população, o trabalho antecipa
Madeira, Pobreza, Escola e Trabalho — convicções virtuo-
sas, conexões viciosas, 1993, que desenvolve uma reflexão a escola ou se dá concomitantemente a ela”(p. 83).
crítica das interpretações correntes sobre o tema. Assim, Dauster, procurando entender o que
5 Em pesquisa realizada em 1981, com crianças e ado- leva as crianças das camadas populares a buscarem
lescentes de 9 a 17 anos, na área metropolitana de São Paulo, a escola — crianças que se auto representam como
Aparecida J.Gouveia já comprovara que 95% dos chefes de
família trabalhavam em atividades manuais e, destes, cerca
da metade eram trabalhadores não qualificados. Além do 6 Essa conclusão aparece, também, nos artigos de Gou-

mais, tratavam-se de famílias estruturadas, em sua maioria, veia (1983) e Madeira (1993), afirmando-se, praticamente,
compostas de pai, mãe e filhos. Confirma-se, assim, que o como consenso nas pesquisas sobre o trabalho de crianças
trabalho precoce não decorre, necessariamente, da desagre- e adolescentes de 10 a 17 anos. Mas, esses mesmos estudos
gação familiar ou do fato dessas crianças e adolescentes mostram que outros motivos interferem, igualmente, na de-
provirem de uma família incompleta (Gouveia, 1983). cisão de trabalhar.

Revista Brasileira de Educação 105


Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins

pobre, trabalhadora e estudante — mostra que o radia e comida. Constrangidas pela necessidade,
ingresso delas nas classes de alfabetização revelam essas crianças e adolescentes submetem-se à impo-
grande interesse e expectativa, expressando, por sição de uma norma que, entendida como natural
parte de suas famílias e delas, a valorização da es- e legítima, constitui-se como dever e obrigação das
cola. Mas, aos poucos, as crianças demonstram uma gerações mais jovens das camadas populares.
atitude de resistência, que a autora explica como Dessa maneira, a condição de trabalhador é
resultado tanto de uma escola afastada dos interes- inerente à condição de pobre, mas se constitui, tam-
ses das crianças, quanto do incentivo dos pais para bém, na visão dos pais, como anteparo aos perigos
o trabalho. Aqui, Dauster retoma as colocações de vividos “na rua”, ao risco da marginalidade, afas-
autores como Alvim e Valladares, a respeito da im- tando seus filhos das más companhias, do bandi-
portância do trabalho enquanto um valor cultural tismo, do tóxico, enfim, o que não presta, o mun-
e econômico, ou seja, da transmissão, pela família, do com os seus perigos7.
da ideologia do trabalho, que vê o trabalho pelo seu Contudo, há ainda, um outro significado do
aspecto de formador das novas gerações. trabalho que Dauster observa em sua pesquisa: o
Uma de suas hipóteses, portanto, é de expli- sentido de decisão e de afirmação. Os jovens que-
car a inserção no trabalho não apenas a partir das rem trabalhar para se sentirem importantes dentro
condições econômicas em que essas crianças vivem, de sua família, mas, também, para poderem com-
mas, considerando-a como “uma estratégia do sis- prar, com o seu dinheiro, certos objetos — como o
tema de socialização das camadas populares, que tênis e as roupas de marca, o relógio — que lhes
não se opõe necessariamente à escola mas, ao con- permitam o acesso a uma “gramática do gosto” (p.
trário, deve complementá-la” (p. 33). 35), fundamentais na construção de uma identida-
Nesse sentido, a autora procurou, em sua pes- de jovem8 . Essa pressão do consumo é destacada,
quisa, recuperar as orientações e os valores, os cos-
tumes e atitudes que se expressam nos “usos sim-
bólicos da escola e do trabalho” (p. 33), por parte
7 Zaluar (1985) aponta o limite tênue que separa o
das camadas populares. Analisando os depoimen-
trabalhador da marginalidade, as constantes solicitações de
tos, Dauster mostra que o trabalho de crianças e
passagem para a deliquência e, especialmente, a atração que
jovens não é visto apenas como imposição de uma esta exerce sobre os jovens. Uchôa (1994), em sua reporta-
necessidade decorrente das condições econômicas gem, mostra como é difícil, para crianças e jovens, mora-
da família, mas a valorização do trabalho é resul- dores do morro do Borel, no Rio de Janeiro, persistirem no
tado de fatores culturais, ou seja, a questão do tra- seu trabalho de carregadores de pesadas sacolas de compras
balho infantil é tratada pela autora como “uma for- que lhes rende cerca de R$ 30,00 por semana, quando um
“soldado do pó” empregado pelos traficantes tira, em mé-
ma cultural que coletivamente se impõe às crianças
dia, R$ 100,00 por semana.
das camadas populares” (p. 33). Entre os morado-
8 Uma dimensão importante do cotidiano dos jovens
res da favela pesquisada, o trabalho infantil, a partir
é o lazer e, nesse sentido, o estudo de Helena Abramo (1994)
dos sete anos, é representado como obrigatório, por é uma contribuição importante. Diante da escassez de pes-
se constituir em uma prática cotidiana coletiva e quisas sobre os jovens, a análise dessa autora se afirma como
também como natural, segundo as orientações dos leitura obrigatória para todos que pretendem discutir as
pais. Assim, no cotidiano de vida dessas famílias, questões relacionadas com a juventude. Mas, lembro aqui
apenas a sua colocação de que “a juventude é vista como
o trabalho, desde cedo, aparece como regra, como
período em que se pode gozar a vida e tentar um futuro
parte da socialização das novas gerações. Em um
melhor” (p. 62). A inserção dos jovens no mercado de tra-
sistema de troca nas relações familiares, as crian- balho é o que lhes permite, portanto, “viver a condição ju-
ças e jovens se dispõem a “ajudar” sua família, tra- venil” (p. 64), seja no sentido da aquisição de bens de con-
balhando em retribuição aos pais que lhes dão mo- sumo, seja no desfrute do lazer.

106 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O jovem no mercado de trabalho

também, em vários outros textos como um dos mais em Economia Aplicada (IPEA), analisando dados
fortes motivos que impulsionam os jovens para o etários, de renda e de qualificação dos ocupados da
trabalho (Ferretti e Madeira, 1992). Mas, aliado ao Grande São Paulo, com base nos levantamentos do
sentido da afirmação, lembro a observação de Gou- DIEESE/SEADE entre 1988 e 1995, contem infor-
veia (1983), destacando que são pouco frequentes, mações significativas a respeito dessa questão. Es-
entre os seus entrevistados, as manifestações de amar- pecificamente com relação ao grau de instrução des-
gura ou revolta pelo fato de precisarem trabalhar. ses trabalhadores, a pesquisa aponta a redução do
A quase totalidade deles expressa um sentimento de número de analfabetos, caindo de 6,1%, em 1988,
auto-realização e de orgulho. Dessa maneira, como para 5% em 1995. A participação dos ocupados
destaca Gouveia, o trabalho se afirma como a “ne- com até a quarta série declinou de 35% para
cessidade transformada em virtude”. 27,2%, assim como a dos que tinham o primeiro
Pode-se concluir, portanto, ou pelo menos for- grau incompleto: de 18% para 15,8%. Ao contrá-
mular uma hipótese de pesquisa, de que os jovens rio, houve um acréscimo da parcela daqueles com
de 18 a 25 anos reproduzem, em seus projetos de curso universitário completo, que passou de 8,6%
vida, elementos dessa ética do trabalho, construin- para 12,3% e dos com o segundo grau completo,
do a sua identidade no trabalho a partir da noção de 11,7% para 16,3%, nos dois anos indicados.
de “honesto e digno” porque um trabalhador9. Confirma-se, portanto, a tendência que tem sido
O último aspecto que destaco nestas reflexões apontada em várias pesquisas, inclusive na que ve-
sobre o jovem trabalhador, diz respeito à relação nho realizando entre os jovens trabalhadores meta-
entre a educação e o trabalho. Como já apontamos, lúrgicos em Osasco. Na indústria hoje, aliás, como
as alterações no processo de trabalho e as novas nos outros setores da economia, a inserção profis-
técnicas organizacionais introduzidas nas empresas, sional será daqueles com o grau de instrução maior.
vem propiciando o aparecimento (e o desapareci- Não se deve estranhar, portanto, a presença de en-
mento) das qualificações ou especializações exigi- genheiros na linha de produção.
das dos trabalhadores. O “novo” profissional de- Os dois economistas concluem a sua pesqui-
pende, portanto, de um grau de escolaridade maior. sa afirmando que “a batalha da produtividade só
Aliás isso não é tão novo assim nas empresas. Chaia será ganha se os trabalhadores elevarem seu nível
(1987) já apontava em seu artigo, que a indústria, de educação” (Campos, 1996). Ferretti e Madeira
por exemplo, parecia preferir os jovens que tinham (1992), em artigo no qual realizam uma importan-
completado um ciclo de estudo e que, provavelmen- te revisão bibliográfica das relações entre trabalho
te, tivessem deixado de ser estudante. A novidade e escola, destacam como a década de 90 inicia-se
com respeito a essa colocação é que, hoje, certamen- com os governos de diferentes países reintroduzindo
te, as empresas esperam que seus empregados sejam a importância da educação para o desenvolvimen-
sempre capazes de aquisição de novos conhecimen- to econômico. Os autores manifestam a sua perple-
tos e requalificações. xidade diante do fato de que, apesar da crítica ela-
A pesquisa realizada pelos economistas Edgard borada durante os anos 80, “a década de 90 inau-
Luiz Alves e Fábio Veras, do Instituto de Pesquisa gura-se com forte revigoramento das antigas espe-
ranças no poder transformador da educação via
impacto no processo de trabalho, portanto, em sua
versão economicista”(p. 84). O estudo dos dois eco-
9
nomistas, citado acima, expressa muito bem essa
Apresento uma pequena variação da definição ela-
borada pelos trabalhadores da periferia de São Paulo pes- visão, compartilhada, sem dúvida, por pesquisado-
quisados por Cintia Sarti (1994), que se identificavam como res e empresários e que é imposta como uma neces-
“pobre honrado, porque trabalhador” (p. 66). sidade aos trabalhadores.

Revista Brasileira de Educação 107


Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins

A reestruturação produtiva e as novas formas Referências bibliográficas


de gestão e organização do trabalho, portanto, co-
locam para os educadores, como acentuam Ferretti ABRAMO, Helena W., (1994). Cenas Juvenis — punks e
e Madeira no artigo referido, novos desafios, na darks no espetáculo urbano. São Paulo: Scritta/Anpocs.

medida em que “o novo paradigma dos processos ABRAMO, Laís W., (1988). Reconversão industrial e res-
de produção está apoiado na formação mais plura- posta sindical na América Latina. Lua Nova. São Paulo,
4:14, abril/jun., 93-99.
lista da força de trabalho, em sua maior capacitação
para apreensão de linguagens, sobretudo a matemá- CAMPOS, José Roberto, (1996). Trabalhador pouco ins-
truído perde espaço. O Estado de S. Paulo, 4 de agosto,
tica. O que se deve incrementar, agora, é a cria-
B4.
tividade, a participação, a solidariedade, etc. Dife-
CASTILHO, Alceu L., (1997). “Fim da linha”. Zap!, cader-
rente, portanto, da ideologia dos anos 60, que en-
no de O Estado de S. Paulo, 7:347, 8 de maio, G1, G4 e
caminhou a escola para um modelo profissiona- G5.
lizante stricto sensu, mais próximo de um adestra-
CHAIA, Miguel W., (1987). O menor no mercado de tra-
mento específico. De certa forma, o que se acredi-
balho. São Paulo em Perspectiva. São Paulo: Fundação
ta hoje que seja demanda do mercado é algo pró- Seade, 1:1, abril/jun., 9-16
ximo do que os educadores reivindicam há muito
CLOT, Yves, (s/d). Jeunesse, travail, société — voies et en-
tempo” (p. 85). jeux d’une mutation. (mimeo).
Procurei, nesta exposição, destacar as questões
DAUSTER, Tania, (1992). Uma infância de curta duração:
fundamentais para discutir a relação do jovem com trabalho e escola. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, nº
o trabalho, baseando-me em um conjunto de tex- 82, agosto, 31-36.
tos e de entrevistas com trabalhadores, todos ati- DIEESE, (1995). Emprego perde qualidade em São Paulo.
vistas sindicais. Portanto, uma reflexão de adultos Boletim do Dieese. São Paulo, 14:170, maio, 12-16.
sobre o jovem. Como a maioria dos autores cita- DIEESE, (1996). Anuário dos Trabalhadores. S. Paulo.
dos, tomei como referência dados estatísticos que
DIEESE, (1996a). A visão dos trabalhadores sobre globa-
nos dizem a porcentagem dos que trabalham, dos lização e setor automotivo. Boletim do Dieese. São Pau-
desempregados, do nível de renda, do grau de ins- lo, 15:186, setembro, 6-11.
trução, mas que não informam em que condições DIEESE, (1996b). É preciso reduzir a jornada de trabalho.
esses jovens trabalham, nem o quê o trabalho sig- Boletim do Dieese. São Paulo, 15:186, set., 3-5.
nifica para eles e, muito menos, como se situam DIEESE, (1997). A categoria em números. Subseção do
diante das condições de trabalho e as exigências que Dieese, Sindicato deo Metalúrgicos de Osasco e região,
se colocam hoje para o exercício de suas atividades mimeo.
profissionais. Pelo menos, não na faixa etária que DIEESE, (1997a). O trabalho tolerado de crianças de até
escolhi como ponto de partida para a minha pes- catorze anos. Boletim do Dieese. São Paulo, 16:193, abril,
quisa, ou seja, os que situam entre os 18 e os 25 6-20.
anos. Na realidade, quase não existem pesquisas FERRETTI, Celso J., MADEIRA, Felícia R, (1992). “Edu-
que tenham como ponto central da análise o traba- cação/Trabalho: reinventando o passado?”. Cadernos de
Pesquisa. São Paulo, nº 80, 75-86.
lhador situado nesse período do ciclo vital. Isto, por
um lado, pode representar uma desvantagem inicial GORZ, André, (1982). Adeus ao proletariado: para além
do socialismo. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
mas, por outro, constitui-se em um desafio, que o
pesquisador deve enfrentar. __________, (1995). Metamorfosis del trabajo. Madrid: Edi-
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108 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O jovem no mercado de trabalho

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Revista Brasileira de Educação 109


O trabalho como escolha e oportunidade

Antonio Chiesi
Alberto Martinelli
IARDI

Tradução de Nilson Moulin


Publicado em: CAVALLI, Alessandro e LILLO, Antonio (orgs.). Giovani anni 90. Bologna: Il Mulino, 1993. Cap. II.

Premissa cusa do trabalho dos jovens dos anos 70 e do este-


reótipo da competição individualista e do confor-
As atitudes em relação ao trabalho constituí- mismo dos jovens da década sucessiva. A pesquisa
ram sempre um dos temas de maior interesse nos IARD de 1992 confirma e esclarece tais resultados,
estudos sociológicos e psicológicos sobre a condi- introduzindo também alguns elementos de novidade.
ção juvenil por razões facilmente compreensíveis. A propósito da crescente afinidade das atitu-
Em contextos culturais muito diferentes entre si, des dos jovens italianos com os seus coetâneos eu-
de fato, o trabalho é um dos âmbitos mais impor- ropeus, vale a pena destacar algumas tendências
tantes em que se desenvolvem as relações entre ge- claramente perceptíveis. A primeira tendência é o
rações, acentuam-se os mecanismos de socializa- prolongamento da idade juvenil e o significado novo
ção dos jovens para os papéis da vida adulta, de- do próprio conceito de juventude: ser jovem é cada
senvolvem-se processos de reprodução econômica vez menos um processo direcionado para uma fi-
e social. nalidade, isto é, a meta de se tornar adulto, come-
As pesquisas IARD sobre a condição juvenil çar a trabalhar e assumir as responsabilidades da
na Itália, efetuadas em 1983 e 1987, produziram al- idade adulta e é cada vez mais uma condição social
guns resultados relevantes: em primeiro lugar, mos- que pode durar vários anos. Os jovens tendem a
traram como a condição e as atitudes dos jovens deixar a família mais tarde e igualmente adiam a
italianos relativas ao trabalho, mesmo conservan- idade do casamento e do nascimento dos filhos,
do algumas especificidades significativas, têm se tendência esta, mais acentuada na Itália que em ou-
uniformizado às de seus coetâneos de outros paí- tros países por causa das atitudes de proteção mais
ses desenvolvidos do ocidente. Em segundo lugar, acentuadas por parte de muitos pais e da menor ten-
confirmaram alguns lugares-comuns difundidos na dência dos jovens a afastar-se da família por razões
opinião pública, em particular, o estereótipo da re- de estudo e trabalho e para estabelecer uniões con-

110 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho como escolha e oportunidade

jugais de fato, como acontece difusamente nos paí- tidades e os tempos, no caso de trabalhos pouco
ses da Europa do Norte e na França. gratificantes, aos quais ninguém quer sacrificar a
A segunda tendência é o crescimento das ex- própria vida afetiva.
pectativas, determinada pelo aumento do nível de A esse respeito, a pesquisa IARD de 92 permite
instrução, que comportou um defasamento progres- aprofundar e interpretar melhor a demanda crescen-
sivo entre oferta e demanda no mercado de traba- te de autonomia e de valorização das próprias ca-
lho, um crescente desemprego intelectual (sobretudo pacidades. Tais resultados permitem superar o es-
nas áreas em que não se verificou um desenvolvi- tereótipo do “yuppismo” dos anos 80. A atitude da
mento dos papéis técnicos e profissionais, relaciona- maior parte dos jovens em relação à escolha do tra-
dos com a conversão industrial e com a expansão balho não parece caber na execução de um projeto
da economia terciária, a ponto de satisfazer a deman- final de afirmação individual e de um planejamen-
da de trabalho qualificado dos jovens escolarizados) to rigoroso da própria carreira, mas parece mostrar,
e uma recusa dos trabalhos com pouco prestígio ao contrário, tanto uma atitude de incerteza no mo-
social que são deixados aos imigrantes. mento da escolha do primeiro trabalho quanto uma
Enfim, como nos outros países desenvolvidos, atitude pragmática e negociadora e um compromis-
a condição laboral e as atitudes perante o trabalho so realista entre opções e oportunidades.
dos jovens são influenciadas pelo gênero, pelo status A tendência para uma incerteza crescente acer-
sócio-econômico da família e pelo lugar de origem ca das próprias opções laborais pode por sua vez
e de residência. As desigualdades associadas a tais ser atribuída a dois tipos de causas. Em primeiro
fatores acham-se bem visíveis na pesquisa de 1992, lugar, o conhecimento escasso e a experiência ain-
também no caso do gênero parecem atenuar-se. Com da reduzida que boa parte dos jovens tem do tra-
efeito, observa-se uma redução das diferenças en- balho nos anos de escola: o trabalho é uma reali-
tre homens e mulheres em relação ao diploma es- dade bastante remota e pouco visível para muitos
colar e à presença nos vários tipos de emprego. De estudantes, que só se concretiza sob a forma de tra-
qualquer modo, continuam muito fortes as desigual- balho precário e ocasional. Os programas escola-
dades de gênero (a favor, obviamente, dos homens) res não prevêem formas alternativas de instrução-
entre os inativos e entre os que ainda estão à pro- trabalho, os meios de comunicação de massa trans-
cura do primeiro trabalho. mitem mensagens centradas no tempo livre e no
consumo em vez de abordar a produção, tratam da
Nem “hippies” nem “yuppies” gratificação imediata das necessidades, negligenci-
ando a necessidade de aprendizagens longas e com-
A análise dos estereótipos mostra que a atitu- plexas e sobre as obrigações derivadas de um con-
de de recusa do trabalho parece interessar a mino- trato de trabalho. Em segundo lugar, os pais care-
rias reduzidas. Os jovens da geração de 68 intro- cem muitas vezes de uma percepção clara das incli-
duziram valores e atitudes antiautoritárias nas re- nações e das capacidades efetivas dos filhos e das
lações de trabalho, que se desenvolveram nos anos informações adequadas sobre a evolução do mun-
posteriores, não no sentido de uma crise de meca- do do trabalho, quando não oferecem uma imagem
nismos de socialização para o trabalho, mas no sen- do trabalho enquanto fonte de ansiedade, preocupa-
tido de uma atitude mais racional diante da expe- ção e cansaço mais que de satisfação. Contudo, tal
riência laboral. O trabalho permanece um aspecto incerteza não deve ser supervalorizada, pois para
central da vida dos indivíduos, porém, procura-se muitos ela esconde uma atitude de experimentação
introduzir mais elementos de liberdade e autono- e de prova que conduz a adiar a escolha definitiva
mia, nos casos de trabalhos que permitam realizar após ter explorado as próprias capacidades pesso-
as próprias capacidades; trata-se de reduzir as quan- ais e as demandas do mercado por meio de diver-

Revista Brasileira de Educação 111


Antonio Chiesi, Alberto Martinelli

sas experiências de trabalho ocasional, temporário vilegiam a dimensão criativa do trabalho, capaz de
ou precário. favorecer a realização pessoal, buscam oportunida-
des de aprendizagem e crescimento profissional,
Autonomia, flexibilidade com o objetivo de poder potencializar as próprias
e crescimento profissional capacidades. Neste sentido, é significativa a pro-
pensão ao trabalho autônomo, a abrir um negócio
A exigência de autonomia, uma atitude de ex- por conta própria, a serem os únicos responsáveis
perimentação e uma abordagem realista quanto à pelo próprio trabalho. A relação de trabalho depen-
escolha do trabalho, capaz de mediar expectativas dente parece sempre ser cada vez menos um mode-
e oportunidades, surgem como os traços mais mar- lo apreciado, um porto seguro e protegido para o
cantes dos jovens entrevistados. O início da déca- qual dirigir-se1.
da de 90 coincide com o ápice de um período em É preciso destacar também o fato de que a pre-
que o mercado do trabalho atingiu a plena ocupa- ferência pelo trabalho por conta própria é alta não
ção nas regiões do norte e também no sul se pre- só entre os filhos de trabalhadores autônomos, mas
sencia uma diminuição do desemprego. As estraté- também entre os filhos de funcionários, ao passo
gias de oferta de trabalho por parte dos jovens se que só é nitidamente mais baixa entre os desempre-
beneficiam com esta conjuntura favorável, que não gados, para os quais prevalece, é claro, a preocupa-
tem precedentes na última década e são influencia- ção de encontrar trabalho de qualquer jeito. Além
das também pelas políticas de flexibilização da ofer- disso, o trabalho sempre é considerado importan-
ta, adotadas a partir de meados da última década, te no projeto pessoal de vida, mas justamente por
que modificaram sobretudo os comportamentos dos ser percebido como mais seguro em relação ao pas-
jovens em busca do primeiro emprego (basta pen- sado, perde posição na hierarquia das coisas impor-
sar, por exemplo, no desenvolvimento dos contra- tantes da vida, em favor da amizade e do amor.
tos de formação e trabalho). Se examinarmos a relação entre as estratégias
Embora as perspectivas do mercado de traba- dos atores e as condições do contexto, surge clara-
lho tenham piorado rapidamente, a partir do ano mente a adoção de comportamentos muito realis-
seguinte da acentuação, provocado pela deteriora- tas, aos quais correspondem atitudes desencantadas
ção das condições econômicas gerais, das incerte- e racionais na pesquisa do trabalho, tendentes a
zas crescentes de muitas empresas sobre o futuro e encontrar uma mediação praticável entre expecta-
da conseqüente redução dos investimentos, na épo- tivas e oportunidades do mercado, confimando as-
ca em que foi feita a pesquisa (março de 92), a per- sim uma tendência datada de uma década, já pre-
cepção dos jovens acerca do próprio futuro ocupa- sente desde a primeira pesquisa IARD de 83. Por
cional, no seu conjunto, era mais positiva que an- exemplo, cotejando as atitudes dos estudantes e dos
tes, com as costumeiras exceções parciais de algu- jovens que trabalham, observa-se um progressivo
mas áreas do Mezzogiorno (região centro-sul). Por- redimensionamento das expectativas sobre o traba-
tanto, é ao contexto sócio-econômico precedente à
crise do início da década de 90 que temos de refe-
rir-nos para interpretar as atitudes dos jovens.
1 As edições anteriores da pesquisa já sublinharam a
Grande parte dos jovens, tendo exorcizado a
preferência dos jovens pelo trabalho autônomo, em detri-
preocupação pelo posto de trabalho, parece muito
mento do trabalho dependente, mas o último levantamento
interessada nos conteúdos e nas modalidades de
mostra uma queda ulterior contra o trabalho dependente (de
trabalho e manifestam uma forte exigência de au- 32,4% em 1983 para 27,5% em 1992) e um aumento daque-
tonomia, não temem a flexibilidade da relação de les que responden “depende”, isto é, que mostram pretender
trabalho, chegando a encará-la favoravelmente, pri- avaliar racionalmente os prós e os contras da alternativa.

112 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho como escolha e oportunidade

lho autônomo, expressão do fato de que as trans- Os jovens em condição


formações do sistema produtivo (desenvolvimento de (quase) pleno emprego
dos papéis profissionais e de condições laborais com
alto grau de autonomia) caminham mais lentamente Antes de mais nada, podemos nos perguntar
do que seria exigível pelas expectativas dos jovens. que peso tem a conjuntura econômica sobre as es-
Todavia isso não deve induzir a subestimar tais ex- tratégias de atraso da transição para a idade adul-
pectativas de autonomia, auto-realização e retoma- ta. Com efeito, se é verdade que nos últimos 25
da de responsabilidade da maior parte dos jovens. anos, e não só na Itália, os jovens tendem a adiar
Ao contrário, tanto as grandes empresas quanto a cada uma das cinco passagens essenciais a tal tran-
administração pública deviam adotar formas de or- sição (conclusão dos estudos, novo endereço resi-
ganização do trabalho com características bem de- dencial, união de casal, trabalho e paternidade-ma-
finidas de delegação de responsabilidades e de fun- ternidade), também é plausível supor que pelo me-
ções, de avaliação dos resultados, de autonomia na nos duas dessas passagens sejam muito influencia-
definição das modalidades e dos tempos da presta- das pela conjuntura econômica. A nova residência
ção laboral. pode representar, de fato, uma opção realizável só
Indicações análogas emergem do exame das se o mercado de casas for favorável às modestas
modalidades de pesquisa do trabalho, que parecem disponibilidades econômicas de um jovem. Inclu-
adaptar-se realisticamente à situação específica do sive a entrada no mundo do trabalho pode depen-
mercado nas diferentes áreas do país. Os jovens der, em última instância, das condições da oferta
meridionais investem com mais freqüência na ins- de vagas. O ano de 1992 mostra condições de em-
crição nos escritórios de alocação de mão-de-obra prego muito favoráveis aos jovens. Apesar disso, a
e nos concursos públicos, estratégias complemen- percentagem dos que têm uma experiência de tra-
tares numa situação de carência de postos no setor balho não ocasional desce para 37,9%, em relação
privado. Os jovens do norte e do centro confiam aos 43% de 5 anos antes. Portanto, os dados su-
mais freqüentemente nos pedidos encaminhados a gerem que a melhoria das condições de mercado
empresas e nas respostas a classificados que ofere- não consegue alterar uma tendência cultural mui-
cem emprego. Além disso, os resultados da pesquisa to profunda.
desmentem a imagem de que os jovens do sul sejam A cota dos jovens em busca do primeiro em-
obrigados, mais que os do norte, a recorrer ao apoio prego, categoria histórica da condição juvenil nos
de pessoas influentes para obter trabalho. A persis- últimos 30 anos, reduziu-se a menos de um terço
tência da defasagem entre norte e sul também se (passando de 11% em 1987 para 3,7% em 1992).
manifesta pelas diferenças no modo de trabalhar e Trata-se de uma queda deveras relevante, difícil de
de encontrar emprego dos jovens. Mas as dificul- encontrar nas estatísticas oficiais de outros países
dades do mundo do trabalho juvenil no sul não são desenvolvidos. Por outro lado, tal dado tem conexão
mais uma condição homogênea e difundida e só com as dinâmicas ocupacionais reais de 1992, consi-
produzem degradação quando intervêm fatores de deradas pelo CENSIS (1992) substancialmente posi-
precipitação bem identificados pela pesquisa, como tivas até o outono, e com os resultados do levanta-
baixo nível de estudos, a origem social camponesa mento trimestral ISTAT (1992) sobre as forças de
e a condição feminina. trabalho do segundo trimestre de 1992, que mostram
Esclarecidas as tendências gerais, vejamos ago- uma leve piora do desemprego a partir de julho.
ra analiticamente os principais aspectos da condi- Existem muitas probabilidades de relação di-
ção laboral dos jovens e de suas atitudes em rela- reta entre a diminuição do desemprego juvenil na
ção ao trabalho. década de 80 e a aplicação das políticas de flexi-
bilização das relações de trabalho buscada nos úl-

Revista Brasileira de Educação 113


Antonio Chiesi, Alberto Martinelli

timos anos também na Itália. Basta pensar que os periência de trabalho sobe de 60% em 1983 para
trabalhadores inseridos com contratos de formação 66,4% em 1992. Assim, trata-se de um crescimen-
e trabalho, que entram exatamente nas faixas etárias to não negligenciável, que diz respeito essencialmen-
incluídas em nossa pesquisa, dobraram depois da te à ampliação da faixa de emprego marginal. Con-
metade dos anos 80, até superar meio milhão2. In- forme trataremos de demonstrar recorrendo aos
clusive os contratos de tempo parcial, que não abar- dados sobre a subjetividade do trabalho, a difusão
cam apenas os jovens, superam 200.000 em 1991. dos papéis marginais corresponde em parte a uma
Os dados obtidos em nossa pesquisa não mos- estratégia precisa e depende portanto da combina-
tram apenas uma redução drástica dos jovens que ção de escolhas conscientes e de novas condições
esperam o primeiro emprego. Também os desem- estruturais. A atração que o mundo do trabalho
pregados, isto é, aqueles que estão à procura de um exerceu sobre os jovens é testemunhada, de resto,
novo trabalho, tendo perdido o anterior, diminuí- também pela redução dos inativos e dos estudan-
ram, embora em proporção menor (passando de tes que, mesmo não se declarando estudantes-tra-
5,3% para 4,9%). balhadores, admitem trabalhar ocasionalmente no
Do total de entrevistados abaixo de 25 anos, momento da entrevista. Este último grupo chega a
41% hoje trabalham em diversos setores e segun- dobrar no período considerado, passando de 4,3%
do modalidades muito diferenciadas. Os jovens que para 8,5% do conjunto da amostragem. Assim, é
desenvolvem uma atividade compõem, de fato, uma verdade que os jovens adiam a entrada definitiva ou
categoria heterogênea, pois somente a metade tra- “oficial” no mundo do trabalho, permanecendo mais
balha com um contrato em tempo integral, isto é, tempo na condição de estudantes, mas experimentam
segundo a modalidade de trabalho standard3. Os seu sabor com algumas experiências “oficiosas”, de
autônomos representam 15,4% ao passo que 14,5% um modo igualmente generalizado (tabela 1).
têm uma relação de trabalho atípica (part-time, tra- A atração pelo mercado de trabalho, contudo,
balho por tempo limitado, trabalho precário). A não travou o crescimento progressivo a longo pra-
esse grupo deve ser somado um conjunto de 22,2%, zo do título de estudo, que continua a representar
representado por estudantes-trabalhadores. uma credencial importante para ter acesso ao mer-
Dentre os estudantes que atualmente não tra- cado dos empregos. De fato, os que só possuem o
balham (46,8%, em aumento sensível comparado curso primário enfrentam uma taxa de desempre-
aos 39,1% da pesquisa de 1987), 4,4% já trabalha- go muito mais alta do que aqueles que têm algum
ram de modo não ocasional, 4,9% aceitam com diploma (12,7% contra 5,7%) e sobretudo uma
freqüência trabalhos ocasionais remunerados. De percentagem mais alta de desempregados sem estí-
qualquer modo, 28,2% tiveram pelo menos uma mulo que já não procuram trabalho (22,5% con-
experiência de trabalho ocasional. tra 1,5%) (tabela 2).
Basicamente, pode dizer-se que a percentagem A tabela 3 mostra além disso de modo evidente
daqueles que, durante a vida, tiveram alguma ex- a permanência das diferenças tradicionais entre
regiões ricas e pobres. No sul, o desemprego é mais
alto, é mais elevada a proporção de jovens em bus-
ca do primeiro trabalho e também continua alta a
2 Por causa das modificações normativas concernentes
percentagem dos inativos, isto é, jovens desempre-
a este tipo de contrato de trabalho, os jovens inseridos se
reduzem a 286.000 indivíduos em 1991 (cf. Ministério do gados que, tendo sido desencorajados, sequer pro-
Trabalho, 1992). curam o primeiro trabalho. A situação do merca-
3Trata-se especificamente de 54,2% sobre um total do de trabalho parece mais favorável na região nor-
de 661 indivíduos empregados, isto é, apenas 20,9% do deste que na noroeste. Nas 3 Venezas e na Emília
conjunto da amostragem. Romana, o grupo de 341 entrevistados só abrange

114 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho como escolha e oportunidade

Tabela 1
Condição profissional por sexo (%)
1987 1992
Condição M F M F
Trabalhador-estudante/Trabalhador 43,5 30,6 43,9 38,3
Estudante 40,1 38,1 45,1 48,5
Em busca do primeiro emprego 7,8 14,3 2,3 4,2
Desempregado 5,5 5,1 5,1 4,7
Inativo 3,1 11,9 3,6 4,2
100,0 100,0 100,0 100,0
N=2.000 N=1.718

Tabela 2
Condição profissional por nível de estudo (%)
Média Média
Elementar* Inferior** Superior***
Trabalhador-estudante/Trabalhador 50,1 47,5 54,6
Estudante 8,8 39,3 30,9
Em busca do primeiro emprego 3,9 2,6 5,2
Desempregado 12,7 5,5 5,7
Inativo 24,5 5,4 3,5
100,0 100,0 100,0
N=2.500
* corresponde a primeira etapa do ensino fundamental (1ª a 4ª aérie)
** corresponde a segunda etapa do ensino fundamental (5ª a 8ª série)
*** corresponde ao ensino médio (1º a 3º colegial)

Tabela 3
Condição profissional por zona geográfica de residência (%)
NO NE Centro Sul
Trabalhador-estudante/Trabalhador 59,4 61,4 46,9 43,1
Estudante 32,9 32,7 41,8 33,0
Em busca do primeiro emprego 1,3 0,5 3,6 6,5
Desempregado 2,8 2,5 4,5 9,5
Inativo 3,6 2,9 3,2 7,9
100,0 100,0 100,0 100,0
N=2.500

2 (dois) jovens em busca do primeiro emprego. As- contra 23,3% das mulheres. Entre os trabalhado-
sim, pode afirmar-se que, no início da década de 90, res-estudantes, os homens têm acesso a um traba-
nessas regiões, o problema não diz respeito aos jo- lho estável com maior freqüência que as mulheres,
vens, mas sim às empresas, que correm o risco de não ao passo que elas vivem mais freqüentemente ex-
encontrar trabalhadores em caso de necessidade. periências de trabalho ocasional. Tal situação é fru-
Os homens tendem a entrar mais precocemen- to da persistente maior dificuldade relativa do com-
te que as mulheres no mercado de trabalho, pois ponente feminino para encontrar trabalho e é com-
entre os empregados, 31,5% dos homens apresen- provada também pelo fato de que, para obter um
tam uma ancianidade laboral superior a 4 anos, posto, as jovens estrevistadas devem possuir um

Revista Brasileira de Educação 115


Antonio Chiesi, Alberto Martinelli

título de estudo em média superior ao dos homens. Porém, as estatísticas sobre as taxas de desem-
Com efeito, entre os desempregados, as mulheres prego ocultam um aspecto ulterior, circunscrito mas
com diploma representam 45,2% contra 32,7% dos grave, constituído por aqueles jovens que desejariam
homens. Também as jovens com instrução poste- um trabalho, mas sendo desencorajados, não o pro-
rior à escola obrigatória ou diploma superior são curam mais. Entre os filhos de camponeses, por
relativamente mais numerosas que os homens (9,1% exemplo, a percentagem de desestimulados é de
contra 6,4%). Portanto, não surpreende que as ta- 12,7% do total dos entrevistados, enquanto entre
xas de desemprego feminino sejam sensivelmente os filhos da burguesia (empresários, dirigentes, pro-
superiores às dos homens4. fissionais liberais) e entre os filhos de funcionários,
A pesquisa mostra o duplo aspecto do desem- tal percentagem desce para 3,2%.
prego, o quantitativo e o qualitativo. A taxa abran-
gente representa de fato um indicador de gravida- As estratégias para busca de trabalho
de genérica, concentrada sobretudo entre os jovens
do sul, com baixo título de estudo e baixa extração São bem conhecidas as carências institucionais
social. A incidência dos que estão em busca do pri- do nosso país no campo da orientação profissional,
meiro trabalho nos diz também alguma coisa sobre da integração entre escola e trabalho e da inserção
a qualidade do desemprego: quanto mais baixo é dos jovens no mundo do trabalho. A Itália não pos-
o valor, numa situação de desemprego elevado, mais sui, de fato, um sistema de orientação e formação
grave o próprio desemprego, pois envolve jovens para os jovens, capilar e eficiente como o francês e
que viveram a experiência da perda de um traba- sequer estruturas formativas similares às alemãs,
lho. É sobretudo o caso daqueles que não termina- que se baseiam na integração estreita entre escola
ram a escola obrigatória, sujeitos a um sistema de e empresa e prevêem períodos de permanência dos
expulsão precoce do processo produtivo por causa estudantes nas empresas.
da falta de capacidade profissional ou até de uma Apesar dessas carências estruturais, os dados
inadequada socialização para o trabalho. Onde, ao disponíveis mostram um grau notável de espírito de
contrário, o peso relativo dos jovens em busca do iniciativa dos jovens italianos. A propensão para o
primeiro trabalho é baixo, no interior de uma situa- trabalho autônomo e a alta percentagem de entre-
ção de baixos níveis de desocupação abrangente, vistados que viveram experiências de trabalho pre-
pode-se sustentar que a desocupação causada por coces desde o período estudantil induzem a consi-
perda do posto corresponde a uma situação de mo- derar que os jovens estejam em condições, não obs-
bilidade do trabalho absolutamente fisiológica. É tante tudo, de desenvolver estratégias muito realis-
esse o caso das regiões do nordeste. Enfim, pode tas e “competentes” na busca de um trabalho qua-
surgir o caso de que níveis de desemprego superio- litativamente satisfatório. Um primeiro aspecto de
res à média sejam representados sobretudo por jo- tais estratégias consiste na definição dos limites geo-
vens em busca do primeiro trabalho. É este o caso gráficos dentro dos quais movimentar-se para ofe-
das altas qualificações, dos diplomados e sobretu- recer as próprias capacidades (tabela 4).
dos dos que têm curso superior, entre os quais per- A disponibilidade em mudar para encontrar
sistem fenômenos de desemprego intelectual devi- trabalho ou melhorar as condições é muito eleva-
do às dificuldades para obter um emprego adequa- da porque abrange mais da metade dos interroga-
do ao nível de instrução formal conseguido. dos e também envolve a maioria dos entrevistados,
tanto homens (61%) quanto mulheres (53%). Um
4 As taxas de desemprego são calculadas segundo a título de estudo elevado torna mais disponíveis para
definição do ISTAT: relação entre os que procuram traba- a mudança, pois os mais instruídos aspiram a pos-
lho e o total da mão-de-obra ativa. tos de trabalho com maior remuneração e o mer-

116 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho como escolha e oportunidade

Tabela 4
Para encontrar trabalho ou melhorá-lo, estaria disposto a mudar de município? (%)
NO NE Centro Sul Total
Não 29,8 35,3 27,3 27,6 29,3
Sim 52,8 51,6 56,8 61,3 56,9
Depende 17,3 13,1 15,9 11,1 13,8
100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
N=2.500

cado de trabalho com altas qualificações normal- Num contexto em que os jovens se acham de
mente é mais vasto que o de mão-de-obra genéri- fato privados de uma tutela e de uma orientação
ca. De fato, enquanto entre os que têm só a 4ª sé- institutcional para a entrada no mercado de traba-
rie, pouco mais de um terço (37%) está disposta a lho (menos de 9% se dirige a centros de orientação),
transferir-se por motivo de trabalho, tal proporção as modalidades de busca deste último mostram a
atinge quase dois terços (64%) entre os que concluí- predominância de estratégias individuais e familia-
ram o 2º grau e os que têm diploma universitário. res: o posto de trabalho é procurado envolvendo a
A disponibilidade para mudar para o norte retícula das solidariedades primárias e as ligações
engloba 64% dos jovens do sul dispostos a trans- fortes do vínculo de amizade e de parentesco (ta-
ferir-se, enquanto a disponibilidade de ir para o sul bela 6). É verdade que a inscrição nas agências de
só envolve 34% dos residentes no nordeste, ou seja, emprego abrange quase a mesma percentagem da-
aqueles para quem é mais fácil encontrar trabalho queles que confiam em amigos e parentes e é a mo-
na própria zona de residência. dalidade de pesquisa do trabalho mais difundida
Recentes pesquisas comparadas internacionais (quase três quartos dos entrevistados), mas quem
reafirmaram a preferência dos trabalhadores italia- se inscreve nas agências de emprego é também mais
nos em geral para as relações de trabalho autôno- pessimista quanto à possibilidade de encontrar efe-
mo5 . Tal preferência também é bastante visível em tivamente um posto e, conforme mostram muitas
nossa amostragem de jovens e diz respeito, obvia- pesquisas, o faz por razões que muitas vezes não têm
mente, mais aos homens que às mulheres, além de diretamente a ver com os objetivos ocupacionais6 .
ser ligada à disponibilidade de chances, como a ori- Os dados mostram ainda estratégias adapta-
gem social ou o nível de segurança do atual posto tivas ao mercado de trabalho. Enquanto no norte
de trabalho. Em particular, enquanto a área geográ- existe um recurso mais freqüente à relação direta
fica de residência não parece influenciar a preferên- com as empresas (demandas, respostas a classificados,
cia pelo tipo de relação de trabalho, os jovens per- inserções), estimulado pelas condições mais favo-
tencentes a famílias burguesas e de trabalhadores ráveis para a oferta de trabalho juvenil, no sul e no
autônomos são relativamente menos propensos ao centro, na falta de alternativas, as pessoas se inscre-
trabalho dependente, que é ao contrário mais apre- vem sem ilusões nas agências de emprego e partici-
ciado pelos desempregados e pelos jovens que atual- pam de concursos públicos com atitude cética.
mente possuem relações de trabalho não standard
(part-time, trabalho temporário, contrato de forma-
6 Os limites do papel desempenhado pelas agências de
ção e trabalho, trabalho negro etc.) (tabela 5).
emprego no mercado de trabalho são bem conhecidos. A
inscrição nas listas de emprego depende de vários fatores,
5 A comparação de 11 amostragens referentes a igual alguns externos (prioridade de acesso a algumas prestações
número de países industrializados mostra um nível mais alto assistenciais), outros só indiretamente relacionados à pro-
de preferência absoluta pelo trabalho autônomo na Itália (cf. cura do trabalho (obter pontos em classificações para a ad-
Eurisko, 1993). missão mediante concurso).

Revista Brasileira de Educação 117


Antonio Chiesi, Alberto Martinelli

Tabela 5
Grau de preferência dos jovens pelo trabalho por conta própria (%)
No conjunto: 58,8
homens 65,7
mulheres 51,6
Posição empregatícia:
contrato estável 52,9
contrato atípico 48,0
trabalhador autônomo 76,2
desempregado 43,1
estudante 64,6
Posição social paterna:
burguesia 69,1
funcionário 58,0
trabalhador autônomo 61,7
operário 53,0
camponês 52,9
Título de estudo:
elementar 52,8
média inferior 61,0
média superior ou universitário 56,5

Tabela 6
Modalidade de procura de trabalho (%)
NO NE Centro Sul Total
Influência de amigos e parentes 68,7 52,0 56,0 59,2 59,4
Cadastro em agências de emprego 33,0 33,3 46,6 72,0 57,6
Participação em concursos públicos 26,1 24,0 44,0 43,2 38,6
Pedidos em empresas 45,2 40,0 43,1 26,3 33,5
Resposta a classificado 37,4 29,3 32,8 28,7 30,8
Apresentação em escolas, empresas 28,7 33,3 25,9 20,0 23,8
Proteção de pessoas influentes 24,3 13,3 17,2 16,4 17,5
Cadastro em centros de orientação 8,7 8,0 6,9 9,4 8,8
Colocar anuncio em jornais 7,0 12,0 6,0 4,6 6,0
N=2.500

Os jovens que já entraram no mundo do tra- traram, colocam-se os 46% que têm menos de 3
balho em diversos níveis continuam a buscar estra- meses de ancianidade e portanto demonstram aceitar
tégias para melhoria da própria condição. De fato, o posto com a idéia de mudar na primeira oportu-
quase um terço (31,1%) dos empregados procura nidade e 54% daqueles que de algum modo obti-
um trabalho melhor. Esta proporção constitui, obvia- veram um posto de trabalho de baixa qualificação.
mente, um dado médio e varia notavelmente con- Desenha-se, basicamente, um quadro em que
forme os recursos efetivos de que o jovem já inse- a separação entre condição de emprego e condição
rido pode dispor, além das condições e das caracte- inativa, entre ocupação e desemprego, não é mais
rísticas do trabalho que desenvolve. Diante dos 33% delineada nitidamente como antes. Com freqüên-
que concluíram o 2º grau e dos universitários que cia os estudantes trabalham; junto aos empregados
procuram um trabalho melhor, evidentemente não em tempo integral, sujeitos a contrato de trabalho
se contentando com o primeiro emprego que encon- indeterminado, coloca-se uma proporção significa-

118 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho como escolha e oportunidade

tiva de trabalhadores em condições atípicas, do pon- explicar as diferenças dos níveis de retribuição, co-
to de vista de contrato de trabalho e de horário. mo se a condição juvenil garantisse a todos pelo
Aqueles que entram no mundo do trabalho conce- menos as mesmas condições de partida. Entre o que
bem o primeiro posto simplesmente como uma oca- ganha o filho do camponês e as entradas do filho
sião temporária, à espera de encontrar melhores do profssional ou do dirigente não há diferenças
condições, tendo por base a experiência amadu- estatisticamente significativas. Sabemos que em pes-
recida e a aquisição de capacidades profissionais on quisas deste tipo, as respostas sobre rendas tendem,
the job. Em suma, os jovens dos anos 90 aprende- não só a serem subestimadas, mas também a dar
ram a servir-se do mercado do trabalho para explo- uma imagem menos desigual em relação à realida-
rar uma realidade ocupacional muito mais variada de efetiva. Todavia, as diferenças reaparecem entre
do que no passado, em que o trabalho é descritível os sexos e entre as diversas regiões do país. As mu-
como um continuum da atividade eventual ao posto lheres ganham em média um quinto (22,6%) me-
de trabalho seguro e esse continuum pode ser per- nos que os homens, com um leve agravamento das
corrido mudando o posto de trabalho com freqüên- diferenças com respeito ao levantamento de 1983,
cia, numa situação mais móvel e flexível que no embora o nível médio de instrução delas seja, em
passado, quando o posto era fixo por definição, a média, superior ao dos homens. De qualquer modo,
ser alcançado de uma vez para sempre. a defasagem entre o norte e o sul foi reduzida, em-
bora mantendo níveis consideráveis. Da pesquisa de
As condições de trabalho 1983 resultava que um jovem trabalhador no sul
ganhava cerca de um terço (35%) menos que seus
Nos parágrafos anteriores nos ocupamos das coetâneos do resto do país. Em 1992, a diferença
estratégias no mercado de trabalho. Vamos concen- foi reduzida a um quarto (-24,7%). As maiores di-
trar-nos agora na análise das condições de traba- ferenças salariais permanecem, contudo, ligadas ao
lho. O tema é tão complexo que pouco se adapta a título de estudo: quem tem diploma universitário
ser estudado de “fora”, mediante um questionário, ganha em média 50% a mais do que aqueles que
capaz de nos dar somente uma imagem sumária e só têm a 4ª série.
um juízo sintético do entrevistado, sem nos permi- A desigualdade das condições de trabalho emer-
tir captar a extrema variedade das condições efeti- ge, de modo mais abrangente e qualitativo, da aná-
vas de trabalho, que podem, por exemplo, dividir lise das diferenças na duração do período laboral
os professores precários do sul dos operários das que descreve não apenas a relação óbvia segundo
regiões com industrialização difusa do centro da a qual quanto mais se trabalha mais se ganha, mas
Itália, dos funcionários do terciário urbano avan- evidencia também como na faixa do part-time7, até
çado de uma grande cidade do norte. Apesar dis- 29 horas semanais, existe uma enorme disparidade
so, a pesquisa permite analisar ao menos dois parâ- das retribuições para o mesmo horário de trabalho,
metros fundamentais da prestação laboral: a retri- conforme demonstrado pelo cálculo do desvio pa-
buição e o horário de trabalho.
As diferenças nos valores médios das remune-
rações salariais reiteram em parte as desigualdades,
7 Aliás, é interessante notar que essa faixa de traba-
emersas nas tabelas precedentes, relativas à entra-
lhadores representa 17,7% do total, mas que só 3,1% de-
da no mercado de trabalho: quem tem dificuldades
clara explicitamente trabalhar em regime de part-time. Tal
para encontrar um posto provavelmente terá de con-
diferença percentual demonstra a aspiração dos jovens ao
tentar-se com um medíocre. Todavia, como se de- tempo integral e reforça a hipótese de que o tempo parcial
duz da tabela 7, a origem social, mensurada a par- enquanto condição estável seja considerado apenas como
tir da posição paterna, não está em condições de uma solução de retrocesso.

Revista Brasileira de Educação 119


Antonio Chiesi, Alberto Martinelli

Tabela 7
Remuneração média por categorias relevantes em milhares
Média Geral: 1223
homens 1361
mulheres 1053
Áreas de Residência:
Noroeste 1378
Nordeste 1296
Centro 1300
Sul 1003
Posição Paterna*:
burguesia 1208
funcionário 1263
autônomo 1235
operário 1194
camponês 1264
Nível de estudo:
elementar 970
médio inferior 1175
médio superior 1256
universitário 1444
* Diferenças estatisticamente não significativas (sig=>.01).

drão. Para horários de aproximadamente 40 horas as casadas são menos disponíveis para horários de
semanais correspondem remunerações bem mais trabalho longos por causa dos compromissos do-
altas, representativas do elevamento rápido da cur- mésticos. Os dados à disposição exigem contudo
va dos valores médios e da baixa da curva do des- uma explicação um pouco mais complexa. Se é ver-
vio padrão. Trata-se, de fato, da faixa de trabalho dade, de fato, que na faixa de horário standard, ao
tutelado, que encontramos no mercado de trabalho redor das 40 horas semanais, encontramos uma per-
central, que os jovens almejam. Acima das 45 ho- centagem de solteiras quase igual à dos homens e
ras semanais, as retribuições já não aumentam no que entre as casadas a percentagem se reduz em
mesmo ritmo, mas os valores dos desvios padrão quase um terço, abaixo das 20 horas a proporção
recomeçam a se elevar. Isso indica que horários de de solteiras equivale à das casadas e é quase o tri-
trabalho particularmente penosos implicam maio- plo dos homens. Basicamente, os dados confirmam
res desigualdades econômicas e assinalam a presen- que o horário de trabalho curto é também um in-
ça de marginalidade e desvalorização. dicador de subemprego feminino: muitas mulheres
A essa altura, é interessante analisar as carac- preferem trabalhar com horário reduzido por cau-
terísticas sociais dos jovens que se colocam princi- sa de seus compromissos familiares, mas outras não
palmente nas áreas extremas do gráfico 2.4. O ho- logram obter um horário maior, como veremos8.
rário de trabalho efetivo depende antes de mais na-
da do gênero do entrevistado, pois as mulheres ten-
dem a ter horários de trabalho semanais mais cur- 8 A diferenciação por estado civil de homens e mu-
tos e nas faixas acima das 45 horas semanais sua
lheres mostra também que quase a metade das casadas
proporção é muito inferior à dos homens (18% de- (47,1%) concentra o próprio horário entre 20 e 39 horas
las contra 36% deles). A explicação corrente de tais semanais, ao passo que mais de um quarto dos homens ca-
diferenças remete para o estado civil das mulheres: sados (26,8%) trabalha mais de 50 horas.

120 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho como escolha e oportunidade

Tabela 8
Ocupação e respectivas taxas de feminilização
% F no Total
Empresário, profissional liberal, proprietário agrícola 26,9
Cargo de Dirigente 40,9
Professor 85,0
Funcionário com tarefas mais intelectualizadas 60,0
Funcionário executivo 51,5
Operário qualificado 27,4
Artesão 40,7
Comerciante 23,1
Aprendiz, trabalhador a domicílio 25,0
Ajudante 37,4
Outros 73,5
Total 43,6

Os jovens do sul não apenas trabalham menos tarefas mais intelectualizadas supera a dos funcio-
horas em média, mas o horário standard de 40 ho- nários executivos.
ras semanais abrange a percentagem mais baixa, pois Em resumo, pode afirmar-se que as gerações
a proporção dos jovens com horário de trabalho lon- jovens não constituem exceção à tradicional regra
go (superior a 45 horas) é em média mais alta que geral que reza existirem ocupações mais ou menos
em outras regiões. A idade também influi no horá- “adequadas” conforme o gênero. Tendem portan-
rio de trabalho, no sentido de tornar progressivamen- to a persistir os estereótipos que vêem a profissão
te mais homogêneos os regimes ao redor do horá- de magistério como uma ocupação predominante-
rio standard em tempo integral, à medida que se pas- mente feminina e o trabalho autônomo como pre-
sa para as faixas de idade mais avançadas. Um horá- dominantemente masculino.
rio muito curto, mas também muito longo, é portan-
to um indicador de marginalidade temporária para A subjetividade do trabalho
quem entrou há pouco no mercado de trabalho.
Os jovens que realizam um trabalho autôno- O debate dos anos 70 sobre as novas tendên-
mo têm horários de trabalho semanais muito mais cias culturais (isto é, as tendências de então) das
longos que os colegas sob regime contratual. De jovens gerações foi condicionado pela contraposi-
fato, 43,8% deles trabalhou mais de 45 horas na ção entre valores materialistas e pós-materialistas.
última semana contra 23% dos contratados. O fato Neste dilema, a imagem do trabalho e seus signifi-
de que certas condições de trabalho impliquem ho- cados foram assumidos como um indicador con-
rários mais ou menos longos e que certas ocupações fiável da cultura juvenil em geral, tanto na reafir-
imponham um regime semanal específico, pode es- mação da centralidade do trabalho ou na sua ne-
tar na base da persistente segregação de gênero em gação pós-materialista, quanto na sua concepção
muitas ocupações, mas a tabela 8 mostra também instrumental ou realizadora. O nosso ponto de vista
que a segregação contra mulheres jovens concerne é mais circunscrito. Queremos analisar as atitudes
também outras dimensões, como o nível de quali- e a imagem do trabalho em si mesmas, não enquan-
ficação do trabalho manual e o nível de responsa- to indicadores de um sistema cultural mais vasto.
bilidade do trabalho intelectual (empresários e pro- Nesta ótica, o ponto de partida da análise é cons-
fissionais), com uma única exceção significativa no tituído pela distribuição das respostas relativas ao
trabalho de funcionários, onde a feminilização das nível de satisfação no trabalho.

Revista Brasileira de Educação 121


Antonio Chiesi, Alberto Martinelli

Tabela 9
Satisfação no trabalho (15-29 anos)
NO NE Centro Sul Total
Nenhuma 6,1 1,7 7,5 10,4 6,5
Pouca 9,0 7,3 14,1 21,7 13,3
Não sabe 0,9 0,9 1,0 1,2 5,7
Suficiente 53,0 59,0 54,8 49,5 50,8
Muita 31,0 31,2 22,6 17,2 23,7
100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
N=1.257

Na pesquisa de 1992, levada a cabo, confor- te a medir o nível absoluto de satisfação no traba-
me foi dito, em condições de mercado de trabalho lho pecam por escassa variação e tendem em geral
decididamente melhores do que aquelas que carac- a deslocar a distribuição das respostas sobre valo-
terizaram as edições anteriores da pesquisa, o grau res correspondentes a outros níveis de satisfação
de satisfação declarada não aumentou, porém tor- declarada. Este fenômeno é bem conhecido e está
nou-se mais moderado e ponderado. De fato dimi- ligado ao fato de que o juízo sobre o próprio tra-
nuíram os entusiastas (os muito satisfeitos baixa- balho equivale em parte também a um julgamento
ram de 28,7% em 1983 para 25,3%), mas também sobre si mesmos, envolvendo a imagem e a identi-
os insatisfeitos (passaram de 26,6% para 21,2%). dade pessoal. A medida correta do nível de satisfa-
Assim, prevalecem os juízos matizados, ao passo ção no trabalho deve por isso ser cotejada com ou-
que são confirmadas as relações entre nível de sa- tras grandezas de valor.
tisfação e área geográfica. Mesmo permanecendo Conforme discutido em outra parte do livro10,
nuançada, a avaliação é muito influenciada pelo no interior da tipologia dos valores apresentada, o
nível de instrução: os menos instruídos estão bem trabalho é colocado no terceiro lugar em ordem de
mais insatisfeitos, enquanto a posse do diploma uni- importância, depois da família e das amizades/
versitário aumenta igualmente o nível de satisfação amor. O trabalho conta mais que o tempo livre, que
(tabela 9). o estudo e a cultura, que o compromisso social,
A satisfação com o trabalho também se rela- religioso e político. É interessante notar que, em
ciona positivamente com o ganho mensal (os mui- relação às pesquisas anteriores, o valor atribuído ao
to satisfeitos ganham em média 1.374.000 de liras trabalho perde a segunda posição e é superado pelo
contra 936.000 dos não satisfeitos) e com a origem concernente aos afetos (amizade e amor). A perda
social do entrevistado. Demonstrando coerência da importância do trabalho em relação a outros
com o modelo de racionalidade estratégica, os me- objetivos é, em nossa opinião, atribuível à obten-
nos satisfeitos estão também mais propensos a trans- ção do pleno emprego e, em conseqüência, deveria
ferir-se para melhorar sua condição. Se compara- ter um caráter conjuntural. Em particular, podem
do com pesquisas análogas de amostragens repre- ser feitas duas previsões para o futuro, tendo por
sentativas de toda a população 9, o grau de satisfa- base uma interpretação conjuntural ou uma estru-
ção no trabalho expresso pelos jovens não se afas- tural. A interpretação conjuntural sugere que a pio-
ta substancialmente daquele dos colegas mais ve- ra das condições ocupacionais juvenis deveria au-
lhos. De fato, as perguntas que visam simplesmen-

10 Ver a propósito o capítulo terceiro e, em particu-


9 Cf. Ceri (1988) e Chiesi (1990). lar, a tabela 3.1.

122 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho como escolha e oportunidade

mentar a importância relativa do trabalho com re- na escala da evolução das necessidades. Com os
lação a outros aspectos da vida. A hipótese estru- anos 90, o crescimento dos níveis de instrução e a
tural, que se baseia sobre a perda progressiva da evolução das condições de trabalho juvenil conduzi-
importância do trabalho a longo prazo, reforçaria ram ao predomínio da concepção realizadora sobre
ao contrário as interpretações pós-materialistas da a instrumental, conforme demonstrado pela inversão
cultura juvenil. na classificação das duas concepções (tabela 10).
A análise das hierarquias de valores feita por O interesse pelo aspecto reditício do trabalho
categorias relevantes de entrevistados não parece aumenta quando se considera o sul e entre os jovens
contudo dar muito crédito a este tipo de interpre- de extração social mais modesta. O título de estu-
tação. Percentuais de entrevistados acima da média do influi muito na imagem do trabalho. Com o au-
geral que consideram o trabalho “muito importan- mento da titulação cai o interesse pelo rendimento
te” estão presentes entre aqueles que não atingiram (os jovens que têm apenas a 4ª série colocam a re-
ainda uma posição satisfatória, como os jovens à muneração em primeiro lugar, os que concluíram
procura do primeiro emprego (72%) e os trabalha- o segundo grau, em terceiro lugar), pela qualidade
dores ocasionais (79,1%). Também os jovens do sul das relações com os companheiros de trabalho e
atribuem uma importância relativa maior ao traba- com os superiores e pelo horário e aumenta o inte-
lho em relação aos jovens do norte (65,1% contra resse pela dimensão realizadora, como a possibili-
57,1%), provavelmente por causa de sua maior es- dade de melhorar a própria posição e sobretudo a
cassez relativa. Porém, os modelos de resposta não possibilidade de aprender coisas novas e exprimir
devem induzir a pensar que o trabalho seja mais as próprias capacidades (primeiro lugar entre os que
importante só para aqueles que visam obtê-lo ou concluíram o segundo grau, terceiro para os jovens
conseguir um outro melhor. Também os que desen- só com quarta série).
volvem atividades gratificantes e realizadoras, como Em resumo, o trabalho perde uma posição sig-
os empresários (73,8%) e os profissionais (76%), nificativa na competição com outros valores exis-
consideram o trabalho muito importante. Mais em tenciais, mas adquire uma dimensão mais aprecia-
geral, a importância atribuída ao trabalho cresce da na aspiração qualitativa. O trabalho passa a ser
com o aumento do título de estudo. cada vez menos uma necessidade cansativa, a ser
Em suma, os resultados da pesquisa colocam conquistada, para reduzir os efeitos negativos de sua
em evidência que não nos encontramos perante o ausência, mas tampouco passa a ser neutralizado ou
declínio da importância do trabalho, mas assistimos circunscrito, uma vez obtido, para reduzir os efei-
à transformação de sua concepção. De fato, a hie- tos negativos de sua presença.
rarquia dos aspectos mais importantes do trabalho A tabela 11 exemplifica esta atitude através da
sofre uma mudança ainda mais significativa em rela- análise das respostas à alternativa entre duração do
ção às precedentes edições da pesquisa. Já tinha sido horário de trabalho e remuneração. A maior parte
levantado11 que as opiniões dos jovens se dividem dos entrevistados gostaria de trabalhar mais e ga-
entre uma concepção tradicional do trabalho, que nhar mais, porém, para os que têm diploma de 2º
assume sua valência instrumental, e considera por- grau e universitário tal propensão se reduz sensivel-
tanto o rendimento como o aspecto mais importan- mente, embora permaneça majoritária. Também a
te, e uma concepção realizadora, colocada mais alto idade influi sobre a alternativa entre horário e sa-
lário. A aspiração dos jovens é de chegar logo a uma
integração completa no mundo do trabalho, por
11Ver em especial a interpretação dos dados propos-
isso os jovens, que de fato trabalham menos, pre-
ta na edição anterior do relatório (cf. Cavalli e de Lillo, feririam trabalhar mais para ganhar melhor.
1988). Tal propensão se reduz com a idade, por cau-

Revista Brasileira de Educação 123


Antonio Chiesi, Alberto Martinelli

Tabela 10
Gradação dos aspectos mais importantes no trabalho
1. Possibilidades de aprender coisas novas e exprimir as próprias capacidades
2. O salário, o rendimento
3. A possibilidade de melhorar (rendimento e tipo de trabalho)
4. As condições de trabalho (ambiente, tempo de transporte etc.)
5. Boas relações com os companheiros de trabalho
6. Boas relações com os superiores, com os chefes
7. A possibilidade de viajar muito
8. O horário de trabalho

Tabela 11
Gostaria de fazer menos horas ganhando menos ou ganhar mais fazendo maior número de horas?
Elementar Médio Inf. Médio Sup. Universitário Total
Menos horas 13,6 19,7 29,4 28,3 24,1
Mais horas 72,7 63,3 52,0 56,6 58,2
Não sabe 13,6 17,0 18,6 15,1 17,7
100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
N=1257

sa da obtenção progressiva de uma posição de tra- entrevistados, depois dos clubes desportivos, dos
balho estável e em tempo integral. De fato, 65% dos escoteiros e das associações turísticas. Estas dados
jovens que trabalham há menos de dois anos gos- estão sincronizados com o que emerge do Euroba-
tariam de trabalhar mais, contra 49,5% daqueles rômetro de 1990, dedicado aos jovens dos países da
que estão empregados há mais de 4 anos. União Européia, que mostra o nível de sindicali-
Assim, pode afirmar-se que a racionalidade zação italiana de 2,1% semelhante ao da Espanha
ativa com que os jovens enfrentam sua relação com (1,8%) e da França (2,2%), ao passo que os países
o trabalho parece emergir de um capítulo sobre o em que os jovens são mais sindicalizados atingem
individualismo metodológico de um manual qual- apenas 10% como na Alemanha e na Inglaterra. No
quer de sociologia. O trabalho é des-ideologizado, panorama europeu de declínio da participação sin-
os ideais de realização e autonomia deixam espaço dical, os jovens representam o componente mais
também para atitudes moderadamente oportunis- crítico. A situação é particularmente grave na Itá-
tas (basta pensar, por exemplo, que 65% dos en- lia, pois, comparando as taxas de sindicalização
trevistados condena o absenteísmo no trabalho co- abrangentes, estimáveis ao redor da média européia
mo inadmissível, mas apenas 50% se declara alheio de 40% na segunda metade da década de 80, a sin-
ao fenômeno) e também os interesses são buscados dicalização juvenil é relativamente muito baixa, si-
numa lógica predominantemente individual, como milar à de países como França e Espanha, em que
fica evidente pelo fato de que somente 8,2% dos a taxa de sindicalização do conjunto aparece mais
empregados sob regime contratual participou nos baixa em absoluto, ao redor de 15%. Portanto, é
últimos 12 meses de atividades sindicais, ao passo preciso explicar o relativo distanciamento maior dos
que um percentual maior de autônomos (11,7%) jovens do sindicato em nosso país.
aderiu a atividades das respectivas associações de Em geral, foi verificado de forma confiável12
categoria. Numa lista de 15 organizações, grupos
associações e iniciativas coletivas, o sindicato apa-
rece exatamente no último lugar no interesse dos 12 Cf. Accornero (1992).

124 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


O trabalho como escolha e oportunidade

que os sindicatos na Itália permaneceram estranhos balhadores, inclusive porque estes têm sido procura-
ao segundo milagre econômico da década de 80, o dos de forma eficaz recorrendo a estratégias indi-
que permitiu aos jovens entrar no mercado de tra- viduais, bem mais que coletivas.
balho. O sindicato de fato defendeu sempre o em-
prego das grandes empresas, onde a contratação de Referências bibliográficas
jovens foi marginal nos últimos 10 anos e viu o de-
senvolvimento da pequena empresa dispersa e do ACCORNERO, A., (1992). La parabola del sindacato. Bo-
terciário como uma vitória das tendências desre- lonha: Il Mulino.

guladoras e neo-conservadoras do capital. CAVALLI, A. e DE LILLO, A., (1988). Giovani anni 80.
Igualmente nas grandes fábricas, a represen- Secondo rapporto IARD sulla condizione giovanile in
Italia. Bolonha: Il Mulino.
tação sindical de base permaneceu muito tempo im-
permeável à troca da força de trabalho, por causa CENSIS, (1992). 26 Rapporto sulla situazione sociale del
Paese. Milão: F. Angeli.
de uma incapacidade generalizada de renovar os
conselhos de delegados, os quais ficaram por mui- CERI, P. (org.), (1988). Impresa e lavoro in trasformazione.
Bolonha: Il Mulino.
to tempo como expressão dos segmentos anciãos da
força de trabalho. Assim, não causa surpresa que CHIESI, A. M., (1990). I lavoratori dipendenti lombardi.
Strategie di mercato e azione collettiva. IRES/PAPERS,
os jovens de nossa amostragem associem, no grau
Collana Ricerche, 27.
de confiança concedido, a imagem do sindicalista
EURISKO, (1993). International Social Survey Program. Gli
àquela, bastante deteriorada, do funcionário esta-
attegiamento verso il lavoro. Social Trends, 59.
tal, da classe política e dos membros do governo 13.
ISTAT, (1992). Rilevazione delle forze di lavoro. Bollettino
Os sindicatos se colocaram tradicionalmente obje-
Mensile di Statistica, 12.
tivos concretos de tutela do salário, de redução do
MINISTERO DEL LAVORO, (1992). Lavoro e politiche
horário e de melhoria das condições de trabalho e
dell’ocupazione in Italia. Rapporto 1990/91. Roma:
nestes campos obtiveram, no passado, resultados
Istituto Poligrafico dello Stato.
significativos e amplo consenso das bases. A pesqui-
sa mostra que os jovens não são insensíveis a tudo
isso, pois as taxas de sindicalização aumentam sig-
nificativamente entre aqueles que partilham uma
concepção instrumental do trabalho. Mas é também
verdade que, conforme foi dito, tal concepção ten-
de a ser substituída pelo trabalho enquanto opor-
tunidade de realização14. Sobre tal objetivo os sin-
dicatos ainda não souberam oferecer nada aos tra-

13 Diante da pergunta sobre o grau de confiança


concedido a 13 diferentes instituições e figuras sociais,
o sindicalista ocupa apenas o décimo lugar.
14 Por exemplo, a taxa de sindicalização dos tra-
balhadores dependentes que consideram mais importan-
te o salário e as condições de trabalho supera 10%, ao
passo que entre os jovens que buscam sobretudo ocasi-
ões para aprender a exprimir as próprias capacidades,
a taxa de sindicalização cai abaixo de 5%.

Revista Brasileira de Educação 125


Juventude temporera
Relações sociais no campo chileno depois do dilúvio

Gonzalo Falabella
Corporação Mancomunal

Tradução de João Carlos B. Alves de Lima

Este trabalho se organiza em torno de três hi- moderno que surgiu no campo chileno e o caráter
póteses que se relacionam: a) o caráter das trans- da reestruturação da economia, que exige enorme
formações vividas no Chile, particularmente no se- flexibilidade nas relações de trabalho e que, justa-
tor agro-exportador, e o jovem rural moderno que mente, é uma das características principais destes
dali surge; b) o tipo de ação estatal e social que se jovens, particularmente das mulheres. Cabe assina-
desenvolvem em vista das características deste no- lar que no Chile a reestruturação que teve início há
vo personagem; e c) o perfil particular destes tra- mais de 20 anos, está concluída e abarcou também
balhadores e a organização e movimento social que, o Estado, a Sociedade e a Cultura em seu conjun-
em conseqüência, deles surgem1 . to, diferentemente de outros países onde este pro-
cesso é recente e basicamente econômico. No cam-
Jovens Temporeros2 e a po chileno a profunda reestruturação que resultou
Reestruturação Econômica da contra-reforma agrária e o fomento das expor-
tações horti-frutícolas e florestais têm correspon-
A hipótese central desta seção sustenta que há dência com a profundidade da mudança social vi-
uma correspondência entre os jovens deste mundo vida pelo setor agrário.3
Os jovens são, por sua idade e circunstâncias
1 O marco mais amplo dentro do qual se desenvolve de trabalho e vida, mais maleáveis e permeáveis a
este trabalho se encontra em Gonzalo Falabella, (1993), esta profunda flexibilização de sua existência, em
“Reestructuración y respuesta sindical: la experiencia en
Santa María, madre de la fruta chilena”, em Revista de Eco-
nomia y Trabajo, Nº 2, Segundo Semestre. 3 Ver, Falabella, G. (1994), “Temporeros y Campe-
2 Temporero: trabalhador rural que encontra serviço sinos en América Latina. Podán reorganizarse? Cómo?”,
só em algumas épocas do ano e trabalha sem vínculo empre- trabalho apresentado no Seminário “Social Change in Latin
gatício formal. A realidade brasileira, tem no “bóia-fria” o America. Towards the year 2.000”, Universidade de Ma-
seu equivalente. (N.T.) ryland, College Park, USA, 8 e 9 de abril.

126 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Juventude temporera

particular das relações trabalhistas trazidas pela tinue trabalhando com um mesmo contratista ou
economia exportadora. Um bom indicador da pro- com uma mesma empresa de um lugar para outro.
fundidade da flexibilização ocorrida é o fato de os A vida social chega assim a sua mínima expressão.
contratos de trabalho temporários no setor frutícola No setor produtor de beterraba esta situação
serem de uma a três semanas, por empreitada, por era mais estável devido ao caráter anual do cultivo.
tipo de fruta e, muitas vezes, em distintas proprie- Inclusive o trabalho mais intensivo não se dava na
dades. Isto se dando ao longo de uma temporada época de colheita, no inverno, mas durante a roça-
que dura de 4 a 6 meses cada ano, tendo o traba- gem, no verão. Também neste setor se constatava a
lhador de em seguida deslocar-se para outro traba- desestruturação da vida social — embora não no
lho, muitas vezes em outra região. Todavia, esta nível encontrado no setor florestal — isto por que
grande maleabilidade, não impede que a relação de aos “trateros”7, migrantes de outras zonas, não se
trabalho com o produtor ou packing 4 dure muitas permitia residir na propriedade com suas famílias,
vezes vários anos. temendo o patrão que surgisse uma organização sindi-
Em 1985-1987 realizei um estudo nos três se- cal ali, como ocorreu no passado. Surgiu assim um
tores onde o trabalho temporário se implantou em mercado de trabalho local baseado nestes migrantes,
toda sua profundidade: o florestal, o produtor de que lhes permitiu negociar individualmente suas con-
beterraba (principal setor do mercado interno) e o dições de contratação8. Havia migrantes das zonas
frutícola5. Em relação à profundidade da reestrutu- mapuche, pré-cordilheranas e costeiras, homens sós,
ração, à desarticulação da vida social e exigência de amontoados em “coletivos” dentro das proprieda-
flexibilidade do trabalhador, a mais extremada era des, como fizeram anos atrás os “torrantes”9.Isto lhes
a do setor florestal. Nem sequer existia ali uma re- possibilitava, ao menos em parte e enquanto dura-
lação direta entre as empresas e os trabalhadores, já va o contrato — às vezes por até um ano — recons-
que ela se dava exclusivamente através de contra- tituir sua vida social, deslocada pela distância de suas
tistas 6. Estes intermediários das relações trabalhis- famílias, povoados ou bairros de origem.
tas eram eles mesmos temporeros, já que as tarefas No setor frutícola, pelo contrário, surgiram mer-
básicas no setor florestal duram três meses, mais ou cados locais de trabalho estruturados com a popu-
menos, cada uma (plantações de inverno, colheita lação local, nos Vales do Norte e Centro do país —
— ou seja a derrubada ou roçagem — e construção com exceção dos extremos de Curicó e Copiapó10
de aceiros — a limpeza dos limites do bosque durante —, ainda que a demanda de trabalho não ultrapas-
o outono). No tipo de produção em questão, em que
se trabalha intensamente por 15, 20, 25 anos, o gru-
po de trabalho vai mudando de contratistas, de re- 7 Tratero: temporero do setor produtor de beterraba.
gião e de empresa a cada três meses. O resultado é (N.T.)
que nem sequer existe um mesmo coletivo que con- 8Falabella, G. (1970), “Desarrollo del capitalismo y
formación de clase: el torrante en la huella”, em Revista
Mexicana de Sociología, Nº 32:1.
4 Packing: na cadeia de produção da fruta, é a seção 9 Torrantes: denominação dada aos trabalhadores agrí-
de acondicionamento e empacotamento das frutas após a colas temporários até 1973, período anterior ao golpe mi-
colheita. (N.T.) litar que derrubou o governo Allende. (N.T.)
5Falabella, G. (1990), “Trabalho Temporal y Desor- 10 Rodríguez, D. e S. Venegas (1990), De Praderas a
ganización Social”, em Proposiciones, Nº 18. Parronales, GEA/Uneversidad de Humanismo Cristiano,
6 Contratistas: são arregimentadores de trabalhado- Santiago do Chile; e Venegas, S. (1992), Una gota al dia...
res temporários para as propriedades de produção agríco- Un chorro al año. El impacto social de la expansión fru-
la; têm seu equivalente na realidade do campo do Brasil na tícola, GEA/Universidad de Humanismo Cristiano, Santia-
figura do “gato”. (N.T.) go do Chile.

Revista Brasileira de Educação 127


Gonzalo Falabella

sasse os seis meses, diferentemente dos setores flo- além dos 3 meses que dura a poda— durante 10, 12,
restal e da beterraba. Também, em contraste com 15 anos. Em geral os grupos vão se repetindo ano
estes dois últimos setores, aqui existiam povoados após ano e com eles o fluxo de cumplicidades entre
rurais ou cidades relativamente importantes ao re- estas mulheres. Nos packings de noite trabalham
dor dos vales frutícolas, que vão desde o Huasco ao quase somente mulheres, só com a presença de um
Cachapoal. Em conseqüência, neste setor a desestru- capataz, sem o patrão. Foi surgindo ali uma cultu-
turação social era bem menor, existindo, ademais, ra e perspectiva trabalhista feminina. Suas deman-
uma proximidade entre o lugar de trabalho e o de das como assalariadas e um sentido de dignidade de
residência. Sem dúvida, o tipo de trabalho exigia uma setor de ponta (por trazerem as divisas ao país e não
flexibilização bastante profunda também, porque a serem remuneradas de forma equivalente —”produ-
labuta era muito intensa e durava até 6 meses. Nos zimos em dólares e ganhamos em pesos”—) se mes-
outros 6 meses era preciso migrar para os vales onde clou durante anos com suas reivindicações de gêne-
não existiam estes mercados locais, como é o caso ro e de mães, devido às tensões decorrentes de terem
de Copiapó, o que desorganizava novamente a vida abandonado os filhos para poderem trabalhar. Isso
social, já desorganizada durante o verão quando o permite compreender sua peculiar cultura e espíri-
trabalho do homem se realizava durante o dia e o to rebelde, mais acentuado que o do homem. Em San-
da mulher durante a tarde e a noite, não podendo o ta Maria, depois de sete anos de vida sindical, de um
casal temporero encontrar-se nem sequer em casa: total de cinco, quatro dirigentes são mulheres.
ela chegava às duas horas da manhã e ele se levan- Por serem mais abertos à reestruturação, o ca-
tava às seis. Em Copiapó os temporeros migrantes, pital sempre busca os setores mais débeis e/ou mais
de Aconcágua e de outras regiões próximas a Santi- flexíveis, como os jovens e as mulheres, para impor-
ago, devem organizar sua sobrevivência como me- lhes o peso e o custo da transformação em marcha.
lhor puderem. Houve casos de violações de homens Mas há efeitos inesperados. As mulheres jovens de-
jovens em espaços sociais onde as mulheres são maio- senvolvem durante seu trabalho noturno, paralela-
ria, relatados por espantados dirigentes camponeses mente, “espaços de liberdade” em seus packings e
nacionais em visita à região! povoados. São horas em que dorme o patrão, dor-
As mulheres são maioria na fruticultura (52% mem o padre, o prefeito e o policial, dormem seus
—e 62% em Aconcágua—) e dominaram sem con- familiares, e o packing, o povoado e o bairro lhes
trapartida a vida do packing e dos povoados tem- pertencem. Esta cultura da liberdade no trabalho e
poreros durante as noites nos últimos 10 a 15 anos. no bairro, durante a temporada, permeia suas vi-
Surgiu ali uma cultura feminina bastante consolida- das dando um perfil peculiar a estas jovens mulhe-
da, destas “mães da noite” que trabalham durante res assalariadas da produção da fruta.
as horas da liberdade. Fala-se de protagonismo, não A reestruturação feita sobre os ombros dos
somente dos jovens mas também das mulheres, que jovens e mulheres não é impedimento para que exis-
cumprem o papel fundamental na produção, pois ta, paralelamente, um grau de satisfação curiosa-
realizam um trabalho mais especializado e manejam mente bastante alto no trabalho11, provavelmente
a fruta quando já está cortada e deve ser embalada
no mesmo dia, como ocorre no caso da uva. Em conse- 11 Díaz, E. (1991), Investigação participativa acerca
qüência, elas têm um controle decisivo sobre o pro- das trabalhadoras temporeras da fruta, O Canelo de Nos,
cesso produtivo, porque as mulheres manipulam a Chile. A resultados similares chegou a análise do “focus
group” de mulheres temporeras em um estudo feito pela
fruta em sua etapa mais vulnerável, e a fruta corta-
Corporação Mancomunal para a Fundação Ford: “Desar-
da e deixada ao sol é poder de negociação em suas rollo con la gente, con la naturaleza en el Valle de Aconcágua
mãos! Por isso mesmo, obtêm maiores salários que (sus provincias “temporeras” de San Felipe y Los Andes).
os homens. São até 3 meses de trabalho noturno — Informe de investigação não publicado, janeiro de 1995.

128 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Juventude temporera

(e quem sabe justamente), porque existem estes es- se da institucionalização da desconfiança, pois o
paços peculiares de liberdade. Isto ajuda a explicar sistema de relações entre trabalhadores e empresá-
a incorporação massiva desta população assalariada rios é muito precário, baseado em vínculos efême-
durante a temporada e o fato dela ser submetida a ros. Esta flexibilização extrema pode ser simboli-
condições de trabalho extremas e desregulamen- zada, como já fizemos nas páginas anteriores, pela
tadas. Ou seja, existe uma adequação entre o tipo duração dos contratos de trabalho: no setor da be-
de demanda de trabalho, a necessidade de flexibili- terraba são por “acordos” e praticamente ao dia;
zar suas relações e um espírito juvenil permeável à no florestal, são de três meses, incluindo até os con-
mudança, em particular aquele da jovem mulher tratistas, que também têm contratos de três meses;
temporera. e no setor da fruta, as contratações são no máximo
por três semanas, por acordos e por tipo e varieda-
Entre o fim do populismo e o Estado Liberal: de de fruta. Estes contratos curtos são absurdos,
relações catalisadoras, facilitadoras. porque os trabalhadores tendem a se repetir ano
após ano nos mesmos packings e propriedades, da
A segunda hipótese estabelece a adequação que mesma forma que é absurdo o trabalho por emprei-
existe entre a flexibilização das relações de traba- tada em um produto onde a qualidade é decisiva.
lho, este tipo de jovem trabalhador —permeável às A experiência da Casa do Temporero definiu-
mudanças econômicas e trabalhistas, com uma cul- se como “um lugar de encontro” deste mundo do
tura individualizada, de liberdade e autonomia— e trabalho juvenil disperso, através de programas que
o tipo de resposta que requer por parte das insti- iam ao coração de suas necessidades, como o cui-
tuições que trabalham com ele. Por exemplo, o pa- dado de crianças e informação sobre leis trabalhis-
pel catalisador do programa de cuidado de crian- tas para suas mães trabalhadoras, e festas durante
ças criado pela Casa do Temporero, e o papel fa- a colheita, já que não há nenhuma outra possibili-
cilitador de um Estado que contrata assessoria dessa dade de que se “encontrem” as pessoas durante o
instituição e expande o programa a sete vales fru- verão senão através destes programas. Quando se
tículas articulando empresários e temporeros, supe- trabalha 12 ou 14 horas durante 6 dias da semana
rando assim práticas de indiferença liberal, tanto não cabe ministrar cursos sobre a historia social ou
como de populismo assistencialista e clientelista. política do Chile. Isso se realizou através da Esco-
Oito anos atrás o autor que escreve este artigo la de Inverno, que ofereceu estes e outros cursos de
criou esta organização não governamental (ONG), caráter técnico. O objetivo foi abrir um espaço para
A Casa do Temporero, na Comuna de Santa Ma- a reorganização social de sujeitos muito individua-
ria em Aconcágua, a 80 km de Santiago e Valpa- lizados, e foi alcançado só na medida em que se
raiso, com o objetivo de responder ao processo de combinaram estratégias que cobriram demandas
flexibilização, que trouxe extrema desregulamen- individuais e sociais.
tação a estes trabalhadores. No estudo já nomea- Com efeito, após 3 meses do estabelecimento
do 12, por mim presidido, a situação se caracterizou da Casa, surgiu um sindicato de grande influência.
como “a institucionalização da desconfiança, da Nasceu de uma greve muito dura e vitoriosa no
incerteza e da desorganização social”, efeito da ação packing de uma das grandes exportadoras. As mu-
transformadora do regime militar em reação às po- lheres sentem o sindicato como algo próprio (“nós
líticas de um governo marxista. O resultado foi uma o formamos, porque vocês (os homens) não se atre-
reestruturação muito profunda da vida social. Fala- veram...”), diferentemente de tantos outros setores
produtivos, a ponto de hoje, como já observamos,
80% de seus dirigentes serem mulheres. O Sindicato
12 Ver nota 5. (N.T.) nasceu com um grande índice de sindicalizados,

Revista Brasileira de Educação 129


Gonzalo Falabella

chegando a representar 35% da força de trabalho condições de vida e trabalho. Do contrário conti-
temporera do município, enquanto que nos outros nuarão as práticas atuais em que a ação coletiva
municípios do país a sindicalização temporera não trabalhadora terá só uma existência pontual e efê-
chegava a 1%. Mas, no ano seguinte, as jovens mu- mera: por volta do 1 de fevereiro, que é o pico da
lheres dirigentes dessa greve, e núcleo central do temporada frutícola em Aconcágua, as mulheres
sindicato não foram reincorporadas ao trabalho. jovens param às 2 da tarde e a fruta cortada pela
Quando nós indagamos, como Casa do Temporero, manhã fica exposta ao sol. A cada minuto que passa
porque elas aceitavam esta repressão e não defen- os salários sobem 1% e trabalhadoras e empresá-
diam a organização, a resposta foi: “eu não vou me rios chegam a um acordo em não mais do que 20
humilhar frente a esse sujo; em qualquer packing minutos. Depois, não há mais o que conversar, o
do Vale me dão trabalho”. A nossa lógica foi de- coletivo se desmonta, a qualidade da fruta segue
fender a organização; a delas, respeitarem-se a si baixa, assim como sua participação nos mercados
mesmas. Primeiro está o “eu”, como dizem elas, e internacionais, e os temporeros seguem sem previ-
depois a organização: dois projetos, duas experiên- dência social, sem comida, transporte adequado,
cias, duas classes sociais (trabalhadoras e profissi- saúde, durante todo o ano, nem moradia adequa-
onais) que se encontravam e negociavam os termos da, menos ainda trabalho fora da temporada. Des-
de sua colaboração. ta maneira o sindicato não tem sentido. Este siste-
O relato reflete o diálogo de duas culturas, a ma de desproteção se institucionalizou durante os
dos anos sessenta, representada por nós, os profis- duros anos da ditadura, no qual o desemprego che-
sionais e “professores sindicais” que trabalhavam gou a mais de 30%.
no projeto, e a dos noventa, em particular a deste Estas variadas necessidades até hoje não en-
jovem, esta nova mulher jovem assalariada, surgida frentadas tornam necessário estabelecer, através de
da radical reestruturação flexibilizadora do traba- outra lei, um sistema de serviços com financiamento
lho na fruticultura de exportação. Outro exemplo provavelmente tripartite (por exemplo, que envol-
desta nova cultura emergente se deu quando se for- va municípios — para o que seria necessário pos-
maram os grupos de mulheres jovens no interior do tular um fundo nacional para este fim —, empre-
Sindicato, apoiados pelos programas de mulheres sários e trabalhadores), com contribuições iguais
da Casa do Temporero. O primeiro tema que sur- para cada um e a exigência de contribuição do ter-
giu nestes espaços femininos foi a reafirmação do ceiro quando as outras duas partes tenham levan-
pessoal: o “eu”, porque, em suas palavras, “se es- tado os recursos.
tou bem, a casa está bem, as crianças estão bem, a Realizamos um segundo diagnóstico depois de
família está bem”. uma primeira experiência de três anos e descobri-
Surgiu assim a necessidade de institucionalizar mos que, após o grande dilúvio, houve uma “Arca
no projeto profissional, na organização social e na de Noé” da qual saíram alguns animaizinhos que
relação do Estado com elas, novas formas que dêem começaram novamente a repovoar a terra, como
expressão ao eu individual e seu ser social. Anterior- está dito na Sagrada Escritura13. Assim, depois da
mente tudo era social e a pessoa se dissolvia na mas- atomização e desorganização social que se seguiu
sa perdendo seu perfil particular. Neste mundo emer-
gente o individual precede ao social. Mas também
13 “Organizarse y sobrevivir en Santa María. Demo-
colocamos, como Casa e como Sindicato, o direito
cracia social en um sindicato de temporeros e temporeras”.
à negociação coletiva dos temporeros antes da tem-
Trabalho apresentado no 47º Congreso Mundial de Ame-
porada, pois sem este direito a organização sindi- ricanistas, Nova Orleans, USA, 7-11 de julio de 1991. A ser
cal, embora exista formalmente, não terá sentido. publicado em inglês sob o título “Conspiracy spaces and
O sindicato existe para negociar, para melhorar as union democracy in Santa María”, Jonathan Fox, ed. MIT.

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Juventude temporera

à des-reforma agrária, reapareceu a vida social en- aqueles, seja para a temporada de Copiapó ou local-
tre essas mulheres dos packings e a população tra- mente. Assim, os temporeros chegarão, através da
balhadora da noite, e em seus povoados e bairros capacitação, em muito melhores condições para ven-
de periferia começou a reemergir uma nova vida der sua força de trabalho, podendo desenvolver, in-
social e a refazer-se uma nova convivência. Isso não clusive, formas coletivas de contratação. No curso de
ocorre na fruticultura de Copiapó, nem na zona alvenaria, por exemplo, também recebem formação
florestal, nem na zona da beterraba, pois não exis- em negociação coletiva na seção de leis trabalhistas.
tem ali mercados de trabalho locais instituciona- O programa Casa do Temporero foi concluí-
lizados em torno aos povoados temporeros, como do depois de institucionalizar um trabalho de duas
nos demais vales frutícolas. Mas onde existiam es- Confederações e três ONGs, as Corporações de De-
tes povoados e novos mercados de trabalho locais, senvolvimento, nestes três vales, incluindo nove se-
após 10, 12 e 15 anos, surgiu novamente a vida des, dois programas nacionais (cuidado de crianças
social, com novas lealdades, novas solidariedades, e capacitação na baixa temporada), duas leis nacio-
novas cumplicidades, ainda que o individual tenha nais (direitos básicos e corresponsabilidade dos pro-
primado sempre como eixo da vida social. dutores e contratistas) e a negociação coletiva em
Desde 1993 o Serviço Nacional de Capacita- discussão atualmente no Congresso.
ção e Emprego (SENCE), recolhendo a experiência Foi iniciado um novo ciclo no trabalho pro-
desenvolvida em Santa Maria, criou uma linha es- fissional com os temporeros, centrado agora na que-
pecial de capacitação para trabalhadores tempore- da do emprego de temporada e no desemprego de
ros durante a baixa estação nos três vales (Aconcá- pós-temporada. Para isso concluiu-se recentemen-
gua, Maipo, Cachapoal), onde se reproduziu a ex- te um estudo para a Fundação Ford acerca da crise
periência da Casa do Temporero, com o apoio do econômica do Vale de Aconcágua (o primeiro a re-
Governo da Noruega e o Ministério de Agricultu- converter-se, há mais de 15 anos, à fruticultura da
ra14. Isso permitiu começar a enfrentar deficiências uva de exportação), sobre os atores sociais e gover-
de capacitação próprias à fruticultura (com o cur- nos locais com que se conta para se fazer frente a
so sobre manejo integral de frutas, por exemplo), esta crise, e os caminhos de saída para ela. Quan-
assim como o desemprego de inverno (com os cur- do se atravessa o túnel de Chacabuco, aparece o
sos de alvenaria, hotelaria, secagem de frutas, ges- Vale como um só parreiral, o que traz dificuldades
tão de microempresas). quando cai o preço da uva, quando se saturam os
A partir dos egressos do curso de alvenaria mercados. Ainda mais que os parreirais concluíram
propusemos a criação de uma bolsa de trabalho. seus 15 anos de vida útil, sem que se tenha pago as
Esta foi uma forma de responder aos empresários inversões iniciais —o que os deixa sem acesso ao
que, acossados pelo surgimento dos contratistas que crédito— sem renovar os pomares; ademais, surgi-
os estavam despojando de sua mão-de-obra local e ram variedades de uva muito mais competitivas,
cativa, pediram que formássemos essas bolsas para produzidas em outros vales, para mercados mais
que os temporeros não se comprometessem com competitivos, com melhor tecnologia e fácil acesso
ao crédito (muitas vezes pelas próprias exportado-
ras de maior envergadura — que ao todo não são
14 Ver Venegas, Sylvia (1992), “Programas de apoyo mais de cinco).
a temporeros y temporeras en Chile” en Gómez, S. y Emilio O estudo —baseado em uma de suas partes em
Klein (eds.) Los pobres del campo, FLACSO/PREALC, San-
“focus groups” de produtores, empresários não fru-
tiago do Chile; e Ministerio de Agricultura-Chile (1995),
Proyecto centro de servicios para trabajadores de temporada
tícolas, camponeses produtores para exportação,
agrícola. Un esfuerzo mancomunado de apoyo a los tem- temporeros/as e trabalhadores permanentes— con-
poreros, Santiago do Chile. clui que a saída para a crise é multisetorial, e requer

Revista Brasileira de Educação 131


Gonzalo Falabella

um desenvolvimento diversificado com criação de mera redistribuição. Hoje em dia, sem perspectivas
emprego para o ano todo. A base de sustentação de de que a lei de negociação coletiva seja aprovada,
um tal projeto de desenvolvimento é assim uma no- com um Estado com poucos recursos, menor e mais
va institucionalidade, que inclua municípios com indiferente, com empresários que não têm, do ponto
maior capacidade de gestão própria, e que conte, de vista legal, quase nenhuma obrigação social, a
para isso, com um sistema de apoio profissional estratégia social deve combinar várias formas. Em
comum a eles. Ademais, formas acertadas de rela- primeiro lugar, deve-se resgatar o mutualismo, por-
ções entre as empresas locais com as Universidades, que se ninguém toma para si as responsabilidades,
as Corporações de Desenvolvimento, os Sindicatos as pessoas têm que se juntar para, elas mesmas, se
e os órgãos descentralizados do Estado; e com aces- fazerem responsáveis pelas suas necessidades bási-
so ao crédito, informação, treinamento, extensão, cas, como as Mancomunales do norte no século
experimentação e formas negociadas de acesso aos passado que nasceram recolhendo a cota mortuária
mercados. Em particular o projeto atual — da Cor- de seus filiados para não deixar insepultos seus com-
poração Mancomunal, a ONG herdeira da Casa do panheiros trabalhadores do salitre. Ali começa a
Temporero — se propõe formar, para estes fins, fun- ação solidária: na própria casa. No século passado,
dos de garantia, agências de capacitação e empre- o mutualismo se expandiu fortemente no Chile por-
go, banco de dados para o Vale e comprometer as que, justamente, havia uma economia internacio-
universidades em trabalhos de extensão na região. nalizada e um Estado liberal que pouco se impor-
Conclui-se esta seção estabelecendo que exis- tava com a sorte das pessoas, e empresários sem
te um novo tipo de ação estatal e estilo de ação so- nenhuma responsabilidade, nem exigências que so-
cial das Corporações de Desenvolvimento sem fins bre eles pesassem. Hoje em dia, o mutualismo é mui-
lucrativos, que se correspondem com o novo tipo to importante em certas áreas, inclusive como a saú-
de ator individual e social que nasce desta reestru- de e previdência social, como demostraram os tra-
turação econômica e flexibilização do trabalho tão balhadores bancários constituindo seu próprio sis-
profundas. tema privado de aposentadoria, a AFP.
Primeiro, este tipo de situação que descreve- São importantes, em terceiro lugar, que os tem-
mos convida a uma ação estatal facilitadora, ou seja, poreros, ante sua total desproteção, possam esta-
não populista, uma vez que ação populista o Esta- belecer sistemas de alianças com outros atores afins,
do toma para si o encargo do que só ele pode rea- como Corporações de Desenvolvimento, um Gover-
lizar e também do que outros podem fazer, invadin- no aberto e um Estado menor, mais descentraliza-
do toda a vida econômica, social, política e cultu- do, muito mais cooptável pelas organizações sociais.
ral. Sob as condições descritas, de pessoas muito Deve-se negociar com o Estado, obviamente, e sen-
individualizadas, este tipo de Estado não tem sen- do assim é necessário aliar-se com os diversos se-
tido, não serve. Tão pouco serve o Estado liberal, tores que estejam dispostos a apoiá-los a partir do
no qual cada um se arranja como melhor pode e não Estado ou em sua relação com ele, como ocorreu
é problema de ninguém o que sucede ao vizinho. no projeto apoiado pelos Noruegueses. Sobre a base
Nenhum deles é apropriado ao caráter do tempo- destas alianças com organizações e entidades esta-
rero e à imensidão de suas necessidades de todo tipo. tais afins será mais possível para os temporeros es-
Tem sentido, por outro lado, um Estado que se faz tabelecerem, em quarto lugar, negociações sociais
responsável, que acompanha, abrindo espaços para amplas com empresários e outros órgãos do Esta-
que a própria sociedade civil opere a transforma- do como no projeto proposto de serviços munici-
ção social. pais tripartites para temporeros.
Segundo, cabe recordar que, antes, a ação so- Estabelecidas estas amplas relações, é possível
cial era basicamente reivindicativa e centrada na e perfeitamente necessário desenvolver, finalmen-

132 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Juventude temporera

te, estratégias reivindicativas de luta social, basea- jovens15 do que com os movimentos sociais popu-
das em contradições de interesses legítimos e legi- listas latino-americanos, pré-diluvianos, nos quais
timados em seu mutualismo, alianças e negociações ocorria uma dissolução do indivíduo no coletivo,
amplas, sem as quais não haverá participação dos enquanto o caráter deste último muitas vezes se re-
temporeros nos frutos do desenvolvimento que eles sumia a de uma mera massa social manipulável.
trouxeram ao país. No tipo de movimento como o aqui apresen-
Do ponto de vista de uma Corporação de De- tado, a relação entre o individual e o social é mais
senvolvimento sem fins lucrativos, que apóia um fértil, mais interessante, com mais possibilidades, e
processo deste tipo, sua ação social se define como as condições de cooperação, ao menos enquanto
catalisadora de um desenvolvimento econômico dure o movimento, são bastante menores. O pon-
distinto, como no caso do projeto em andamento to a sublinhar é, no caso descrito, que a organiza-
de desenvolvimento diversificado com criação de ção dura tanto como o movimento, não mais de 20
emprego para enfrentar a crise atual do Vale de a 40 minutos. Poderia-se definir a relação como de
Aconcágua. “negociação” de cada membro no interior da or-
ganização ou movimento. Trata-se, precisamente,
Juventude temporera e movimento social. de uma concepção moderna de participação: “a luta
pelos termos da incorporação”, na qual os membros
Finalmente, só se esboçará a terceira hipóte- da organização mantêm um nível de controle do
se que guiou a exposição. Essa hipótese estabele- movimento durante seu desenvolvimento.
ce que a flexibilização das relações trabalhistas, Compreender este fenômeno é fundamental
que resulta da reestruturação econômica e que para entender o caráter da ação social destes jovens
produz um jovem mais personalizado e cidadão trabalhadores sob as atuais condições. E no caso
(com maior noção de direitos e dignidade), e que, que descrevemos, claramente o ordenamento é pri-
por sua vez, tem correspondência com um certo meiro o “eu”, depois “nós”. Esta articulação per-
estilo de relação estatal e de Corporações de De- mite relações frutíferas com um Estado facilitador,
senvolvimento (caracterizados como facilitador e que se faz responsável pela sorte de seus cidadãos,
catalisador, respectivamente), são sincrônicas, com sem inibir sua capacidade de ação coletiva; e se liga
um tipo peculiar de resposta coletiva por parte dos também com uma Corporação de Desenvolvimen-
temporeros. to dinâmica, catalisadora de um desenvolvimento
O movimento social que surge caracteriza-se com a organização, com o movimento social, com
pelo fato de cada indivíduo manter seu próprio per- as pessoas e com uma organização social que res-
fil, sem diluir-se no grupo, mediante sua adesão peita o espaço, os direitos e o controle social dos
mais ou menos consciente à ação coletiva; como membros em seu interior.
ocorre, por exemplo, em uma greve de mulheres em
um packing. São movimentos de indivíduos perso-
nalizados, movimentos de cidadãos nos quais per-
siste o indivíduo para além do fato de que se atue
pontualmente de forma coletiva. Este tipo de mo-
vimento e natureza da relação com seus membros
e o caráter deles se parecem muito mais com os mo-
vimentos culturais surgidos nos Estados Unidos e 15 Ver por exemplo, Jo Freeman, Social Movements
Europa a partir dos anos sessenta e setenta, como of the 60’s and 70’s (Nueva York: Longman, 1983) e Alain
os movimentos contra a guerra do Vietnã, os mo- Touraine, Antinuclear Movement, (Cambridge: Cambridge
vimentos antinucleares, ecologistas, de mulheres, de University Press, 1979).

Revista Brasileira de Educação 133


De estudantes a cidadãos
Redes de jovens e participação política

Ann Mische
Universidade de Columbia

Este artigo faz parte de tese de doutorado defendida na New School for Social Research e envolveu dois anos de
pesquisa de campo com várias organizações políticas e sociais de jovens brasileiros nos anos 90. Agradeço os
comentários de Helena Abramo, Mustafa Emirbayer, Fernando Rossetti Ferreira, Maria da Gloria Gohn, Carlos
Antonio Costa Ribeiro, Salvador Sandoval, Charles Tilly, e Harrison White.

Cinco anos depois das manifestações juvenis lutar verdadeiramente pela cidadania. É uma gera-
que animaram o país e ajudaram a derrotar um pre- ção que tem consciência de cidadania”1. Além do
sidente, esses eventos ainda inspiram surpresa e mis- heroísmo, essa declaração de Lindberg Farias, pre-
tificação. A convergência dramática dos “caras pin- sidente da União Nacional dos Estudantes na épo-
tadas” nas ruas das principais cidades brasileiras em ca, levanta uma série de perguntas críticas para a
agosto de 1992 tem gerado interpretações contra- análise da participação política da juventude. De
ditórias, desde as celebrações eufóricas do “renas- que consiste essa nova “consciência de cidadania”?
cimento” da resistência estudantil de três décadas De onde surge a nova identidade “cívica” entre os
atrás, até as manipulações cínicas dos meios de pro- jovens, e como se distingue da identidade estudan-
paganda, usando a “grife” dos caras pintadas para til dos anos 60? Dada a heterogenidade e dispersão
vender roupas, cursinhos, e computadores. Até hoje das várias “juventudes” dos anos 90, quais são os
há poucas tentativas sérias de analisar as origens e fatores que contribuiram, ainda que provisoriamen-
os impactos desses eventos em termos da especifi- te, para sua convergência no movimento pelo im-
cidade histórica dessa corte de jovens. Neste ensaio, peachment e, ao mesmo tempo, quais as contradi-
procuro examinar as manifestações de 1992 numa ções e tensões sociais que também se manifestaram?
perspectiva histórica, analisando tanto as mudanças Finalmente, quais são as perspectivas levantadas
nas relações sociais, quanto as reformulações polí- para a futura participação dos jovens, tanto em rela-
tico-culturais que influiram na participação dos jo- ção à consciência e aos projetos pessoais, quanto em
vens brasileiros nas últimas três décadas. relação aos grupos e movimentos que contribuem
Comecemos com as palavras de um dos jovens
que se destacou na época: “O movimento estudantil
hoje é outro (…) mudou pelos próprios estudantes. 1 Entrevista com Lindberg Farias no caderno Folha-
Eles despertaram e começaram a descobrir o que é teen, 28/6/93.

134 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


De estudantes a cidadãos

de diversas maneiras à sociedade organizada do “geração shopping center”, nascida durante a di-
país? tadura e criada entre as expectativas crescentes e
Para aprofundar a análise dessas questões, pre- disilusões sucessivas da lenta e conservadora tran-
cisamos de instrumentos adequados à complexidade sição à democracia. Quando a constituição de 1988
da dinâmica social que leva à formação de novas estendeu o voto para jovens de 16 anos, só a metade
identidades e projetos de ação. Na consideração da dos jovens esperados tirou o título de eleitor. Uma
“cidadania juvenil”, aponto para uma reformula- pesquisa na Folha de São Paulo, alguns meses an-
ção teórica da noção de identidade coletiva — e sua tes das eleições de 1989, indicou que embora a
relação com a estrutura ou a posição social — ques- maioria dos jovens aprovassem ideais como “liber-
tionando as visões estáticas e pré-deterministas que dade” e “participação”, muitos duvidaram se as
geralmente acompanham tais conceitos. Precisamos instituições democráticas brasileiras constituiriam
de uma nova ótica teórica capaz de englobar a mul- os melhores meios para realizar esses fins. Em 1991,
tiplicidade de relações e significações sociais, e o uma pesquisa da agência de publicidade McCann
caráter interativo e processual de toda experiência Erickson declarou que, “em contraste com seus pais,
social. Essa ótica deve visar tanto os mundos inte- que queriam mudar o mundo, a próxima geração
rativos dos jovens, quanto as relações emergentes está mais interessada em melhorar a própria vida…
entre os grupos organizados, e os pontos de conver- Os jovens de hoje não se interessam por qualquer
gência ou distanciamento entre os dois. Sugiro aqui tipo de manifestação social. Vivem para resolver
que a análise sistemática de “redes” interpessoais seus projetos pessoais.”3
e organizacionais, focalizando a “multivalência” de Devido à percepção predominante de apatia e
discursos e ações, pode abrir novos caminhos na individualismo juvenil, o inesperado entusiasmo
compreensão de como a cultura política é refor- político dos jovens em 1992 gerou amplo comen-
mulada através da ambiguidade conflituosa das in- tário e debate. Nos dias e meses depois das mani-
terações sociais. festações, diversos atores — a mídia, educadores,
representantes do governo, partidos políticos, mo-
A batalha das interpretações vimentos sociais e organizações estudantis — bata-
lharam para dar interpretações públicas dos even-
Quando milhares de jovens brasileiros — a tos imprevistos. Surgiram comparações nostálgicas
maior parte de classe média — saíram às ruas para com a oposição estudantil dos anos 60, que come-
protestar contra a corrupção no governo do pre- çou com a campanha pela reforma universitária e
sidente Fernando Collor de Melo, eles pegaram a se radicalizou ao longo de vários anos de confron-
maioria dos brasileiros (incluindo os próprios jo- to com a ditadura militar. O movimento estudan-
vens) de surpresa.2 Reportagens na grande imprensa til foi brutalmente esmagado em 1968 com a pri-
retratavam o ceticismo e disinteresse político da são, perseguição, morte ou exílio da maior parte das
lideranças, muitas das quais entraram em grupos
clandestinos de resistência armada durante os anos
70. A nostalgia dessa época influiu tanto na con-
2Segundo estimativas policiais, as primeiras manifes- fluência dos eventos como nas interpretações post-
tações em 11 de Agosto (o Dia dos Estudantes) mobiliza- hoc; não foi por coincidência que as manifestações
ram 10.000 em São Paulo. Foram seguidas por uma onda
de manifestações em várias cidades brasileiras, incluindo atos
de 20.000 a 40.000 no Rio de Janeiro, Brasília, Salvador, e
outras cidades. O movimento culminou em um grande ato 3 A pesquisa de McCann Erikson sobre os jovens bra-
no dia 25 de agosto, que mobilizou mais de 200.000 pes- sileiros faz parte de um perfil maior da juventude na America
soas em São Paulo. Latina. Jornal da Tarde, 30/5/91.

Revista Brasileira de Educação 135


Ann Mische

anti-Collor aconteceram no final da mini-série da do ramo distribuem banderinhas de partidos de opo-


Rede Globo Anos Rebeldes, que cativou a audiên- sição. Suspeita-se que alguns manifestantes, que não
cia jovem com seus personagens simpáticos e sua arredam o pé da frente do palanque, sejam contrata-
visão romântica do movimento de 68, e certamen- dos por políticos em campanhas. Um tom oficial en-
te serviu como inspiração nas semanas exaltadas de tra em choque com a espotaneidade juvenil. Rataza-
agosto de 1992. nas da política procuram aproveitar de manifestantes
Apesar da evocação da mémoria de 68, há for- ingênuos…
tes diferenças entre os dois episódios de mobilização Nos 60, a visita do banqueiro Rockefeller gerou
juvenil. Enquanto as mobilizações anteriores foram protestos: criticavam a presença no país do represen-
conduzidas num campo político polarizado entre o tante de imperialismo. Hoje, a FIESP está presente, e
Estado militar e a oposição estudantil, os caras pin- se o presidente da cadeia de lojas 7-Eleven ou a dire-
tadas foram atores privilegiados em uma ampla mo- toria da Nike visitarem o Brasil, periga serem convi-
bilizaçao da sociedade civil e política contra o go- dados a subir no palanque. Não há compromissos
verno Collor. Depois da revelação de uma extensa ideológicos vinculados aos padrões marxistas. Mas há
rede de patrocínio coordenada pelo assessor Paulo democracia. (Marcelo Rubens Paiva, Folha de São
César Farias, o governo ficou mais e mais isolado, Paulo, 19/9/92).
enquanto as bandeiras da moralidade pública e da
Embora não seja verdade que os compromis-
“ética na política” ganharam força na imprensa, nas
sos marxistas estivessem completamente ausentes
organizações civis e nos partidos de oposição. Isso
das manifestações pelo impeachment, outra diferen-
tocou numa grande reserva de frustração pública
ça notável em relação aos anos 60 foi a subordina-
com o clientelismo e a corrupção crônica do sistema
ção dos discursos tradicionais da esquerda à lingua-
político. Nesse clima, a participação entusiasmada
gem mais expansiva e universalizante de “cidada-
dos jovens nas passeatas pelo impeachment — orga-
nia.” O discurso do Movimento pela Ética na Po-
nizados pelas entidades estudantis, apoiados pelos
lítica focalizou a defesa das instituições democrá-
partidos e entidades civis, e divulgados pela gran-
ticas (as ditas “regras do jogo”), conseguindo man-
de imprensa — não pode ser chamada de “indepen-
ter a unidade provisória na medida em que deixou
dente” ou “espontânea”, pois eles receberam am-
de lado as questões mais conflituosas sobre o futu-
plas formas de apoio oficial e não-oficial, o que fica
ro social e econômico do país. Nesse sentido, os
evidente no ceticismo deste comentário jornalístico:
jovens estavam participando — pelo menos em teo-
ria — não como radicais ou conservadores, socia-
Nos anos 60, as passeatas eram na hora do “rush”,
listas ou liberais, membros de grupos políticos, ou
para chamar atenção e buscar adesão do povo: “Você
até como “estudantes”, mas como “cidadãos-em-
é explorado, não fique aí parado” (…) Saldo do dia:
formação”, tentando resgatar a “democracia-em-
estudantes mortos, policiais feridos e quebra-quebra
formação” da herança de corrupção e impunidade
nas ruas. À noite, o Reporter Esso falava do clima de
pública. Esse redirecionamento no sentido do dis-
guerra civil no centro da cidade, mas não mostrava
curso universalizante de cidadania é evidente na
imagens (…) Nos anos 90, a liderança sobe nos pa-
declaração de Marco Aurélio Chagas Martonelli,
lanques montados pela prefeitura e pelo governo do
presidente do histórico Centro Acadêmico XI de
Estado, a repressão ajuda a interromper o trânsito, as
Agosto da Faculdade de Direito da Universidade de
palavras de ordem viram jingles, os rostos estão pin-
São Paulo:
tados, e, à noite, o “Globo Repórter” dedica uma ho-
ra, em horário nobre, para nova “onda teen”. Retoma, assim, o ME seu papel político, repre-
Há um aparato que garante a segurança dos ma- sentativo dos interesses dos estudantes, reencontran-
nifestantes, de ambulâncias a bombeiros. Profissionais do caminhos para a concretização da cidadania no

136 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


De estudantes a cidadãos

país. O impeachment do presidente é ponto de honra que simplesmente não aceitam que seu país seja assal-
para qualquer cidadão, independente de qualquer ide- tado impunemente por corruptos. (Veja, 9/9/92)
ologia. Instituir-se a ética na política, não como pri-
Por outro lado, políticos e intelectuais da opo-
vilégio, mas como pressuposto básico para a demo-
sição, muitos deles lideranças estudantis no passa-
cracia, será o verdadeiro divisor de águas da História
do, viram na nova cidadania dos jovens o renas-
brasileira. (Folha de São Paulo, 15/8/92.)
cimento de uma consciência crítica mais ampla, e
Mas apesar do universalismo da noção de ci- a possível revitalização da atividade estudantil or-
dadania, a multivalência do conceito o sujeita a in- ganizada. Segundo José Dirceu, deputado federal
terpretações múltiplas e as vezes contraditórias. pelo PT em 1992 e presidente da União Estadual dos
Assim, atores diversos — desde militantes e inte- Estudantes de São Paulo em 1968,
lectuais da esquerda até políticos conservadores e
A CPI do PC desvendou para a juventude um
comandantes militares — puderam fazer afirma-
quadro cruel: o estado de decomposição moral de nos-
ções entusiasmadas sobre a “nova cidadania” dos
sas elites e os sinais de desagregação social que nosso
jovens, porém com implicações divergentes. Por
país enfrenta. A juventude reage com indignação e
exemplo, o coronel Erasmo Dias, deputado esta-
exige punição, apóia o impeachment e pode ser o esto-
dual pelo PDS e ex-secretário de segurança públi-
pim da mobilização contra Collor (…) Em sintonia com
ca (que comandou uma violenta invasão da PUC-
a juventude, jogando um papel importante nas mobi-
SP em 1977, na qual dois mil estudantes foram
lizações a favor do impeachment, o movimento estu-
presos), declarou seu forte apoio ao movimento de
dantil pode se reorganizar e assumir seu papel políti-
1992:
co institucional. (Folha de São Paulo, 15/8/92)
A sociedade precisa unir-se para dar um basta Na mesma linha, as lideranças das entidades
à atividade criminosa no governo federal. O povo in- estudantis, embora se esforçando para parecer apar-
dignado deveria fazer uma tomada do Planalto, como tidárias e representativas de amplos setores da ju-
foi a tomada da Bastilha. ventude, celebraram a emergência de uma nova
Porém, o coronel Dias também procurou sub- politização entre os jovens que indicava seu maior
dimensionar o potencial político do movimento, desejo de participação política. Nas palavras de
contrariando a interpretação de que as manifesta- Lindberg Farias, então presidente da UNE e mili-
ções juvenis foram ligadas ou coordenadas por gru- tante do PC do B,
pos organizados da esquerda: É uma juventude politizada, eles foram os pri-
meiros a ir às ruas defender o impeachment. Essa é
Esses grupos, de cuja probidade eu duvido, já
uma bandeira extremamente política. A politização
não têm força para organizar o que quer que seja.
dessa juventude se dá no processo, nas ruas, queren-
(Estado de São Paulo, 24/8/92)
do participar. Aí é que vai aprender a resgatar os va-
Numa linha parecida, a grande impresa enfa- lores democráticos. (Folha de São Paulo, 31/8/92).
tizou o caráter apartidário do movimento, focali-
Em contraste marcante com o minimalismo
zando a falta de experiência política e a indignação
político e a indignação puramente “ética” dos co-
espontânea dos jovens, como na seguinte reporta-
mentários conservadores, as entidades estudantis —
gem da Veja:
lideradas por jovens militantes de partidos da es-
Na verdade, a quase totalidade dos estudantes querda — tentaram ligar a participação de estudan-
que tomaram a Paulista não pertence a nenhum par- tes “como cidadãos” a uma crítica mais ampla da
tido e jamais participou de uma reunião política na injustiça social, da crise econômica, e da política
vida. Eles marcharam, e continuarão marchando, por- neo-liberal do governo Collor:

Revista Brasileira de Educação 137


Ann Mische

Descontração, irreverência e rebeldia tomaram tas de classes sociais, que reduzem a ação e os inte-
conta das ruas. De cara pintada a juventude demons- resses do jovem à sua posição nas relações de produ-
trou estar disposta a construir um país diferente, li- ção. Sem subestimar os efeitos reais de normas e de
vre desta quadrilha que assaltou o Palácio do Planal- classes sociais, precisamos de outros instrumentos
to (…) Uma crise que vai além da falta de ética, da de análise mais flexíveis, capazes de compreender
moral dos bons costumes, e que ameaça a própria exis- o dinamismo, a contingência, e a multiplicidade das
tência do país, das instituições, de cada um (…) É fo- experiências e interações sociais. Para entender as
me, recessão, arrocho, desemprego, impunidade. No mudanças históricas que levaram os jovens da identi-
país de abundância, o povo e a juventude no maior dade participativa forte de “estudante” nos anos 60
sufoco, tudo se faz para manter o plano “neo-liberal”, à nova identidade, complexa e contraditória, de “ci-
o plano de desmantelamento do estado público (…) dadão” nos anos 90, é necessário analisar as trans-
Continua a rebeldia característica de juventude. A ca- formações nas redes interpessoais e organizacionais
pacidade de nos revoltarmos frente à injustiça. (Pan- nas quais os jovens se encontram, e como as estru-
fleto de UNE/UBES, 8/92). turas diferenciadas dessas redes influenciam na ar-
ticulação de projetos pessoais e sociais.
Com interpretações tão contraditórias sobre a
A noção de “identidade” em si já coloca uma
participação dos jovens nas manifestações de 92, a
série de dificuldades teóricas. O problema princi-
compreensão dessa “nova cidadania” apresenta um
pal é como reconciliar as pressuposições estáticas,
desafio para a pesquisa e a análise. Entre o espon-
categóricas e substancialistas da palavra com uma
taneísmo dos conservadores e a exaltação dos gru-
visão dinâmica, processual e interativa. Um comen-
pos organizados, como poderemos medir as verda-
tário de Alberto Melucci, teórico dos “novos mo-
deiras dimensões desse momento de participação
vimentos sociais”, aponta para as tensões ineren-
juvenil? Não queremos tampouco cair no ceticismo
tes ao conceito: “A palavra ‘identidade’ é insepa-
de atribuir o fenômeno dos caras pintadas somen-
rável da idéia de permanência, e por isso pouco ade-
te à manipulação pela mídia ou pelos partidos po-
quada para a análise processual que estou defenden-
líticos. Se existiu manipulação (de vários lados),
do...” (Melucci, 1994). Na tentativa de achar uma
também houve uma experiência orgânica importan-
saída parcial para esse dilema, alguns pesquisado-
te, indicativa de mudanças estruturais e culturais,
res de movimentos sociais estão incorporando o
tanto nas vidas e perspectivas dos jovens, quanto
trabalho recente da análise de redes (“network ana-
na organização social e política da sociedade bra-
lysis”) que enfatiza o caráter relacional — em vez
sileira. Porém, uma análise dessas mudanças requer
de puramente categórico ou atribucional — de iden-
uma reformulação teórica do vínculo entre as rela-
tidades, baseadas em redes sociais (Wellman e Ber-
ções sociais e a dinâmica cultural da formação de
kowitz 1988; White 1992; Emirbayer e Goodwin,
identidades e projetos.
1994). Por exemplo, Doug McAdam (1986, 1988)
demonstra que os laços prévios entre estudantes
A formação de identidade: redes e projetos recrutados para o movimento de direitos civis nos
anos 1960, junto com a experiência prévia em ou-
Um dos problemas com as tentativas de expli- tros grupos organizados, são os fatores mais impor-
car a participação política de jovens é a utilização tantes que influem no compromisso político dos
de modelos estáticos e deterministas de influência jovens. Da mesma forma, Roger Gould (1991, 1995)
social. Tais modelos têm várias versões, desde a teo- demonstra que foram os laços múltiplos, tanto de
ria funcionalista de socialização, que explica o com- bairro como de grupos organizados, que influiram
portamento dos jovens como a internalização de no recrutamento para a Comuna de Paris em 1871.
normas pré-concebidas, até as análises mais estrei- Gould introduz o conceito útil de “identidade parti-

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De estudantes a cidadãos

cipativa”, referente à “identidade social que um periências que são relevantes naquele círculo, entre
indivíduo assume em uma dada instância de pro- a multiplicidade de conexões que poderiam ser fei-
testo social” (Gould 1995, 13, grifos no original). tas. Nesse sentido, não é apenas o atributo ou a
Ele demonstra que tais identidades podem ser re- posição social que determina a identidade, mas tam-
formuladas a partir de uma reestruturação das re- bém são as experiências e orientações coletivas den-
des de trabalho e comunidade; na França, por exem- tro de um dado contexto concreto que criam o po-
plo, havia uma mudança da identidade participativa tencial para formas diferenciadas de reconhecimen-
baseada em classe social na Revolução de 1848, to. Também implica que em qualquer momento,
para uma outra identidade na Comuna de 1871, muitas dimensões de relações — junto com laços ou
baseada na comunidade urbana. identidades possíveis — são desarticuladas, não re-
Embora esses trabalhos representem avanços conhecidas, e por isso relativamente invisíveis nas
significativos na compreensão do caráter múltiplo superfícies de interações públicas.
e interativo de identidades, eles oferecem apenas
uma solução parcial à problemática desse concei- Identidade como experimentação
to. Ainda sofrem de uma visão substancialista e de-
terminista, vendo identidade como algo pré-existen- Para entender a dinâmica temporal de identi-
te nas relações sociais, objeto dos “apelos” dos mo- dades como influência na ação coletiva, é preciso
bilizadores. Por isso não conseguem focalizar o pro- analisar como elas interagem com o ciclo de vida
cesso fluido e contingente da formação de identi- da pessoa. Como Erikson (1968) e outros mostram,
dades na interação dinâmica entre o “ciclo de vida” a juventude é um período sensível na formação de
da pessoa, a participação no movimento e as mu- identidades, em que as pessoas experimentam vá-
danças históricas da época. Para resgatar esse as- rias expressões públicas, procurando reconhecimen-
pecto, é necessário um conceito de identidade como to no meio de diversos “círculos” (ou redes): famí-
focalizador de projetos, dando direção às ações lia, colegas, escola, trabalho, atividades de lazer e,
além de definição aos grupos. às vezes, atividade política. Durante esse período de
experimentação, eles estabelecem compromissos (ain-
Identidade como reconhecimento da provisórios) com laços sociais e significados co-
letivos, que terão um impacto crítico nas suas op-
O primeiro passo nessa nova conceituação é ções ao longo da vida. Essas experiências também
a potencialização de identidade. O que normalmen- têm um impacto na emergência de novos “estilos
te entendemos com essa palavra são as qualidades geracionais”, como Mannheim demonstra: “Na ju-
agregadas de categorias sociais, como classe, gêne- ventude, em que a vida é nova, as forças de formação
ro, raça, ou nacionalidade. Na realidade, esses atri- estão apenas vindo a ser, e atitudes básicas no pro-
butos são simplesmente identidades possíveis, que cesso de desenvolvimento podem se aproveitar das
se tornam visíveis, efetivas e relativamente “fixas” forças moldantes de novas situações” (Mannheim
apenas quando reconhecidas publicamente por ou- 1952, 296). Embora a “estratificação da experiên-
tros, dentro do que Pizzorno (1986) chama de “cír- cia” esteja condicionada tanto por classe social, co-
culos de reconhecimento.” Esse conceito abarca a mo por grupos de idade, Mannheim enfatiza que
dimensão intersubjetiva de redes sociais: cada rede não é apenas a posição social que determina a emer-
representa um repertório mais ou menos delimita- gência de uma identidade geracional distinta, pois
do de reconhecimentos coletivos, que dão sentido é necessário que as experiências comuns estejam
e direção aos laços sociais. Redes diferentes — por sujeitas à reflexão consciente dentro de situações
exemplo, de trabalho, bairro, escola, familia — dão históricas de “desestabilização dinâmica.” Isso é
visibilidade social às dimensões específicas de ex- facilitado pela participação em “grupos concretos,

Revista Brasileira de Educação 139


Ann Mische

onde a estimulação mútua numa unidade próxima preensão da participação dos jovens brasileiros em
e vital inflama os participantes e os ajuda a desen- episódios diferenciados de ação coletiva? Utilizare-
volver atitudes integradas adequadas aos requisitos mos essas formulações na análise das diferenças
de suas posições comuns” (p. 307). históricas entre o movimento estudantil dos anos 60
e os caras pintadas dos anos 90, na tentativa de
Identidade como orientação entender como os jovens foram levados da identi-
dade participativa de “estudante” no movimento
Outra limitação do conceito de identidades é anterior a uma outra identidade participativa, qua-
uma tendência a focalizar seu aspecto delineador, lificada pela noção mais abrangente de “cidadão”,
quer dizer, as determinições de quem pertence ou não em 1992.
a uma dada categoria ou grupo. Dá-se pouca aten- Meu argumento básico é que o período ante-
ção ao papel de identidades como mecanismos de rior, de 1960 a 1968, serviu como um nexo para a
orientação, usados pelos atores para dar direção e concentração de identidade. A identidade forte de
forma à ação futura. Identidades não são apenas ca- “estudante” se tornou um prisma para múltiplas
tegorias sociais que em si dão estrutura e sentido às dimensões dos projetos emergentes dos jovens da
redes sociais, mas são mobilizadas de forma seleti- classe média universitária, dentro de uma dinâmi-
va, segundo os projetos emergentes dos atores, pe- ca radicalizante de oposição política. Isso não se
los quais eles tentam resolver conflitos e criar novas deve a uma lógica intrínseca ou “destino histórico”
oportunidades de ação (Emirbayer e Mische, 1994). de estudantes como categoria social, mas resultou
Não é apenas a pergunta “quem sou eu?” que os da estrutura específica de suas redes sociais, concen-
jovens procuram responder enquanto experimentam tradas principalmente na família e, mais importante
expressões de identidade, mas também “por onde ainda, nas universidades. Em contraste, o período
vou?” Embora as carreiras e trajetórias abertas aos posterior de reestruturação democrática, nos anos
jovens estejam estruturadas pelas posições de clas- 80 e 90, é caracterizado pela dispersão crescente das
se e pelas instituições sociais e políticas, os jovem redes juvenis. Os anos formativos dos jovens não
também têm algum espaço de escolha, manobra e, são limitados à familia e às universidades, mas acon-
às vezes, invenção de caminhos e direções de vida. tecem em contextos sociais, culturais e políticos mais
Experiências dentro de vários locais sociais criam as diversos, englobando um campo maior de possíveis
oportunidades e barreiras, esperanças e frustrações, (e às vezes contraditórios) projetos pessoais e cole-
que levam os jovens a experimentar diferentes futu- tivos. Por isso, a categoria de “estudante” não tem
ros possíves, com mais ou menos receptividade às a multivalência necessária para servir como um pris-
identidades e projetos pré-concebidos que são ofe- ma para a diversidade de projetos-em-formação dos
recidos pela sociedade. Muitas vezes as soluções en- jovens nos anos 90. Daí a necessidade de uma iden-
contradas implicam em uma fusão de múltiplos “pro- tidade mais abrangente (e ambígua), evidente no
jetos-em-formação”, cristalizados numa dada iden- universalismo formal de “cidadão.”
tidade social. Assim as identidades funcionam mais
como prismas do que como fronteiras, oferecendo Concentração de identidade: os anos 60
possibilidades para a fusão de projetos pessoais e
coletivos que atravessam círculos e redes sociais. Para acompanhar essa transformação, é neces-
sário prestar atenção à estrutura do mundo juvenil
Mudanças estruturais e culturais: 1960-1990 universitário nos anos 60. No início da década, esse
mundo estava no meio de uma reconfiguração im-
Como será que esse conceito mais dinâmico e portante, devido ao influxo da classe média no en-
interativo de identidade pode nos ajudar na com- sino superior do país. Embora a porcentagem dos

140 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


De estudantes a cidadãos

jovens no ensino superior continuasse minúscula em mento pelo jovem das expectativas familiares, e a
relação ao conjunto juvenil do país, esse setor se formação de “projetos de carreira” que melhor ex-
achava em plena expansão, aumentando de 27.253 pressam seus desejos de autonomia e participação
estudantes matriculados em 1945, para 142.386 em dentro do contexto do desenvolvimento nacional
1964, o que significa um crescimento linear anual do país:
de 12,5% (Cunha, 1983). Até 1971, esse número
Transformando-se em estudante e procurando
aumentou para 561.387, um crescimento de mais
dar sentido renovador ao seu projeto de carreira, o
de 500% ao longo da década dos 60 (Durham,
jovem está, ao mesmo tempo, reconhecendo os con-
1993). Segundo a análise de Luís A. Cunha (1983),
tornos de uma condição alienada, tal como se formula
essa expansão se deve a uma confluência de fato-
no plano da experiência familiar, e lutando para ultra-
res, incluindo, por um lado, o aumento da deman-
passá-la com os recursos de engajamento de que se
da pelo ensino superior entre a “nova classe média”,
dispõe como estudante, ou seja, como futuro profis-
para garantir acesso ao novo setor burocrático das
sional. (Foracchi, 1977, 299)
empresas privadas e estatais, e por outro lado, “o
atendimento da demanda de ensino universitário Enquanto os jovens passavam do círculo res-
por parte do Estado populista”, que removeu as trito da família para as redes mais complexas da
barreiras ao ensino superior enquanto aumentava universidade, a identidade estudantil se investia com
o número de vagas nas universidades públicas e gra- novas e autônomas significações. Desiludindo-se
tuitas (Martins, 1987, 35). Esse aumento de vagas com as condições inadequadas do ensino nas uni-
se deu por meio da “federalização” do sistema uni- versidades, que não foram equipadas para atender
versitário, que, começando no final dos anos 50, ao influxo dramático de jovens de classe média,
juntava os estabelecimentos isolados de ensino (par- muitos estudantes se juntaram às discussões e ma-
ticulares, municipais e estaduais) e criava grandes nifestações pela reforma universitária no início da
centros universitários, que começavam a ter um pa- década, que para muitos foi o ponto de partida para
pel importante na vida intelectual, cultural e polí- uma postura crítica e um engajamento maior. Na-
tica do país.4 quele momento, as universidades serviram como os
Dentro desse quadro, podemos traçar a cres- principais centros de intercâmbio intelectual, polí-
cente importância da categoria de “estudante” nas tico e cultural, constituindo uma concentração in-
suas passagens por diversas redes interpessoais e tensa de círculos de reconhecimento por parte dos
organizacionais, durante a tumultuada década de estudantes: “Quase toda a vida cultural e compor-
60. Num estudo revelador sobre os estudantes da tamental juvenil, mesmo quando não consubstan-
Universidade de São Paulo em 1962, Marialice Fo- ciada no movimento estudantil, é constituída e se
racchi descobriu uma alta incidência de estudantes expressa no espaço universitário: das discussões exis-
da primeira geração universitária, muitas vezes de tencialistas à bossa nova, passando pelo projeto de
familias de ascendência imigrante. Foracchi de- constituição de uma cultura nacional popular do
monstra como a ambigüidade da categoria de “es- CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE, pelos
tudante” serve como veículo tanto do projeto fa- festivais de música universitária e pela tropicália:
miliar de ascensão social, quanto do questiona- são culturas e estilos de vida identificados aos meios
universitários, vividos por universitários” (Abramo
1992, 85).
Essa rica interatividade nas universidades cru-
4
No meio da década de 60, 65% da matrículas eram zou, naquele momento, com uma nova configura-
em universidades, a grande maioria instituições públicas ção nas redes organizacionais dos militantes estu-
(Cunha, 1983, 94.). dantis. A direção do ME estava saindo de uma po-

Revista Brasileira de Educação 141


Ann Mische

larização, na década anterior, entre os grupos ude- organizada.5 Embora a sede da UNE no Rio de Ja-
nistas/liberais, que controlavam a UNE de 1950- neiro tenha sido invadida e incendiada, e as entida-
55, e os grupos vanguardistas da esquerda, hege- des estudantis autônomas banidas (substituídas pe-
monizados pelo Partido Comunista. O início dos los “diretórios” atrelados ao Estado), o movimen-
anos 60 foi marcado pela ascendência da juventu- to continuou a crescer durante os anos subsequen-
de católica, organizada primeiro na JUC e depois, tes. Como uma liderança estudantil comentou, “ho-
quando as lideranças se radicalizaram e sairam je, é mais fácil convencer um estudante de que ele
daquela entidade, na Ação Popular (Souza, 1994; deve ser contra a ditadura, do que era antes con-
Lima e Arantes, 1984). Essas lideranças consegui- vencê-lo que ele deveria ser contra o capitalismo”
ram se compor com diversos grupos da esquerda (Foracchi 1982, 63). O reconhecimento e aprendi-
marxista, formando o dito “grupão”, ao mesmo zado social dos estudantes, ocasionados pelas ma-
tempo que expandiam o apoio entre as bases estu- nifestações de massa e os conflitos com a polícia,
dantis, ajudando a superar a distância entre essas aguçaram tanto a crítica do Estado militar (e seus
bases e os grupos vanguardistas: “Melhor do que laços com o imperialismo capitalista), quanto a iden-
elas, as organizações católicas canalizaram a insa- tidade empolgante dos estudantes como “sujeitos
tisfação da juventude da classe média, e sensíveis da história”, engajados em projetos revolucionários
aos reclamos de um meio que muito bem conheci- de transformação social. Ao lado da radicalização
am, souberam levantar a bandeira da “Reforma da crescente dos setores militantes, se viu de novo uma
Universidade” (Martins 1994, 2). Nos anos que convergência de lutas específicas do meio estudan-
dirigiu a UNE, esse grupo ajudou a intensificar o til — como a crítica ao projeto MEC-USAID e a
intercâmbio político e cultural nas universidades retomada das bandeiras da reforma universitária —
por meio da UNE-volante, onde os diretores da com as lutas políticas mais gerais, contra a ditatura
UNE viajavam aos estados para discutir as refor- e a interferência norte-americana no desenvolvimen-
mas e mobilizar a “greve do 1/3” pela democrati- to do país. Além disso, o clima foi permeado pela
zação interna das universidades. Essas viagens fo- utopia social, a liberalização cultural e a alta serie-
ram dinamizadas pelas apresentações culturais do dade político-moral que caracterizou o movimen-
recém formado Centro Popular de Cultura (CPC to juvenil internacional que estava explodindo em
da UNE), que aumentaram a receptividade dos jo- várias partes do mundo.
vens aos mensagens políticas. Segundo João Ro- Para resumir, os contextos interpessoais, ideo-
berto Martins Filho, a participação maciça dos es- lógicos e políticos dos anos 60, vividos principal-
tudantes na greve de 1962 “cristalizou um mo- mente pelos jovens universitários, carregaram a iden-
mento da convergência entre a ‘vanguarda’ estu- tidade de “estudante” com significados múltiplos
dantil e a massa universitária” (Martins 1994, 2), capazes de ligar uma variedade de projetos-em-for-
embora a derrota da greve resultasse no deloca- mação. A “atualização” dessa identidade (para usar
mento do interesse da militância das lutas “espe-
cíficas” universitárias para a busca de alianças “po-
líticas” com setores operários e camponeses (Mar-
tins, 1987, 1994). 5 Alguns comentaristas argumentam que, diferente do
Depois do golpe de 1964, o movimento estu- movimento sindical e camponês, o ME sobreviveu inicial-
dantil (e a categoria de “estudante”) ganhou uma mente depois do golpe militar devido à posição ambígua dos
estudantes da classe média, e à ascendência, nos anos 1964-
nova forma de reconhecimento, através da dinâmica
66, de setores “liberais” à liderança estudantil em vários
do confronto com o Estado militar. Durante os pri- estados, onde no começo simpatizaram com o golpe, em-
meiros anos da ditadura, as universidades foram os bora logo em seguida ficaram disiludidos com a perda da
únicos espaços que restaram de oposição visível e democracia (Martins, 1987).

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De estudantes a cidadãos

o termo de Mannheim) e sua capacidade de crista- mo, 1992; Costa, 1993; Sposito, 1994). Segundo
lizar um “estilo geracional” emergente não eram Felícia Madeira, as décadas intermediárias dos 70
“inerentes” à posição de familia, classe, ou geração e 80 visavam “uma série de modificações que (...)
dos estudantes, mas dependia dos processos de apren- estenderam a identidade jovem para uma parcela
dizagem social que ocorriam em vários “círculos de maior da sociedade” — entre as quais se destacam
reconhecimento”, através de redes densas e concen- o rejuvenescimento (e monetarização) do mercado
tradas, ocasionando a radicalização de uma iden- de trabalho, o aumento das oportunidades de estu-
tidade que fôra, no início da década, relativamen- do, a penetracão dos meios de comunicação de mas-
te restrita e delimitada. sa, e a difusão do sistema crediário, facilitando o
acesso ao consumo para jovens das classes popu-
Dispersão de identidade: os anos 90 lares (Madeira,1986). “Ser jovem” não é mais equi-
valente a “ser estudante”; a identidade juvenil se
Três décadas depois do desmantelamento bru- desloca para fora das universidades, estendendo seu
tal do movimento estudantil dos anos 60, os jovens alcance além dos setores médios e abrangendo ou-
brasileiros enfrentam uma outra configuração, bas- tras significações, altamente ligadas ao consumo e
tante diferenciada, de seus contextos relacionais e aos “estilos” culturais.
culturais. Uma mudança crítica é que as universi- Ao mesmo tempo, o meio universitário viveu
dades — e o movimento estudantil — já não se cons- seu próprio processo de diversificação. De 1971
tituem como os centros da vida cultural e política para 1991, o número de matrículas no ensino su-
juvenil. Com a crise da esquerda, o fim da ditadu- perior cresceu de 561.397 para 1.565.056, embo-
ra como fator unificador e a abertura de espaços ra houvesse uma estagnação do crescimento durante
alternativos para participação política, o movimen- os anos 80 (Durham, 1993, 8). O excedente de de-
to estudantil perde seu monopólio na mobilização manda pelo ensino superior que começou a se ma-
juvenil. A diversificação da experiência da juventu- nifestar no final dos anos 60 foi absorvido em gran-
de, especialmente com a extensão da “cultura jo- de parte pelo setor privado, localizando-se com
vem” para jovens trabalhadores e das periferias, é maior frequência em faculdades isoladas, em vez de
confirmada por estudos recentes sobre os jovens universidades centralizadas6. Em 1990, das 918 ins-
brasileiros durante a “modernização conservadora” tituições de ensino superior, 749 eram estabeleci-
dos anos 80: mentos isolados, dos quais 582 eram particulares
(Durham, 1993, 10). As universidades públicas tam-
Descortina-se uma nova configuração do univer-
bém foram decentralizadas, exemplificado no de-
so juvenil: a crise do espaço universitário como signi-
mantelamento da Faculdade de Filosofia da USP na
ficativo para a elaboração das referências culturais, o
Rua Maria Antonia, que nos anos 60 foi sede de
enfraquecimento da noção de cultura alternativa como
uma intensa interatividade político e cultural; e sua
modo de contraposição ao sistema, e a emergência de
substituição pelas faculdades fragmentadas e isola-
uma intensa vivência, por parte dos jovens das cama-
doras da Cidade Universitária, que dificultam a or-
das populares, no campo de lazer ligado à indústria
ganização política.
cultural. (Abramo, 1994, 82)

Em contraste com os anos 60, os jovens ago-


ra passam seus anos formativos em redes mais dis-
6 A proporção de estudantes matriculados nas insti-
persas, formadas nas escolas públicas e particula-
tuições particulares subiu de 44.05% em 1961 para 61,30%
res, nos lugares de trabalho, nos “shopping cen- em 1991 (Durham, 1993); no início dos anos 90 a porcen-
ters”, nos clubes noturnos, nos bairros e ruas, e em tagem de instituições privadas establizou-se em torno de
outras espaços de lazer, cultura e sociabilidade (Abra- 75% do total (Sampaio, 1995).

Revista Brasileira de Educação 143


Ann Mische

Entre os estudantes dessas faculdades, as con- tidárias. Porém, no início dos anos 90 a PJ também
dições de trabalho e as redes de sociabilidade tam- se encontra em uma “crise” de reavaliação, distan-
bém se diversificaram. Numa pesquisa recente so- ciada da população jovem mais ampla. Mais recen-
bre universitários em São Paulo e Campinas, Ruth temente, outros grupos juvenis estão emergindo,
Cardoso e Helena Sampaio anotam que mais da desde os movimentos dos negros e homossexuais,
metade dos alunos pesquisados trabalham, uma ca- até as associações de área e as empresas juniores,
racterística que atravessa atributos como gênero e localizadas nos cursos universitários. Muitas vezes
classe social, embora varie significamente por cur- as redes dos movimentos, partidos, e outras orga-
so universitário (Cardoso e Sampaio, 1994). Des- nizações se cruzam, criando novos conflictos e opor-
ses alunos, 48% se socializam com mais frequência tunidades vindo da superposição de diferentes pro-
com pessoas fora da escola, embora 26% saiam jetos e estilos de intervenção. Essas tensões per-
com pessoas dentro e fora da escola, e apenas 12% meiam o campo político-juvenil nos anos 90, influin-
dão preferência aos amigos do meio escolar (Sam- do tanto nas relações entre os grupos, como nas di-
paio, s.d.)7 . Essa diversificação das redes de estu- ficuldades de atrair mais jovens para a participação
do, trabalho, e sociabilidade expõe os jovens a in- política organizada (Mische, 1996b).
fluências e pressões diversas, exigindo um certo jogo A partir dessa breve análise, vimos como as
de coordenação e segmentação entre os diversos redes interativas dos jovens — junto com os con-
envolvimentos. textos culturais-ideológicos para a formação de iden-
No meio dos grupos organizados, também se tidades — se diversificaram durante os anos 90,
vê uma complexificação marcante das formas de tanto para os militantes juvenis como para as juven-
participação social e política, embora essas redes tudes mais amplas. Para muitos jovens, a perplexi-
continuem a ser densas e entrelaçadas. Jovens com dade diante desse quadro foi intensificada pelas in-
algum interesse político agora podem escolher en- certezas e frustrações da década anterior de transi-
tre muitas formas alternativas de militância, inclu- ção democrática. Os jovens testemunharam as cri-
indo partidos políticos, movimentos populares, sin- ses e escândalos recorrentes do retorno ao gover-
dicais e anti-discriminatórios, organizações não- no civil, junto com as contradições de verem os dis-
governamentais e associações profissionais. Desde cursos e formalismos democráticos (incluindo uma
seu reaparecimento nas manifestações pela demo- nova constituição) ao lado dos vestígios de auto-
cratização no final dos anos 70, o movimento es- ritarismo. Esses vestígios foram especialmente visí-
tudantil tem se engajado num processo conflituoso veis para os estudantes na resistência de muitas di-
de reconstrução, embora ficasse politicamente mar- reções escolares aos grêmios estudantis e na repres-
ginalizado durante a maior parte dos anos 80. Nesse são às greves dos professores no final dos anos 80.
período, a Pastoral de Juventude da Igreja Católi- Ao mesmo tempo, viviam a ansiedade da inflação
ca começou a se destacar, focalizando os anseios e crônica, junto com uma recessão econômica que
esperanças das camadas populares, e formando qua- sufocou as aspirações de muitos jovens, de diver-
dros importantes de lideranças comunitárias e par- sas classes sociais. Esses fatores confluiram para
sustentar uma ambivalência forte sobre a política,
um ceticismo sobre a possibilidade de mudanças
institucionais e uma tendência à paralisia política.
7 É interessante notar que a preferência de sociabili-
Porém, essa ambivalência não significa neces-
dade varia de acordo com o grau de centralidade ou isola-
sariamente que os jovens fossem acríticos ou apá-
mento das escolas: nas universidades públicas, 20% saem
com pessoas das escolas, enquanto nas escolas isoladas pri- ticos. Aponta, por outro lado, para a falta de espa-
vadas esse número diminui para 12%, chegando a 5,4% nas ços centralizadores ou de identidades públicas uni-
universidades particulares (Sampaio, s.d.). ficadoras, capazes de transformar suas críticas so-

144 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


De estudantes a cidadãos

ciais — muitas vezes agudas — em ação coletiva. ticulações, embora as vantagens possam tomar a
Mas o potencial que poderia ser mobilizado para forma não-material de liderança ou status dentro
protesto social ainda estava presente; a simpatia, a das várias redes conectadas através deles.
indignação e o entusiasmo dos jovens poderiam ser No contexto brasileiro, uma ponte importan-
tocados de forma inesperada, como aconteceu em te se constróoi por meio do fenômeno da “militân-
agosto de de 1992. cia múltipla”, no caso de jovens que são simulta-
neamente lideranças no movimento estudantil, nos
Convergência e interlocução partidos políticos, nos grupos da igreja, ou em ou-
tros movimentos e organizações. Apesar das afir-
Embora essa análise das configurações juvenis mações da “autonomia” dos movimentos e protes-
explicasse a ressonância reduzida da identidade es- tos contra a “partidarização” das entidades, na ver-
tudantil nos anos 90, ainda não explica por que a dade, as redes de liderança são extremamente inter-
categoria de “cidadão” surgiu como alternativa efe- ligadas. Facções do movimento estudantil são inti-
tiva. Nem explica a dinâmica de articulação dessa mamente ligadas à participação em partidos e ten-
identidade no meio de uma convergência política dências de esquerda — um fator que não quero de-
inesperada e multifacetada. Para entender essa di- nunciar como falha-base, como fazem muitos ou-
nâmica no contexto da diversificação das redes ju- tros críticos, pois aparece quase como uma neces-
venis nos anos 90, precisamos examinar como a sidade estrutural dentro da complexa organização
articulação de identidades e projetos atravessa re- da sociedade civil e política dos anos 90, onde o
des distintas, tanto interpessoais como organizacio- engajamento nas “lutas institucionais” faz parte das
nais. Aqui é essencial o papel de interlocutores so- estratégias e repertórios dos movimentos sociais. Ao
ciais, com identidades múltiplas, posicionados no mesmo tempo, é importante reconhecer que o ca-
cruzamento de vários contextos sociais. ráter denso e entrelaçado dessas redes — onde os
Para entender esse processo, precisamos vol- militantes falam muito entre si e pouco para quem
tar à ideia dos círculos de reconhecimento: as iden- está fora — tem tido consequências negativas para
tidades se tornam visíveis apenas quando reconhe- o movimento. Contribui para a desilusão de mui-
cidas por outros dentro de locais específicos de inte- tos jovens com a política estudantil organizada e as
ração. As pessoas que servem como pontes efetivas entidades históricas do ME, que eles vêem como
são aquelas que podem evocar sua multiplicidade distantes de suas preocupações e aspirações. Com
de laços (e identidades) para serem “vistas” em uma efeito, os laços fortes e identidades restritas dos mili-
variedade de contextos sociais, e assim viabilizar tantes têm reforçado uma tendência ao auto-isola-
oportunidades para conexão e ação conjuntas de mento do ME, devido à falta de resonância com as
diversas pessoas ou grupos. Porém, essas conexões identidades mais dispersas dos jovens brasileiros.
não implicam necessariamente em uma correspon- Durante as manifestações pelo impeachment,
dência de objetivos entre todos os setores ligados, porém, alguns interlocutores novos entraram em
pois só funcionam porque atores desligados reco- cena que foram capazes de renovar tanto os víncu-
nhecem dimensões diferentes de si mesmos na iden- los fortes dentro do ME e da esquerda, quanto os
tidade multivalente da “pessoa-ponte”, que assim laços mais amplos com outros setores juvenis. Um
serve como um “prisma” para projetos diversos. Por exemplo marcante aparece na pessoa de Lindberg
isso, as ligações formadas são sempre ambíguas, Farias, que virou herói popular em decorrência das
experimentais e, às vezes, contraditórias, embora manifestações. Lindberg também foi militante do
possibilitem alianças provisórias e conjunturais. Co- PC do B, que controlara a direção da UNE desde a
mo qualquer intermediário, tais interlocutores po- reconstrução da entidade em 1979 (com exceção
dem também colher benefícios próprios dessas ar- dos anos 1987-1991, quando foi dirigida majori-

Revista Brasileira de Educação 145


Ann Mische

tariamente pelo PT). Por causa de suas múltiplas leves e alegres de participação social (embora essa
identidades públicas, Lindberg foi a figura ideal pa- mentalidade ainda pudesse levá-los a uma crítica
ra construir a ponte entre o movimento estudantil mais aprofundada das barreiras impostas aos jovens
tradicional, os projetos da esquerda, e as experiên- pelo sistema capitalista). De tal maneira, essa cor-
cias dispersas da geração “shopping center.” Em- rente tentava focalizar as novas aspirações e frus-
bora filho de ativistas políticos, um “socialista con- trações dos setores médios estudantis, nas escolas
victo” e uma militante comunista de muitos anos, secundárias e nas faculdades públicas e particula-
ele projetou uma imagem bonita e charmosa, com res. Nas outras alas da militância, incluindo alguns
um vocabulário jovem que ajudou a quebrar a es- setores do PT, surgiu uma discussão paralela sobre
tereotipia do militante chato e barbudo. Assim ele as novas preocupações dos jovens, não necessaria-
conseguiu se projetar para fora das redes militan- mente concentradas nas universidades, porém mais
tes, aparecendo nas manifestações (e na mídia) co- dispersas nos movimentos sociais e sindicais, e nas
mo figura simpática e inteligente na qual os jovens expressões culturais das periferias.
de classe média poderiam reconhecer suas própri- Enquanto tais discussões levaram muitos mi-
as experiências e aspirações. Como já vimos, Lind- litantes petistas a desvalorizar o engajamento no
berg conscientemente subordinou sua orientação ME, o PC do B manteve seu investimento na poten-
socialista, declarando que “como presidente da cialidade estudantil. Devido à sua tenacidade na
UNE, represento os interesses dos estudantes bra- disputa pelo controle das entidades estudantis, essa
sileiros e tenho posições mais amplas” (Folha de São corrente conseguiu colocar Lindberg numa posição,
Paulo, 31/8/92). Nas passeatas, como nas inúme- em 1992, que o permitiu desfrutar de uma explo-
ras entrevistas, ele abraçou seu papel de pessoa- são política que nem ele nem o partido previam. À
ponte, enfatizando a convergência de diversos se- frente da entidade histórica dos estudantes, e com
tores de jovens: a ajuda da militância partidária, Lindberg cresceu
como liderança dentro de seu papel múltiplo, como
Eram 20 mil jovens. Diversos os rostos. Desde
porta-voz emergente do movimento, articulador su-
os que usavam camisas de Che Guevara até os fre-
prapartidário das lideranças estudantis e mobili-
quentadores de shopping centers. Estudantes pesqui-
zador-relâmpago da logística e infraestrutura das
sadores, bolsistas do CNPq, junto a metaleiros e ska-
passeatas. Especialmente notável foi uma colabora-
tistas. Todos, revoltados, pediam o impeachment do
ção entre as direções da UNE e do Centro Acadê-
presidente. Foi a passeata do grito indignado de uma
mico XI de Agosto, que sediou o ato que fechou a
juventude que acredita na mudança no Brasil. (Folha
primeira passeata, forjando uma aliança provisória
de São Paulo, 15/8/92)
entre os comunistas e os social-democratas em nome
Para não supervalorizar o papel do indivíduo, do projeto mais amplo da defesa da cidadania.
é importante lembrar que Lindberg não agiu sozi- Por outro lado, se Lindberg, junto com a UNE
nho, nem em relação a sua própria corrente políti- e os partidos políticos souberam aproveitar e cana-
ca, nem em relação às outras forças ativas no mo- lizar a conjuntura emergente, eles também foram
vimento pelo impeachment. A própria eleição de usados por atores e forças distintas — e muitas vezes
Lindberg como presidente da UNE se deve a uma alheias — a seus próprios projetos políticos. Já vi-
mudança explícita de estratégia dentro do ME, que mos como a grande imprensa, os políticos diversos,
estava sendo articulada nas várias forças políticas e até os ex-representantes do Estado militar, con-
desde o final dos anos 80. Por exemplo, a juventu- correram para oferecer seus elogios aos jovens ma-
de do PC do B começara a destacar uma “nova men- nifestantes, embora enfatizassem a visão esponta-
talidade” entre os jovens, que estaria mais voltada neista e puramente ética da cidadania. O papel da
para cultura, esporte, ecologia e outras formas mais imprensa foi especialmente importante aqui, pois

146 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


De estudantes a cidadãos

Lindberg deve sua extraordinária projeção social em criminatórios (dos negros, mulheres, povos indíge-
grande parte à sua “adoção” como menino-dos- nas, homosexuais, etc.), até sua recente apropria-
olhos da imprensa, que aumentou mil vezes o po- ção pelos setores consumidores e empresariais, re-
der “prísmico” de sua posição multivalente. A mí- vela sua capacidade de veicular projetos divergen-
dia também operou no sentido de possibilitar que tes dentro da linguagem universalista de direitos e
milhares de jovens, em redes dispersas e desorga- responsibilidades. Assim, coloca-se uma questão
nizadas, soubessem com antecedência do percurso ideológica de fundo: nesse cruzamento, quais pro-
das manifestações, e assim pudessem se juntar a jetos substantivos estão ganhando campo em rela-
partir de mil focos informais nas escolas, nos bair- ção à futura direção política e econômica do país?
ros, nos locais de trabalho e de sociabilidade. O As divergências nesse ponto aparecem no meio dos
descaso dessa mesma mídia com os projetos maio- grupos organizados, e se evidenciam na falta de uni-
res do ME se evidenciou no ano seguinte, quando formidade na adoção da identidade cívica: em al-
foi lançado um ataque feroz contra o “sectarismo” guns contextos, os jovens abraçam essa identidade
e a “visão antiquada” que a imprensa visava nas com conviccão e energia, embora em outros, te-
entidades estudantis. nham bastante ambivalência e disputa ideológica
sobre o alcance e os limites do conceito. Porém, dois
Reconfigurações emergentes aspectos do universalismo do conceito de “cidada-
nia” merecem mais atenção: como essa linguagem
O ponto de partida da análise desenvolvida está sendo mobilizada para articular conexões com
aqui é a necessidade de reexaminar a participação setores mais amplos da juventude, como vimos aci-
juvenil a partir da intersecção de duas óticas dife- ma; e talvez mais criticamente, como o discurso
rentes: 1) da estrutura relacional e cultural dos mun- cívico também serve para estabelecer parâmetros
dos juvenis num dado momento histórico, e 2) da éticos de comunicação interna entre os próprios
estrutura dos grupos organizados, que serve, às ve- grupos organizados, dada a heterogeneidade e com-
zes de maneira ambígua e contraditória, como “pon- plexidade do campo político-juvenil nos anos 90.
te articuladora” na fusão de projetos pessoais e cole- Como as redes organizacionais juvenis estão
tivos. Contra os perigos gêmeos do espontaneismo se reconfigurando, em decorrência das manifesta-
e iluminismo, procuro localizar os pontos de cone- ções de 1992? Embora os caras pintadas aparen-
xão e de distanciamento entre essas óticas, e ver temente tivessem se ausentado do cenário nacional
como influem na formação de novas identidades e logo após o impeachment, as manifestações juvenis
práticas políticas. Restam três linhas de indagação, tiveram um forte impacto nas redes organizadas,
que abro brevemente aqui como indicativas para o reforçando um processo de reavaliação interna que
estudo mais amplo que estou elaborando sobre mo- os militantes ainda estão tentando desenrolar. O
vimentos juvenis brasileiros nos anos 90. ME se ocupou em canalizar o influxo de energia e
De que maneira a nova identidade de “cida- reconhecimento social que ganhou com o impeach-
dão” está funcionando como ponte-articuladora ment, se empolgando na tarefa de formar grêmios
dos movimentos juvenis? Como vimos acima, a res- estudantis e revitalizar os centros acadêmicos e DCEs.
posta é muito mais complexa do que se imagina, Embora o número de entidades estudantis tenha cla-
devido às interpretações tão diversificadas do sen- ramente aumentado, especialmente nos meses imedia-
tido e prática de “cidadania” (Mische, 1996a). A tamente após o impeachment, os dados sobre a quan-
trajetória do discurso cívico no Brasil, desde seu tidade de novas entidades são bastante incertos; e
reaparecimento nos movimentos populares e sindi- a comprensão do papel que elas exercem nas diver-
cais no final dos anos 70, passando por sua expan- sas cidades e regiões do país requer um levantamen-
são com os movimentos anti-ditatoriais e anti-dis- to sistemático. Além disso, é importante analisar as

Revista Brasileira de Educação 147


Ann Mische

reconfigurações das relações entre os diversos gru- rias manifestações assumidas por essa nova “cons-
pos organizados, não apenas em relação às corren- ciência de cidadania.” Para não incorrermos no re-
tes políticas tradicionais, mas também visando a trato individualista e desinteressado da juventude,
relação do ME “geral”, simbolizado pela entidade é importante indagar sobre a existência de novas
histórica da UNE, com os outros movimentos e or- maneiras de articular projetos pessoais e coletivos,
ganizações mais “específicos” (do ponto de vista do talvez sem a grande escala utópica das décadas pas-
ME), incluindo o movimento negro, 8 os movimen- sadas, porém mostrando outras formas, mais prág-
tos de área (ligados aos cursos universitários), as maticas e delimitadas, de ligar as preocupações e
empresas juniores, e outros setores que se organi- aspirações pessoais com visões mais amplas da so-
zam fora do meio escolar ou universitário, como os ciedade e seus problemas. Os sinais recentes de maior
movimentos sindicais, religiosos e comunitários. A interesse estudantil pelas organizações específicas de
necessidade de tal análise está colocada pelo carác- curso, além da emergência de várias formas con-
ter majoritariamente branco e de classe média dos testadoras de expressão cultural, apontam para al-
caras pintadas e das lideranças estudantis, apesar gumas possibilidades nesse sentido, embora as ten-
do presidente da UNE eleito em 1996 ser negro e dências ao corporativismo e/ou ao recuo político
usar este fato como bandeira da entidade. A mar- desses setores também precisem ser analisadas.
ginalização da questão racial na política estudantil
foi salientada por universitários negros no Congresso Conclusão
da UNE de 1993 sob a bandeira: “A juventude ne-
gra não tem cara pintada.” As relações muitas vezes As influências a médio e longo prazo das ma-
conflituosas entre esses setores, além de tentativas nifestações de 1992, tanto para os jovens como para
recentes de aproximação, apontam para uma refor- a cultura política democrática no Brasil, ainda es-
mulacão (ainda em progresso) dessas relações, cujos tão para ser vistas. Depois das passeatas, a maio-
parâmetros precisam ser melhor compreendidos. ria dos caras pintadas voltaram para suas redes dis-
Existem sinais do advento de uma consciên- persas nas escolas, trabalhos e shopping centers.
cia “cívica”, embora difusa, entre setores mais am- Embora mais alguns se juntaram aos movimentos
plos da juventude? Essa pergunta é mais difícil para organizados, esses ainda constituem um grupo pe-
se responder, especialmente do ponto de vista de queno. Não se pode dizer que as passeatas “causa-
uma pesquisa que focaliza os grupos organizados. ram” o impeachment do presidente Collor, embo-
A pressuposição básica aqui é que um evento pú- ra certamente contribuiram nessa direção. Porém,
blico de tais proporções como o impeachment, am- elas ajudaram a provocar um momento dramático
plamente divulgado e celebrado nos meios de co- de diálogo social, no qual os discursos e repertórios
municação de massa, não poderia passar sem dei- da cultura cívica podiam ser reformulados.
xar alguma marca nessa coorte de jovens brasilei- Meu argumento é que a interlocução social de
ros. Porém, dada a diversificação das redes e seto- atores como Lindberg Farias funcionou em direções
res juvenis, e a grande dispersão de identidades e diversas: ajudou a dar identidade e orientação aos
projetos-em-formação, seria difícil delinear as vá- jovens nos atos pelo impeachment, ao mesmo tem-
po que contribuiu para a rearticulação dos discur-
sos e projetos dos setores organizados (da esquer-
da e talvez da direita também), na tentativa de ca-
8 Como fui lembrada enfaticamente por jovens uni-
tivar o engajamento de uma coorte de jovens mui-
versitários engajados no movimento negro, do ponto de vista
deste, é o movimento estudantil que aparece como movimen-
to diferenciada daquela de três décadas atrás. Esse
to “específico”, em relação à luta mais abrangente contra processo certamente não começou com Lindberg,
o racismo. pois as auto-reflexões da esquerda já estavam acon-

148 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


De estudantes a cidadãos

tecendo havia algum tempo, como parte de um di- COSTA, Márcia Regina, (1993). Os “Carecas do Subúrbio”.
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líticas, ele também se aproveitou de uma dinâmica
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que lançou aprendizados sociais em vários sentidos. ciation)
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150 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Jovens dos anos noventa
À procura de uma política sem “rótulos”

Anne Müxel
Centre d’Étude de la Vie Politique Française (CNRS-FNSP)

Tradução de Ines Rosa Bueno


Publicado em: PERRINEAU, Pascal (org.). L’Engagement Politique: déclin ou mutation? Paris: Presses de la
Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1994.

Em todos os tempos e em todos os lugares, o do sistema e a necessidade de sua “recomposição”


diagnóstico do relacionamento dos jovens com a po- são abundantes (Cevipof, 1990, J.-L. Missika, 1992).
lítica suscita de uma forma muito particular o in- Os jovens, em primeira linha, sofreriam mais mar-
teresse e a curiosidade, e solicita com abundância cadamente, como um tipo de “espelho agigantador”
os discursos sábios assim como os discursos co- (A. Percheron, 1991), os traços de uma política de
muns. O estado de saúde de um sistema político e aparência distorcida. Pois, as mesmas constatações
de uma organização social depende disso. Funda- tocam o conjunto da sociedade, todas as idades,
mentalmente, esta interrogação levaria à necessida- todas as categorias de população. Não são novos
de e, ao mesmo tempo, à dificuldade, de transmitir (G. Vedel, 1926), mas têm indubitavelmente, hoje
para as novas gerações, os poderes institucionais, em dia, um relevo e uma acuidade, sobre a base da
reais e simbólicos, que instauram e legitimam o po- crise econômica, que não tinham há vinte anos atrás.
lítico. Reflexo e espelho e ao mesmo tempo, ante- Em relação aos jovens, faz uns trinta anos que
cipação do futuro, a juventude cristalizaria, a par- os diagnósticos são mais ou menos otimistas, mais
tir dos próprios pressupostos que fundamentam sua ou menos pessimistas de acordo com os momentos;
identidade e sua especificidade — entre outras coisas, eles frisam, um após outro, o retrato de uma gera-
a inocência da mocidade, a força de suas motiva- ção em revolta, engajada e politizada, nos anos ses-
ções, a exigência das suas expectativas e de suas senta; depois “apática” e “despolitizada”no decor-
aspirações, ou ainda a necessidade de se tomar parte rer dos anos setenta até os finais dos anos oitenta,
e se colocar na sociedade —, as condições da acei- um episódio marcado pelo recuo e a frieza antes do
tabilidade ou da rejeição do sistema político vigente. ressurgimento de uma geração “moral” na época
As constatações sobre a “crise da representa- do movimento colegial-estudante de 1986; e final-
ção política”, sobre a demanda crescente de uma mente de uma juventude “realista”e “pragmática”
“nova política”, assim como sobre a decomposição que dominou em seguida até os dias de hoje. Em-

Revista Brasileira de Educação 151


Anne Müxel

bora seja preciso tomar cuidado com generalizações próprias da geração ascendente dos cidadãos de
e clichés que são a receita das manchetes de jornais hoje?
nesta área, estas representações sucessivas são in- No quadro de uma pesquisa longitudinal que
dicadores, não só entre os jovens em questão, da vimos realizando há cinco anos sobre as condições
qualidade dos laços entre os cidadãos e a política da entrada na política de uma mesmo coorte de jo-
assim como dos interesses dominantes que estão em vens (A. Müxel, 1990, 1992)1, coletamos umas trin-
jogo na sociedade. ta entrevistas aprofundadas, relatando, a partir de
Os jovens de quem falaremos, atravessaram, fragmentos de histórias de vida, a diversidade de
de certa forma, estas paisagens políticas. A maio- suas trajetórias sociais e familiares. Elas revelam as
ria tendo nascido em 1968, quando da efervescência condições de sua socialização política assim como
revolucionária que tocava a geração de seus pais, os métodos de estruturação de sua identidade po-
assiste, no início de sua adolescência, à profunda lítica nos tempos de juventude.2
mudança política que representa a chegada da es-
querda ao poder. A aparição progressiva, tecnolo-
gicamente mágica — como se costuma dizer — do
rosto de Mitterrand nas telas de televisão, é a lem-
brança mais frequentemente mobilizada na memó-
ria política. Segundo as famílias, os prazeres e os 1 O período de observação fixado pelo protocolo da
medos que se lhe sucederam, assim como o dia su- pesquisa quantitativa é relativamente longo (entre 18 e 25
plementar de férias dado pelo presidente aos alu- anos, ou seja, por volta de sete anos), isto para apanhar as
nos, são objeto de muitas estórias e anedotas e for- formas de passagem do estado de cidadão de direito ao es-
necem uma primeira estruturação ao quadro de sua tado de cidadão ativo. Ele permite seguir a evolução das
primeiras escolhas, medir sua durabilidade assim como sua
socialização política. De lá para cá, só conheceram
estabilidae no tempo. Até hoje, cinco levas de pesquisa fo-
a esquerda no poder, exceto no período de co-ha- ram realizadas: novembro-dezembro 1986, maio 1988, mar-
bitação do qual guardam basicamente uma lem- ço 1989, março 1992 e março 1993. O painel constituido
brança de uma potencialidade de renovação polí- contem hoje 11200 jovens de 23-24 anos, a maoria deles
tica que não vingou. vivendo em região parisiense, a metade deles assalariada e
A sua entrada no cenário político, é para a o resto estudantes.

maioria deles, inesperada: é a greve no colégio em 2 Os 31 jovens do painel com quem foram realizadas
novembro-dezembro 1986 e a experiência de uma as entrevistas aprofundadas que representam o lado quali-
comunidade de interesses intermediada pela primei- tativo desta pesquisa foram escolhidos em função de um
ra vez, pela política e, como pudemos observá-lo, certo número de critérios pertinentes, em relação à nossa
não sem reticência e ambigüidade. Nesta correria, problemática de análise: critérios sociológicos, para cobrir
uma diversidade de classes sociais, de nível de estudos e de
a oportunidade de seu primeiro voto é dada quan-
situação em relação ao emprego, mas também de critérios
do da eleição presidencial de maio de 1988, etapa
políticos tais como os seus niveis de interesse pela política,
inaugural de sua entrada “oficial” na política. o tipo de orientação e de filiação partidária. A amostra se
Tal é o contexto em que cresceram estes jovens divide em metade de estudantes e de assalariados em em-
de 23-24 anos de idade, assalariados, ainda estudan- pregos mais ou menos estáveis, morando na região pari-
tes ou na véspera de sua entrada na vida ativa. Será siense. A entrevista tinha duas partes: uma primeira parte
que solicitava uma história de vida, visando estabelecer as
que as percepções das características do sistema po-
condições de sua inserção social e de sua experiência exis-
lítico atual estão acompanhadas de representações,
tencial do tempo de juventude, uma segunda parte centra-
senão novas, pelo menos diferentes, da política? da nas atitudes e comportamentos diante da política, a partir
Será que os hábitos e os comportamentos até então de uma instrução não direcionada e muito ampla: “Gosta-
vigentes são substituidos por exigências e práticas ria que falássemos do que a política representa para você.”

152 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Jovens dos anos noventa

A política “desmascarada” rejeição, duzida ao jogo das divisões internas, das alianças
distância e perda de credibilidade e dos oportunismos, cada vez mais complicados pa-
ra se compreender e decodificar. As maracutaias
A evocação da palavra “política” suscita, an- financeiras, além das ambições pessoais e os arri-
tes de qualquer outra perspectiva, imagens negati- vismos de todos os tipos dos políticos, condenam
vas. A rejeição da política, como se pode ver diaria- qualquer perspectiva de autenticidade política. A
mente, é vivamente expressa, os desvios dos homens política “domínio das pessoas sem escrúpulos”, dos
e das instituições são denunciados com a mesma “fantoches” e do dinheiro, não inspira um senti-
força de convicção, tanto pelos estudantes como mento de aprovação. Como disse um dos nossos
pelos assalariados, pelos jovens sejam eles diplo- entrevistados: “Há mais respeito em uma luta de
mados ou não, de direita, de esquerda ou sem orien- boxe do que na política!”
tação política definida. A homogeneidade dos ar- Finalmente, os escândalos políticos e financei-
gumentos é impressionante. A constatação é unâ- ros que agitaram o país nestes últimos anos exacer-
nime. A crise da representação política se impõe baram, muito particularmente, a perda de confiança
pelo seu caráter evidente. dos cidadãos para com estes representantes e contri-
Os discursos se alimentam de uma mesma bri- buiram fortemente para uma impressão de nojo.
ga e têm como alvo um certo número de reivindi- Esta perda generalizada de credibilidade esta-
cações que questionam a natureza das relações en- belece um tipo de ruptura nos laços que podem unir
tre o cidadão de base com o mundo político. A po- os jovens ao mundo político. Este é percebido como
lítica está posta à prova dos fatos. A perda de cre- um mundo “paralelo”que suscita cada vez mais in-
dibilidade das personalidades assim como das ins- compreensão e em relação ao qual eles têm cada vez
tituições é um elemento recorrente do conjunto dos mais dificuldade de se identificar e se situar.
discursos. Ela define uma argumentação principal A ruptura é denunciada em vários níveis.
a partir de três tipos de denúncias: A própria classe política é responsável por essa
Primeiro, a das promessas não cumpridas pela situação. Os políticos não são suficientemente pró-
esquerda e do “desencanto” duramente sentido que ximos dos “problemas concretos das pessoas” e são
se sucedeu, levando à falência, a própria idéia de suspeitos, por causa dos privilégios de que dispõem,
eficácia ou de projeto políticos. Esta queixa, liga- de nem poder compreender e apreendê-los. Uma
da às próprias orientações políticas do partido so- ruptura entre dois mundos: “Temos a impressão
cialista, não vem apenas dos simpatizantes da es- que o mundo político é um mundo que não é o mun-
querda, mas manifesta também nos discursos dos do em que vivemos”, disse um. “Eles governam pa-
jovens que se colocam à direita ou se situam fora ra eles mesmos sem pensar nas consequências que
de quaisquer amarras partidárias. Como se esta re- esta situação pode provocar”, diz um outro.
tórica do desencanto servisse para alimentar a sus- Além disso, o jovens têm o sentimento de dis-
peita de mentira da qual a política é tão frequente- por de poucas chaves para compreender a atual si-
mente acusada e para manter um relacionamento tuação política. A sofisticação dos debates e das
desiludido e distanciado para com esta: “As pessoas clivagens políticas, cultivada pela mediatização dos
foram ludibriadas, é normal que hoje, elas sintam shows políticos, mantém uma impressão de confu-
um certo desdém” ou “prometer coisas sabendo que são. A política é “mal explicada, mal relatada e por-
não se poderá cumprí-las, é inútil” ou ainda “Quer tanto mal-compreendida”, disse uma estudante; ou
seja um governo ou outro, nada mudou”, voltam ainda esta: “Não entendo bem o que eles querem,
como leitmotivs nos discursos; — as brigas politi- não entendo bem o que eles dizem. Em relação à
queiras despojam a política de seus conteúdos e de política, eu me sinto ‘pequenininha.’” Este senti-
seus projetos. Por isto mesmo, esta se encontra re- mento de uma competência política falimentar é

Revista Brasileira de Educação 153


Anne Müxel

amplamente difundido. É sem dúvida, mais o refle- o que se coloca na frente para esconder o dinhei-
xo da complexificação dos interesses políticos do ro”, estando a realidade na vida econômica, e mais
que uma diminuição do conhecimento político em geralmente, no trabalho das pessoas mesmas. Sem
si3 . É preciso fazer um esforço para seguir, se man- esquecer o trabalho científico, tecnológico... a po-
ter a par e não há nada particularmente motivador lítica é irreal em relação a tudo isto.
para fazê-lo. O conjunto deste discurso de negação da po-
Acrescente-se a isto a impostura denunciada lítica, com eventuais acentos de protesto, não é for-
por alguns de uma política cada vez mais “pré-fa- çosamente novo. Em outros tempos, em outras ins-
bricada” obedecendo à lógica do marketing e da tâncias, os argumentos aqui usados serviram de re-
quota de popularidade nas pesquisas de opinião. tórica para outros tipos de discurso a certas corpo-
Um estudante, em uma seção comercial de um IUT rações profissionais conhecidas pelas suas visões
(Institut Universitaire de Technologie), declara ter reivindicatórias, como por exemplo, os artesãos e
se distanciado da política depois de um curso de os pequenos comerciantes (Mayer, 1986) ou ainda
comunicação que apresenta as técnicas de fabrica- para movimentos políticos tradicionalmente anar-
ção dos discursos dos políticos. quizantes ou contestatórios.
Finalmente, esta política “distante” e exclu- Mas o que é indubitavelmente novo em rela-
dente desemboca no sentimento de uma impotên- ção a tempos idos é encontrá-los partilhados de for-
cia, de uma ausência de controle, de domínio sobre ma tão consensual pelas classes de idade mais novas,
a realidade política assim como sobre as decisões e em uma interpretação tão unívoca. A política,
dos governantes. O dia a dia das pessoas se tece fora como percebida e julgada hoje em dia não evoca
das políticas e, por outro lado, a política vive para imagens positivas e poucas apreciações nuançadas.
si mesma, fechada em suas próprias lógicas, como Da parte dos novos eleitores, os adultos de
uma torre de marfim superprotegida. amanhã, a constatação não é anódina. Desiludida
e cínica antes da idade, será que a visão da política
“São só faladores, uma elite que entra na polí-
dos jovens deve permanecer nesse patamar? Em con-
tica. Nós, nos matamos dando um duro. Quando a
traponto a um questionamento tão radical e tão
gente vê os teletons na tevê, eu acho genial que todo
desesperado, será que encontramos sugestões e até
o mundo se mobilize. Mas isso vem dos governantes,
mesmo referentes sobre o que deveria ser a políti-
eles estão muito longe, eles pensam demais em suas
ca? Dito de outra maneira, se eles desconstróem, o
viagens, em suas quotas de popularidade.” (jovem subs-
que irão eles reconstruir no lugar?
tituto, expert em contabilidade)

Último tipo de constatação para fechar este Em busca de um “novo” repertório político
dignóstico: não é menos em termos políticos do que
em termos econômicos que se jogam os verdadei- Quando esta mesma pergunta lhes é dirigida,
ros interesses da sociedade. A primazia da econo- o pessimismo rigoroso sobre a eficácia e a legitimi-
mia, a construção européia, a mundialização dos dade da política atual difere singularmente das ex-
problemas, as leis da finança internacional relati- pectativas fortes e ambiciosas que se expressam
vizam de fato a autonomia do político e seus meios para com ela. Esta geração crítica da política e, en-
de ação. A política seria um “disfarce”, “as idéias, tretanto, dificilmente suspeita de irrealismo, não
desistiu de sua panóplia de ilusões. A lista dos re-
médios está feita, não sem algum surto de idealis-
3 Os trabalhos de Annick Percheron (1989, 1991) mos- mo nas expectativas da política. Lá se percebe no-
traram um crescimento dos conhecimentos políticos ds crian- tadamente a confirmação de certas predições sobre
ças e dos jovens nesses vinte últimos anos. a evolução da participação política, sobre a emer-

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Jovens dos anos noventa

gência de novas formas de cidadania e sobre a di- e assim mesmo constituiria um tipo de “esqueleto”
versificação dos modos de ação da política. Reco- moral da sociedade, levantando o desafio de “pen-
nhece-se neles valores pós-materialistas, estabele- sar nas pessoas e na economia ao mesmo tempo.”
cendo um laço muito direto com novos imperati- O “programa” é ambicioso. Para aplicá-lo, as
vos morais, e implicando, por novos interesses, o idéias, os projetos devem se abrigar novamente a
indivíduo na coletividade (H. Barnes, M. Kaase et política, dando-lhe substância. Mas não se trata
al. 1979, R. Inglehart, 1977, 1990). mais das idéias políticas de antigamente, sustenta-
Previamente, a necessidade de uma moraliza- das pelas clivagens ideológicas tradicionais e por
ção da política se impõe: a necessidade de transpa- amarras partidárias que delas decorriam. Agora, é
rência, uma “glasnost” que seria aplicada a nosso preciso “convergir antes que divergir, se unir antes
país, a emergência de se encontrar uma “dignida- que se diferenciar”. Tal poderia ser a palavra de
de” no debate político, e até mesmo uma “objetivi- ordem de uma nova ética política. Os rótulos são
dade” nos dossiês tratados, de “dar uma impressão rejeitados não somente em nome da sua obsoles-
de verdade”, “e mais profundidade”, “mais amor”, cência, mas também porque são fatores que alimen-
tantas expressões da vontade dos jovens de depu- tam as brigas e impasses e dos quais os jovens que-
rar a política para se reconciliar com ela e voltar a rem livrar o sistema político. As idéias são “des-
lhe devolver a sua credibilidade e legitimidade. A ideologizadas” em nome da eficácia e da competên-
educação é muitas vezes invocada, notadamente por cia políticas. A caricatura desta nova ordem políti-
via da instrução cívica ou mesmo das aulas de moral ca está contida nas seguintes palavras:
na escola, citadas em exemplos do passado, como
A política, deveria criar um ambiente para tirar
os avalistas e substitutos na transmissão de um certo
idéias de tudo quanto é lugar para poder fazer avan-
número de marcas e de referências a serviço, mes-
çar. Eu vejo a política um pouco assim, um pouco
mo indiretamente, do político. Como disse um de-
como uma empresa que tem um patrão e que vai se
les, às vésperas de se tornar professor em um colégio:
cercando de colaboradores e de empregados que, cada
A política, para que funcione, é preciso que as um na sua individualidade e seu trabalho, vai permi-
pessoas tenham respeito (...). Podemos chegar a mui- tir e fazer progredir seu objetivo, atingir sua meta.
to mais coisas com a educação, a cultura. A política é
É preciso apelar mais para a competência e
muitas vezes bloqueada por contingências materiais
para a boa vontade do que para a ideologia política.
da economia.
Finalmente, um reforço da democracia direta
Outros recursos podem ser usados para ali- é muito vivamente reclamado, o que confirma a
mentar e substituir a atividade política, por exem- necessidade de aproximação entre o mundo políti-
plo, a arte e a cultura: “Os políticos não podem co e a população. Os cidadãos devem ser consulta-
responder a todas as expectativas. Há pessoas que dos, levados em conta nas decisões: “Eu sou a fa-
respondem muito mais nos seus escritos, feitos, can- vor das pessoas tomarem conta delas mesmas. É
ções, no que se cria.” Uma melhor comunicação preciso que reflitam sobre os problemas da socie-
entre as pessoas, uma melhor difusão da informa- dade.”A idéia de uma política “interativa” está emi-
ção fazem, também, parte das novas expectativas tida, assim como da propaganda que deve encon-
em relação ao político. trar novas lógicas de comunicação, instaurando uma
Vem em seguida a necessidade de uma recon- reapropriação pelo consumidor da base das suas
ciliação entre os imperativos econômicos e os impe- mensagens, além de levar em conta aquelas que ele
rativos comandados por aquilo que poderiamos de- pode emitir em retorno: “Outro dia, Séguela dizia
finir como “um humanismo de bom senso”. A polí- que o futuro da propaganda era a propaganda in-
tica seria a interface destes dois tipos de exigência, terativa. É exatamente o que penso da política: per-

Revista Brasileira de Educação 155


Anne Müxel

mitir a volta de uma opinião vai fazer evoluir as A nebulosa esquerda-direita:


coisas”, explica um jovem adido comercial. Um es- formas vazias de filiação
paço político concebido como “grandes orelhas”
onde se expressariam ao mesmo tempo que seriam As pesquisas de opinão revelavam, há dez anos,
canalizadas todas as tendências da sociedade. Re- um aumento bastante importante do número de pes-
sumindo, a política serviria o sonho de uma comu- soas para quem a distinção entre esquerda e direita
nicação verdadeira entre todos e entre todas, os do- não fazia mais tanto sentido. Em 1991, 55% dos
minantes e os dominados, em nível local ou em es- franceses estimavam que a distinção esquerda-direita
cala planetária, no respeito às diferenças das cultu- está ultrapassada para julgar as tomadas de posição
ras e das individualidades. política, em 1981, só 33% aqueles que comparti-
Esta visão de um espaço político ampliado, emi- lhavam da mesma opinião; perto de um terço da popu-
nentemente “democrático”, reapropriado e habitado lação (30%) se recusa hoje, a se colocar entre a es-
por uma diversidade de tendências e de interesses, querda e a direita; em 1981, a proporção só era de
põe em causa a dimensão elitista da política, de seus 20% (R. Cayrol, 1992). Esta evolução acontece no
atores, assim como dos seus modos de ação 4. Supõe sentido de uma menor legibilidade das clivagens entre
uma intensificação da participação, cada vez mais a esquerda e a direita e de um recuo do sentimento
orientada por ações pontuais e objetivadas, de acor- de pertencimento. Resta saber entre a maioria dos
do com os interesses específicos de certos grupos, que se posicionam, o sentido e o significado de seu
certas categorias sociais, ou até mesmo em função posicionamento. Os trabalhos de Guy Michelat mos-
de comunidades de interesses individuais 5. tram que a existência de uma coerência e de uma
O nível de exigência que transparece neste “re- correspondência entre as posições no eixo esquerda-
pertório” das expectativas em relação à política está direita e as dimensões do universo sóciopolítico per-
alto. Ele mobiliza referentes “de alto nível” e lan- manecem globalmente verificadas (G. Michelat, 1990).
ça mão dos imperativos que anunciam talvez as con- Será isto válido, mesmo entre os mais novos, cujos
dições de emergência de uma “nova moral políti- referentes nesta área não podem ser tão estruturados
ca”: dignidade e transparência, coesão antes que quanto os das gerações anteriores? Só tendo conhe-
coerção, unidade e respeito das diferenças, comu- cido a esquerda no poder, além de se tratar de uma
nicação e reforço da democracia, tantas palavras de esquerda cujas distinções próprias foram se confun-
ordem que, por detrás de seu idealismo aparente, dindo, quais referências poderão eles mobilizar?
redefinem as condições de restauração entre os jo- A contribuição das entrevistas qualitativas per-
vens cidadãos e a política. mite levar um pouco mais adiante esta reflexão e
revela constatações onde se misturam confusão e
paradoxos.
4 Citaremos Max Kaase e Samuel H. Barnes (1979) Todos os jovens que interrogamos exceto um
que, na conclusão de sua obra, fazem a seguinte observa- adotam uma classificação na escala esquerda-direi-
ção: “No futuro, as posições sociais das elites vão se tornar ta6. Mas se as identificações à esquerda ou à direi-
cada vez menos permanentes, hierárquicas e abrangentes (...)
crescentemene variáveis e pluralistas. Tomadas de decisão
se tornarão mais difíceis em razão da participação amplia- 6 Na escala esquerda-direita em sete pontos, partin-
da dos cidadãos” (p. 531). (Tradução do revisor) do da esquerda para a direita, contamos as classificações
5 Ronald Inglehart (1990) prevê uma mudança dos seguintes no seio de nossa amostra: dois jovens se colocam
modos de participação política: “um declínio da mobilização na posição 2, dois entre as posições 2 e 3, cinco na posição
política dirigida pelas elites e um crescimento de grupos 3, sete na casa central, três entre as posições 4 e 5, cinco na
orientados por questões contestatórias”(p. 6). (Tradução do posição 5 e três na posição 6. É bom observar que as casas
revisor) nos extremos nunca são ocupadas.

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Jovens dos anos noventa

ta sempre acontecem (A. Müxel, 1992), elas pare- cursos permanecem, no conjunto, espantosamente
cem funcionar como formas vazias de filiação, o que pobres sobre este assunto. Há uns vinte anos atrás,
resume muito bem um deles (“sou de direita por- no quadro de uma pesquisa similar, teriamos apa-
que sou contra a esquerda”), mas sem poder ir mui- rentemente encontrado discursos mais estruturados
to longe em sua argumentação, nem mesmo com- ideologicamente, e coletado pedaços inteiros de re-
preeender realmente as razões de sua escolha; os tórica doutrinária ou profissões de fé políticas. Sem
discursos que elas suscitam só encontram poucas dúvida, não entre todos, mas certamente de alguns.
referências sólidas na própria realidade da relação Hoje em dia, a ausência total deste tipo de discur-
de forças políticas, para reconhecer o que os dife- so é reveladora da mudança que ocorreu. As pala-
rencia. A observação seguinte é exemplar: “Muita vras desta jovem simpatizante comunista, a mais
coisa está acontecendo, a situação está muito ins- engajada da nossa amostra, dispensam comentários:
tável. Por enquanto até eles estão perdidos; conosco “Sou comunista com referências capitalistas”. Os
então, não adianta.” discursos políticos não são, em absoluto, a receita,
Este sentimento de diluição das referências é da base ao cume da pirâmide política!
compartilhado, quer se esteja reconhecidamente filia- Se a esquerda e a direita são muitas das vezes
do à esquerda ou à direita. Aliás, esta visão emba- colocadas no mesmo pé de igualdade, com a sua
çada e turva das clivagens ideológicas não aparece credibilidade recíproca posta em perigo, e seus per-
mais marcadamente naqueles que não confessam tencimentos fragilizados, em contrapartida, as úni-
nenhuma filiação particular (os que se colocam na cas verdadeiras balizas que delimitam o campo polí-
posição central da escala, por exemplo) do que entre tico, facilmente identificáveis e identificadas pelos
os jovens cuja orientação é mais determinada. jovens, são os “extremos”. Extremos contra os quais
Neste marasmo geral, apenas algumas referên- é preciso se garantir e se proteger, mas extremos dos
cias mínimas continuam sendo usadas para delimi- quais eles têm a impressão que são as únicas posi-
tar a esquerda e a direita. Para a primeira são re- ções políticas a partir das quais se estrutura o de-
servados o campo da ação social, uma aceitação bate político atual. A Frente Nacional (Front Na-
mais popular, a instauração de mais igualdade, o tional), por exemplo, desempenha nisto um papel
“tomar partido” das pessoas comuns e a defesa dos de repelente, é claro, mas um papel muito eficaz na
pobres. Concebida como mais “indulgente”, mais construção da identidade política dos jovens de hoje
“conciliante”, é também suspeita de impostura: “ser em dia, única referência forte em relação à qual eles
de esquerda e viver em bairros bonitos, não sei se podem se situar e existe uma posição real a tomar7.
isso é possível”, disse um deles. Geralmente as re- Além destes extremos, que muitas vezes de-
presentações da esquerda não vão além da lembran- signam para eles, o limiar de “perigo” político e
ça destes poucos princípios, exceto alguns raros in- uma exposição da democracia ao perigo, a confu-
divíduos mais engajados que evocam com fé a “mis- são reina. A distinção entre a esquerda e a direita,
são social” que cabe a eles. Por seu lado, a direita embora sempre suscite a idéia de dois campos opos-
é associada ao “liberalismo”, ao “capitalismo” — tos, mas de uma maneira formal ou virtual do que
a palavra ainda é usada —, à ordem e à performance real, com uma “barragem”entre os dois, não é mais
econômica. Os interesses políticos da direita dizem reivindicada. Entretanto, ela é instrumentalizada
respeito sobretudo ao país e a situação econômica, em um duplo discurso relativamente ambíguo e
enquanto que os interesses políticos da esquerda são contraditório. A interpretação que se dá do apagar
mais percebidos como, prioritariamente, tocantes
aos indivíduos e suas condições de vida.
Apesar das diferenças apontadas graças à in- 7 Reportar-se à contribuição de Nonna Mayer: “A
sistência muito particular do entrevistador, os dis- mobilização anti-Front National”, infra.

Revista Brasileira de Educação 157


Anne Müxel

das marcas ideológicas esquerda-direita revela um As expectativas em relação à política pedem


tipo de duplo constrangimento em que seu racio- portanto, ao mesmo tempo, uma maior legibilidade
cínio está envolvido — à maneira do sistema “dou- de seus conteúdos e de suas referências e a anula-
ble bind” descrito pelos interacionistas sistêmicos ção da dependência destes últimos em relação às
americanos8 —, colocando o indivíduo diante da grandes clivagens políticas tradicionais. Um duplo
impossibilidade de responder a duas injunções constrangimento difícil de se reconciliar, a não ser
contraditórias. por uma total redistribuição das cartas políticas, e
De um lado, por detrás das suas palavras, se isto, com o risco de perder a própria essência da
subentende uma demanda por clarificação dos in- política.
teresses reais da política. Eles sentem falta de um A vontade geral de consenso revela uma evo-
tipo de idade mítica ultrapassada em que as refe- lução profunda da cultura política no sentido, ao
rências existiam e onde lhes parecia forçosamente mesmo tempo, de uma homogeneização de suas ex-
mais fácil se determinar e decodificar as lógicas pectativas e de uma diversificação de seus interes-
políticas: ses. Como o disse um deles, que acaba de conseguir
um diploma comercial: “É preciso estar no centro
Mesmo que eu não tenha vivido e que tenha,
das idéias. Tomar o que há de bom à esquerda e à
portanto, dificuldade para falar a respeito, eu acredi-
direita, por todos os lados, e fazer um conjunto que
to que em termos históricos, havia realmente mais
seja o mais homogêneo possível, que possa fazer
disparidades. Hoje em dia, a gente vê como a política
avançar.” As clivagens políticas se estabelecem do-
se define: a gente vai à esquerda, a gente vai à direita,
ravante menos no conflito entre as classes ou os
a gente vira e depois vê no que é que dá!
grupos sociais, arbitrados até então pelos partidos
Por outro lado, a rejeição do conflito, a pri- tradicionais de direita e de esquerda.
mazia da eficácia e da competênca objetiva sobre Um jovem estudante de direito, eleitor do PS
as querelas ideológicas, tornam possível a crença ou dos comunistas renovadores e que reivindica
nesta evolução. Se, em um primeiro momento, o de- porém, um engajamento quase militante, na ala
sejo do consenso se impôs por meio das próprias mais à esquerda da movimentação socialista, decla-
circunstâncias da conjuntura política, ele designa ra assim:
também hoje em dia, segundo eles, uma verdadei-
Não se pode mais cair na facilidade de pensar
ra via de reconstrução do político.
que as coisas caridosas são o apanágio da esquerda e
Ainda existem diferenças entre a esquerda e a que o patriotismo intransigente é o apanágio da direi-
direita. Eu não digo que isto é algo desejável. Se isto ta. Chevènement mostra que o patriotismo pode ser
pode se nivelar, é bom. Chegaremos lá. de esquerda. Balladur mostrou que ele podia ser so-
cial sendo de direita.
Ou ainda:
Novos valores fundamentam outras clivagens
Não vejo a política como uma separação: a es-
a respeito das quais as palavras de ordem tradicio-
querda, a direita e o centro. São todos homens que
nais não funcionam mais. O desejo de autonomia
fazem alguma coisa e eu os julgo mais pelos seus atos
individual vem se interpor entre a demanda de con-
do que pelas filiações políticas.
trole e de planejamento do Estado e a economia de
mercado, fiadora da liberdade, e isto quaisquer que
sejam as filiações políticas (R. Inglehart, 1990). A
8Reportar-se aos trabalhos da escola de Palo Alto, ilustração que propõe um jovem estudante das Be-
apresentados na obra, dirigido por Paul Watzlawick e John las-Artes, sem filiação política definida, é deste pon-
Weakland (1977). to de vista, eloqüente:

158 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Jovens dos anos noventa

Se eu jogar na raspadinha e ganhar 1 milhão, eu lica particular: o fato de votar, de expressar a legi-
vou votar para uma política que conserve meu milhão: timidade de suas escolhas, é considerado como uma
a direita. Por outro lado, se eu trabalhar e o meu pa- passagem significativa para a entrada na vida de
trão se esquecer de me pagar 1000F, eu vou votar para adulto (A. Müxel, 1990). O primeiro voto é mui-
a política que vai recuperar estes 1000F. tas vezes investido de um entusiasmo e de um sen-
timento de poder: “Era excitante se encontrar no
Neste caso, mesmo que a esquerda e a direita meio dos adultos. A gente se sente inserido com as
estejam bem diferenciadas, podemos, não obstante, pessoas que votam pelo mesmo candidato. A gen-
duvidar de sua capacidade para fixar amarras fiéis te se sente integrado na sociedade.” Até os que se
e duradouras a partir de uma concepção dessas. declaram abstencionistas ou desistiram da política
Nesta nebulosa esquerda-direita, como é que demostram muitas vezes um sentimento de trair um
são, então, arbitradas as escolhas eleitorais? Neste direito e também um dever.
contexto, o que significa o voto dos recém chega- Deste calendário eleitoral retraçado passo a
dos na política? A partir de que dados, de que in- passo, se revelam vários itinerários, nem sempre
fluências, os jovens se determinam para decidir as fáceis de serem decifrados e interpretados. Eles
suas escolhas? permitem entender um certo número de configura-
ções reveladoras do relacionamento dos jovens com
Trajetórias de voto: “moderato cantabile” a política, e de sua evolução nos últimos quatro
anos, isto é, desde a reeleição de François Mitte-
A memória eleitoral parece espantosamente rand em 1988.
fraca. Se a eleição presidencial de maio 1988, que Mesmo que as escolhas não se confirmem sem-
representa o primeiro voto da maioria dos jovens pre com muita convicção, mais de um terço dos
interrogados, constitui a referência mais confiável, jovens se destacam por um comportamento relativa-
as outras eleições são dificilmente citadas e preci- mente constante no seio de uma constelação política
sam da intervenção do entrevistador para que se- determinada. Entre eles, as poucas flutuações obser-
jam lembrados os interesses e o contexto da épo- vadas permanecem moderadas e se explicam sobre-
ca. O período é, entretanto, curto, cinco anos, e tudo pelas condições da oferta política ou pela ten-
cobre seis eleições9 . tação de uma hora para outra pelo voto ecologista.
Esta falha de memória destoa da importância Entretanto, mesmo no caso destas trajetórias
que a maioria dos jovens dá ao direito de votar: e votos, cuja sucessão das escolhas expressa uma
“Mas mesmo que precise votar em branco, sempre certa determinação assim como uma relativa esta-
votarei. Tem países onde se briga para conseguir o bilidade, a eventualidade de uma mudança de cam-
voto. Nós temos este direito mas ao invés de apro- po se torna possível. Quando as filiações são reco-
veitá-lo, nós não estamos nem aí. Francamente, fico nhecidas, elas só raramente revestem um caráter
danado quando sei que alguém vai ser eleito com definitivo. A abertura, a fluidez da adesão, e sobre-
70% dos votos”. A consideração que eles dão ao tudo o livre arbítrio permanecem as condições de
direito de voto se reveste de uma dimensão simbó- expressão das escolhas políticas, até entre os jovens
cujas orientações ideológicas são mais definidas.
Dois outros tipos de trajeto são particularmen-
9
te significativos da sensibilidade eleitoral atual.
Eleição presidencial de maio 1988, as eleições legis-
O primeiro, mais ou menos um quarto dos jo-
lativas de junho de1988, o referendo para a Nova-Caledônia
de outubro de 1988, as eleições municipais de março de vens entrevistados, resulta de um tipo de “partici-
1989, as eleições européias de junho de 1989, e finalmente pação negativa”. Ele junta os abstencionistas, mais
as eleições regionais e cantonais de março de 1992. ou menos constantes, mas também os votos bran-

Revista Brasileira de Educação 159


Anne Müxel

cos e as desfiliações progressivas ao sabor do inte- gilidade das identitificações partidárias, uma verda-
resse eleitoral. Os abstencionistas constantes são deira instabilidade das escolhas e uma mobilidade
raros e são, de fato, os mais afastados. Mas, há uma dos votos, mais ou menos sistematizadas e racionali-
outra família de abstencionistas que parece se im- zadas. Na amostra, um jovem em três ultrapassa no
por mais ainda. Nela se expressa uma desfiliação momento de seus votos, a famosa “barragem” es-
recente e progressiva da política. A inconstância do querda-direita na adesão aos candidatos. Esta mo-
voto resulta muitas vezes da desilusão e do desen- bilidade se apresenta de duas maneiras que não têm
canto em relação à esquerda. Ela traduz uma ver- exatamente o mesmo alcance político.
dadeira impossibilidade de saber onde se situar e Primeiro caso de destaque, a mobilidade ob-
como se sentir novamente envolvido. “De cansei- servada aparenta mais uma flutuação ligada à atra-
ra, nada se mexe. Eles resolvem os seus problemas ção de certas políticas na movimentação do centro
entre eles mesmos, eu não me sinto envolvida. Mes- (entre outros, Raymond Barre, Michel Noir, ou Si-
mo que eles administrem o país onde moro, não me mone Veil...) do que uma verdadeira instabilidade.
sinto, de maneira alguma, envolvida” declara uma Ela é em geral acompanhada de identificações par-
jovem secretária que votou em Mitterrand no pri- tidárias senão pouco afirmadas, mas pelo menos
meiro turno da eleição presidencial de 1988 e de- relativamente flexíveis. Prioridade talvez dada, em
pois não votou mais. Um outro que trabalha com um momento ou em outro, às qualidades pessoais
informática e votou muitas vezes no PS reconhece, de um candidato acima das orientações ideológicas
hoje, ter desistido: ou partidárias habitualmente expressas pelo indi-
víduo. Assim, este entrevistado que votou muito
Eu tinha escolhido o Mitterrand porque estava
mais vezes na esquerda, mas também votou nos eco-
um pouco exaltado, o socialismo, a rosa. (...) E depois,
logistas,e Simone Veil nas eleições européias pelas
sempre o mesmo contexto. Lá, se eu tivesse que vo-
suas qualidades pessoais e políticas:
tar, me absteria. A menos que eu volte decididamen-
te a ler as notícias e isto me interessar. Mas já que não Quando votamos, é para expressar alguma coi-
é o caso, me sentiria burro de ir votar estupidamente sa. Votei na Simone Veil, não era bem no partido dela,
nos socialistas. era nela, para lhe dar voz. Há medidas que ela tomou
que eu gosto. É uma boa mulher daquelas que a gen-
E muito menos votará na direita como ele faz
te não vê muito na política.
questão de frisar.
Os votos em branco participam de uma mes- Ou este outro que costuma votar no PS, mas
ma lógica. Porém, eles parecem mais investidos de que, nas municipais, deu seu voto a Jacques Tou-
sentido por seus usuários. Eles respondem a uma bon: “Embora tenha afinidades com a esquerda,
preocupação de se expressar, mas “sem tomar po- não é por causa disso que vou questionar todo o
sição”, e a uma vontade de exercer uma pressão trabalho que ele fez.” Na análise quantitativa, fei-
política. “O voto em branco é a minha maneira de ta com a coorte que seguimos há cinco anos, sobre
dizer: não acredito em Sicrano, não acredito em a mobilidade das posições na escala esquerda-direita
Beltrano, mas eu acredito em alguma coisa”, afir- em sete pontos ao longo dos ciclos de pesquisa, só
ma um jovem adido comercial. Eles são mais ou encontramos um número muito restrito de passa-
menos sistemáticos e são mobilizados de forma in- gens entre a esquerda e a direita (4%). Em compen-
termitente com outros votos: “Eu voto na direita ou sação, contabilizamos um número muito importan-
em branco”, “Eu voto na esquerda ou em branco” te de “hesitantes” (36%) que se caraterizam por um
são observações que sempre voltam na descrição flutuamento de suas posições devido à escolha in-
dos itinerários. termitente na casa central. De acordo com as eta-
O segundo tipo de trajetória revela uma fra- pas da enquete, estes hesitantes se colocam alterna-

160 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Jovens dos anos noventa

damente no centro e em uma posição de esquerda cização do sentimento de mal-estar que se sente tan-
ou de direita, sem por isso ultrapassar a barreira que to para com a política quanto para com a socieda-
separa os dois campos, representada pela posição de em seu conjunto. Se ele funciona para muitos
central (Müxel,1992). como referência-repelente, ele pode também susci-
O outro tipo de mobilidade aparece menos fre- tar a atração da travessia do proibido, e até mes-
qüentemente mas se mostra mais radical. Ela tem mo do perigo, para “amedrontar, amedrontá-los”
a ver com voto “estratégico” ou “racional”(P. Ha- (subentendido o resto da classe política). Ele pode
bert, A. Lancelot, 1988) que já não depende estrei- ser instrumentalizado como uma ferramenta de con-
tamente, como no passado, das determinações so- testação, para fazer mudar as referências e os inte-
ciológicas do eleitor, das variáveis ditas “pesadas”, resses da política, “para agitá-la”, em nome da mo-
e questiona na sua própria lógica, a idéia de iden- ralização, da transparência, e da busca por eficácia
tificação e de laços partidários. O caso do jovem tão reclamadas hoje em dia. O falar-franco de Jean
estudante citado anteriormente, discutindo com um Marie Le Pen, sua “coragem” para dizer o que os
raciocínio puramente individualista e oportunista outros não querem dizer, sua vontade de tratar os
as vantagens respectivas da esquerda ou da direita reais problemas podem ser considerados por um
de acordo com um milhão que ele pode ganhar na bom número deles (cinco ou seis) como qualidades,
loto ou um litígio qualquer com seu patrão, é bem embora o espectro do extremismo de direita ou do
ilustrativo como exemplo. Neste caso de destaque, racismo seja assim mesmo rejeitado. Nos jovens
a arbitragem dos votos se faz, em primeiro lugar, a cujas orientações políticas são pouco fixadas, ou em
partir das circunstâncias e dos interesses da vida quem o sentimento em relação à política é parti-
pessoal. Além disso, este tipo de comportamento cularmente desabusado, isto pode representar uma
eleitoral fica fortemente submetido à influência tan- atração.
to da conjuntura como da oferta política. A decalagem aparente que pode ser observa-
Certas trajetórias aparecem espantosamente da entre, por um lado, a permanência das classifi-
movimentadas. Assim, esta jovem secretária que cações na escala esquerda-direita, assim como o
votou FN, no primeiro turno da eleição presiden- fraco número, em nível da coorte, das travessias de
cial de 1988, F. Mitterrand no segundo turno, FN barreira mostrada pela posição central entre os dois
nas européias e ecologista nas municipais, e que campos e, por outro lado, a relativa mobilidade das
todavia, declara: “É duro ir votar, não é algo que trajetórias de votos, é significativa da perda de subs-
se faz levianamente, não é só um nome que se co- tância e de conteúdo das identificações que acon-
loca de um envelope, são também as idéias em que tecem à esquerda e à direita. Formas vazias de filia-
acreditamos.” ção, tais como nós descrevemô-las anteriormente,
Tanto um como outro destes exemplos nos toda a latitude do jogo eleitoral pode se afundar
levam à dimensão protestatória do voto que tam- nelas.
bém explica este tipo de comportamento eleitoral.
A maneira como o voto Le Pen pode ser utilizado O engajamento político, consciência planetária,
e argumentado é, deste ponto de vista, significati- e “estratégia dos pequenos passos”
va. Cinco jovens declaram ter votado pelo menos
uma vez em Le Pen, e no discurso de alguns outros, Apesar do mal-estar do marasmo político e da
geralmente próximos da direita, ou entre jovens instalação de uma morosidade ambiente quanto às
que, decepcionados com a esquerda, “passaram” à esperanças de mudança na sociedade, apesar da di-
direita, a eventualidade de fazê-lo um dia não é to- fusão da ideologia da renúncia e do “egoismo da
talmente excluída. A tentação do voto Le Pen, quan- fatalidade”, — a expressão foi encontrada por um
do ela surge nos discursos, enuncia um tipo de exor- dos nossos entrevistados —, que parecem afetar

Revista Brasileira de Educação 161


Anne Müxel

todo o mundo, os discursos dos jovens sobre o en- sar ou de agir, fazem rejeitar o engajamento de tipo
gajamento político revela uma vontade de implica- partidário. O caráter definitivo do militantismo tra-
ção e um grau de consciência espantosos. É certo dicional amedronta.
que com bemóis e nuances, e sobretudo invocando A ação no quadro dos partidos políticos é ma-
uma concepção do engajamento que já não tem mais culada com a dupla suspeita de uma ausência de
muito a ver com os usos militantes do passado. Mas autenticidade e do risco de impostura. Seria no fun-
nada deixa transparecer nas suas palavras um re- do “mais um engajamento para si mesmo do que
cuo do terreno de ação política. Não a ação políti- para os outros”, portanto a própria negação da idéia
ca que seria levada no quadro institucional dos par- de engajamento. Além disso, este tipo de adesão não
tidos, mas uma ação política com “P” maiúsculo, poderia escapar da luta pelo poder, das brigas in-
como dizem, o que que significa, atacar por meios ternas e externas do jogo partidário, cujos defeitos
“concretos” os “verdadeiros” problemas, os do dia na vida política atual, eles denunciam. “Nos parti-
a dia e também os que dizem respeito à sociedade dos políticos, são profissionais. Não existe mais esta
em escala planetária. Eles não acreditam na possi- noção de associação. Na noção de partido, existe
bilidade de grandes mudanças e medem os limites a da entidade econômica, procurando desenvolver
de eficácia das ações que eles poderiam realizar à sua as suas idéias e tomar o poder”, esclarece um deles.
altura. Eles desenvolvem uma outra visão da mu- Esta idéia de “associação” é a principal peça
dança social, ao mesmo tempo mais modesta e mais da sua aceitação dos modos de ação e de interven-
realista, e imaginam a generalização e a multiplica- ção dos cidadãos de hoje. Ela define uma concep-
ção de pequenas ações, uma ampliação de um en- ção depurada, a também em nome de uma morali-
gajamento “artesanal”, segundo os meios e as von- zação da política, da noção de partido.
tades de cada um, um avanço por “passinhos”. Não
São benévolos que pedem a outras pessoas para
se trata de “mudar o mundo”, mas de tão somente
serem benévolas para consolar outras pessoas que so-
“melhorar as coisas”. Nem pensar ser “revoltados”,
frem. Sendo benévolos, não existe mais o lado “show-
“anarquistas” ou “utopistas”, mas também, mui-
bizz”do sistema político que faz se avance seu perso-
to menos se desengajar, se “desligar” de uma obri-
nagem para introduzir suas idéias.
gação de consciência, e talvez de um dever de soli-
dariedade que correspondem bastante bem à defi- Descrito desta forma, este tipo de engajamen-
nição que Gilles Lipovetsky dá para “cidadania pla- to apela para valores morais e se concebe como
netária”. Esta última enunciar-se-ia de um tipo de uma cadeia de solidariedade de um espaço de in-
“ética de síntese que reconcilia ecologia e economia, tervenção que pode ir da “soleira da sua porta” até
moral e eficácia, qualidade e crescimento, nature- os confins do outro lado do mundo, dos restauran-
za e proveito”(G. Lipovetsky, 1992, p. 227). tes para namorados à instalação de bombas de
O engajamento político, como ele é concebi- água no Sahel.
do hoje em dia, se constrói a partir de um discurso Além disso, o modelo de associação supõe um
de dupla voz: a de um idealismo, sempre ativo, nem controle mais direto sobre a realidade dos proble-
que seja através da obrigação de consciência, e a que mas, um laço mais estreito com os atores envolvi-
inspira o realismo e a renúncia, tamanha a comple- dos e, portanto, a posibilidade de uma maior eficá-
xidade e a amplitude dos problemas que parecem cia. “Engajar-se em uma associação, é mais objeti-
de difícil resolução. Mas no fundo, há pouco lugar vo, mais concreto. Se eu ajudo, gostaria que isso se
nisso para o recuo “individualista”. O engajamen- visse, que haja algo positivo e que sirva.” O discurso
to deve se fazer “fora das cores políticas”. A recusa cheio de imagens deste desenhista-projetista, sobre
das etiquetas, o medo da “arregimentação”, do as- o papel dos sindicatos, é revelador desta redefinição
sujeitamento, e de toda restrição à liberdade de pen- e desta atomização dos modos de ação:

162 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Jovens dos anos noventa

Fazer um sindicato dentro das empresas, sim. dos, tipos de missões sociais no cotidiano, mais cen-
Mas não quero que estejam CGT ou FO por detrás tradas, apoiando-se em uma implicação pessoal do
dele. Quero que seja o sindicato dos Seres Humanos, indivíduo, no seu conhecimento ou na sua experiên-
a par dos problemas, à escuta das pessoas, que não cia imediata do problema, que desencadeariam as
sejam muito grandes. Um micro-sindicato em uma motivações de seu engajamento. A grade dos temas
micro-sociedade. O sindicato dos locatários da 64, rua mobilizadores recenseados nos discursos faz apare-
de Lyon. O sindicato das pessoas que têm algumas cer a dimensão protestatória subjacente a estes mo-
coisas em comum, no trabalho. Que não haja filtro. dos de ação, cada vez menos substituidos pela me-
Que as coisas andem mais rápido. diação das instituições políticas tais como os par-
tidos, os sindicatos ou até mesmo a representação
Idealismo e utilitarismo se misturam para de- parlamentar, e cada vez mais administrados pela
finir formas de engajamento mais “fraternais”. iniciativa autônoma dos indivíduos10.
As causas pelas quais os jovens se declaram Encontramos aí a necessidade de democracia
interessados e eventualmente prontos para se mo- direta mencionado anteriormente. Os exemplos de
bilizarem dizem respeito tanto aos interesses plane- ação a realizar abundam e seriam, se precisasse
tários quanto aos interesses da vida cotidiana. As montar uma lista, tão diversos quanto os problemas
grandes causas clássicas de tipo humanitário ou eco- o são, dos mais graves aos anódinos, que afetam a
logista ocupam um espaço amplo, em torno de três vida cotidiana dos franceses, hoje. Um deles, apai-
quartos dos entrevistados a um momento ou outro xonado por carros, poderia se engajar em uma “as-
da entrevista. A Cruz Vermelha, Médicos-Sem-Fron- sociação da estrada”, para “lutar contra as mortes”.
teiras, Anistia International ou os apelos do coman- Um outro poderia fazer parte de uma associação de
dante Cousteau são algumas das iniciativas às quais bairro para “ajudar as pessoas” e “lutar contra a
os jovens poderiam imaginar se juntar um dia. Um solidão”. Uma jovem estudante de matemática, pro-
ponto comum a todas elas, sempre o mesmo: a au- fundamente ligada à sua cidade de Aveyron, iria à
sência de marca política. Embora os jovens que se luta “para que o campo não morra, para que o mun-
situam politicamente na movimentação da esquer- do rural continue a existir”. Este outro ainda que-
da manifestem uma vontade de engajamento mais ria combater para a programação dos filmes em
marcada que nos outros. VO, nas redes públicas de televisão e nos cinemas
O racismo, a guerra, a subida dos nacionalis- do interior. É preciso também lembrar da ajuda aos
mos podem suscitar impulsos espontâneos parti- doentes aidéticos, das ações a realizar na periferia,
cularmente determinados. A respeito das guerras dos direitos das mulheres, sem esquecer a luta con-
étnicas, um deles, o mesmo porém que avaliava a tra o racismo.
sua escolha política em função de seus interesses No final das contas, só um quarto dos jovens
próprios, seja de ganhador na loto, seja de explo- entrevistados descarta a perspectiva de qualquer
rado pelo patrão, declara: “Se conseguirmos encon- engajamento, seja por excesso de individualismo
trar 20.000 pessoas, fazer uma cadeia e fazer de tal (“A mim, o que me preocupa é a minha vida, a dos
modo que os dois campos que lutam parem, eu en-
tro nesta na hora.” Ou deste outro, resoluto a “en-
trar na guerrilha”, de acordo com o modelo míti-
10 Lembraremos mais uma vez aqui, as considerações
co da Resistência Francesa durante a segunda guerra
de Samuel H. Barnes e de Max Kaase que vêem, no aumen-
mundial, aliás lembrado muitas vezes, caso Le Pen
to destes modos de ação, a expressão de valores pós-mate-
chegue ao poder. rialistas que redefinem a ação política: “Eles estarão obvi-
Paralelamente a este registro clássico de mo- amente entre os primeiros a traduzir a insatisfação política
bilização, outros tipos de intervenção são imagina- em uma ação política corretiva.” (Tradução do revisor).

Revista Brasileira de Educação 163


Anne Müxel

meus amigos, dos meus pais, não quero saber como reta da política. Esta deixa mais ou menos traços
vai o mundo e nem para onde ele vai”), seja por- nos seus discursos e os interesses do movimento são
que eles não se sentem nem prontos nem suficien- decodificados e muitas vezes despojados de parte do
temente seguros de si para concretizar e assumir a entusiasmo e da ilusão que os animava na época.
responsabilidade do engajamento. Mas a experiência permanece inteira e marca data
O conjunto destes discursos sobre engajamen- no percurso da sua socialização política.
to revela portanto grande disponibilidade potencial Além deste evento maior, precisamos consta-
dos jovens. A realidade dos engajamentos efetivos tar a diversidade de ações realizadas por cada um,
que podem deles resultar não é sem dúvida tão oti- em mais ou menos grande escala. Raros são aque-
mista. Os jovens são, aliás, os primeiros a reconhe- les que, a um dado momento, não se envolveram
cê-lo. “Tenho vontade de me engajar. Mas há tam- na ação coletiva.
bém uma certa inércia, uma certa frieza. Uma von- Os jovens situados à esquerda aparecem mais
tade de fazer alguma coisa, mas também um medo motivados e mais ativos do que os outros. Sinal de
do combate”, afirma, como muitos outros, um de- que os traços da herança, mesmo em crise, do en-
les. Será que se encontraria, manifestada nas pala- gajamento de tipo esquerda, perdurariam? Revela-
vras dos nossos entrevistados, a expressão da ideo- dor da necessidade suplementar no campo político,
logia do engajamento que parece se difundir bas- dada a conjuntura atual, capaz de redefinir os in-
tante amplamente, — os textos atuais das canções teresses de uma “nova esquerda”? De qualquer for-
de variedades são, sob este ponto de vista, eloquen- ma, as ações às quais eles participaram dizem mais
tes e portadores de novos valores —, mas que esta- respeito frequentemente a luta contra o apartheid
ria circunscrita nesta nova ética moral “indolor”da e contra o racismo do que no resto da amostra. Ma-
qual fala Gilles Lipovetsky (1992)? Esta supõe ao nifestações, abaixo-assinados, participação em con-
mesmo tempo uma forte tomada de consciência dos certos, até, em certos casos, passagens mais ou me-
problemas, animada dos valores morais fundamen- nos duradouras, em movimentos tais como SOS-
tais que são o altruismo e a tolerância, mas sem Racismo, Anistia International, ou mesmo Luta Ope-
implicar em uma obrigação de devotamento ou de rária. Diversas experimentações da ação política
dever, sem por em causa o próprio indivíduo, nem que testemunham um engajamento relativamente
sem ter incidência direta sobre o curso da vida co- consequente, mas que não são acompanhadas de
tidiana. Será que grandes princípios e pequenos passos nenhuma estruturação militante ou ideológica pro-
podem traçar o caminho de engajamentos reais? funda e persistente.
Se todos não estão dispostos a partir para a A mobilização política dos outros jovens que
Somália, muito pelo contrário, nem mesmo, de uma se situam à direita ou são indeterminados nas suas
forma mais acessível, a aderir a um movimento ou escolhas políticas, parece mais aleatória e obedece
uma associação que tornaria realidade o seu enga- a motivações mais individualizadas, mais atomi-
jamento, a sua disponibilade parece todavia prolon- zadas, defendendo sobretudo interesses categoriais.
gar se além somente de seus discursos. Os seus com- Por este fato mesmo, ela é menos fácil de localizar.
portamentos testemunham de uma capacidade de A relação dos jovens hoje, com o engajamen-
mobilização não desprezível. Todos, mais ou me- to, organiza-se em um espaço de duas dimensões,
nos, se implicaram ou participaram de uma forma quer se trate da sua própria geografia ou de suas
ou de outra, mais ou menos contestatória, em uma orientações estratégicas. Seus territórios podem ser
ação política. ao mesmo tempo muito vastos, o conjunto das pai-
O movimento colegial e estudantil de 1986 sagens e dos interesses em escala planetária está
mobilizou mais da metade dos jovens entrevistados. envolvido, e muito restritos, se limitando às paisa-
Foi a oportunidade para uma experimentação di- gens familiares das contingências existenciais do dia

164 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Jovens dos anos noventa

a dia. Define diferentes momentos de implicação dos nós tentamos explicitar, pode questionar as ar-
respondendo ao mesmo tempo à lembrança dos gran- bitragens clássicas do jogo eleitoral.
des princípios idealistas da moral, com o risco de A existência deste “novo” repertório é um se-
não sobrar senão a intencionalidade de um discur- gundo ensinamento. Se a crise da representação po-
so e à necessidade de reintroduzir um modelo de lítica parece inegavelmente presente, as respostas,
ação concreta, regido pelo imperativo da eficácia. às expectativas são também desenvolvidas. Assim
Mesmo com “pequenos passos”, a sua concepção como é anunciado, ele permite uma reabilitação da
do engajamento define uma “nova” ética de respon- política a partir dos imperativos seguintes: uma exi-
sabilidade que pode se revelar futuramente eficiente gência de moralização de todas as instâncias envol-
e mobilizadora. vidas; uma recusa dos rótulos e uma forte deman-
Concluindo esta leitura exploratória, sentimo- da de reconciliação dos interesses partidários, em
nos desconfortáveis e, sem dúvida, ligados à etapa nome de uma lógica da eficácia e de um maior con-
em que se situa este trabalho — primeira explora- trole sobre a realidade concreta dos problemas a
ção, primeiro inventário —, de não ter dado conta serem tratados; um deslocamento dos interesses e
da trama existencial que, apesar da homogeneida- uma rejeição dos conflitos; uma restauração do va-
de observada, define a relação com o político de lor de engajamento.
cada um dos jovens entrevistados. Todavia, as cons- Terceira constatação, as contradições que le-
tatações esboçadas neste texto respondem a certas vantamos em várias ocasiões na sua interpretação
interrogações que animam os debates atuais sobre da política, e nas suas próprias expectativas, — por
o estado das relações entre os jovens cidadãos e a exemplo, entre a demanda conjunta de esclareci-
política. mento dos interesses, de diferenciação das referên-
Em primeiro lugar, a própria homogeneidade cias, por um lado, e a recusa das clivagens, por ou-
dos discursos é reveladora. Ela se encontra, no pre- tro, ou entre o idealismo e a eficácia pragmática,
sente caso, reforçada pelo fato que os discursos fo- tipo de bandeira bicolor do engajamento político,
ram recolhidos no interior de uma mesma classe de na sua maneira de entender, ou ainda entre a cons-
idade. Entretanto, estes jovens não compartilham ciência planetária e a estratégia dos pequenos pas-
necessariamente a mesma comunidade de experiên- sos, — são o produto de uma situação de transição
cias. Estes interesses próprios às suas condições de entre dois mundos políticos. Os referentes se mis-
“entrada na vida”adulta, de acordo com o meio, turam e se recompõem em lógicas que nem sempre
com os níveis de estudos e de qualificação, não têm são fáceis de identificar pelos próprios atores. Nis-
as mesmas implicações. Estas diferenças não trans- to, os discursos dos jovens se inscrevem em uma
parecem no nível das representações e nem das ex- relação ao mesmo tempo heterônoma e autônoma
pectativas que eles demostram em relação à políti- em relação ao político, até porque eles sofrem as
ca hoje. Sinal de que o mal-estar é geral, sinal de que consequências de uma ruptura relativa na transmis-
o estado das reivindicações é o mesmo, sinal de que são da cultura política entre as gerações.
a espera de uma renovação é unanimemente com- Como encontrar novos substitutos para defi-
partilhada. Deste ponto de vista, a recomposição do nir as condições de emergência de uma “nova” po-
político, que só aconteceria através da anulação lítica que, tal como transparece nos discursos dos
relativa das determinações sociais, já está realiza- jovens, seria uma “pós-política”, sofrendo uma evo-
da. Sem dúvida, estas diferenças se encontram ain- lução comparável à da moral, da modernidade ou
da nas urnas. Os eleitores “contestadores” da nos- do materialismo aos quais foram atribuídos os mes-
sa amostra têm posições mais frágeis ou mais difi- mo prefixos?
cilmente adquiridas que os outros. Mas, enfim, a
difusão do “novo”repertório político, cujos conteú-

Revista Brasileira de Educação 165


Anne Müxel

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166 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Transgressão, desvio e droga

Carlo Buzzi
IARD

Tradução de Nilson Moulin


Publicado em: CAVALLI, Alessandro e LILLO, Antonio (orgs). Giovani anni 90. Bologna: Il Mulino, 1993. Cap. VII.

Premissa Em tempos mais recentes, as tendências de cri-


se, manifestas ou latentes, que surgiram sempre mais
A população juvenil sempre se caracterizou numerosas no contexto nacional, sem dúvida enfra-
por uma propensão transgressiva maior em relação queceram o sentido da legitimidade. Isso provocou,
às normas morais e legais da sociedade, mas foi nos como veremos difusamente mais adiante, um rela-
últimos anos que o distanciamento entre gerações xamento dos princípios éticos na população juvenil
parece ter aumentado. Nas pesquisas anteriores do e talvez não só nela. É sob esta luz que provavel-
IARD, de 1983 e 1987, tal fenômeno se confirmou mente deva ser lido o aumento da propensão trans-
pontualmente: em muitos campos de vivência so- gressiva registrada no início dos anos 90.
cial, a orientação ética dos jovens mostrava uma A respeito desta problemática, no questioná-
certa distância de tudo aquilo que era partilhado e rio aos jovens entrevistados foi proposta, em ana-
considerado legítimo pelo mundo adulto. É óbvio logia com as pesquisas anteriores do IARD, uma
que o processo de evolução social, que comporta lista de 18 comportamentos1. Para cada um deles
mudanças nos costumes e na moral, faz também foi pedido: a) se o consideravam socialmente criti-
com que a validade dos afastamentos das normas cado; b) se, em sua avaliação pessoal, o considera-
codificadas mude e se transforme com o passar do vam admissível; c) se lhes seria possível colocá-lo
tempo. Todavia os modos e as formas com que se em prática.
manifestava a transgressividade entre as novas ge-
rações pareciam bastante estáveis durante a déca-
1 Dos dezoitos comportamentos utilizados na tercei-
da de 80, dando a entender que o inconformismo
ra pesquisa do IARD, catorze já estavam presentes também
perante os valores e as normas dominantes podia nas duas primeiras; em dois comportamentos só foi possí-
ser considerado um aspecto fisiológico da condição vel sua confontação na primeira pesquisa; outros dois fo-
juvenil. ram inseridos no questionário pela primeira vez.

Revista Brasileira de Educação 167


Carlo Buzzi

As respostas à primeira pergunta exprimem a É o caso, por exemplo, da área das relações
percepção dos jovens sobre o juízo dado pela socie- sexuais e conjugais. Os jovens dos anos 90 identi-
dade; aquelas da segunda pergunta exprimem a ficam maior permissividade social para as relações
avaliação de admissibilidade dos próprios jovens; pré-matrimoniais, para a convivência e para o di-
as da terceira exprimem, embora de modo indire- vórcio; o primeiro comportamento, em especial,
to, a tendência dos jovens para assumir comporta- encontra uma significativa maioria dos jovens (três
mentos considerados potencial ou explicitamente quintos) disposto a considerá-lo hoje aceito social-
transgressivos. mente, fenômeno novo, pois nas pesquisas anterio-
res aqueles que não o consideravam criticado não
A percepção das normas sociais ia além da metade dos entrevistados.
Estes resultados mostram como os jovens es-
A análise comparada do trend evolutivo dos tão captando algumas transformações em curso no
modos com que os jovens percebem as normas sociais país. O enfraquecimento progressivo das normas e
mostra alguns afastamentos de certa importância. No dos vínculos sociais ligados à esfera da sexualida-
conjunto, permanece a convicção de que os compor- de, que parece cada vez mais pertencer ao livre ar-
tamentos propostos, em geral, sejam mais criticados bítrio do indivíduo singular e cada vez menos ob-
que tolerados pela sociedade, mas a intensidade de jeto de controle social, é um fenômeno que o con-
tais convicções tende a diminuir sensivelmente em fronto entre as três revelações do IARD permite pôr
alguns âmbitos ético-normativos específicos. em evidência. Todavia, neste contexto, duas são as

Tabela 1
Variações no tempo da percepção das normas sociais. Percentagem dos que consideram criticados
pela sociedade os diversos comportamentos, segundo o ano do levantamento (idade: 15-24 anos)
1983 1987 1992
Área das relações econômicas
Não pagar o transporte público 79,5 74,6 64,6
Faltar ao trabalho com desculpa de doença 77,6 72,8 67,1
Pegar objetos numa loja sem pagar 91,8 91,9 90,2
Falsificar a declaração de renda 74,3 72,3 70,8
Área das relações familiares e sexuais
Divorciar-se 65,0 66,0 62,1
Ter relações sexuais sem ser casados 52,4 50,0 40,9
Ter experiências homossexuais 88,2 91,6 91,5
Morar junto sem ser casados 63,8 61,7 57,2
Ter relação com uma pessoa casada 82,4 82,1 81,8
Área do consumo de drogas
Embriagar-se 78,6 78,5 77,5
Fumar maconha ocasionalmente 90,1 91,1 88,7
Usar drogas pesadas (heroína) 95,2 96,1 97,5
Área da vida humana
Suicidar-se 84,2 – 83,4
Abortar 72,1 75,4 78,8
Matar um inimigo na guerra combatendo pelo próprio país – – 30,3
Área da violência e do vandalismo
Brigar para impor opiniões pessoais 66,6 70,4 67,2
Brigar contra torcedores de outro time – – 90,7
Danificar bens públicos – 90,1 88,8

168 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Transgressão, desvio e droga

exceções, aliás bastante significativas: a homosse- A aceitação máxima é atribuída aos compor-
xualidade, que ainda mantém todas as caracterís- tamentos da esfera sexual; o trend está em alta e,
ticas do tabu social e as relações extra-conjugais, no início da década de 90, os jovens que não con-
comportamentos que pressupõem a não sincerida- sideram aceitáveis no plano ético as relações pré-
de nas relações internas da família. Em ambos os matrimoniais ou o divórcio ou então morar juntos,
casos, o estigma social é percebido pela grande maio- constituem uma minoria. Emerge, em tal contexto,
ria dos jovens. também uma tolerância maior em relação ao ho-
Um segundo âmbito no qual é possível notar mossexualismo.
a atenuação da constrição das regras sociais é cons- Da mesma forma, os comportamentos ligados
tituído pelos comportamentos ligados às relações à área econômica mostram uma tendência a uma
econômicas. Assim os entrevistados parecem um avaliação cada vez menos rígida. Transparece im-
pouco mais propensos a considerar tolerável viajar plicitamente um certo relaxamento da moral rela-
num transporte público sem pagar a passagem ou cionada com os deveres cívicos.
faltar ao trabalho sem motivo válido ou enganar o Assim, muitos são os comportamentos pelos
fisco. quais se concretiza entre os jovens um menor rigor
Também neste caso os jovens parecem receber em relação ao passado. Todavia existem 3 exceções
da sociedade algumas práticas comportamentais relevantes: convém notar como, tanto as relações
que desvalorizaram pesadamente o sentido do de- extra-conjugais quanto o aborto e os comportamen-
ver cívico por parte do cidadão. tos violentos aparecem com redução progressiva no
Ao contrário, continua substancialmente está- que concerne à aceitação (tabela 2).
vel no tempo o modo de entender a moral social no O quadro geral que emerge revela um cruza-
que concerne ao uso de substâncias psicotrópicas, mento heterogêneo de fatores que interagem e tor-
ao recurso à violência e à esfera da tutela da vida nam complexa a relação entre moral comum e mo-
humana. Neste último campo, encontramos o úni- ral juvenil. Para entender melhor sua lógica é útil
co comportamento que denota um incremento no- o confronto entre normas sociais e códigos morais
tável de intolerância captada: abortar, aos olhos dos pessoais.
jovens, parece cada vez mais uma opção socialmente A transgressão das normas submetidas à regu-
criticada (tabela 1). lação dos comportamentos privados encontra os
jovens altamente tolerantes, muito mais do que eles
As normas individuais percebem que a sociedade o seja. Sob tal ótica a li-
berdade sexual, a convivência, o divórcio, são ava-
Deslocando a análise da moral social para a liados como opções praticadas por indivíduos cons-
pessoal, o quadro abrangente muda sensivelmente. cientes, plenamente legitimados para realizá-las.
Baseando-nos nas declarações de aceitação relati- Ao contrário, o que não se tolera é quando a
vas aos comportamentos propostos, os dados da transgressão viola os direitos do outro. É o caso dos
última pesquisa do IARD, conforme o das pesqui- comportamentos violentos, em relação aos quais a
sas anteriores, mostram uma forte propensão juve- recusa dos jovens é maior do que aquela que se di-
nil a se considerar pessoalmente mais tolerantes do funde na sociedade. Neste contexto, também encon-
que a sociedade em que vivem. Mas é um fenôme- tra espaço crescente o rechaço à infidelidade con-
no que se manifesta em termos de intensidade per- jugal e ao aborto, embora os jovens permaneçam
missiva mais que de qualidade, no sentido de que em relação a ambos muito mais permissivos do que
os comportamentos com maior punição social, bem consideram ser o mundo dos adultos.
como os mais aceitos, encontram também um con- São as normas instituídas para a convivência
fronto no mesmo sentido por parte da moral juvenil. social que vão encontrar jovens e sociedade numa

Revista Brasileira de Educação 169


Carlo Buzzi

Tabela 2
Variação no tempo das regras de conduta individuais. Percentagem daqueles que consideram
admissíveis os diversos comportamentos por ano de levantamento (idade: 15-24 anos)
1983 1987 1992
Área das relações econômicas
Não pagar o transporte público 26,3 25,5 35,1
Faltar ao trabalho com desculpa de doença 28,6 32,2 38,5
Pegar objetos numa loja sem pagar 10,9 9,3 9,3
Falsificar a declaração de renda 24,9 28,7 28,3
Área das relações familiares e sexuais
Divorciar-se 73,8 74,1 78,6
Ter relações sexuais sem ser casados 79,9 79,8 84,9
Ter experiências homossexuais 36,7 30,9 40,8
Morar junto sem ser casados 76,2 79,0 77,9
Ter relação com uma pessoa casada 53,0 49,3 48,0
Área do consumo de drogas
Embriagar-se 49,8 49,6 49,2
Fumar maconha ocasionalmente 26,9 20,8 27,6
Usar drogas pesadas (heroína) 8,8 6,7 7,7
Área da vida humana
Suicidar-se 21,8 – 18,6
Abortar 57,6 51,8 47,5
Matar um inimigo na guerra combatendo pelo próprio país – – 55,7
Área da violência e do vandalismo
Brigar para impor opiniões pessoais 35,7 33,7 31,6
Brigar contra torcedores de outro time – – 7,0
Danificar bens públicos – 6,2 3,6

sintonia singular. Só o furto é estigmatizado ampla- de praticar um ato sujeito a reprovação social, a
mente: as demais transgressões, incluindo a evasão situação contingente poderia induzir à transgressão.
fiscal, cada vez mais parecem fazer parte daquela Por isso juntamos os “sim” com os “não sei”, con-
área de admissibilidade que associa setores consi- siderando-os como expressão de uma potencial pro-
deráveis das velhas e novas gerações. pensão transgressiva.
Aqui os dados mostram maior estabilidade no
A propensão a transgredir tempo com relação aos outros dois planos de aná-
lise. Os comportamentos que denotam um aumen-
As tendências transgressivas dos jovens foram to significativo da possiblidade de transgredir as
analisadas com a pergunta sobre a possibilidade de normas sociais são apenas três: viajar num meio
pôr em prática os vários comportamentos propos- público sem pagar (de 83 a 92 o afastamento é de
tos. Como as modalidades de resposta eram “sim”, 8% a mais), faltar ao trabalho com desculpa de
“não”, “não sei”, interpretamos as afirmações po- doença (+ 7%), ter relações sexuais sem ser casa-
sitivas como tendências evidentes para a violação dos (+ 5%) (tabela 4).
normativa, as negativas como introjeção plena e No conjunto, tudo o que se afirmou anterior-
aceitação da norma e o “não sei” como instabili- mente sobre os critérios de aceitação “teórica” é
dade do código moral. Em outras palavras, a incer- reiterado também com referência à possibilidade
teza pode significar que, mesmo tendo consciência prática de transgredir. Tudo o que concerne à es-

170 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Transgressão, desvio e droga

Tabela 3
Coerência entre normas sociais e individuais. Percentagem dos que consideram os comportamentos
criticados e não admissíveis segundo o sexo e a idade
M F M F M F M F
15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 Tot.
anos anos anos anos anos anos anos anos
Área das relações econômicas
Não pagar o transporte público 37,6 43,5 46,9 46,6 44,3 50,7 50,9 59,0 48,2
Faltar ao trabalho com desculpa de doença 48,1 37,3 50,8 42,9 54,0 44,9 58,8 57,3 50,3
Pegar objetos numa loja sem pagar 75,2 82,8 84,6 85,9 79,8 87,1 84,0 87,3 83,6
Falsificar a declaração de renda 59,4 58,9 55,9 60,1 48,5 52,2 50,5 54,8 54,3
Área das relações familiares e sexuais
Divorciar-se 20,5 12,1 21,4 14,3 16,7 13,5 14,4 15,2 15,8
Ter relações sexuais sem ser casados 9,2 16,4 9,0 15,0 4,7 11,0 4,0 13,7 9,8
Ter experiências homossexuais 66,4 52,4 63,2 49,6 58,0 45,8 53,1 48,3 53,9
Morar junto sem ser casados 11,2 21,9 16,9 18,1 15,8 17,4 10,8 20,2 16,3
Ter relação com uma pessoa casada 44,4 55,4 45,5 52,0 32,2 47,3 34,2 48,9 43,9
Área do consumo de drogas
Embriagar-se 40,1 46,1 42,6 50,8 37,4 43,8 33,2 46,2 41,9
Fumar maconha ocasionalmente 68,6 68,8 66,8 69,2 55,1 69,3 60,3 67,2 65,0
Usar drogas pesadas (heroína) 89,3 88,8 89,4 91,5 88,4 92,3 90,1 91,2 90,2
Área da vida humana
Suicidar-se 69,3 68,4 71,6 74,7 72,6 69,2 67,3 67,8 69,9
Abortar 45,8 44,2 49,8 41,6 41,4 40,9 36,0 41,5 42,0
Matar um inimigo na guerra combatendo
pelo próprio país 16,2 16,7 15,3 16,3 17,5 18,1 13,5 18,9 16,6
Área da violência e do vandalismo
Brigar para impor opiniões pessoais 40,7 47,2 52,8 54,7 53,5 54,9 56,7 59,9 53,4
Brigar contra torcedores de outro time 86,0 84,1 85,8 86,2 87,8 84,6 89,1 86,5 86,5
Danificar bens públicos 85,5 82,8 88,2 84,7 88,4 86,3 86,9 87,6 86,5

fera privada do indivíduo está amplamente aberto O confronto entre os dois níveis mostra como
a escolhas que não colocam sérios dilemas morais, apenas poucas transgressões encontram os jovens
a tal ponto que teríamos dificuldades, por exemplo, unanimemente coerentes ao recusá-las no plano mo-
para definir as relações pré-matrimoniais como vi- ral e no de uma hipotética realização concreta. São
olação de uma norma social (apenas 1 jovem sobre aqueles comportamentos que poderíamos definir
6 exclui categoricamente a eventualidade, assim co- explicitamente “desviantes”. Por ordem: os atos de
mo só 1 sobre 4 garante que nunca se divorciará e vandalismo, o consumo de drogas pesadas, a vio-
1 sobre 3 que não vai conviver sem ser casado). lência desportiva, o roubo. Todo o restante parece
Desrespeitar as normas que regulam a vida dos mais controverso. Em geral, a coerência aumenta
indivíduos na esfera pública, que vimos ser consi- com a idade e as moças são mais coerentes que os
derado admissível por uma minoria significativa de rapazes, conforme a pesquisa de 87 já havia eviden-
jovens, parece envolver na prática uma cota bem ciado. Entre os subgrupos da amostragem separa-
mais ampla, em alguns casos superior à metade dos dos por sexo e por idade, destaca-se o dos adoles-
entrevistados. Isso remete ao problema da coerên- centes masculinos (15-17 anos); neles a presença de
cia entre códigos éticos e comportamentos de fato. tensões quanto aos comportamentos que implicam

Revista Brasileira de Educação 171


Carlo Buzzi

Tabela 4
Variações no tempo das atitudes de “não exclusão” da possibilidade de transgredir as normas sociais.
Percentagem daqueles que consideram possíveis os diversos comportamentos, o que não exclui a
possibilidade de praticá-los, por ano de levantamento (idade: 15-24 anos)
1983 1987 1992
Área das relações econômicas
Não pagar o transporte público 53,9 54,6 62,1
Faltar ao trabalho com desculpa de doença 49,1 50,5 55,9
Pegar objetos numa loja sem pagar 14,9 12,8 12,7
Falsificar a declaração de renda 42,5 40,4 37,8
Área das relações familiares e sexuais
Divorciar-se 72,3 70,1 72,8
Ter relações sexuais sem ser casados 79,6 79,6 84,3
Ter experiências homossexuais 10,8 5,2 4,4
Morar junto sem ser casados 64,6 64,9 65,8
Ter relação com uma pessoa casada 56,1 49,6 49,8
Área do consumo de drogas
Embriagar-se 51,0 49,3 48,7
Fumar maconha ocasionalmente 18,4 14,6 19,1
Usar drogas pesadas (heroína) 5,7 3,8 3,3
Área da vida humana
Suicidar-se 13,9 – 10,7
Abortar 42,9 42,0 40,4
Matar um inimigo na guerra combatendo pelo próprio país – – 48,2
Área da violência e do vandalismo
Brigar para impor opiniões pessoais 44,6 43,7 40,1
Brigar contra torcedores de outro time – – 11,6
Danificar bens públicos – 10,1 7,7

vandalismo e violência é notoriamente mais forte Figura 1


(tabela 5). Tipologia da propensão à transgressão
No conjunto, muitos jovens parecem possui-
dores de instâncias morais e de propensão à ação
Desviantes
que se diferenciam, em diversos níveis, daquelas que
8%
são as expectativas captadas do mundo adulto. Por-
Oportunistas Integrados
tanto, estabelecemos o objetivo de identificar, na
17,8% 36,6%
ampla variedade de atitudes juvenis, uma tipologia
que reagrupasse os entrevistados ao redor de mo-
dalidades homogêneas de orientação geral em re-
lação ao comportamento transgressivo.
Por meio de uma série de cluster analysis a
solução mais simples e convincente pôs em evidên-
cia 4 grupos de jovens que refletem igual número
de modos típicos de relacionar-se com a eventuali-
dade de incorrer em comportamentos socialmente Permissivos
reprováveis (figura 1). 37,6%

172 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Transgressão, desvio e droga

Tabela 5
Coerência entre normas individuais e comportamento. Percentagens dos que consideram não
admissíveis nem praticáveis os diversos comportamentos segundo o sexo e a idade
M F M F M F M F
15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 Tot.
anos anos anos anos anos anos anos anos
Área das relações econômicas
Não pagar o transporte público 19,9 32,3 30,7 35,6 33,1 42,4 42,0 54,0 37,7
Faltar ao trabalho com desculpa de doença 30,4 25,8 43,3 36,7 46,6 42,5 60,0 58,3 45,0
Pegar objetos numa loja sem pagar 73,0 85,1 80,9 87,9 81,3 87,3 85,2 90,1 84,3
Falsificar a declaração de renda 51,0 62,1 55,7 59,3 44,6 58,3 57,1 63,8 56,4
Área das relações familiares e sexuais
Divorciar-se 15,1 15,0 16,4 11,8 15,0 13,8 11,4 14,8 14,0
Ter relações sexuais sem ser casados 10,0 19,8 5,3 14,2 3,9 11,2 5,0 14,3 10,0
Ter experiências homossexuais 69,6 56,9 63,8 53,7 61,7 48,2 54,0 49,6 56,4
Morar junto sem ser casados 12,4 26,0 19,3 22,6 15,7 22,0 13,3 25,4 19,4
Ter relação com uma pessoa casada 30,4 54,7 33,9 46,8 23,9 45,9 27,3 49,2 38,3
Área do consumo de drogas
Embriagar-se 28,0 44,9 31,0 46,5 30,5 42,9 27,7 47,9 37,2
Fumar maconha ocasionalmente 66,4 73,7 64,9 71,4 57,3 73,5 62,3 70,2 66,9
Usar drogas pesadas (heroína) 86,7 91,0 91,4 92,7 87,0 92,3 90,9 92,6 90,6
Área da vida humana
Suicidar-se 74,9 74,2 79,1 77,8 79,4 75,5 77,2 74,1 76,6
Abortar 43,5 50,2 53,5 41,9 42,4 44,2 36,7 42,3 43,6
Matar um inimigo na guerra combatendo
pelo próprio país 20,8 43,4 20,1 48,4 27,5 44,0 25,4 42,5 34,0
Área da violência e do vandalismo
Brigar para impor opiniões pessoais 31,3 62,1 45,7 59,7 48,2 65,7 48,8 69,4 54,6
Brigar contra torcedores de outro time 67,4 88,9 80,9 89,1 86,0 92,1 87,4 92,6 86,4
Danificar bens públicos 74,3 88,5 90,7 94,7 91,5 96,2 93,6 94,5 91,2

No primeiro grupo, que poderíamos definir tificáveis com as do grupo precedente. Pensando
como o dos integrados, é possível reconhecer 36,6% bem, poderíamos considerar tais jovens como inte-
da amostragem. O tipo se caracteriza por um baixo grados oportunistas, cujos códigos morais coinci-
índice de propensão em todos os possíveis “desvios”, dem com os da ética comum até que o interesse cole-
exceto alguns relativos à esfera das relações sexuais, tivo exige certos custos ao indivíduo. No conjunto,
que vimos serem hoje amplamente difundidos; do encontramos neste grupo 17,8% da amostragem.
mesmo modo também neste âmbito as percentagens O terceiro tipo, dos permissivos, surge como
de propensão para transgredir se mantêm de ma- portador de instâncias mais articuladas. O perfil
neira considerável abaixo da média geral. ético que daí emerge pode ser relacionado com es-
Um segundo grupo, que denominamos opor- tilos de vida permissivos que provavelmente carac-
tunistas, é representado por jovens caracterizados terizam as tendências evolutivas da cultura juvenil
por um sentido modesto dos deveres civis. As ten- moderna. Duas parecem ser as características que
dências transgressivas se direcionam todas para a mais chamam a atenção. A primeira concerne à li-
área das relações econômicas (exceto o furto); quan- beralidade quase unânime em relação aos compor-
to ao restante as atitudes que emergem são iden- tamentos sexuais (com exceção do homossexualis-

Revista Brasileira de Educação 173


Carlo Buzzi

Tabela 6
Tipologia da propensão à transgressão (15-29 anos)
Tipologia
Integrados Oportunistas Permissivos Desviantes Total
Área das relações econômicas
Não pagar o transporte público 20,0 86,6 71,4 93,4 57,1
Faltar ao trabalho com desculpa de doença 17,5 89,5 53,5 85,9 49,3
Pegar objetos numa loja sem pagar 1,9 5,7 6,9 81,2 10,9
Falsificar a declaração de renda 11,8 52,4 42,8 76,6 35,8
Área das relações familiares e sexuais
Divorciar-se 49,4 61,1 94,0 86,9 71,5
Ter relações sexuais sem ser casados 67,9 77,0 98,7 96,9 83,4
Ter experiências homossexuais 1,8 1,4 5,9 20,8 4,8
Morar junto sem ser casados 37,1 39,1 93,4 88,3 62,7
Ter relação com uma pessoa casada 18,3 22,7 85,0 83,2 49,4
Área do consumo de drogas
Embriagar-se 17,6 30,8 76,2 86,2 47,4
Fumar maconha ocasionalmente 2,9 5,0 29,7 61,4 18,1
Usar drogas pesadas (heroína) 0,4 0,9 2,7 21,3 3,0
Área da vida humana
Suicidar-se 4,8 5,2 14,8 33,2 10,9
Abortar 19,2 27,6 63,2 71,8 41,5
Matar um inimigo na guerra combatendo pelo próprio país 33,8 40,5 62,0 66,8 48,2
Área da violência e do vandalismo
Brigar para impor opiniões pessoais 21,2 33,0 49,3 78,7 38,5
Brigar contra torcedores de outro time 3,5 7,5 9,9 47,2 10,1
Danificar bens públicos 1,7 6,6 3,8 38,1 6,2

mo). Neste contexto, pode ser incluído também o Minoritário (8,0% dos entrevistados) mas nem
modo diferente de considerar o aborto; se nos pri- por isso de menor importância é o quarto grupo,
meiros dois grupos as práticas abortivas eram for- que reunimos sob a definição de desviantes. Entre
temente estigmatizadas por serem ligadas à esfera esses jovens, a propensão à transgressão é parti-
da defesa da vida humana, neste terceiro grupo, elas cularmente difundida e indiferenciada. Todos os
parecem mais inerentes ao âmbito sexual, a ponto itens propostos apresentam altos índices, mesmo
de dois terços não excluírem a possibilidade de se para aqueles relativos a comportamentos violentos,
envolverem com elas. A segunda característica pa- ao roubo em lojas e à droga, a ponto de podermos
rece relacionada à cultura da addiction: embriagar- definir o grupo como sob grande risco de desvio.
se ou o uso de drogas leves atingem níveis de pro- Na tabela 6 é apresentado o perfil típico dos
pensão bem superiores à média da amostragem. Ao quatro grupos em relação aos 18 comportamentos
contrário, o grupo dos permissivos, que é compos- transgressivos utilizados.
to por 37,6% dos entrevistados, mesmo não poden- Os tipos registrados se distribuem de modo
do ser definido completamente fiel quanto às nor- diferente em relação às condições sociodemográfi-
mas que regulam as relações econômicas e civis, cas. Isso torna mais fácil avaliar seu significado real.
demonstra por esta área níveis de transgressão in- Sublinhando que o sexo tem uma influência
feriores, embora consistentes, àqueles típicos do relevante, pois entre os tipos “integrados” e “opor-
segundo grupo. tunistas” prevalece a presença feminina e nos ou-

174 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Transgressão, desvio e droga

Tabela 7
Tipologia da propensão à transgressão por algumas condições sociodemográficas (%)
Sexo Idade
Tipologia Total Masculino Feminino 15-17 18-20 21-24 25-29
Integrados 36,6 28,8 44,6 28,2 34,5 33,9 45,5
Oportunistas 17,8 14,0 21,8 26,1 20,2 16,2 12,8
Permissivos 37,6 46,7 28,2 31,5 38,6 41,6 37,0
Desviantes 8,0 10,5 5,4 14,3 6,7 8,4 4,6
100,0 100,00 100,00 100,0 100,0 100,0 100,0
Segmento Social de Origem Região
Superior Funcionários Autônomos Operários Noroeste Nordeste Centro/Ilhas Sul
Integrados 25,6 34,7 41,5 42,7 35,5 33,0 27,4 42,3
Oportunistas 19,2 17,6 17,7 16,7 11,5 14,1 20,7 21,6
Permissivos 44,8 40,0 34,2 32,9 44,0 42,6 43,3 29,7
Desviantes 10,4 7,7 6,7 7,6 9,0 10,3 8,5 6,3
100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

tros dois a masculina, adquire interesse especial a A avaliação e a propensão ao uso de drogas
composição dos grupos segundo a idade. Sob este
aspecto a maior incidência de jovens adolescentes A percepção social e a
nos tipos “oportunistas” e “desviantes” redimen- imagem pessoal do uso de drogas
siona, num certo sentido, a relevância de tais incli-
nações, destinadas, com o aumento da idade, a re- Que o consumo de drogas seja considerado
duzir-se quantitativamente. É muito provável que comportamento socialmente reprovado é uma con-
haja uma incidência, por um lado, de maior cons- vicção amplamente difundida entre os jovens, mas
ciência dos adolescentes quanto à coisa pública e, ao contrário não é tão difusa a crítica pessoal a tal
por outro lado, uma propensão acentuada para com- consumo. Ou melhor, as opiniões se diferenciam de
portamentos notoriamente desviantes pode ser lida modo consistente em relação à substância psicotró-
como o resultado de identidades ainda em constru- pica considerada: grande tolerância para as drogas
ção que vêem na transgressão, mais teórica que real, comumente chamadas de “leves”, maior rigor para
uma modalidade de auto-afirmação. as “pesadas”.
Contudo, são as determinações geográficas que Referindo-nos a duas situações distintas, “fu-
assinalam a persistência também no interior do uni- mar maconha ocasionalmente” e “usar drogas pe-
verso juvenil de culturas diferentes. Os “integrados” sadas (heroína)”, a percentagem de jovens que con-
atingem a densidade máxima nas regiões meridio- sidera que o uso de drogas não seja criticado de
nais e a mínima nas centrais. Os jovens do centro e modo especial pela sociedade é muito restrita: 11,3%
do sul do país encontram-se associados por sua pre- no primeiro caso e 2,5% no segundo. Porém, se o
sença marcante no grupo dos “oportunistas”. Por juízo se desloca para o nível pessoal, para exprimir
fim, a região meridional se distingue por uma ten- a aceitação ou a recusa do uso de drogas, a atitude
dência menor à permissividade, tendência que se tolerante assume dimensões mais relevantes: 28,6%
afirma como majoritária nas outras três realidades para a maconha e 7,5% para a heroína. O confron-
italianas (tabela 7). to entre estes dois juízos demonstra como os jovens
são muito mais permissivos do que eles julgam ser
a sociedade ao avaliar os comportamentos ligados
ao consumo de estupefacientes. Dois jovens em cada

Revista Brasileira de Educação 175


Carlo Buzzi

Tabela 8
A propensão ao uso de drogas (percentagem daqueles que NÃO excluem que poderia acontecer com eles)
Sexo Idade
Tipologia Total Masculino Feminino 15-17 18-20 21-24 25-29
Maconha 18,0 21,8 14,1 17,9 19,0 19,8 15,9
Heroínas 3,0 3,9 2,2 4,7 2,0 3,3 2,5
Segmento Social de Origem
Superior Funcionários Autônomos Operários Camponeses
Maconha 26,7 18,1 14,2 16,8 8,1
Heroínas 3,1 2,6 1,8 4,2 1,7
Amplitude comum (x 1.000) Regiões
>250 50-250 20-50 <10 Noroeste Nordeste Centro Sul Ilhas
Maconha 26,1 18,3 13,0 17,0 20,6 19,3 21,7 15,2 12,9
Heroínas 5,2 1,4 2,2 3,3 2,9 2,3 3,8 3,3 2,5

grupo de 7 declaram assim o uso de drogas “leves” fenômeno quantitativamente de grande relevância:
perfeitamente compatível com os próprios códigos mesmo com as devidas cautelas, é de fato possível
morais. Tal posição é mais difusa entre os homens, estimar ao redor de 2 milhões e meio os jovens que,
entre os segmentos sociais médio-superiores e au- embora abstratamente, não se consideram comple-
menta com a idade. Também as variáveis territoriais tamente estranhos à cultura da droga. A idade não
exercem uma influência significativa: a tolerância parece ter uma grande influência na determinação
de fato atinge o máximo nas áreas metropolitanas desta atitude, à diferença do sexo, da classe social
(nos centros com mais de 250 000 habitantes, os e das variantes regionais. A propensão ao uso é de
jovens que não condenam o uso de drogas leves fato notavelmente mais acentuada entre os homens,
supera 40%) e naquelas com desenvolvimento eco- entre os segmentos superiores, nas áreas metropoli-
nômico mais alto (nas regiões centro-setentrionais tanas e nas regiões do centro e do norte do país. Es-
do país a percentagem de jovens permissivos gira tas últimas indicações demonstram que a cultura da
ao redor de 34-37% contra o índice bem mais mo- droga não está diretamente relacionada com fenô-
desto de 19% das regiões meridionais). menos de marginalidade e de subdesenvolvimento;
ao contrário, os mais expostos pareceriam aqueles
A propensão ao uso de drogas grupos sociais marcados por características que po-
deríamos definir como privilegiadas (tabela 8).
Considerar pessoalmente admissível o consumo
de substâncias psicotrópicas ilegais exprime uma ava- O contato com o mundo da droga
liação genérica sobre um problema social mas não im-
plica necessariamente um envolvimento pessoal. Este A incidência real que o fenômeno droga pode
aspecto foi indagado, embora de modo indireto, com ter como fato social e cultural entre os jovens deve
uma pergunta específica: “Teria acontecido de o en- contudo ser necessariamente medida em termos de
trevistado haver fumado maconha ocasionalmente” “contatos” com o mundo da droga.
ou então “usar uma droga pesada como a heroína”? Um primeiro indicador importante é o conhe-
Os dados parecem bastante significativos: qua- cimento de pessoas que usam drogas. No conjun-
se um jovem sobre 5 não exclui a experiência do to, mais de um jovem em cada dupla conhece, nem
consumo de drogas leves ao passo que quase 1 em que seja superficialmente, consumidores habituais.
cada grupo de 30 não exclui o consumo de drogas Mas é dos dados relativos à experiência pessoal que
pesadas. Encontramo-nos portanto diante de um emerge como uma grande parte dos jovens é expos-

176 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Transgressão, desvio e droga

ta à droga de modo direto. Aqui é oportuno esta- to direto com a substância, cota que se eleva a 44%
belecer, uma vez mais, uma distinção entre drogas se considerarmos só os homens. Entre os segmen-
“leves” e drogas “pesadas” pois o fenômeno se ar- tos sociais, a maior contribuição é dada pelos jo-
ticula diversamente. Falar com alguém que consu- vens provenientes de famílias de classe elevada (fi-
miu haxixe ou maconha faz parte da experiência de lhos de empresários, profissionais liberais, dirigen-
quase 40% dos jovens entrevistados, bem como cer- tes). Além disso, o fenômeno encontra sua maior
ca de 30% viu jovens que tinham consumido há concentração nos centros com mais de 50 000 ha-
pouco (ou talvez estavam consumindo) tais tipos de bitantes e em particular nas grandes cidades do nor-
drogas. Estamos ainda num nível superficial de con- te e do centro da Itália.
tato onde o caráter ocasional ou involuntário do De que modo a proximidade com o mundo da
fato poderia também ter tido o seu peso. É diferente droga influi na propensão ao consumo? Eis uma ques-
se avaliamos o contato físico com a substância ou tão destinada a não produzir respostas satisfatórias.
a oportunidade concreta de consumo: 20,6% dos No âmbito das pesquisas extensivas usando questio-
jovens entrevistados viu ou tocou maconha; 23,1% nários, as perguntas diretas, quando tocam esferas
receberam propostas para experimentá-la. privadas muito delicadas, não conseguem quantificar
A experiência de contato com o mundo, bem de modo confiável um determinado fenômeno. Igual-
mais preocupante, da heroína ou da cocaína, é me- mente a pesquisa oferece alguns elementos de refle-
nos freqüente mas em termos relativos decididamen- xão. Dentre os entrevistados, 9,5% declara ter sen-
te relevante: 26,2% falaram com consumidores, tido o desejo ou a curiosidade de provar haxixe ou
20,2% viram alguém usar tais drogas, 3,4%, dado maconha, e já vimos no parágrafo anterior que 18%
emblemático, viu ou tocou uma dessas substâncias, não exclui que isso poderia acontecer. Se deslocamos
3,8% foi convidado a experimentá-las. a atenção para as drogas pesadas, 3,4% sentiu pelo
Tais contatos constituem por si mesmos uma menos uma vez o desejo ou a curiosidade de experi-
“fotografia” da extensão do fenômeno, contudo se mentar heroína ou cocaína e uma percentagem quase
deve considerar que, com toda probabilidade, o da- idêntica (3%) não exclui que isso poderia acontecer.
do quantitativo esteja subdimensionado: a delica- Trata-se de dados que, mesmo que não fossem, como
deza do tema faz com que muitas reticências sejam na realidade são, subdimensionados, seriam consis-
previsíveis. De qualquer modo a relevância dos da- tentes por si mesmos (tabela 9).
dos mostra como a experiência de ocasiões de pro-
ximidade com o mundo da droga não é coisa de Um “trend” em alta
pequenas franjas de marginais mas sim de uma con-
siderável minoria de jovens. O cotejo entre os levantamentos da primeira
As variáveis que mostram as correlações mais e da segunda pesquisas nacionais do IARD sobre a
significativas são o sexo, a idade, a extração social, condição juvenil tinha evidenciado quanto o fenô-
a amplitude do município de residência e a região meno “vizinhança com o mundo da droga” estava
de origem. Se tomarmos como exemplo o indica- diminuindo. Na terceira pesquisa, a tendência não
dor que mais aparece associado à contigüidade com apenas se inverteu, mas todos os indicadores mais
o fenômeno — ver ou tocar qualquer tipo de dro- significativos utilizados alcançaram e superaram o
ga — os homens denotam uma percentagem de “ex- nível, já alto, de 1983-84.
posição” dupla em relação às mulheres. Com o au- Analisemos brevemente os dados: a convicção
mento da idade, aumentam também as ocasiões de de que o consumo de substâncias psicotrópicas ile-
risco, atingindo seus níveis máximos na faixa de 21- gais seja condenado pela maioria das pessoas mos-
24 anos: basta pensar que um quarto dos jovens tra um trend divergente conforme o tipo de droga.
deste grupo declara ter tido experiências de conta- Em relação às revelações precedentes surge o dado

Revista Brasileira de Educação 177


Carlo Buzzi

Tabela 9
Contatos com o mundo das drogas (qualquer tipo) por segmento social de origem (%)
Segmento social de origem
No conjunto Superior Funcionários Autônomos Operários Camponeses
Aconteceu com você:
Falar com alguém que tenha usado
drogas ao menos uma vez 56,5 70,7 56,6 54,8 53,9 34,5
Conhecer pessoas que usam droga
regularmente 54,4 63,9 56,3 52,0 51,4 39,7
Ver alguém que havia acabado de
consumir droga 43,0 54,3 46,4 43,9 34,9 29,9
Receber convites para provar (ou
comprar) qualquer tipo de droga 26,0 37,3 26,9 22,4 21,6 19,5
Ver ou provar qualquer tipo de droga 22,8 32,6 23,1 20,7 18,6 18,4

Tabela 10
Variações no tempo da percepção das normas sociais (percentagem dos que consideram NÃO
criticáveis pela sociedade os comportamentos ligados ao consumo de drogas)
1983 1987 1992
Maconha 9,6 8,7 11,2
Heroína 4,5 3,5 2,5

Tabela 11
Variação no tempo da avaliação pessoal sobre o uso de drogas (percentagem dos que consideram
admissíveis comportamentos ligados ao consumo de drogas)
1983 1987 1992
Maconha 26,9 20,8 27,6
Heroína 8,8 6,7 7,7

Tabela 12
Variação no tempo da propensão ao uso de drogas (percentagem dos que NÃO excluem
que poderia acontecer com eles)
1983 1987 1992
Maconha 18,4 14,6 19,1
Heroína 5,7 3,8 3,3

de que os jovens de hoje, talvez por causa das re- que, embora em alta comparando-se com 1987, ain-
centes e reiteradas campanhas sociais visando com- da não atingiu os níveis de 1983 (tabela 11).
bater sobretudo o uso da heroína, tenham em seu A propensão explícita ao consumo de drogas,
conjunto a imagem de uma sociedade mais decidi- ou melhor, a não negação decidida de que a expe-
da a combater as drogas pesadas, porém mais to- riência de provar drogas possa ocorrer, mostra igual-
lerante quanto às leves (tabela 10). mente maior abertura às drogas leves que contras-
Deslocando a análise para as regras de conduta ta com um juízo mais severo em relação às pesadas.
individual, as declarações de aceitação do uso de es- Portanto, o fenômeno é interessante pois transpa-
tupefaciantes como a maconha registram um aumento rece, ao menos nas opiniões e nas crenças dos jo-
em toda a linha; é diferente no que concerne à heroína vens, uma tendência a distinguir e diferenciar os

178 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Transgressão, desvio e droga

Tabela 13
Variação no tempo dos indicadores de contato com o mundo das drogas (%)
1983 1987 1992
Aconteceu com você:
Falar com alguém que tenha usado drogas ao menos uma vez 54,8 46,8 56,6
Conhecer pessoas que utilizam droga regularmente 39,3 32,8 54,9
Ver alguém que havia acabado de consumir alguma droga 44,7 39,1 43,7
Receber convites para provar (ou comprar) qualquer tipo de droga 21,1 nr 24,9
Ver or provar qualquer tipo de droga 20,4 10,8 22,6
Sentir desejo (oucuriosidade) de provar alguma droga 7,8 4,5 10,7

efeitos das substâncias estupefacientes (tabela 12). Se, no conjunto, os jovens parecem portado-
Os dados objetivos de exposição à droga estão res de uma moral que se distancia progressivamente
em franco aumento. Conhecer jovens que delas se dos valores tradicionais, no específico, é nas atitu-
utilizam faz parte da experiência de mais da metade des e nos comportamentos quanto ao uso de subs-
dos entrevistados, quando em 1987, dizia respeito só tâncias psicotrópicas que estão se difundindo no-
a um terço deles; o contato físico com uma substância vos modelos culturais.
estupefaciente mais que dobrou, como também a O caráter de “desvio” ligado à proximidade
confissão de ter vontade (ou só a curiosidade) de com o mundo da droga é posto em discussão tan-
experimentá-la. Já vimos como tais resultados se to de um ponto de vista quantitativo (percentagens
aplicam sobretudo às drogas leves mas a consistência muito elevadas de jovens são envolvidos nele com
do fenômeno, mensurado em sua evolução quanti- intensidade variável) quanto qualitativo (o “perfil”
tativa, é sem dúvida muito preocupante (tabela 13). social do jovem envolvido parece amplamente
A última questão relacionada às drogas esta- indiferenciado).
va centrada nas opiniões dos jovens quanto a uma Portanto, não parece existir nenhum critério
eventual legalização futura do uso dos estupefaci- previsível que induza relações significativas entre
entes. Os contrários superam de modo bem nítido predisposição para o consumo e características só-
os favoráveis; contudo, estes últimos atingem cer- cio-econômicas dos entrevistados; a proximidade
ca de um terço dos jovens. As características sócio- com a droga se propõe de fato como um fenôme-
identitárias dos jovens que se declaram favoráveis no indiferenciado aberto à experiência de qualquer
à descriminação do consumo de drogas não são es- jovem. O uso — ocasional — de drogas se torna
pecialmente nítidas, embora se destaquem os ho- assim completamente desligado de condições de
mens, os mais velhos, os moradores das grandes desvantagem e de marginalidade, para se tornar
cidades. Obviamente, tal opinião resulta mais fre- uma experiência “normal” de grandes grupos de
qüente entre os que constatamos serem os mais pró- jovens.
ximos a comportamentos contíguos à cultura da Numerosos sinais indicam quanto o problema
droga; por exemplo, entre os que tiveram contato social da droga deva ser explicado em termos cul-
com uma substância estupefaciente, os favoráveis turais; certamente, um papel não irrelevante é re-
à legalização sobem para 43,3%. presentado por alguns elementos que caracterizam
o universo juvenil: a percepção da reversibilidade
Conclusões dos percursos existenciais, aí incluindo os de caráter
transgressivo; a tendência a antever canais de dupla
O quadro geral resultante confirma assim al- moralidade conforme os âmbitos de experiências vi-
gumas tendências que foram se consolidando na vidas contingentemente; a projeção no presente co-
última década. mo produto natural de uma lábil projeção futura.

Revista Brasileira de Educação 179


As gangues e a imprensa
A produção de um mito nacional

Martín Sánchez-Jankowski
Universidade de Berkeley

Tradução de Ines Rosa Bueno


Publicado em: Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Paris: nº 101-102, março 1994, p. 101-117.

Le crime tient sans trêve le devant de la scène, pesquisas sobre o fenômeno das gangues na Amé-
mais le criminel n’y figure que furtivement, pour y être rica urbana contemporânea1.
aussitôt remplacé. Dez anos de investigações avançadas sobre o
assunto me levaram à conclusão de que a resposta
Albert Camus, La Chute, 1956
para esta interrogação reside no fato de as gangues
serem organizações, um dado que a maior parte dos
Foi no iníco do século 20 que as gangues apa- estudos anteriores tinha desprezado. Enquanto res-
receram no cenário urbano americano. Desde en- posta coletiva a uma situação econômica de gran-
tão, elas foram continuamente estigmatizadas como de penúria e de isolamento, estas organizações ela-
um “problema social” maior. O que sempre cha- boraram estratégias racionais de sobrevivência que
mou a atenção da opinião pública, são as suas ati- se aplicam tanto aos meios de aumentar seus efeti-
vidades que podemos qualificar como delituosas ou vos e fazer florescer seus haveres financeiros quan-
ilegais, que fazem nascer o medo e atentam contra to ao estabelecimento de relações com seu ambiente,
os bens ou ameaçam as pessoas. O Estado, então, quer se trate de organizações rivais, da polícia, do
sempre empenhou meios consideráveis e cada vez sistema político e da mídia. Estas relações formam
maiores, para tentar erradicar o fenômeno. Entre- um sistema de intercâmbios multiforme que se re-
tanto, apesar destes esforços impressionantes e inin- vela, em última instância, como sustentáculo da
terruptos, as gangues não só persistiram mas não existência das gangues. O artigo a seguir se inscre-
pararam de se expandir, particularmente nas duas
últimas décadas. Como explicar este paradoxo? Por
quê o empenho de tantos esforços na luta contra as 1 Cf. M. Sánchez-Jankowski, Islands in the Street: Gangs

gangues não produziu os resultados esperados? Esta in the American Society, Berkeley e Los Angeles, University
interrogação é que esteve na origem das minhas of California Press, 1991, obra em que este artigo se apóia.

180 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


As gangues e a imprensa

ve nesse quadro conceitual e se propõe a analisar a tas com jornalistas cobrindo a atualidade urbana;
contribuição que a mídia traz para a persistência do finalmente roteiros de programas de rádio e de te-
fenômeno das gangues urbanas americanas. levisão dedicados as gangues, assim como as gra-
A mídia se vê, ora observadora neutra das gan- vações em vídeo de telejornais, de documentários,
gues, ora sua adversária, quando na realidade ela debates, docu-dramas, novelas como Hill Street
contribui em parte para a sua sobrevivência. De Blues e filmes (Colors, The Warriors, Fort Apache-
fato, de todas as instituições que podem exercer The Bronx) em que as gangues desempenham um
uma influência sobre o fenômeno, poucas ocupam papel central.
uma posição tão estratégica2. Convém notar logo
de início, que não são “especialistas” sobre gangues A reportagem de atualidade ou
mas jornalistas das mídias ditas de “massa” que são o procedimento “informativo”
autoridades na matéria. De modo que são a prin-
cipal fonte de informação não somente do “cida- Os jornais e revistas da atualidade não têm
dão médio”, como também dos pretensos “especi- como objetivo apenas difundir notícias: eles devem
alistas” responsáveis pela elaboração e realização também realizar lucros. Os redatores-chefes da im-
das medidas de luta contra as gangues. Fiquei ad- prensa e os produtores dos telejornais e de rádio
mirado ao longo das minhas investigações, quan- devem coletar e selecionar informações mas devem
do constatei o quanto aqueles que se consideram sobretudo interessar os leitores, ouvintes ou teles-
como “experts” retiram os seus conhecimentos do pectadores pela apresentação que eles fazem. No
fenômeno pelo menos, tanto das reportagens emi- quadro competitivo, uma reportagem sobre as gan-
tidas pelas mídias quanto dos trabalhos de pesqui- gues se inscreve na rúbrica de “jornalismo de roti-
sa. Isto, para dizer que é indispensável elucidar o na3” que trata de acontecimentos do dia a dia e este
modus vivendi que se estabelece entre a mídia e as tratamento afeta obviamente a imagem pública das
gangues se pretendemos entender a perenidade des- gangues. Uma tal imagem não pode ser uma repre-
sas últimas. sentação detalhada e nuançada da realidade, em
A maioria das pessoas — inclusive, experts — razão das exigências de programação e de tempo,
está convencida de que a cobertura pela mídia dá além do quê uma reportagem responde a um impe-
conta da realidade das gangues, quando ela na ver- rativo econômico preciso: suscitar no público um
dade introduz distorsões tão profundas quanto sis- interesse que o leve a comprar tal jornal ou a assis-
temáticas. Estas distorsões têm a ver com as exigên- tir ao noticiário numa determinada rede de rádio
cias estruturais a partir das quais a mídia funcio- ou de televisão ao invés das outras.
na, assim como a ignorância, a incompetência e as As gangues só são notícia quando estão impli-
ambições profissionais dos jornalistas. As análises cadas em um acontecimento particularmente sen-
que seguem se apóiam em três tipos de dados: ob- sacional. Pela sua própria natureza, os jornais e as
servações diretas efetuadas quando membros das informações de televisão não podem tratar a “no-
gangues de New York, Boston e Los Angeles, cujas tícia” de forma exaustiva (diga o que disser o New
atividades eu compartilhei, foram entrevistados pela York Times,cujo lema é — “All the news that’s to
imprensa ou pela televisão; uma série de entrevis- print”: Todas as notícias que merecem ser impres-

2 Vigil e Hagedorn abordam as mídias mas sem ana-


lisar suas relações com as gangues. Ambos se contentam em 3 Todd Gitlin usa a expressão “jornalismo de roti-
sublinhar a imagem negativa que elas veiculam destas últi- na”em The Whole World is Watching: Mass Media and
mas. Ver Hagedorn, People and Folks,.23-24, 156; e Vigil, Unmaking of the New Left,Berkeley, University of Cali-
Barrio Gangs, P. 40, 124. fornia Press, 1980. P.4.

Revista Brasileira de Educação 181


Martín Sánchez-Jankowski

sas). Para merecer algumas colunas na rubrica das acusar um grupo, e não uma pessoa em particular.
notícias populares ou alguns minutos no jornal da É mais fácil identificar um grupo do que tentar re-
noite, uma gangue deve cometer um ato fora do montar até um indivíduo: e isto permite que todo
comum: para ser mais claro, é preciso que tenha se o mundo tenha folga! (...) Todo o mundo ganha
tornado culpada de ações violentas ou criminosas. tempo e a reportagem é valida assim mesmo. Em
E quanto mais violento o crime cometido, mais uma palavra, a rede consegue um ótimo “furo” sem
chances ele tem de ser escalado no noticiário do dia. muito trabalho. Além do mais, a vantagem, quan-
Deste modo, os telejornais e as rádios assim como do dizem que o culpado é uma gangue, é que nin-
os jornais de informações estão a toda hora em bus- guém precisa se fazer perguntas: porque ao acusar
ca de acontecimentos “captadores de interesse” pa- um indivíduo particular, corre se o risco de preju-
ra agarrar e tornar fiel seu público. As violências e dicar as suas chances de ter um processo justo.”
os crimes que implicam gangues são, neste aspec- É assim que muitos crimes são abusivamente
to, assuntos cobiçados. De fato, eles estimulam a estigmatizados como “envolvendo gangues”. Em
curiosidade do público e poupam aos jornalistas muitos casos precisos que eu estudei, o erro era por-
inúmeras dificuldades técnicas com que costumam que o jornalista ignorava a existência de outros ti-
se deparar. Por exemplo, os repórteres têm o hábi- pos de crimes coletivos, como os cometidos pelas
to de apresentar os principais acontecimentos do dia crews, estas equipes de três a cinco pessoas que se
como fatos comprovados. Entretanto, na maioria associam apenas para o tempo de um assalto. Da
dos incidentes ligados a gangues, esta pressuposicão mesma forma, quando um jovem comete um crime
é errada. Nas três cidades estudadas (Los Angeles, a título individual, independentemente da gangue
New York e Boston), um grande número de notí- à qual se alega que ele faz parte, é incorreto e abu-
cias populares violentas é regularmente apresenta- sivo falar em “crime de gangue”. E quando este tipo
do como “crimes envolvendo gangues” (gang-rela- de erro ocorre, os jornalistas e os órgãos de infor-
ted crime), quando na maioria dos casos, o que é mação não correm o risco de ser criticados, já que
apresentado ao público como “verdade” dos acon- o público desconhece que o crime relatado foi co-
tecimentos, não tem absolutamente nenhum funda- metido por um grupo que não tem, nem a estru-
mento. Quando experts (em geral policiais) são in- tura nem o modo de funcionamento específico da
terrogados para comentar o incidente em questão, gangue. Aquilo que um jornalista de um diário de
eles sempre o fazem com termos cautelosos, usan- New York reconhece: “Era uma série de assaltos
do expressões como “achamos que este crime tem durante os quais muitas pessoas levaram tiros. Quan-
a ver com gangues”. Neste caso, o setor de infor- do cheguei no lugar para fazer a cobertura dos acon-
mação pode atribuir o ocorrido que, ele tem a cer- tecimentos, fiz a minha investigação e descobri que
teza, será do agrado do público, a ação de uma gan- os ladrões eram pelo menos seis. Então, fiz a minha
gue sem ter de identificar nominalmente a pessoa matéria dizendo que as vítimas tinham sido agre-
ou grupo presumidamente responsável pelo crime. didas e roubadas por uma “gangue”. Mas de fato,
Um caso de gangues é, por natureza, um produto pouco depois, compreendi que os ladrões não ti-
midiático ideal: cativa o público sem realmente pôr nham nada a ver com uma gangue: eles formavam.
em jogo a responsabilidade do jornalista. O repór- o que, na periferia, se chama uma “equipe” (crews).
ter de uma rede de televisão de New York explica: Em outras circunstâncias, ficaria muito aborrecido
“Fazer uma matéria sobre as gangues, é a panacéia de ter cometido tamanho erro na minha matéria.
para um jornalista e para a sua rede de informação. Mas lá não, já que ninguém não está nem aí. Você
(...) Em primeiro lugar, já que só se cobrem as his- acha que o público quer saber se estes caras forma-
tórias de gangues quando há crime ou violência, é vam uma gangue no sentido estrito da palavra? Cla-
mais fácil determinar quem é o culpado: pode se ro que não! O que importa para eles é que alguém

182 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


As gangues e a imprensa

foi assaltado e roubado por um bando de vagabun- soras e a imprensa diária, não é de admirar que as
dos e foi o que eu escrevi... Aliás, meus patrões se notícias não ofereçam praticamente nenhum dado
lixam para o meu erro, já que, de qualquer forma, de fundo sobre o fenômeno, quando não fornecem
esta história agradou aos leitores; além disso, eles delas dados inexatos e enganadores. As reportagens
sempre têm a desculpa de poder dizer que tudo isto sobre os casos de gangues têm, não obstante, uma
tinha um pouco a ver com uma gangue.” função muito útil para a mídia como um meio cô-
Na verdade, os contatos diretos entre os jorna- modo de atrair a atenção e cativar o público5. Os
listas que produzem a “notícia” e os membros de produtores de programas de televisão sabem que
gangues são extremamente limitados. De uma ma- para segurar o público é preciso produzir jornais
neira geral, estes não interrogam os jovens das gan- variados e movimentados6. Da mesma maneira, os
gues no momento de cada acontecimento, simples- diretores de diários e de revistas procuram atrair
mente porque não têm tempo material para isto. Eles leitores com manchetes, capas e títulos chamativos7.
têm prazos para cumprir, que os impedem de loca- Mas os produtores e diretores de jornais são tam-
lizar o ou aos membros da gangue incriminada e es- bém conscientes dos limites do procedimento pu-
tabelecer com eles o clima de confiança indispensá- ramente “informativo”. Eles se esforçam, portan-
vel a uma boa cooperação4. Aliás, a maioria dos jor- to, para capitalizar em cima do desejo de explica-
nalistas considera este procedimento como inútil e ções complementares despertado no público pelas
supérfluo. E, de fato, o número de encontros entre informações factuais, para oferecer artigos ditos de
um jornalista e as gangues com que trabalha varia “fundo”, reportagens longa metragem e documen-
entre nenhum, no caso dos apresentadores de pro- tários que alegam tratar de forma mais profunda os
gramas de televisão e alguns no máximo, o caso dos acontecimentos relatados de maneira muito sucin-
repórteres da imprensa. É por esta razão que os jor- ta no noticiário do dia. O objeto declarado deste
nalistas se contentam com as informações sobre as segundo procedimento, que eu chamarei “explica-
gangues vindas da polícia, como o admite um jor- tivo”, é uma compreensão em profundidade da na-
nalista que trabalha em um diário de New York: “De tureza das gangues. Em matéria de televisão, a gran-
fato, quase nunca encontrei as gangues das quais eu de referência é o documentário realizado nos anos
falo nas minhas reportagens, nunca precisei realmen- 50 por Edward R. Murrow para a CBS, intitulado
te disso, já que se tratava sempre de casos de homi- Who Killed Michael Farmer? É muito citado nas
cídio. Os comentários da polícia eram, portanto, am- universidades como paradigma do gênero e todos
plamente suficientes. Você entende, eu não escrevia os jornalistas que, desde então, fizeram filmes so-
matérias de fundo: não é o que o redator-chefe que- bre gangues se inspiraram nele. Neste trabalho,
ria de mim. Tudo o que eles queriam de mim era que Murrow trata de um incidente violento que fez mui-
eu escrevesse uma matéria sobre um acontecimen- to barulho na época, a morte de um jovem deficiente
to interessante e que o produza a tempo.” nas mãos de uma gangue do Bronx na cidade de
New York, cujas causas ele tenta trazer à luz do dia
A reportagem de fundo ou
o método “explicativo”
5 É claro que as gangues não são o único tema que
Dada a extrema raridade dos contatos entre as serve para “prender” leitores, ouvintes ou telespectadores
gangues e os jornalistas que trabalham para as emis- ao noticiário.
6 Ver Herbert J. Gans, Deciding What’s News: A Study

of CBS Evening News, NBC Nightly News, Newsweek and


4 Ver Gitlin, The Whole World is Watching, p.35, sobre Time, New York Random house, 1980,p.218.
a importância dos prazos na simplificação das reportagens. 7 Ibid., p. 219.

Revista Brasileira de Educação 183


Martín Sánchez-Jankowski

para esclarecer o grande público a respeito do fe- emoção e suspense. Mas, embora com perfeito do-
nômeno mais geral das gangues na América8. mínio no plano da forma, o famoso documentário
A comparação entre o documentário de Mur- sofre, no fundo, enormes lacunas. As informações
row e dos recentes programas como Our Children: fornecidas esclarecem alguns dos fatores que po-
The Next Generation de Dan Medina, 48 hours: on dem ter influído os autores do crime mas que não
gang street de Dan Rather (o famoso apresentador dizem quase nada sobre a gangue em si, a não ser
do jornal da noite da CBS nos EUA), ou Not my kid que Michael foi a vítima inocente de uma luta in-
de Tyne Daly, produzido em 1989, revela que to- testina entre seus membros. Nada é dito, notada-
dos usam as mesmas técnicas de apresentação ino- mente, sobre o modo de organização e os compor-
vadas por Murrow9. Após ter lembrado os detalhes tamentos específicos de uma gangue urbana. E à
de uma notícia popular que fez derramar muita tinta pergunta inicial, “quem matou Michael Farmer?”,
nas manchetes, cada um traz informações sobre o Murrow se contenta em responder in fine que foi
contexto e as circunstâncias ambientes, para pro- a sociedade a responsável na medida em que per-
duzir uma análise de maior alcance sobre as gan- manece cega e insensível perante as condições so-
gues. No caso de Murrow, a notícia inicial é um cio-econômicas opressivas que levam os jovens dos
incidente isolado, o homicídio de Michael Farmer; bairros pobres a formar grupos suscetíveis de agre-
no de Dan Medina e de Dan Rather, são duas séries dir pessoas. Uma resposta destas só faz reforçar a
de crimes provocadas por confrontos coletivos en- idéa comum de que as gangues são hordas de pre-
tre muitas gangues de Los Angeles. Cada um des- dadores, lobos ou hienas, famintos e violentos. O
tes eventos teve a cobertura de jornais da noite antes espectador, a quem ninguém propõe nenhuma aná-
de se tornar o suporte de uma investigação mais lise séria da gangue enquanto tal, não pode, por-
completa que procura acima de tudo cativar e co- tanto, captar a relação entre a gangue como orga-
mover o público. nização e a criminalidade juvenil.
O documentário de Murrow é inegavelmente Os programas de Rather e Medina diferem do
um filme que enche os olhos: a lembrança das cir- de Murrow na maneira de se articular em torno de
cunstâncias que levaram à morte trágica de Mi- assassinatos em série atribuídos a várias gangues de
chael é entrecortada pela narrativa da história pes- Los Angeles. Como o filme de Murrow, eles rela-
soal de seus agressores assim como pelas reações tam a vida dos membros das gangues incriminadas
dos pais do jovem deficiente num tom que alterna e suas atividades e utilizam, para manter o interes-
se e o ritmo do programa, cenas comoventes con-
tando a vida das vítimas. Entretanto, há trinta anos
8
de distância, eles parecem notavelmente próximos
Embora Murrow e Yablonsky (na sua obra The Vio-
da reportagem de Murrow e só fornecem mesmo
lent Gang) usem o mesmo incidente para analisar o fenô-
meno das gangues, eles chegam a conclusões diametralmente breves comentários e lugares comuns sobre a vida
opostas. É possível pensar que é porque um deles é um so- das gangues. Isto se explica pelos imperativos téc-
ciólogo de profissão (Yablonsky) e o outro um jornalista nicos, profissionais e comerciais que guiam a esco-
persistente (Murrow) e que Yablonsky tem por esta razão lha e a apresentação dos “casos” considerados dig-
mais chances de estar certo, por causa da sua formação. Não
nos de serem documentados pela mídia.
é nada disto: minhas pesquisas sobre este caso me levam a
crer que as conclusões de Murrow estão mais próximas da
realidade das gangues e do encadeamento dos eventos que As exigências do trabalho de jornalista
conduziram efetivamente à morte de Michael Farmer
9 No meio de uma gama de documentários dedicados Exigências inerentes ao processo de produção
a gangues, escolhi centrar nestes três programas por serem tí- jornalística explicam em parte as semelhanças que
picos do método “explicativo” com destino ao grande público. se observam entre os diferentes programas de tele-

184 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


As gangues e a imprensa

visão dedicados às gangues. Estas contingências fo- mente nenhuma relação entre o que acontece em
ram analisadas detalhadamente por Herbert Gans10; Los Angeles e no resto do país.
eu me limitarei aqui a desenvolver as que se apli- A segunda regra que condiciona a produção
cam especificamente aos documentários de Mur- de tais documentários é o “imperativo do inédito”.
row, Rather e Medina. Antes mesmo de começar o seu trabalho, os jorna-
A primeira das contingências que pesam sobre listas precisam se perguntar se ele traz alguma no-
o trabalho dos jornalistas é o que os próprios cha- vidade: se falharem neste ítem, os seus superiores
mam de “importância do caso” (story suitability), lhes chamarão logo a atenção sobre este ponto. É,
isto é, se ele é sucetível de interessar o país inteiro portanto, preciso ou selecionar um assunto total-
ou, pelo contrário, se só merece a atenção em um mente novo, ou encontrar uma nova luz para um
perímetro local e regional. Nenhuma das reporta- tema que já foi tratado. É por esta razão que todas
gens sobre as gangues faz a comparação entre di- as reportagens sobre as gangues são variações, mui-
ferentes cidades dos EUA mas todas usam diversos tas vezes forçadas, sobre um mesmo tema.
procedimentos para lhes dar um alcance nacional. A terceira pergunta que um jornalista deve se
A primeira receita usada em todos os programas de fazer é a de saber se uma reportagem contem bas-
televisão consiste na exploração do tema da violên- tante “ação”’. No jargão jornalístico, “ação” sig-
cia. Em cada um dos documentários citados, o jor- nifica na verdade, emoção. Todas as reportagens
nalista insiste no fato de que a violência das gangues sobre as gangues redobram esforços para gerar a
é onipresente em todas as grandes cidades dos USA emoção nos telespectadores mostrando-lhes pessoas
e prossegue afirmando que “em nenhum lugar, esta que são elas mesmas absolutamente transtornadas.
violência só está presente em X”, justamente a ci- Para criar “ação”, os jornalistas apelam para dois
dade em que se situa a reportagem. O documentá- tipos de registros, o da violência e o das emoções,
rio é feito para permitir que os espectadores enten- como a tristeza e a cólera que a morte ocasiona. É
dam a violência que assola o seu próprio bairro por esta razão que as reportagens sempre contêm
através dos exemplos, aliás, extremos de New York cenas de violência entre as gangues cuja finalidade
e de Los Angeles. E é a idéia de violência que per- não é tão somente a de descrever o dia a dia nos
mite aqui, alargar o alcance da reportagem no país bairros pobres e operários quanto a de fornecer
inteiro. Outro método visando a produção deste “ação”, este ingrediente indispensável à produção
efeito de generalização é a exploração emocional da de uma “boa” reportagem.
dor das vítimas da criminalidade das gangues e de A quarta regra tem a ver com o “ritmo”. Um
sua família. O que permite que Dan Rather e Tyne dos credos dos profissionais da notícia é que o rit-
Daly concluam ambos seu programa (48 hours e mo de um programa deve ser controlado, para que
Not my kid) com a idéia de que “não é um proble- o interesse do telespectador não relaxe nunca. Esta
ma que concerne apenas aos habitantes de Los An- exigência é particularmente evidente nos programas
geles: é um problema que concerne a todos nós”. citados acima. Assim, eles só dão um espaço extre-
Assim, eles mesmos trazem uma resposta afirmati- mamente reduzido aos comentários pessoais dos
va a pergunta que todo jornalista de profissão deve protagonistas entrevistados já que é muito sabido
se fazer nos EUA: será que a minha reportagem vai que este tipo de comentários “quebra” o ritmo do
interessar a sociedade toda? — enquanto que o con- programa, e passam muito rapidamente de um as-
teúdo de seus documentários, desprovidos de todos pecto da vida das gangues para outro, tendo como
os dados comparativos, não estabelece rigorosa- resultado que nenhum destes aspectos é suficiente-
mente desenvolvido para permitir o menor esclare-
cimento sobre o fenômeno. Por exemplo, no do-
10 Ibid., p. 146 -181. cumentário de televisão, Our Children: The Next

Revista Brasileira de Educação 185


Martín Sánchez-Jankowski

Generation, Dan Medina diz notadamente: “A vi- cados às gangues, por um esforço visando apresen-
olência na rua se tornou um esporte para alguns.” tar aspectos muito diversificados da vida das gan-
Seguem curtíssimas cenas violentas de apenas alguns gues, oferecendo ao mesmo tempo diferentes pers-
segundos, após o quê ele acrescenta: “A violência pectivas sobre cada uma delas. Se esta intenção pa-
é um excitante e é também o maior sustentáculo das rece a priori louvável, e deontologicamente defen-
gangues da região de Los Angeles”, se referindo à sável, ela só leva, na verdade, a análises extremamen-
excitação da ação violenta como catalizador das te pobres e sucintas que cabem, às vezes, em uma
gangues. E neste passo, ele sugere três outros fato- única frase. É por esta razão que esta exigência só
res que levariam os jovens a se juntar a gangues, a faz reforçar a incompreensão geral que reina em tor-
saber o status social, o dinheiro e as mulheres, sem no do fenômeno das gangues. Por exemplo, no co-
a menor explicação nem prova, embora o status meço do documentário de televisão Our Children:
social, o dinheiro e as mulheres se encontrem amal- New Generation, Medina afirma que entre as víti-
gamados na idéia de violência. mas das gangues aparecem as suas famílias e ele pros-
Quinta exigência: a “clareza” da reportagem. segue anunciando que “são famílias que se mobili-
Os jornalistas consideram que seu trabalho deve zaram contra a violência”. Pouco depois, para equi-
poder ser entendido por todo o público embora seus librar as coisas, eles mostra pais que não têm nada
comentários se reduzam ao estritamente necessário, a dizer sobre o fato dos filhos fazerem parte de uma
a ponto de, às vezes, tirar todo o significado de sua gangue. E, como fim de programa, ele conclui dizen-
palavras. É também muito comum um jornalista do que uma das causas da perenidade da violência
que dialoga com os membros de uma gangue obri- juvenil é que as famílias não assumem suas respon-
gá-los a transformar suas palavras para simplificá- sabilidades. Mostrando ao mesmo tempo pais que
las. É o caso de um jornalista entrevistando um mem- se levantam contra as gangues e outros que parecem
bro de gangue de New York sobre as razões que não preocupados, sem dar a menor explicação a res-
levavam a sua gangue a se enfrentar com outra. O peito desta diferença, abandona-se para o público
rapaz, chamado Nimble, respondeu que muitos fa- a tarefa de dar um jeito de reconciliar estes compor-
tores explicavam este conflito e começa a enumerá- tamentos de aparência contraditória.
los. Mas ele ainda não havia terminado o terceiro O conteúdo das reportagens sobre as gangues
quando o jornalista o cortou: “Na verdade, o que é também submetido a exigências mais diretamen-
você quer dizer é que é um problema de território.” te técnicas, entre as quais a mais tirânica é sem dú-
No que Nimble respondeu: “Bem, se você quiser, vida a dos prazos a serem cumpridos pelos jorna-
mas é mais complicado do que isto...” O jornalista listas. A conseqüência mais evidente disto é que o
o interrompeu então, outra vez: “Mas, falando sim- jornalista trabalha muito pouco tempo no mesmo
plesmente, é o que você quer dizer.” E Nimble as- assunto. É, portanto, difícil e até mesmo impossí-
sentiu: “É, se você quer realmente simplificar, en- vel para ele juntar as informações de base, o que res-
tão sim, suponho que é isto.” Mas quando o repór- tringe drasticamente seu conhecimento sobre as gan-
ter se foi, o jovem declarou: “Suponho que ele quer gues. Porém, é muito óbvio que enquanto o jorna-
que as pessoas entendam; mas, p...., não tem mais lista não tem domínio suficiente de certos aspectos
jeito de eles entenderem agora! Mas se é o que ele fundamentais da questão, o público corre o risco de
quer, f...-se!” não aprender grande coisa com as suas reportagens.
A sexta exigência que pesa no trabalho jorna- Os comentários deste jornalista, há seis anos em
lístico recomenda uma reportagem “equilibrada”, Boston, ilustram bem este dilema da atividade dos
isto é, que mostre diversidade mas também igualdade repórteres: “Estava fazendo uma matéria de fundo
na escolha das matérias e na expressão das orienta- sobre as gangues e havia realmente todos os elemen-
ções políticas. O que se traduz nos programas dedi- tos para que a reportagem fosse um arraso. Mas eu

186 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


As gangues e a imprensa

precisava passar muito tempo com os jovens. Gos- bicionam produzir um diagnóstico de caráter socio-
taria de pelo menos ter podido ficar com eles, mas lógico. Mas nenhum deles tem a formação reque-
o meu diretor tinha prazos para cumprir e portan- rida nem as ferramentas necessárias para este tipo
to eu tive de ceder também. Estava frustrado, pois de abordagem. A maioria dos jornalistas é, aliás,
sabia que precisaria de mais tempo mas não fiquei consciente disto e reconhece até um certo embara-
com bronca do meu chefe porque eu sei que ele mes- ço. Para dar o troco, eles muitas vezes pedem para
mo estava preso na engrenagem. Mas isto não im- pretensos especialistas comentarem os aspectos do
pede de reconhecer que deixei de escrever o artigo assunto a respeito dos quais eles mesmos se sentem
que eu poderia ter redigido.” os mais incompetentes. Infelizmente, acontece que
Uma outra exigência tem a ver com a dificul- pedem aos especialistas para discutirem um aspec-
dade de acesso aos membros das gangues, proble- to da vida das gangues que foi relatado ao jorna-
ma que os jornalistas compartilham com os soció- lista ou que ele viu, mas que o especialista mesmo
logos. Esta dificuldade não consiste tão somente em não observou. Ou, ainda, pergunta-se aos especia-
entrar em contato com eles, pois um encontro se listas sobre um assunto fora das suas competências,
obtém bastante facilmente. O verdadeiro problema ou que ele estudou há tanto tempo que suas obser-
é ganhar a confiança dos seus membros para ser vações são completamente obsoletas. Isto é o que
autorizado a observar diretamente o conjunto das costuma acontecer quando o jornalista não conse-
atividades da gangue e a recolher as confidências gue convidar o especialista desejado para o seu pro-
dos jovens implicados. Salvo exceção, os jornalis- grama e se vê obrigado a substituí-lo, de improvi-
tas não são aceitos no seio das gangues e não têm so, por uma pessoa menos competente porém mais
portanto acesso à sua vida externa e muito menos disponível. Mais uma vez, o resultado é que a aná-
à vida interna — as idéias, os sentimentos e as as- lise dos pretensos especialistas repousa menos so-
pirações — de seus membros. Mas este problema bre dados atuais do que sobre imagens repetidas.
não parece, de maneira algum, incomodar os jor- A quarta dificuldade técnica é a da extensão
nalistas: eles produzem apesar de tudo suas repor- imposta ao programa ou ao artigo. Os jornalistas
tagens compensando a sua própria carência de in- sempre podem sonhar em não ter nenhum limite
formações diretas tomando emprestado os comen- neste caso, mas a realidade profissional é comple-
tários de outras análises, geralmente dos sociólogos tamente diferente. E estas exigências de duração e
e dos criminologistas, o que cria um sério proble- de extensão afetam diretamente tanto a profunde-
ma de qualidade do nível das informações forne- za quanto a qualidade da reportagem. Isto, de fato,
cidas no programa. Para preencher as lacunas de obriga os jornalistas a fazerem uma escolha entre
suas reportagens, os jornalistas confiam no que já os diferentes aspectos do assunto que eles vão tra-
foi dito antes deles sobre o assunto11, o que faz com tar e a decidir sobre o tempo a dedicar a cada um
que os estereótipos os mais comuns sobre as gan- deles12. Aí vem notadamente o problema de como
gues não parem de se reproduzir e se reforçar. saber usar os comentários dos especialistas. Mui-
A terceira dificuldade técnica tem a ver com a tas vezes, o jornalista pressiona o especialista a res-
formação dos jornalistas. Quase todos aqueles que ponder muito brevemente a suas perguntas e com
fazem reportagens de fundo sobre as gangues am- termos diferentes dos que ele gostaria de usar, como
estes repórter que eu pude ver perguntar a especia-

11 Usar observações feitas por outrem não acontece


sem riscos, dos quais os dois principais são que estas obser- 12 Estas decisões são elas mesmas fortemente determi-
vações sejam falsas ou sem pertinência no contexto em que nadas pelo que a profissão tem costume de considerar como
são trazidas. uma boa reportagem (clara, comedida, equilibrada, etc.).

Revista Brasileira de Educação 187


Martín Sánchez-Jankowski

listas: “E o senhor, a sua “linha” (your take) sobre momento da entrevista, afirmou sem constrangi-
a violência das gangues, qual é?”. O especialista, mento: “É claro que quero fazer uma reportagem
seguro após vários anos de reflexão sobre o assun- sobre as gangues. Muito francamente, é um ótimo
to, se prepara para se lançar numa explicação bas- assunto para se trabalhar porque continua haven-
tante longa mas é imediatamente interrompido pelo do violência e crimes nos casos de gangues e é exa-
jornalista que exige uma resposta precipitada. Vi, tamente com isto que o público sonha. É realmen-
até, um jornalista explicar a um expert que sua teo- te o tipo de matéria ideal para um jovem jornalista
ria devia ser falha, já que não conseguia expressá- como eu, pois se eu conseguisse fazer uma repor-
la em poucas palavras. Nos casos em que o jorna- tagem sobre as gangues, tenho certeza que teria mui-
lista deixa o especialista se expressar à vontade, sua to a ganhar. (...) O que eu espero de uma boa re-
intervenção será pura e simplesmente reduzida ou portagem é que me faça ganhar o respeito de meus
suprimida na hora da montagem. Resumindo, as colegas, e que me faça conseguir outros programas;
exigências de tempo, de espaço e de formação di- e também espero que me permita ganhar muito di-
tam, para uma boa parte, o conteúdo das reporta- nheiro. Um jovem jornalista tem uma tremenda ne-
gens sobre as gangues e as explicações que dão para cessidade de uma ou de duas boas reportagens des-
justificar a sua multiplicação. tas para lançar a sua carreira.” Um outro jornalis-
ta em New York há muitos anos, explica também
Interesses profissionais e pressões comerciais o interesse de tais reportagens: “Você me pergunta
por quê eu quero fazer esta reportagem sobre as
Ambições profissionais e pressões comerciais gangues? Na verdade, não é muito complicado no
são o último elemento que explica a perceptível meu caso. As gangues são um problema muito grave
similitude dos programas dedicados às gangues. nas cidades americanas e sempre foi assim porque
Mostrou-se que as gangues são invariavelmente os grupos representam uma ameaça para o ameri-
associadas aos temas do crime, do sexo e da vio- cano médio. Escolhendo um assunto que sempre
lência e que são envoltas por uma atmosfera sul- costuma ser a notícia destes últimos tempos, eu pos-
fúrica que mistura sinistro e mistério. Estes clichés so provar a mim mesmo que ainda estou por den-
que a mídia contribuiu para criar, são aqueles mes- tro. Seriamente, se eu me encarrego de uma repor-
mos sucetíveis de atrair um grande público. As gan- tagem difícil sobre um assunto importante que in-
gues representam portanto para os jornalistas um teressa para todo o mundo, eu sei que vou conser-
assunto — ou, para ser mais preciso, um produto var a estima profissional que eu adquiri em todos
— de destaque que pode, além do mais, se revelar estes anos aos olhos de meus colegas. E se eu con-
particularmente eficaz para ganhar dinheiro, pres- seguisse dar uma visão nova das gangues ou de um
tígio e poder. Explorar estes clichés, limitando-se outro assunto tão explosivo quanto esse, eu ganha-
a adotar um ângulo novo para apresentá-los, tor- ria ainda mais respeito e prestígio na profissão, e
nou-se um dos meios mais concorridos para fazer isto, não me desagradaria.”
carreira na mídia. Todos os jornalistas que eu encontrei, assim
Os jornalistas estão convencidos de que uma como os que eu interroguei durante as entrevistas
boa reportagem sobre as gangues pode realçar o seu formais e com quem tive a oportunidade de dis-
prestígio no seio da profissão e, por conseguinte, no cutir quando vinham entrevistar as gangues com as
seu próprio jornal ou rede de televisão ou rádio. Eles quais eu andava, estavam convencidos de que ao
esperam firmemente conseguir graças às gangues acumularem as informações necessárias, eles se-
um cargo mais importante com responsabilidades riam capazes de dar uma visão nova das gangues.
ampliadas assim como um salário mais generoso. Porém, na maioria dos casos, os seus projetos não
Um jornalista, há pouco tempo, em Los Angeles, no tinham nada de muito novo, a não ser aos seus

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As gangues e a imprensa

próprios olhos. Alguns até confessaram que outros de revelar “o aspecto humano” de cada história,
que haviam trabalhado sobre o tema tinham avi- destacando as atitudes e as emoções dos participan-
sado que sua abordagem não era original; mas, ao tes13. Estas emissões são retiradas das programações
discutir comigo, eles não davam a mínima para sempre que elas deixam de ter uma alta taxa de au-
estas advertências e continuavam falando como se diência. É por esta razão que elas privilegiam todos
tivessem efetivamente uma concepção revolucioná- os assuntos considerados como os mais “chamati-
ria do problema para vender ao seu diretor ou pro- vos” junto ao público da tarde. Porém, o fenômeno
dutor. As declarações deste jornalista ilustram bem das gangues é o próprio tipo de assunto que estimu-
esta atitude: “Dois colegas me disseram que a mi- la o interesse dos telespectadores, sobretudo quan-
nha matéria sobre as gangues já tinha sido feita, do é tratado com um sensacionalismo desmedido.
francamente, não acredito que seja exatamente a Um talk-show destes é sempre aberto com uma
mesma coisa. Passei muito tempo nesta reporta- apresentação do assunto pelo animador que dá o
gem e acho que vou poder convencer o redator- tom do programa, usando termos e imagens este-
chefe de que é algo inédito”. reotipados e alarmistas. No caso das gangues, uma
O que os jornalistas consideram ou teimam em frase de introdução basta para dramatizar o proble-
considerar como uma apresentação “inovadora” só ma. O apresentador lembra algum incidente violen-
faz, geralmente, reforçar o mais comum ponto de to notório que implique uma ou mais gangues, cita
vista sobre as gangues com todas as suas falhas. Em diversas estimativas da amplitude do fenômeno pe-
suma, as reportagens de fundo difundidas sobre as los experts e salienta a extrema gravidade da situa-
gangues pelas revistas, jornais ou pela televisão só ção. Ele diz o número de vítimas inocentes desta
se aproveitam do interesse criado pelo noticiário manifestações de violência, particularmente entre as
para faturar, se apresentando como análises apro- pessoas que não residem nos bairros pobres asso-
fundadas do assunto. É porém, raro que permitam lados pelas gangues. Como estes programas apre-
uma melhor compreensão do fenômeno. Isto é de- sentam um assunto diferente a cada dia (ou seja,
vido ao fato deles nem procurarem compreender o cinco assuntos por semana), eles só têm pouco tem-
que são realmente as gangues. Sob a cobertura da po para dedicar ás pesquisas necessárias a cada te-
investigação “explicativa”, na verdade, escondem- ma. Mas em compensação, eles juntam no palco
se objetivos essencialmente profissionais e comer- “experts” ou pretensos experts na matéria, a quem
ciais. E este tipo de reportagem reforça uma ima-
gem das gangues que deve menos à realidade do que
aos mitos que as envolvem. 13 [Nota do tradutor] Estes programas diários, anima-
dos por um apresentador-astro (como Geraldo Rivera, Phil
As gangues como assunto de diversão Donahue, e Ophrah Winfrey, que emprestam o seu patrô-
nimo ao programa) que conduz uma discussão personalizada
de alto teor emocional em volta de um tema selecionado pelo
Os debates de televisão e os filmes marcam
seu impacto midiático (os temas giram invariavelmente em
uma etapa suplementar — e uma escalada — na torno de dinheiro, amor, sexualidade e imoralidade) junta,
exploração midiática do interese do grande públi- ao vivo, no palco pessoas que viveram tal situação extrema
co pelas gangues. Os talk-shows de grande audiên- para ilustrar o tema do dia, representantes de associações
cia na parte da tarde como Geraldo, The Phil Do- envolvidas e diversos experts (geralmente psicólogos e pro-
fissões paramédicas, devidamente certficados por seus diplo-
nahue Show, e The Oprah Winfrey Show se apre-
mas) que supõem sugerir alguma terapia individual como
sentam — e se vendem — como programas que,
solução do dilema discutido. A participação ativa e baru-
além dos debates que alegam promover sobre dife- lhenta da platéia, que aplaude, apita e ovaciona os deba-
rentes “problemas da sociedade” vistos através das tedores, é ativamente encorajada pelo animador, assim como
situações individuais, têm como grande ambição a as tomadas de posição definitivas e irreconciliáveis.

Revista Brasileira de Educação 189


Martín Sánchez-Jankowski

se pede comentários sobre o que for dito ao longo co” do estúdio, os espectadores se empolgarão tam-
do programa pelos convidados ou pelo público14. bém. Porém, nos programas que estudei, mesmo
O apresentador manipula seus convidados pa- que a estratégia posta em prática permita efetiva-
ra que o debate seja o mais ágil possível; ele limita mente obter debates animados, não se aprende, por
as intervenções de cada um a algumas frases que ele assim dizer, nada sobre o fenômeno das gangues.
utiliza como ponto de partida daquilo que é ou vai É verdade que o procedimento e o objetivo destes
realmente ser o coração e a razão de ser do progra- programas não é buscar a compreensão, mas utili-
ma: as interações múltiplas e rápidas entre o ani- zar as gangues como suporte para vender o espetá-
mador, os convidados, o público do estúdio, e os culo das trocas (bate-papo) entre os partcipantes.
telespectadores. Durante as emissões dedicadas às Definitivamente, o objetivo divertimento é bem atin-
gangues, chovem as perguntas de senso comum tais gido mas ao preço de uma acentuação dos clichés
como: Por quê eles são tão violentos? Como fazer sobre o problema das gangues.
para tirá-los desta? etc. Porém, é obviamente impos- O cinema também usa este assunto para fins
sível dar respostas um pouco complexas e comple- recreativos e comerciais16. Entre a pletora de filmes
tas que sejam, a esta questões em meia hora de pro- sobre as gangues, os mais memoráveis são sem dú-
grama (sem contar as propagandas que interrom- vida West Side Story, The Warriors e Colors. Cada
pem os debates a cada seis ou oito minutos). Até um destes filmes descreve uma gangue de uma época
porque os muitos convidados têm todos conheci- diferente: West Side Story nos fala das gangues dos
mentos e opiniões muito dispersos sobre o assunto. anos 50, The Warriors das dos anos 70 e Colors dos
O papel do apresentador face aos convidados anos 80. Entretanto, apesar deste quadro temporal
é ressaltar as diferenças e acentuar as oposições en- muito preciso, eles são notavelmente similares na
tre os pontos de vista expostos. O objetivo é criar sua maneira de apresentar as gangues e o seu meio
um debate conflituoso entre todos os participantes ambiente. Cada um destes filmes apresenta os mem-
(sem dúvida porque se considera que é o único meio bros das gangues como jovens pobres, oriundos da
de interessar os telespectadores), e entreter a anima- classe operária, e que não têm nem competência
ção do programa incentivando ininterruptamente nem vontade de crescer na escala social ou de se
as trocas (bate-papo) entre os convidados, entre o tornar cidadãos produtivos17. Fundamentalmente,
público presente e os telespectadores, finalmente são “perdedores”, mas sobretudo, perdedores com
entre os convidados e o público. O apresentador costumes primários e com comportamento violen-
assume portanto o papel do provocador para criar to. Eles representam tudo aquilo que a sociedade
a polêmica entre os diferentes grupos de participan- execra profundamente e sobretudo tudo aquilo que
tes15. Obviamente, os produtores do programa es- ameaça os seus valores mais sagrados. Em Warriors
timam que se eles conseguem “esquentar o públi- e Colors os princípos que guiam a conduta dos mem-

14 Falar em pretensos experts não significa que as pes- 16 Podemos incluir aqui os telefilmes e as passagens
soas solicitadas careçam de competência. Mas muitas vezes, de seriados que integram históras de gangues. As telenove-
sua competência não tem nada a ver com o assunto em pauta. las Hill Street Blues, L.A. Law, Cagney and Lacey e The
15 Acontece que este segundo método funciona tão Mod Square contêm todos episódios em que as gangues são
bem que o apresentador se vê transbordado e paga por isto. destaque.
Assim, um bate-boca violento estourou em Geraldo durante 17 Outros filmes recentes como Fort Apache-The Bronx
um programa, que colocou face a face defensores da supre- fazem semelhante pintura das gangues. Até os primeiros fil-
macia branca e militantes afro-americanos, em que os gru- mes sobre os Bouwery Boys os apresentam como coitados,
pos quebraram o nariz de Geraldo Rivera. metidos e sedutores apesar de tudo.

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As gangues e a imprensa

bros das gangues representam verdadeiros anátemas mes, todas as mulheres de cor são imorais e irrespon-
lançados contra a sociedade 18. sáveis. Nos dois casos, a única mulher “não bran-
Da mesma forma, os parentes dos jovens de- ca” apresentada como diferente das outras é justa-
linquentes aparecem com traços particularmente mente aquela que parece ter escapado da influên-
sombrios. Os pais, por exemplo, ignoram ou negli- cia corruptora da sua comunidade. Em Fort Apa-
genciam suas responsabilidades face a seus filhos no che, é uma enfermeira portoriquenha e, em Colors,
descaminho. Mas são as companheiras dos mem- uma mexicana que vende sanduíches. E claro, nos
bros de gangues que são, de longe, as personagens dois filmes, o policial branco — Paul Newman em
mais negativas. Estes filmes, que precisam de um Fort Apache e Sean Penn, o marido de Madonna,
mínimo de cenas de amor e de sexo para serem ven- em Colors — se apaixona pela mulher “diferente
didos, apresentam as intrigas amorosas dos mem- das outras”. Mas descobre-se logo durante o filme
bros de gangues de uma maneira ao mesmo tempo que estas duas mulheres não são nada “boas”, que
sexista e racista que em nada corresponde à situa- a sua moralidade aparente não passa de uma más-
ção específica das gangues. As mulheres que têm cara de hipocrisia. A enfermeira portoriquenha se
qualquer tipo de relações com membros de gangues, revela ser uma viciada em heroína e a garçonete
sejam elas namoradas, amantes ou simples conhe- mexicana, uma mulher fácil que corre pelas ruas
cidas, têm todas costumes suspeitos. Elas estão dis- com a sua gangue latina. Elas não só são apresen-
postas a cometer o adultério e até a se prostituir, tadas como desleais para com seus namorados bran-
ou ainda são alcoólatras ou drogadas. Esta repre- cos, mas a maneira como elas os traem é particular-
sentação é muito mais chocante porque a maioria mente repreensível aos olhos da moral dominante.
destes filmes se concentra sobre gangues de “não Quando lhes é oferecida a possibilidade de sair de
brancos”, em bairros “não brancos”. Basta compa- seus guetos e escapar da corrupção que as assola,
rar as personagens femininas de cor e policiais bran- as duas se mostram profundamente incapazes de
cos em Colors e em Fort Apache-The Bronx, um agarrar esta oportunidade: a jovem portoriquenha
filme mais antigo que descreve a vida de uma co- se recusa a parar com a heroína e acabará morren-
munidade particularmente pobre19. Nestes dois fil- do de overdose; a garçonete mexicana termina com
Sean Penn, que a encontrará depois nos braços de
um dos membros da gangue, seu inimigo pessoal
mas também e sobretudo o único negro desta gan-
18 É também a mensagem de West Side Story, embo- gue mexicana! O simbolismo racial é particular-
ra de maneira mais sútil: as forças do “bem” se manifestam mente revelador em relação a isto: fazer amor com
através de Maria e Tony enquanto que o “mal” é encarna- um delinquente mexicano já seria bastante imoral;
do por todos aqueles que pertencem a uma gangue, sejam
mas fazê-lo com o único negro da gangue é realmen-
eles brancos ou portoriquenhos (como mostra a célebre cena
do assassinato seguido pela dor de Maria). A morte de Tony te a traição suprema.
é tratada no flme à maneira da paixão do Cristo. O sacrifíco Chegamos finalmente à definição que Holly-
de Tony leva os Jets e os Sharks à humanidade, quando le- wood dá do ambiente social das gangues. Em todos
vam juntos seu corpo para a terra, enquanto Maria chora estes filmes, as comunidades a que pertencem as
este sacrifíco como a Virgem Santa. gangues aparecem como completamente desorgani-
19 Fort Apache The Bronx é um filme sobre o bairro
zadas e completamente incontroláveis e os indivíduos
“ghetificado” do South Bronx de New York. Seu tema cen- que as compõem incapazes de tomar conta delas
tral é a criminalidade neste enclave pobre de New York e
mesmas. Assim, cada filme contém várias cenas que
as tribulações dos policiais que lá trabalham; ele só trata
incidentalmente das gangues. Em compensação, Colors está procuram demonstrar que “esta gente” é incapaz de
centrado sobre as atividades presumidas das gangues de Los fazer reinar a ordem, que todos eles aspiram, sem
Angeles assim como o seu meio ambiente. dúvida, a mais disciplina, mas que ninguém sabe

Revista Brasileira de Educação 191


Martín Sánchez-Jankowski

como instaurá-la20. O único meio de restabelecer a “não brancas” e das suas mulheres fez agentes do
ordem é então fazer com que a polícia intervenha. mal por excelência. Hollywood criou um verdadei-
A mensagem mandada ao público é que, sem a po- ro mundo imaginário com seus personagens míticos.
lícia (enquanto instituição cuja autoridade vem de Para responder às críticas que lhes foram feitas a este
fora da comunidade e cujo pessoal é igualmente com- respeito, os produtores e os diretores de Warriors,
posto de indivíduos que, em sua grande maioria não Fort Apache-The Bronx e Colors retorquiram ob-
é de lá), esta comunidade afundaria no maior caos. viamente que seus filmes não tinham a pretensão de
Dito de outra forma, Hollywood representa uma ser documentários mas apenas filmes de ação pro-
situação urbana contemporânea através de uma vi- curando o divertimento23. Acontece que tais imagens
são colonialista das mais tradicionais: sem a polícia se instalam no espírito do público e, na ausência de
(exército colonial), estas comunidades pobres (paí- informações e análises rigorosas sobre o assunto, se
ses colonizados) viveriam numa desordem contínua, tornam o prisma principal através do qual as pes-
já que os moradores mais bem intencionados des- soas constróem a sua própria compreensão da rea-
tes bairros (países pobres) não têm as competências lidade social das gangues.
necessárias para controlar as gangues (facções e tri-
bos) e impedí-las de guerrear entre si. Este simbo- Como as gangues usam a mídia
lismo colonial é tanto mais evidente e chocante quan-
to os recentes filmes são dedicados às gangues das As gangues não se impressionam nada com a
comunidades de cor, à exclusão das gangues de ori- mídia e a perspectiva de ser o objeto de um artigo
gem européia (italina ou irlandesa, por exemplo). A ou de uma entrevista não os entusiasma a ponto de
idéia definitivamente veiculada é a de que as gangues liberar sem reserva as informações que os jornalis-
e seus próximos (ou seja o conjunto da população tas procuram obter delas. Elas estão dispostas a
“não branca”) constituem e vivem em um universo informar desde que seja de acordo com suas condi-
profundamente imoral, em ruptura com o resto da ções. As gangues são de fato desconfiadas dos jor-
sociedade21. São eles os elementos diabólicos da so- nalistas — como o quer o seu “individualismo de-
ciedade: verdadeiros “inimigos do interior” que amea- safiante” acentuado24. Mas são também conscien-
çam os próprios fundamentos da moral nacional 22.
Assim, Hollywood fez gangues e, sobretudo, gangues
23 Este filme suscitou muitas reações críticas. The War-
riors foi criticado até por gangues que protestaram escreven-
20 Cada um dos quatro filmes citados contém cenas do para a revista trimestrial Youth at Large (revista publicada
deste tipo. Em West Side Story, há um gentil vendedor que em Los Angeles pela Inner City Rountable of Youth, Inc./ ICRY
gostaria muito de ajudar mas que é reduzido à impotência pela organization). A sua observação se conclui com estas palavras:
violência das gangues. Em Colors, os moradores do bairro “No filme, parece que os jovens demônios fabricados peça por
se juntam e colaboram com a polícia para elaborar um dis- peça, exatamente como os jovens de ICRY, não têm nada de
positivo de defesa contra as gangues, mas o palanque desmo- humano, nem sentimento, nem família, nem amigos, nem cons-
rona durante a assembléia e a reunião afunda no caos. ciência, nem senso moral, nem ambições, nem alguma destas
21 Notemos que muitas obras acadêmicas de alto reconhe-
molas que associamos com os objetivos da existência. [...] É
cimento científico contribuem, talvez sem querer, para se acre- por esta razão que não gostamos de Warriors, já que Warriors
ditar na idéia de que os pobres teriam uma moral radicalmente somos nós (itálicos no original). Ver Youth at Large, no 2, de-
diferente da que está em curso no resto da sociedade. Assim zembro de 1979, p. 10 e 21. Aliás, os jovens que escreveram
o faz Gerald Suttles, Social Order of the Slum, p. 4-6, 223-224. na revista defendem Sol Yurick, o autor do romance que ins-
22 Sobre a tendência que grande parte dos americanos pirou o filme, ao assinalarem que o filme trai o livro.
tem de se empolgar com os demônios políticos e sociais que 24 Sobre a noção de “individualismo desafiante” que
aterrorizam a sociedade, ler a notável obra de Michael Rogin, estrutura a visão do mundo dos jovens das gangues, ver M.
Ronald Reagan, The Movie. Sánchez-Jankowski, Islands in the Street, op.cit., p. 23-28.

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As gangues e a imprensa

tes do fato de que toda informação que lhes diz dizia o que queria. Eles não entendiam bulhufas. E
respeito é muito procurada e, portanto, tem valor. depois, de qualquer forma, a sua reportagem se en-
Todas as gangues que estudei entenderam muito caixava bem, era chamativa, então eu acho que eles
bem que a mídia está sempre disposta a fazer repor- também não estavam nem aí.”
tagens a seu respeito desde que tenham algo de novo Jammer, 20 anos, é membro de uma gangue
a lhe propor. As gangues são portanto “vendedo- de Los Angeles. Ele acrescenta a este respeito: “Os
ras” mas controlam estreitamente os fluxos de in- jornalistas, eles precisam fazer boas matérias e de-
formação tanto em volume como em seu teor. Os pois, é bom dizê-lo, as gangues são um ótimo cavalo
comentários, a seguir, de três jovens membros de de batalha. Sabe, o lado suspeito de uma cidade, isto
gangues ilustram esta consciência que elas têm da interessa as pessoas. Mas, estar no noticiário pode
utilização estratégica que podem fazer da mídia. ser muito útil para nós, para muitos de nós, e tam-
Coal, 19 anos, pertence a uma gangue negra bém para a organização. Então, a gente dá as in-
de New York City: “Era uma jornalista que queria formações aos jornalistas, mas só que são as nos-
fazer uma reportagem sobre nós. Dava para ver que sas informações. Eles obtêm o que nós queremos
ela precisava tremendamente fazê-la. Como se a que eles obtenham e nada mais. A gente dá para eles
carreira dela dependesse disso! Ela nos mandou um um pouquinho, só para lhes dar água na boca, mas
monte de mensagens pelo intermédio de M.G. (um não tudo o que eles querem. Tudo isto é só arma-
animador social do bairro). Então, durante a reu- ção, sabe, mas se funciona, todo mundo fica con-
nião da gangue, falamos sobre o que íamos fazer tente por que eles não entendem nada...A gente só
com ela. Decidimos que a gente podia aproveitar procura fazer funcionar os nossos negócios.”
para fazer um pouco de propaganda e, portanto, fi- Todas as gangues que eu estudei em Los An-
xamos o que a gente ia passar para ela: sabe como geles, New York e Boston entenderam o interesse
é, quem ia falar com ela, o que a gente ia dizer para que elas podem ter em serem cobertas pela mídia.
ela...Ela veio e interrogou os caras que a gente es- Mas nem todos são capazes de organizar e aplicar
calou. E depois respondemos o que quisemos. Ela estratégias tão elaboradas quanto as descritas an-
nem entendeu o que estava acontecendo. A gente é teriormente. Muitas vezes, as gangues que encon-
ótima para este tipo de besteiras, eles ficam embas- tram dificuldades para manipular a mídia expli-
bacados, os jornalistas! Ela, estava toda contente cam isto pelo fato de alguns membros se recusa-
mas, antes de ir embora, a gente a fez babar um rem a qualquer contato com os jornalistas. A ra-
pouco; falamos dois-três negócios que podiam in- zão deste comportamento, dizem as gangues, é que
teressá-la para que ela volte ou fale para outro jor- estes indivíduos temem ser identificados pelas au-
nalista e para que eles voltem”. toridades e presos ou ainda porque não querem
Bird, 18 anos, que é membro de uma gangue cooperar com a mídia que sempre os apresenta de
irlandesa de Boston, conta: “Claro, tem um monte forma negativa. De fato, estas desculpas só servem
de jornalistas que já tinha tentado fazer reportagens para esconder a inaptidão destas gangues para
sobre a comunidade e sobre nós; mas a gente não controlar suas relações com a mídia já que a sua
queria falar com eles. E depois finalmente a gente organização e a sua estrutura estão definhando.
pensou: “As suas reportagens, eles as farão de qual- Assim, um rapaz de 17 anos, pertencente a uma
quer forma, então melhor dizer para eles o que a gangue de New York confessa: “Muitos jornalis-
gente quer que eles digam.” Entramos nesta e ro- tas queriam entrar em contato conosco, mas a gen-
lou mais vezes. Eles faziam todo tipo de perguntas: te não dava mais entrevista para ninguém, já que
se a gente fazia tráfico de armas para a IRA, coisas muitos brothers (membros da gangue) não que-
assim, mas a gente só os enrolava. Era sempre pre- riam que o fizéssemos. Eles diziam que não que-
ciso que eles voltem, para saber mais e a gente só riam a cara deles na televisão porque os policiais

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Martín Sánchez-Jankowski

poderiam reconhecer e prendê-los. Na verdade era como exemplo o testemunho de um membro de uma
tudo papo furado já que eles nem precisavam es- gangue de Los Angeles (21anos): “Sabe, se um pes-
tar lá no momento das entrevistas. Outras gangues soal de televisão faz uma reportagem sobre nós e a
fazem muito bem isso... Quer saber de uma coisa, gente se mostra cooperativo, isto ajuda a recrutar
a verdadeira razão, você sabe, já que você estava mais membros. O que importa é saber como coo-
lá, é que eles não queriam que o cara que é presi- perar com eles, sabe, é legal, assim a gente faz pas-
dente agora aproveite da propaganda, porque eles sar as mensagens úteis. (...) Por exemplo, eles (os
tinham um outro cara em mente para substituí-lo. jornalistas) vão nos fazer perguntas e nós vamos
Mas a gente está se lixando para o motivo pois, de responder dizendo coisas que dão a impressão aos
qualquer forma, eles conseguiram nos impedir de caras da vizinhança de que o que fazemos é o má-
fazer os nossos negócios com os jornalistas.” ximo. Sabe, é assim, a gente diz coisas que o resto
Um outro membro de uma gangue de Los An- do mundo escuta e para eles, parece até mesmo bo-
geles, com 20 anos, dá razões mais próximas: “Ti- bo. Mas para os caras da vizinhança isto quer di-
nha um pessoal entre nós que queria aceitar a oferta zer outra coisa. Isto quer dizer que nós temos pos-
dos jornalistas de nos levar para a mídia; mas mui- sibilidades para eles. É o poder das palavras, como
tos chegados dos outros kikas (ramificações da gan- quando a gente vê na tevê a propaganda do exérci-
gue) queriam opinar na escolha daqueles que iam to, sabe, quando dizem: “para alguns, ser um recru-
ser escalados para as entrevistas...Finalmente não ta é o início de uma carreira” ou besteiras deste tipo.
pudemos tirar nada da mídia porque não consegui- A mim, de fato, esta mensagem não me interessa-
mos decidir entre nós o que fazer. A gente só fica- va. Me parecia até bobo entrar no exército para
va lá sentado e brigando um com outro. Um ver- aprender alguma coisa e depois fazer uma carrei-
dadeiro bordel e não havia chefe com bastante au- ra. Mas têm caras que acreditam nestas besteiras.
toridade para acabar com aquilo. (...) Todos aque- Bem, é parecido com o nosso papo: têm caras que
les que estavam a favor das entrevistas disseram que entendem e que vêem possibilidades para eles. É
as gangues estavam realmente na moda naquele mo- assim que a coisa acontece.
mento, mas que não seria sempre assim e que a gen- Um jovem de 18 anos que faz parte de uma
te ia perder uma p... oportunidade para fazer a nos- gangue de New York acrescenta: “Estava vendo o
sa propaganda; mas não adiantou nada.” noticiário na tevê quando de repente falaram das
Ao longo de mais de dez anos de pesquisas de gangues. Estes brothers eram realmente bad (no
campo, nunca vi gangue nenhuma receber dinhei- jargão deles: bons, fortes, duros) e tinham algo a
ro da mídia como contrapartida da sua cooperação dizer; então eu disse para mim mesmo: “Eh! talvez
nem nunca vi um único jornalista propor um negó- eles tenham coisas interessantes para mim, estes aí”.
cio desta natureza. O que leva a fazer muitas per- Então decidi ir lá ver com meus próprios olhos e me
guntas: primeiro, se as gangues não recebem dinhei- juntei à gangue. (...) Não, nunca entraria neste gru-
ro, o que é que ganham cooperando? Segundo, por po em particular, poderia ter participado de outro
que lhes parece tão importante adotar uma estra- grupo, mas não teria escolhido este se não tivesse
tégia coletiva nas suas relações com a mídia? Para ouvido o que falavam no programa. Bateram na
responder à primeira destas perguntas, é óbvio que tecla certa!”
as gangues tiram muitas vantagens de uma passa- Segunda vantagem procurada pelas gangues
gem no noticiário. Uma gangue que se beneficiou nas suas relações com os jornalistas: uma passagem
de uma “plataforma midiática” poderá sempre co- pela mídia serve para incrementar os negócios. Elas
meçar uma outra ramificação em um outro bairro esperam de uma reportagem que as descreva como
da cidade, pois o programa terá despertado um in- sendo mestres de um território bem definido e dis-
teresse para esta gangue entre os novatos. Tomemos postas a usar a força, se preciso, o que é muito útil

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As gangues e a imprensa

para elas, notadamente para as suas atividades de o testemunho de um jovem membro de uma gan-
trambique. Assim, quando entram em contato com gue irlandesa de New York (18 anos): “Quando a
novos clientes para propor-lhes a sua proteção, elas gente dá entrevista a um jornalista, a gente faz os
têm mais chances de fazer o negócio se já tiverem caras superdelirantes, a gente tenta ser realmente
saído na televisão. Dos 53 pequenos comerciantes durão; porque, desta forma, a gente consegue fa-
que eu entrevistei após terem aceito a proteção de zer passar a mensagem para todos aqueles que gos-
uma gangue, 16 deles (ou seja 30%) me disseram tariam de vir tentar um golpe no nosso bairro: se
ter sido influenciados (ou intimidados) por repor- os pegarmos, seremos sem piedade, eles sabem que
tagens da mídia sobre as gangues. O testemunho de serão massacrados.”
um proprietário de uma pequena mercearia de New Finalmente, alguns membros adotam um com-
York, é tipico: “Eu vi um programa na tevê sobre portamento mais assustador ainda do que os outros
uma gangue do bairro. Ouvi o que eles diziam, e durante as entrevistas na esperança de fazer repu-
depois a polícia falou dos crimes que esta gangue tação e de ganhar mais respeito e mais prestígio no
havia cometido. Então, tive um pouco de medo. E seio da própria gangue ou, ainda, para assegurar
quando vieram me propor a proteção, claro que eu melhor a segurança pessoal na rua25: “Quando dei
falei para eles que, ‘tudo bem’! Você vê, não estou a entrevista para este jornalista, dei uma de doidão,
neste país há muito tempo, então, não quero abor- saca. Disse coisas muito puxadas, mas o que eu ha-
recimentos com ninguém. E depois que eu os con- via planejado; porque eu queria ter uma aparência
trato não tenho mais problemas.” completamente pirada. Se as pessoas acreditarem
A mídia pode também oferecer uma outra que você é louco ninguém vem te encher o saco.
forma de propaganda às gangues ao lhes servir Então eu procuro parecer o mais alucinado possí-
“páginas amarelas” da economia ilegal. Acontece vel quando topo com algum jornalista, porque eu
realmente que alguns traficantes encontram por sei que ele dirá por tudo quanto é lugar para não
meio da imprensa ou da televisão o nome de gru- me procurarem!” (17 anos, membro de uma gangue
pos que poderiam lhes ser útil na produção ou na de Los Angeles).
distribuição de suas mercadorias. Em um caso des- Para maximizar o seu proveito midiático, 9 das
tes, traficantes de objetos roubados entraram em 37 gangues que eu estudei elaboraram uma estra-
contato com determinada gangue para expandir o tégia coletiva destinada a influenciar o conteúdo das
seu mercado ou para terceirizar algumas de suas reportagens. Mesmo que nem sempre consigam,
atividades após ter notado durante uma reporta- elas sempre têm mais sucesso do que as que não têm
gem que esta gangue controlava o bairro. Uma estratégia deste tipo. E. Man, 21 anos, chefe de gan-
manobra destas permite aos traficantes evitar ou gue em Los Angeles, explica: “Durante anos os jor-
reduzir os gastos gerados pela organização e a for- nalistas vieram nos fazer perguntas e tocar os ne-
mação de um novo grupo para uma atividade par- gócios deles e a gente não lucrava nada com isto.
ticular. Para as próprias gangues a mídia é também
o meio de fazer chegar às outras gangues (ou a
outros adversários eventuais) advertências contra 25 No documentário Our Children: The Next Gene-
possíveis invasões de território. É por esta razão ration, um jovem a quem foi perguntado por quê ele pensa
que cada vez que uma gangue é objeto de uma re- que a sua gangue e ele mesmo não serão atacados por ou-
portagem, seus membros se esmeram em dar de si tras gangues responde: “Temos 357 razões para não nos
deixar chatear”, trocadilho sobre o fato de que eles têm
uma imagem particularmente impressionante. Em
armas calibre 357. No programa de domingo à noite da CBS,
todas as gangues estudadas, os membros são per- 60 minutes, produzido por Dan Rather, um membro de uma
suadidos a se sairem bem, que a sua entrevista lhes gangue de Chicago dá um tiro em seu próprio pé para pro-
trará no mínimo esta vantagem. Eis por exemplo var a sua virilidade.

Revista Brasileira de Educação 195


Martín Sánchez-Jankowski

Então decidimos ver se tinha jeito de tirar uma gra- gangue controla estreitamente o que é dito e o que
na deles, mas eles disseram que não. Então decidi- o jornalista é autorizado a ver. Assim as gangues
mos fazer passar mensagens úteis, sabe, como ofer- conservam todo o seu mistério e poderão de novo
tas de recrutamento e para dizer às pessoas onde era responsabilizar o repórter pela inexatidão. O tes-
o nosso território. Mas foi só quando começamos temunho de Sonic, chefe de gangue de New York
a refletir realmente no que a gente queria passar e de 18 anos, ilustra bem esta situação: “A gente não
tivemos um plano do que íamos dizer e fazer com pode dizer tudo para eles (os jornalistas). Só pode-
os jornalistas que conseguimos obter o que a gente mos dizer o suficiente para manter o interesse de-
queria. Mas não posso dizer que tenha funcionado les, mas guardando muito mais, escondendo o jo-
todas as vezes porque, às vezes, dava certo, e depois go. Assim, quando a gente diz que a última repor-
às vezes, o jornalista, ou não sei mais quem, mu- tagem sobre nós contém monte de erros, é verda-
dava a reportagem e nos enrolava. Mas, assim mes- de. Ao fazer isto, a gente se arranja para que haja
mo, a gente se saia melhor que estes filhos da p.... sempre um outro jornalista que venha nos ver,
(outras gangues) que só diziam o que lhes passava porque todo jornalista acredita que ele é que vai
pela cabeça e que não tinham nenhum plano. E de- fazer a melhor repotagem sobre as gangues.” De
pois, a gente não tinha do que se queixar quando um ponto de vista de marketing, as gangues pos-
as coisas não davam sempre certo, porque de qual- suem um grande trunfo sobre os jornalistas pelo
quer maneira, a gente ganhava uma propaganda fato da cultura das ruas se transformar continua-
gratuita em horários de grande audiência! Por en- mente. As gangues, portanto, sempre têm novida-
quanto, estamos com problemas de organização, des para oferecer aos jornalistas; estes poderão en-
então não é possível pensar numa estratégia midiá- tão vender a sua reportagem a seus diretores que,
tica porque temos problemas mais urgentes. Mas por sua vez, a venderão para um patrocinador e o
assim que tivermos resolvido tudo isto, voltaremos grande público.
a pensar nisso.”
Em vista das múltiplas vantagens que a mídia Algumas observações para concluir
pode lhes trazer, as gangues desejam que esta últi-
ma continue a falar delas. Elas elaboraram, por Hoje como ontem, as gangues são o objeto de
esta razão, algumas táticas que procuram estimu- uma intensa atenção por parte da mídia. E entre-
lar ou entreter o interesse da mídia. A primeira tanto, no fim da análise, o que mais choca na ma-
consiste em criticar o que outros jornalistas disse- neira como esta última tratou e trata o fenômeno,
ram sobre elas alegando que suas proposições são é a sua notável uniformidade. Dois fatores se com-
inexatas. Na maioria dos casos todavia, elas não binam para produzir os invariantes observados na
põem em causa o conjunto da reportagem já que forma e no conteúdo das reportagens sobre as gan-
isto significaria que elas mesmas mentiram para o gues: de um lado, os interesses profissionais e os
jornalista. Elas só mantêm que a reportagem é só interesses comerciais dos diversos agentes do mundo
parcialmente condizente com a verdade, para pas- da mídia, assim como as exigências técnicas que
sar a certeza de que elas não enganaram o jorna- pesam sobre eles; por outro lado, a influência deli-
lista mas que foi este último que não soube relatar berada que as próprias gangues exercem sobre es-
as suas palavras. Assim, elas podem iscar outros tas reportagens para tirar proveito delas. Gangue
jornalistas ou outros canais interessados em voltar e mídia instauraram, portanto, uma com a outra,
para refazer uma reportagem mais exata. Cada vez uma relação que permite a cada uma manter o seu
que um novo jornalista se apresenta, a gangue pro- estatuto no seu mundo social respectivo e na soci-
mete lhe dizer “toda a verdade” para aguçar o seu edade. E elas reforçaram juntas o mito popular das
interesse. Mas, é claro, na maioria dos casos, a gangues na cultura americana.

196 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


As gangues e a imprensa

Porém, é preciso salientar que este mito é por- xuais e raciais dos brancos do que sobre a realida-
tador de uma imgem muito negativa com as co- de das gangues26.
notações maléficas e perigosas. De fato, as gangues O estudo aprofundado das relações entre gan-
são invariavelmente apresentadas como uma amea- gues e mídia prova que as gangues são uma “pro-
ça física para o cidadão médio respeitador da lei e dução” social em que os jornalistas desempenham
também como perigo para a moral e os valores da um papel não desprezível e encontram amplamen-
sociedade toda. É esta imagem, ancorada nos me- te o seu interesse. Relatar casos de gangues, seja nas
dos individuais e coletivos, que estimula e susten- novelas, seja em forma de documentário, lhes pro-
ta o interesse do público; e esta mesma imagem vê dinheiro seguro, promoção, prestígio e poder no
que reforça continuamente o lugar e o estatuto das seio do mundo midiático por causa do gosto que o
gangues na cultura e na sociedade urbanas ameri- grande público tem por este tipo de reportagem. É
canas. Embora a mídia apresente as gangues como por esta razão que os jornalistas só tomam empres-
malfazejas e destruidoras, tanto uma como outra tado do saber dos “especialistas das gangues” as
se aproveitam de uma relação que não contribui informações que se inscrevem no quadro dos temas
em nada, muito pelo contrário, para eliminar o que interessam ao grande público, isto é, sexo, dro-
tipo de delinquência que elas encarnam. As gan- ga, crime e violência, e que são conformes à ima-
gues tais como aparecem na mídia, constituem um gem que eles mesmos têm das gangues. Como no
mito inesgotável, que se nutre de estereótipos cul- caso das primeiríssimas gangues americanas que
turais e de distorções comuns da realidade social. foram os bandidos do Far West, o mito popular que
A mídia oferece uma imagem seletiva e sistemati- eles contribuem para produzir e perpetuar é apenas
camente deformada da atividade das gangues. Pri- uma imagem deformada e longínqua da realidade.
meiro, ela insiste incessantemente sobre a violên- Paradoxalmente, se a imagem fabricada pela
cia das gangues e sobre a agressividade dos seus mídia diaboliza as gangues, também é mérito dela
membros. Mas se é verdade que muitos membros o fascínio ligado a estes outros personagens da
de gangues se envolvem em incidentes graves, a vi- cultura americana que são o cowboy, o desperado
olência não é um elemento tão fundamental da e o tira-gangster. Estes modelos de violênca viril
vida das gangues como a mídia dá a crer. Depois, ocupam um lugar de honra no panteão folclórico
as gangues não são um fenômeno que concerne ex- americano pois possuem, no grau mais elevado, as
clusivamente comunidades negra e latina, como o qualidades que a cultura nacional venera: um in-
sugere a imagem difundida pela mídia. Embora a dividualismo resoluto, uma independência feroz,
sua presença seja mais marcada nos bairros pobres uma força física fora do comum (ou seja, a capa-
de gente de cor, os bairros brancos têm também, e cidade de lutar e ganhar) e uma temeridade a toda
sempre, produzido muitas gangues. Este artigo faz prova. O que não signfca que a oposição entre o
menção de gangues irlandesas, mas existem tam- bem e o mal não figure na mesa dos valores ame-
bém gangues brancas ítalo-americanas e apala- ricanos, mas antes, que bem e mal são dissociados
chianas. Em terceiro lugar, as comunidades pobres das noções de legalidade e de ilegalidade. O único
não são mais “desorganizadas” que as outras no critério determinante na matéria é a exibição das
plano social, nem seus membros menos capazes de qualidades enumeradas acima; quem as possui está
instaurar por elas mesmas uma disciplina de vida
individual e coletiva. Finalmente, a imagem da jo-
vem de cor de “vida fácil” agarrando nas suas re- 26 Sobre este tema da mulher de cor que seduz um
des homens brancos e íntegros tem uma longa his- homem branco, ver Winthro D. Jordan, White over Black:
tória no imaginário social americano; esta imagem American Attitudes towards the Negro, 1550-1812, Balti-
é muito mais eloqüente a respeito das fantasias se- more, Penguin Books, 1969, p.150-151.

Revista Brasileira de Educação 197


Martín Sánchez-Jankowski

do lado do bem; quem está desprovido delas é de-


finitivamente relegado para o lado do mal. Os
americanos preferem, portanto, a imagem defor-
mada e romanesca que a mídia lhes propõe à pró-
pria realidade prosaica das gangues. Mas os mem-
bros das gangues têm as mesmas aspirações e são
animados pelo mesmo desejo de sucesso material
e social que todos os americanos, e neste plano
pelo menos, seu comportamento coletivo não di-
fere de jeito nenhum do de outras organizações de
caráter mercantil. Esta realidade é sem dúvida
muito, demasiadamente, difícil de aceitar pelo pú-
blico americano. Mostrar as gangues como elas
são equivaleria a tirar todo o charme associado aos
personagens violentos da mitologia nacional, o
que os tornaria menos divertidos e abaixaria o seu
valor midiático. Isto suporia igualmente fazer com
que o país tome consciência da estratificação rígi-
da da sociedade e da pobreza persistente em que
estas organizações encontram a sua fonte. Final-
mente, mais incômodo ainda para o conjunto da
sociedade, reconhecer as gangues pelo que elas são
levaria os dirigentes do país a procurar para o pre-
tenso “problema das gangues” uma solução eco-
nômica em vez de se embrenhar em políticas pe-
nais que só fazem agravá-lo.

198 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Juventude(s) e periferia(s) urbanas

Eloisa Guimarães
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Estudos da Cultura e Educação Continuada

Como em outros estados brasileiros, as agre- Esse artigo tem como propósito analisar uma
miações juvenis (res)surgem no Rio de Janeiro no dessas agremiações, as galeras, grupos formados nos
final da década de 70, assumindo grande vulto nos subúrbios cariocas — embora não fiquem restritos
anos 80 — a partir de sua segunda metade —, e nos a essas áreas —, em processo de expansão. Relacio-
anos 90. De fato, a questão das agremiações juve- nam-se ao mundo funk sem que os dois universos
nis, em sua multiplicidade, com seus diferentes sím- se confundam. São movimentos distintos, cada um
bolos e estilos, seus modos de ser singulares, moti- com suas próprias características, cruzando-se em
vações e modos de representação distintos pode ser alguns aspectos e diferenciando-se em outros. O
pensada como uma das marcas da atualidade. principal ponto desse cruzamento pode ser locali-
Essa marca, que se estrutura e se define nesse zado no gosto pela música e pelos bailes funk.
século, com a constituição de uma cultura jovem, A expressão galeras designa, fundamentalmen-
tece-se nos diferentes espaços sociais dos quais os te, no Rio de Janeiro, grupos de jovens da perife-
jovens participam — a rua, onde se constitui uma ria1 da cidade, com relativa organização interna,
cultura voltada para os diferentes modos de utili- que se estruturam em torno de suas áreas de resi-
zação do tempo livre, a casa, a escola, assim como dência — o bairro, o morro ou favela ou, ainda, a
as áreas de lazer — e nas redes de relações que aí rua — e das quais incorporam os nomes. Desenvol-
são estabelecidas. São elementos que se combinam
de diferentes maneiras produzindo estilos e modos
1 Uso o termo “periferia” para designar áreas da pe-
de ser singulares e distintos entre os vários univer-
riferia geográfica da cidade, mas também aquelas áreas que,
sos juvenis. É na tensão entre esses elementos, e
em função da geografia da cidade, e das formas de ocupação
entre eles e os contextos em que vivem os jovens, do espaço, poderiam ser denominadas de “periferia social”,
que podem ser buscadas as linhas de formação e de com referência às populações pobres que habitam favelas
constituição dos subgrupos juvenis. construídas em morros encravados em bairros centrais.

Revista Brasileira de Educação 199


Eloisa Guimarães

vem, com base nesse parâmetro de organização, que divisões por áreas de moradia que podem estar re-
representa, ao mesmo tempo, uma dimensão geo- presentadas pelo bairro, pelo morro ou favela em
gráfica e outra social, intensa rivalidade entre si — que se vive, ou, ainda, pelas ruas de residência.
de onde os conflitos e os embates públicos pelos Processo de segmentação semelhante, embo-
quais se tornaram conhecidas. A expressão galeras ra operado a partir de outros critérios, pode ser
se torna familiar sobretudo a partir da década de verificado entre diferentes grupos urbanos: as tor-
90, imprimindo suas características, a partir de en- cidas organizadas, freqüentadores de academias ri-
tão, à juventude das periferias. Contudo, recente- vais, entre outros.
mente, vêm-se registrando, de forma crescente, a Elaborados e reelaborados por cada subgrupo,
existência de galeras de classe média. Não se conhe- a partir dos contextos sócio-culturais em que estão
ce o número dessas galeras, nas áreas centrais da inseridos e de suas motivações e condições de vida,
metrópole ou na periferia, entre as populações de os padrões de organização hoje adotados pelas ga-
melhor poder aquisitivo ou entre as de menor ren- leras não são, entretanto, novos. Tais grupos são
da. Entre as últimas, entretanto — jovens de áreas herdeiros de certas tradições organizativas desen-
periféricas e de baixo poder aquisitivo —, sabe-se volvidas por outras agremiações juvenis.
que é um movimento largamente disseminado. Refiro-me, por um lado, às “gangs” de rua
É necessário destacar dois princípios que fa- norte-americanas, nas quais as galeras de periferia
zem parte da constituição dos movimentos juvenis buscam inspiração, e que têm uma tradição orga-
atuais e que estão fortemente presentes entre as ga- nizativa que remonta ao início do século, a qual as
leras (e entre os funk), sejam elas de classe média galeras cariocas buscam ainda desenvolver. Por ou-
ou de periferia: sua intensa fagmentação e forte he- tro lado, às turmas de jovens de classe média exis-
terogeneidade. Não há unidade, menos ainda, ho- tentes no Rio nas décadas de 50 e 60, entre as quais
mogeneidade, entre esses grupos como não há em já estavam desenvolvidas algumas das principais
seu interior. características das atuais galeras: a constituição por
A extrema heterogeneidade referida se revela bairros (ou ruas) e a rivalidade exacerbada entre
inter e intra grupos juvenis e está fortemente pre- turmas de bairros (ou ruas) diferentes lembram,
sente entre as galeras. Embora se estruturem tendo hoje, não só as galeras dos subúrbios, mas as de
como referência princípios comuns, esses grupos se classe média.
diferenciam em relação a vários aspectos. Entre es- Embora a rua fosse, naquela época, o espaço
ses vale, de início, destacar que há galeras “guer- de socialização por excelência dos jovens do sexo
reiras” e galeras pacíficas e pacifistas; galeras asso- masculino e representasse muito menos perigo, os
ciadas às quadrilhas de traficantes e outras que bus- conflitos já podiam ser sentidos entre aqueles jovens
cam delas se distanciar; galeras masculinas, galeras (brigas entre turmas rivais, nos clubes, nas ruas, nas
femininas e galeras mistas. Há, inclusive — embo- saídas das escolas). A violência que atingia o núcleo
ra seja raro — galeras chefiadas por mulheres. metropolitano parecia vir, então, da classe média.
As galeras são, ainda, grupos fortemente frag- Ou, pelo menos, era nesse nível que ela se coloca-
mentados e intensamente segregados, característica va como objeto de percepção e de registro.
que se manifesta, ao mesmo tempo, no interior das A questão da delinquência juvenil já era, tam-
agremiações pertencentes às camadas médias e da- bém, objeto de percepção e de registro entre as cama-
quelas de periferia. Em ambas, a referência para essa das médias. Referindo-se à curra da jovem Aída Curi,
segmentação é a mesma, e está representada, inici- seguida de assassinato, Ventura (1995) nota que
almente, pelo critério geográfico em torno do qual
os diferentes grupos se configuram e a partir do qual Eles inauguraram um modelo de agressividade,
se constróem, inicialmente, suas identidades: são as cruel e gratuita, que não encontrava equivalente na

200 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Juventude(s) e periferia(s) urbanas

violência praticada pelos malandros de morro de en- goria de jovens — os funkeiros — que, mesmo ten-
tão. Essa geração do asfalto, que se diverte com brin- do várias conexões com as galeras, não podem a elas
cadeiras como atear fogo em mendigos, antecipou uma ser reduzidos. Embora muito relacionados, galeras
vertente moderna da violência urbana. e funkeiros se distinguem, pela própria natureza de
seus movimentos: o funk é um fenômeno musical
Grupos de jovens — ingleses, franceses, ame- de massa, fortemente centrado na diversão. Enquan-
ricanos, alemães e outros —, desenvolvem, nesse to estilo musical e pela frequência2 aos bailes funk
século, histórias e modos de organização similares. é hoje o fenômeno mais generalizado entre os jo-
A originalidade dos grupos atuais está, pois, na vens da periferia, extrapolando necessariamente o
imensa capacidade que têm, de criar e recriar tal contingente que se organiza em galeras. É bom men-
herança em torno das atuais condições sociais e das cionar que parte da confusão gerada em torno desta
novas práticas culturais — centradas no lazer e nas questão resulta do fato de que as galeras são funk,
novas culturas musicais —, de construção e recons- sendo comumente denominadas de galeras funk.
trução de sua prórpria história e da utilização dos A idéia do “arrastão”, graças em boa parte à
recursos hoje disponíveis. concorrência da mídia, contribuiu ainda para que
as galeras e funkeiros passassem a aparecer sempre
Galeras (e) Funk relacionados à temática da violência e, de modo
particular, às quadrilhas de traficantes de drogas.
A grande clivagem entre os jovens cariocas, Para isso, contribuiu, ainda, a ampla difusão dada,
entretanto, anterior às várias possibilidades de frag- a partir de então, às notícias de crimes ligados aos
mentação que teria sido possível enumerar acima, bailes funk, a eles imprimindo a imagem de bailes
se faz entre a geração do asfalto, de um lado, e a violentos (esse aspecto será tratado no último item
juventude dos morros e da periferia da cidade, do desse artigo).
outro. É desse último segmento que trata esse arti- Os bailes funk e, em consequência, a popula-
go, ou seja, das galeras residentes nas periferia ou ção que os frequenta passaram a ser maciçamente
em morros localizados em áreas centrais, mas ha- criminalizados, de forma sistemática e recorrente,
bitados pelas populações pobres e, é bom registrar, em discursos e ações públicas e no discurso cotidi-
em grande medida ocupados por quadrilhas ligadas ano das populações, resultando em projetos e, mui-
ao tráfico de drogas. O termo galeras será utiliza- tas vezes, em exigências de intensificação de proces-
do, a partir desse momento, para designar tais gru- sos repressivos. A violência da cidade passou a ser,
pos da periferia. em grande medida, identificada às galeras, ao funk
As galeras ganharam grande visibilidade a par- e ao funkeiros, ao mesmo tempo que ambos têm
tir de 1992 com os “arrastões” ocorridos nas praias sido por ela responsabilizados, condição que se ge-
da Zona Sul, e amplamente divulgados pela mídia, neraliza aos frequentadores dos bailes.
levando a um processo de estigmatização crescen- São em número muito restrito os estudos que
te desse segmento juvenil — a quem foi debitada a buscam analisar de forma sistemática os fenômenos
conta pelos “arrastões”. Contudo, uma idéia que funk(eiros) e galeras no Rio de Janeiro, lugar onde
vem se tornando dominante é a de que os famosos aparecem, por sua expressividade numérica, como
“arrastões” não passaram de conflitos entre gale-
ras rivais, que tendem a se reproduzir nos espaços
públicos, como cheguei a afirmar em trabalho an- 2 Segundo estimativas feitas em 1994 os bailes funk
terior (cf. Guimarães, 1995). que se realizavam a cada final de semana em vários clubes
Nesse mesmo processo estigmatizante, junta- da cidade, já congregavam, ná época, mais de um milhão e
mente com as galeras, foi incluída uma outra cate- meio de jovens.

Revista Brasileira de Educação 201


Eloisa Guimarães

a(s) maior(es) manifestação(ões) de massa entre jo- do funk são sempre pontuadas pela menção às ga-
vens da periferia. Em menor número, ainda, estão leras (Ventura, 1995, cap. 9).
os estudos empíricos de base acadêmica sobre o Em Vianna (1996), estudioso do fenômeno
tema. Por isso, apresenta-se como problemática a funk desde os anos 80, a quem se deve uma com-
questão da relação (e, portanto, das diferenças) en- petente etnografia sobre esses bailes, se encontra a
tre galeras e mundo funk na cidade. distinção mais enfática, ao negar a idéia da música
Por parte da imprensa há um movimento de e bailes funk como essencialmente violentos. Rea-
geração, na opinião pública, de uma imagem ma- firma, como já fizera em trabalhos anteriores, seu
ciça e homogeneizadora, que identifica o movi- caráter de festa e de diversão. O problema da dis-
mento musical (funk), galeras, tráfico e “arras- criminação do funk (e dos bailes) se relacionaria,
tões” como elementos articuladores de um mesmo segundo o Vianna, a outros processos que existiram
e único fenômeno: a violência. Essa questão foi na história da cidade, caracterizados pela recusa a
profusamente tratada pela imprensa televisiva e prática culturais desenvolvidas e/ou adotadas pelas
pela imprensa escrita entre 1992 e 1993, manten- populações do subúrbio. Assim, o samba e a capo-
do-se, com menor ênfase até os dias atuais. Embo- eira, inicialmente discriminadas e condenados fo-
ra no corpo das matérias essa identidade por ve- ram, posteriormente, através de diferentes media-
zes se dilua, as manchetes jornalísticas, que têm ções, aceitos e incorporadas à vida urbana.
maior impacto sobre a opnião pública, insistem em Outro estudo que tem importância para a ques-
chamadas como: tão levantada é o de Herschmann (1994-95), pou-
co voltado para os subgrupos galeras e funkeiros,
“Funk carioca mistura música e violência” (O
que aborda o problema do ponto de vista da cul-
Estado de São Paulo, 26/10/92).
tura hip-hop3 (ou culturas das ruas, em seus pró-
“Arrastão: o mais novo pesadelo carioca nasce
prios termos) e suas relações com a cultura da vio-
nos bailes ‘funk’” (O Globo, 23/02/92).
lência que toma corpo nos últimos anos no meio
“DJ’: traficantes pagam bailes ‘funk’” (O Glo-
urbano. As referências para o autor são, então, as
bo, 20/06/95).
práticas culturais e os estilos musicais que mobili-
“Funks voltam aos bailes e às brigas” (O Dia,
zam parcela expressiva dos jovens atuais, aí incluí-
15/02/93).
dos o funk, o rap, as galeras funk, entre outros.
Em estudos mais sistemáticos, que buscam te- Assim, Herschmann introduz uma outra perspec-
matizar a questão dos movimentos juvenis em sua tiva que não está presente nas colocações anterio-
conexão com os movimentos urbanos relacionados res e que possivelmente representa o ponto de in-
à violência, esse aspecto também nem sempre é cla- terseção entre os diferentes universos juvenis atual-
ramente estabelecido. Em uma dessas análises Ven- mente presentes na cena urbana.
tura (1995), em trabalho jornalístico desenvolvido
a partir da convivência com populações de áreas
periféricas, aborda o aspecto da violência relacio-
nada a esses grupos — que se manifesta sobretudo 3 O autor define a cultura hip-hop como “conjunto
nos bailes — sem, no entanto, estabelecer diferen- de manifestações culturais (abrange o rap, o funk, o break
ças entre eles, de forma clara. Pode-se encontrar, graffiti, b-boy) bastante comum nos guetos negros norte-
americanos e que vêm sendo apropriada de modo geral pela
contudo, diferentes inflexões em sua narrativa onde
camada menos favorecida da população que habita basica-
transparecem certas distinções: quando suas análi-
mente as periferias das grandes cidades brasileiras” (Hersch-
ses se relacionam ao funk a associação é com o fe- mann, 1994-95: nota 2 à pagina 90). Sobre as diferenças
nômeno musical e com as festas (os bailes), enquan- entre a cultura hip-hop e sua apropriação pelos grupos bra-
to as referências à violência, no contexto do mun- sileiros (cariocas e paulistas) ver Vianna, 1990.

202 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Juventude(s) e periferia(s) urbanas

O autor aborda a questão da violência buscan- ras em torno e a partir de um território determina-
do tematizá-la e explicá-la no contexto das práti- do acionam certos processos de pertencimento e de
cas culturais referidas. Sua interpretação é a de que exclusão característicos. A segmentação do espaço
tais práticas instituem-se como reação a uma socie- em áreas delimitadas e controladas define normas,
dade tradicionalmente autoritária e excludente e regras e comportamentos exigidos do que a elas se
como forma de se contrapor a representações e mo- vinculam e por elas circulam, ao mesmo tempo que
delos, de certa eficácia no passado, que preconiza- as interdita aos de fora, os “alemães”, caracterizan-
vam a harmonia entre raças e classes sociais. É no do como inimigo o outro. Definem-se por oposição
esgotamento dessas representações e modelos, e co- umas às outras disputando, sistematicamente, a he-
mo reação ao caráter excludente e autoritário da gemonia das áreas onde se encontram. As brigas5
sociedade que pode ser entendida a mobilização de aparecem, então, simplesmente como resultado do
diferentes segmentos juvenis, entre eles o que é ob- encontro entre alguns desses grupos.
jeto desse artigo. A demarcação territorial é, assim prática fun-
Assim, enfatizando a existência de diferentes damental de estruturação das galeras, definindo, ao
segmentos juvenis, como estratégias distintas de in- mesmo tempo, uma forma de organização e de per-
tervenção no social4 o autor adverte que: tencimento ao grupo, uma área de atuação e de con-
trole por seus membros, a quem cabe defendê-lo e
(...) numa sociedade ainda muito marcada pelo
no interior do qual elaboram seu estilo e suas re-
autoritarismo e pela exclusão social, o discurso e o
gras de funcionamento definindo, também, frontei-
comportamento funk/rap, em certo sentido, são a res-
ras demarcatórias com outros grupos. Todas têm
posta de um segmento social que já não acredita mais
um código particular que inclui não só uma lingua-
na conciliação, na concretização de uma harmonia
gem própria e diferenciada, mas regras sociais de
social. Ao contrário, esses grupos tentam também im-
relacionamento e de hierarquia que não podem ser
primir, em certo sentido, à cultura hip-hop um tom
violadas. É essa a origem da extrema rivalidade que
segregador. (...) (Herschmann, 1994-95, 93).
se observa entre as diferentes galeras e motivo dos
embates permanentes entre elas.
A cultura guerreira das galeras As rixas entre as galeras representam algo mais,
ocupando lugar central em sua existência e na ló-
Não há como negar a existência de forte po- gica de sua organização. Muitas se estruturam ape-
tencial de conflito no interior de alguns desses gru- nas para brigar. Outras brigam apenas quando pro-
pos — as galeras incluem-se entre eles. A questão vocadas. Entre os depoimentos ouvidos em uma
consiste em buscar compreender seu significado, em pesquisa empírica realizada eram frequentes depoi-
que condições ele se atualiza (ou não) e em relação mentos do tipo: “é briga, briga de galera, galera!
a que segmentos juvenis. Galera é assim: cada morro, gangue de cada mor-
A configuração das galeras do cruzamento da ro, o morro X, galera do Morro X” (Guimarães,
vida e de uma história forjada nas ruas, fortemen- 1995, 64).
te marcada pela divisão espacial (e social) da cida- Apesar dessa caracterização generalizante, que
de com uma cultura marcadamente guerreira. Es- parece contituir a marca por excelência desse tipo
sas duas dimensões são faces de um mesmo proces- de organização juvenil, tem surgido entre as galeras
so. A constituição e a auto-representação das gale-

5 É esse o termo utilizado por pessoas relacionadas às


4Sobre essa questão dos modos de intervenção dos galeras para traduzir os conflitos e os confrontos físicos entre
grupos juvenis no social ver Abramo (1994) eles, inclusive aqueles que resultam em morte.

Revista Brasileira de Educação 203


Eloisa Guimarães

cariocas aquelas que se recusam às brigas, pautan- “gangs”de rua norte-americanas, estão longe de
do-se por comportamentos pacifistas e buscando atingir o nível de organização e estruturação daque-
desenvolver ações de pacificação dos outros grupos. las. De fato, a existência de “gangs” de rua, em
Não constituem-se ainda, contudo, em um segmen- escala expressiva, é registrada em algumas áreas dos
to dominante. Estados Unidos desde os anos 20. No Rio de Janeiro
A rua, espaço fundamental para a constituição o processo de estruturação de tais grupos é ainda
e existência das galeras é, tradicionalmente, parte emergente com relativa, mais ainda precária, orga-
do universo masculino e lugar, por excelência, da nização interna.
elaboração de seus padrões de virilidade. As de-
monstrações de coragem e de força física ainda re- Galeras, espaços de sociabilidade
presentam modos tradicionais de afirmação desses e circuito da violência
grupos, sobretudo entre as camadas populares. Em-
bora venham sendo relativizados os espaços, os mo- Uma das frases mais ouvidas quando se trata
dos e estilos de vida masculinos e femininos, sobre- do assunto galeras é a de que “quando duas gale-
tudo entre jovens, não se pode dizer que essa dis- ras rivais se encontram, o embate é certo”. Como
tinção tenha desaparecido completamente. deve ter ficado claro no intem anterior, a ocorrên-
No caso brasileiro, essa questão relaciona-se cia de briga entre as galeras é parte da própria cons-
ao próprio modo de ser da sociedade, característi- tituição desses grupos (às vezes, trata-se de mera
ca que ganha maior relevo entre os meios pobres da dramatização da briga) assim como representa uma
sociedade. Assim, segundo a análise de Da Matta forma de desenvolver e colocar em ação seus pró-
sobre o significado da “casa” e da “rua” como ca- prios projetos. Resultam, em parte, das disputas e
tegorias sociológicas fundamentais para a compre- dos deslocamentos de grupos nos quais hoje se or-
ensão da sociedade brasileira, cada um com sua ganiza parcela dos jovens para resolver suas pen-
lógica particular. Relacionando-se dinamicamente, dências fora dos espaços residenciais, onde seus mo-
essas duas categorias expressariam formas de orga- dos de ação, por imposição do tráfico, são muitas
nização do mundo social brasileiro: o mundo da rua vezes proibidos; resultam, ainda, de movimentos
como espaço do legal e do jurídico — universo, no dos mesmos jovens que buscam novas formas de se
Brasil, marcadamente masculino —, mas também relacionarem — e de se afirmarem — com as po-
— e é sob esse aspecto que as considerações desse pulações e as instituições.
autor interessam aqui — como lugar da luta (...) e Em qualquer das hipóteses consideradas, es-
do perigo (cf. Da Matta, 1991, 13-70). ses conflitos estão relacionados aos padrões de so-
Autores, sobretudo os norte-americanos e os ciabilidade que vêm se desenvolvendo no meio ur-
ingleses, que analisam grupos formados em países, bano. De modo mais específico, a ocorrência dos
destacam a importância das lutas e dos combates embates pode ter várias interpretações. Tentarei
como princípio fundamental para aprópria contitui- destacar algumas mais comuns e frequentes, sem ter
ção e estruturação das “gangs” de rua, uma vez que a pretensão de dar conta da explicação de todas elas
a consciência de pertencimento a ela tende a cerscer no espaço desse artigo.
com os combates, ao mesmo tempo que aumenta As brigas aparentam ser, muitas vezes, gratui-
seu potencial para as lutas. É também instrumento tas, ocorrendo como parte dos rituais das galeras.
de elaboração da identidade do grupo. A consciên- Essa foi uma das interpretações dadas aos modos
cia de pertencimento e a lealdade ao grupo seriam de ação e de estarem presentes das galeras em uma
incrementados através dos combates travados. É escola (de subúrbio) pesquisada entre 1991-1992.
necessário, entretanto, levar em consideração que, Durante longos períodos a escola se encontrava per-
embora as galeras cariocas busquem inpirar-se nas manentemente cercada por grupos externos, alheios

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Juventude(s) e periferia(s) urbanas

à vida escolar. A ação das galeras ocorria sob a for- deslocamentos, até que seja satisfatoriamente resol-
ma de ações dramatizadas, através das quais esses vido, segundo os termos desses grupos. Essa é ou-
grupos criavam e mantinham um clima permanen- tra circunstância explicativa de cercos às escolas
te de confronto com a instituição. Operavam de pelas galeras, quando o objetivo dos grupos pode
forma a demonstrarem aos quadros escolares a pos- ser — e o é muitas vezes — o de concluir a briga
sibilidade de invasão iminente. Algumas vezes, após começada em bailes e interrompida pelos seguran-
longos períodos em que a ação se dava apenas de ças. Representa, nesses casos, um dos pontos incluí-
forma dramtizada, tentativas de invasão eram, de dos nos múltiplos deslocamentos desses grupos para
fato, tentadas 6. Processos semelhantes podem ser fazer cumprir seus projetos e forjar sua própria tra-
vistos em outras situações (uma delas, os bailes, de dição enquanto grupo.
que falaremos adiante). Finalmente, um último elemento que seria in-
Uma segunda interpretação diz respeito à briga teressante lembrar tem relação com o mundo do
como movimento de cobrança e de punição de mem- tráfico e suas articulações com parcela dos grupos
bros das próprias galeras, que tenham ferido algu- que se organizam como galeras. Em certos casos,
ma das regras internamente estabelecidas. Essas re- os embates podem estar relacionados a ações orde-
gras variam de galera para galera. Entretanto, uma nadas e/ou coordenadas pelas quadrilhas de trafi-
vez estabelecidas, devem ser rigorosamente cumpri- cantes, a quem certas galeras servem como sistema
das. Sua violação provoca a intervenção do grupo, de apoio, ou ainda, podem derivar da presunção de
dando origem a punições rigorosas que podem che- certos grupos de partilharem, por estarem a eles
gar à morte. Essa é uma das situações em que gru- ligados, do mesmo “poder” dos traficantes.
pos de jovens podem ser utilizados pelo tráfico, quan- A questão dos bailes, maior diversão dos jo-
do são acionados para buscar e punir pessoas (jo- vens da periferia da cidade e, por consequência,
vens ou não) que estejam devendo7 às quadrilhas. espaço privilegiado de aglutinação dessa juventu-
A situação aqui tratada indica, também, uma das de8, é elucidativa de alguns dos processos descritos
circunstâncias de assédio das escolas por esses gru- acima. Sua abordagem pode ter como ponto de par-
pos — e, muitas das vezes, de invasão do espaço tida o enfoque que consta no trabalho de Ventura
escolar —, quando a instituição se apresenta como (1995), elaborado a partir das posições de dois es-
lugar em que, seguramente, algumas das pessoas pecialistas que, a partir da vivência dos bailes da
buscadas podem ser encontradas. frequência mais ou menos sistemáticas a alguns de-
Um terceiro motivo desencadeador dos confli- les, desenvolveram certas formas de pensar a par-
tos aponta para o desdobramento de brigas ante- ticipação das galeras nos bailes, aí incluindo a
riores. O confronto entre galeras, uma vez inicia- dimensão da violência.
do, não fica sem conclusão. Se interrompido, sofrerá
Manoel divide os bailes em três categoria. Na
primeira, não acontece nenhum tipo de violência (...).
Nos bailes do segundo tipo, as galeras inimigas vão
6Para uma descrição mais completa ver Guimarães, para provocar brigas esporádicas, que são violenta-
1995, caps. 1 e 2 e Guimarães, 1997. mente reprimidas pelos seguranças.
7 O termo dever é amplamente utilizado entre popu- A categoria mais interessante é a terceira, dos
lações que vivem no interior ou nas proximidades de áreas
ocupadas pelo tráfico de drogas. Pode ter um significado
literal, indicativo de que alguém deve dinheiro às quadrilhas
8 Matérias de jornais vêm, recorrentemente, mostran-
por ter apanhado a droga em consignação ou para uso pró-
prio não tendo liquidado a dívida, ou ter o indicar grupos do e enfatizando a adesão de grupos de classe média aos
ou pessoas que tenham violado as regras estabelecidas. bailes funk.

Revista Brasileira de Educação 205


Eloisa Guimarães

bailes que Manoel chama de embate, um confronto música e o modo de dançar (os trenzinhos e os mo-
ritualizado de galeras, (...) Os dois acreditam, e já estão mentos de maior pique dos bailes, quando todos
trabalhando para isso, que a violência que aí ocorre pulam a um só tempo) são apontados com muita
pode ser regulamentada (Ventura, 1995, 121). frequência como um desses fatores. Aí qualquer es-
barrão ou uma pisada no pé pode gerar o início de
Estudantes ouvidos em 1992, em pesquisa de uma briga (sobre as danças desenvolvidas nos bai-
campo realizada na Zona Oeste, apresentavam uma les funk, ver Vianna, 1988, cap. 4). Exemplo de uma
versão mais dura das brigas nos bailes. Há alguns dessas situações pode ser encontrado em Ventura,
fatores importantes que contribuem para elucidar na descrição do baile realizado para celebração da
esse maior rigor na posição dos escolares, relacio- paz entre Vigário Geral9 e Parada de Lucas, no mo-
nados à heterogeneidade dos grupos juvenis. Um mento em que algumas galeras começam a dançar,
deles, referente à área em que a pesquisa se desen- o que o autor denomina uma “brincadeira infer-
volveu, fortemente marcada pela presença do trá- nal”: os trenzinhos. O risco de que a situação se
fico de drogas mas ainda em processo de ocupação resvalasse para o tumulto foi percebido por várias
e que, por isso mesmo, exige um processo de recru- pessoas. O autor declara ter ouvido de um dos che-
tamento mais intenso — e mais ativo — entre jo- fes do tráfico presentes, em conversa com outro, a
vens. O segundo diz respeito ao fato de que as ga- frase: “se tiver briga, a gente num vamos poder pa-
leras, naquela área, segundo diferentes depoimen- rar. Tu segura o teu pessoal que eu seguro o meu”
tos ouvidos, estão vinculadas ao tráfico de drogas. (Ventura, 1994, 221).
Há um terceiro fator relacionado à inserção social A fala do traficante se referia à ameaça de briga
e às espectativas de parte dos escolares ouvidos. entre duas galeras, processo que, de acordo com os
Esse último grupo referido, em sua maior par- alunos entrevistados, é o responsável pelo maior
te, divide, compulsoriamente, a área de moradia número de brigas, sendo também a situação em que
com as quadrilhas de traficantes, buscava distanci- elas ocorrem com maior violência. Eram, por isso,
ar-se e criar, onde e quando fosse possível, barrei- as mais temidas pelos jovens funkeiros entrevista-
ras não só físicas — evitando os lugares freqüenta- dos. A briga entre elas ocorre, regra geral, pelo sim-
dos por “bandidinhos” e pelas galeras —, mas sim- ples encontro entre galeras rivais. O estarem fren-
bólicas. Pode-se supor que, por esse motivo, fossem te a frente, um esbarrão em algum elemento da ou-
mais radicais ao enfatizar as diferenças. tra galera e os gritos de guerra são os sinais para o
Do ponto de vista dos alunos entrevistados, a início dos conflitos: “é briga, briga de galera, por-
violência que aparece nos bailes é, sem dúvida, uma que tem que provocar outra galera”.
violência grupal, ainda quando os grupos são aci- De acordo com seus depoimentos, as galeras
onados para assumir a defesa de um de seus mem- vão aos bailes apenas para brigar, o que constitui-
bros. Ouvi com alguma frequência, de funkeiros, a ria o segundo daqueles fatores. Algumas delas já
explicação de que o problema da briga diz respei- descem os morros armadas de paus, correntes, pe-
to aos bailes nos salões, fora das áreas controladas dras. Impedidos de levá-los para dentro dos clubes
pelo tráfico. No interior destas áreas, nos bailes pelos seguranças que procedem a rigorosas revistas
realizados nas quadras ou em outros espaços, ele na entrada, esses instrumentos permanecem escon-
não se apresentaria. Funkeiros e não-funkeiros têm didos fora e são recuperados na saída, quando os
consciência de que não podem “armar confusão”
no pedaço.
Segundo os entrevistados, as brigas nos bailes
assumem diferentes formas e ocorrem por motivos 9 Vigário Geral e Parada de Lucas são dois bairros

distintos. Três fatores foram por eles destacados. A tradicionalmente rivais no Rio de Janeiro.

206 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Juventude(s) e periferia(s) urbanas

conflitos se radicalizam. Apesar de não serem per- provocadas nos bailes que, muitas vezes, resultam
mitidas nos clubes, as brigas começam lá dentro, até em brigas; em outras, não. Essas provocações po-
que sejam interrompidas pelos seguranças que ex- dem derivar de um olhar que se dê na direção de-
pulsam os envolvidos; seus desdobramentos trans- las, de um esbarrão ou acontecer de modo totalmen-
ferem-se, então, para a saída do baile, quando são te gratuito. De acordo com os depoimentos, têm
freqüentes os couros, os tiros e as mortes. Se não como objetivo envolver o namorado em sua defesa,
são resolvidas nesse espaço, na medida que é co- mostrando que “por ser namorada de bandido, ela
mum, também aí, a atuação dos seguranças ou a pode tudo, ela tem poder”. Em situações como es-
fuga dos grupos que se encontram em desvantagem, sas, a briga pode ou não ocorrer, dependendo da
numérica ou instrumental, as brigas se transferem adesão dos bandidos. Como esclarecem os frequen-
para outros espaços: é então que chegam às esco- tadores do funk, em muitos casos eles contribuem
las, ponto de encontro certo de alguns dos envol- para evitar as confusões, quando reconhecem em
vidos, como foi mencionado acima. quem é provocado um elemento de sua própria área
Nesses casos, não se procuram motivos para ou alguma amiga de infância que, independente das
explicar a origem do conflito. A briga representa a regras do “pedaço”, eles buscam proteger.
forma de curtir dos grupos e para isso vão aos bai- Esses processos merecem estudos mais apro-
les. Namorar faz parte de suas vidas, e a maioria fundados que, ao mesmo tempo, permitam carac-
tem namorada que é abandonada nos bailes em fa- terizações mais abrangentes, que deêm conta da
vor das brigas, mesmo nos momentos em que são atual situação da juventude nos centros urbanos.
tocadas músicas lentas. Como explica uma das Esta parece ser uma responsabilidade que diz res-
“funkeiras” entrevistadas: peito, hoje, a educadores e professores em geral.
Afinal, são esses jovens, em grande parte, os alunos
“até a hora da música lenta, mesmo, alguns nem
de nossas escolas, mais do que os escolares ideali-
ligam pras namoradas, até na hora da música lenta eles
zados por mirabolantes propostas curriculares.
tão querendo saber só de brigar, e vão dar um beijo
na namorada, ficam namorando um pouquinho e já
Referências bibliográficas
voltam, e voltam correndo para ir brigar de novo, para
não perder nem um segundo na briga”.
ABRAMO, Helena Wendel, (1994). Cenas Juvenis: punks
Esse processo é desenvolvido por vários gru- e darks no espetáculo urbano. São Paulo: Scritta.

pos de jovens, do passado e do presente, nacionais DA MATTA, Roberto, (1991). A Casa e a Rua. Rio de Ja-
e internacionais: são parte da estrutura e da histó- neiro: Guanabara Koogan, 1991.

ria desses segmentos. É também valorizado como DUARTE, Luis Fernando D., (1991). Legalité et Citoyenne
fonte de emoção e excitação, elementos que são apre- dans le Bresil Urbain contemporain: observation anthro-
pologique d’une experiénce d’aide légale et d’éducation
sentados por vários autores como inerentes à ado-
civique. Actes du Colloque Grandes Metropóles d’Afri-
lescência e à juventude, da mesma forma que o de- que et d’Amérique Latine. Tolouse.
sejo de aventura.
GUIMARÃES, Eloisa., (1995). Escolas, Galeras e Narco-
Finalmente, um terceiro fator desencadeador tráfico. Rio de Janeiro: PUC-Rio. Tese(Doutorado em
de briga nos bailes deve ser localizado no compor- Educação).
tamento de certas garotas — namoradas de mem- HERSCHMANN, Micael M., (1995). Música, juventude e
bros das galeras ou de jovens pertencentes ao mun- violência urbana: o fenômeno funk e rap. In: Comunicação
do do tráfico, os “bandidinhos”. Elas “pensam que e Política: mídia, drogas e criminalidade, n.s., v. 1, nº 2.
podem tudo” ou elas “gostam de arrumar confu- __________, (1995). Nova Yorque não é aqui: funk e rap
são” são as frases empregadas pelos estudantes ao na cultura carioca. In: Tempo e Presença, ano 17, nº 281.
se referirem a essas grarotas e às confusões por elas

Revista Brasileira de Educação 207


Eloisa Guimarães

KATZ, Jack., (1988). Seductions of crime: moral and sen-


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cia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Editora FGV, p. 178-
187.

208 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Short cuts
Histórias de jovens, futebol e condutas de risco*

Luiz Henrique de Toledo


Núcleo de Antropologia Urbana, Universidade de São Paulo

Em O Visconde Partido ao Meio, romance es- decimento e intolerância, prazer e violência, mate-
crito por Italo Calvino, um dos personagens assim rializada, de modo surreal, na errância das duas
descreve o fenômeno da juventude: metades da personagem do Visconde, cindida por
uma bala de canhão nas porções esquerda e direita
(...) Meu tio [o próprio Visconde] se achava na
de seu corpo, esta fantástica história narrada por
primeira juventude: a idade em que os sentimentos se
Calvino evoca, nas palavras do autor, um dilema
misturam todos num ímpeto confuso, ainda não se-
do próprio homem contemporâneo, fragmentado e
parados em bem e mal; a idade em que cada experiên-
alienado em suas experiências sociais.
cia nova, também macabra e desumana, é toda trepi-
A desfiguração corpórea e psíquica do aludi-
dante e efervescente de amor e vida (...) (Italo Calvino,
do Visconde se deveu a uma encarniçada guerra,
O Visconde Partido Ao Meio).
acirramento das conviccões em justas religiosas,
Polaridade levada ao extremo num desencon- entre cristãos e turcos, descritas pelo autor, num
tro fatal entre o bem e o mal, amor e ódio, compa- provável século XVII. Ao enfrentar o inimigo e no
calor do combate físico, num golpe certeiro, ocor-
reu o esgarçamento e dilaceração do corpo do pro-
tagonista da história, vitimado pelos desígnios da
* O termo conduta de risco, utilizado por Peralva determinação, paixão e fé.
(1996), indica uma específica modalidade de transgressão Assim, das metades esquerda e direita da per-
e violência verificadas entre setores juvenis da população, sonagem, vagando a esmo pelas pradarias e cam-
como será mencionado mais adiante. A propósito, aproveito
pos, irrompem o bem e o mal, anteriormente alo-
a oportunidade para agradecer ao antropólogo Piero de Ca-
margo Leirner pela leitura que fez da primeira versão deste
cados num mesmo corpo cristão, que passam a go-
artigo, bem como à socióloga Angelina Peralva pelas críti- zar de uma autonomia, ainda que temporária, im-
cas e sugestões. posta pelas circunstâncias de ruptura social provo-

Revista Brasileira de Educação 209


Liuz Henrique de Toledo

cada pela referida guerra. O bem e o mal, e outras engendrada pelas manifestações esportivas, que re-
dicotomias correlatas, agora em estado puro, cada partem e polarizam indivíduos, grupos e até socie-
qual corporificada em uma das metades do infeliz dades em comunidades morais nos rituais compe-
rompante, ocupam-se, por onde passam, em instilar titivos, estes jovens irão conferir, como constata-
a desordem, a desconfiança, a repugnância, a inveja remos mais adiante ao enfocar dois casos específi-
e a insegurança. Violados e privados da sua relação cos, concretude a peculiares sociabilidades, alicer-
dialética, acabam por instaurar o caos na cultura. çadas por uma heráldica futebolística, expressas
Situação revertida somente com a união das meta- nas cores, símbolos e marcas distintivas de times e
des corpóreas ao final do romance. respectivas torcidas de futebol. Cisões que nos úl-
Tais alegorias bem poderiam aludir a outras timos tempos têm se revelado irreconciliáveis e in-
tantas narrativas, agora mais locais e verídicas, cujos tolerantes pelos campos e estádios, apartando mi-
protagonistas sem títulos nobiliários, jovens anôni- lhares de adolescentes nas representações bons e
mos das camadas populares da cidade de São Pau- maus, ou em realidades mais trágicas, entre víti-
lo, encontram-se próximos ao dilema existencial do mas e algozes. Antes, porém, de relatarmos os acon-
efebo Visconde que, partido ao meio, viu-se priva- tecimentos dramáticos protagonizados por alguns
do na sua percepção e representação das coisas, na desses jovens torcedores verifiquemos, ainda que
sua visão de mundo, esgarçado em duas metades tão de modo breve, as condições socio-históricas que
irreais quanto irreconciliáveis, desde que apartadas. gestaram tais condutas coletivas e as práticas so-
Igualmente arrebatados por convicções e pai- ciais dos agrupamentos juvenis em torno do fute-
xões dilaceradoras, atributos inerentes à lógica 1 bol profissional.
Coletividades contrastivas de jovens torcedo-
res de futebol existem no Brasil desde os anos 40,
na cidade de São Paulo exatamente a partir de
1 Poderíamos conceber as competições esportivas, e o 1942, quando foram fundadas algumas das deno-
futebol em específico, como um extenso sistema de rituais minadas torcidas uniformizadas dos clubes mais
de trocas complexas (materiais e simbólicas) cuja recipro- populares (Sport Club Corinthians Paulista, São
cidade, contudo, ao invés de marcada pela simetria dar-re- Paulo Futebol Clube e a então recém nomeada So-
ceber-retribuir, característica de uma série de instituições das
ciedade Esportiva Palmeiras, até aquela data Pales-
sociedades ditas primitivas, é reduzida para a assimétrica
tra Itália). Diverso do mosaico de subgrupos que
equação do ganhar-perder, portanto uma reciprocidade que
denominaria aqui de aberta. De outro modo, “(...) Lévi- compõem as torcidas organizadas atuais, integra-
Strauss [na obra O Pensamento Selvagem] também atentou vam estes agrupamentos sobretudo jovens de clas-
para o elemento irruptivo e passional dos jogos competiti- se média, na sua maioria sócios dos próprios clu-
vos (rituais disjuntivos). Segundo ele, diferentemente do que bes, cujas atividades torcedoras somavam-se aos
ocorre nos rituais das sociedades pré-industriais e nas soci- interesses e aspirações dos diretores das referidas
edades ditas primitivas, nas quais a lógica separa de ante-
associações esportivas.
mão os envolvidos (iniciados e não-iniciados) para, num
momento posterior, promover a união ou junção em uma É curioso observar de que modo estas torcidas
só categoria ou classe (todos iniciados), inversamente, os estavam alinhadas ao arranjo institucional do fu-
jogos e as competições partem de uma situação de igualda- tebol da época. Podemos constatar tal fato desde o
de (o 0x0, por exemplo) para, ao final, promoverem uma ano de 1943 quando o jornal A Gazeta Esportiva
cisão, uma diferenciação entre perdedores e ganhadores. De e a Rádio Gazeta promoveram o campeonato das
uma simetria pré-ordenada, em virtude da igualdade das re-
torcidas uniformizadas, iniciativa que buscava nor-
gras entre os participantes, chega-se a uma assimetria im-
posta pelas contingências do acaso, talento ou circunstân- matizar, sobretudo, a conduta torcedora já que,
cias outras, que levam alguns a vencer e outros a perder” desde então, distúrbios, transgressões e violências
(LÉVI-STRAUSS apud TOLEDO, 1996, 133). ganhavam uma dimensão significativa enquanto um

210 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Short cuts

problema sério no futebol2. Aliás, muitos atribuíam torcidas uniformizadas perdurou até os anos 70
e creditavam às torcidas uniformizadas um certo quando outra modalidade de participação, nitida-
papel dirigente, de elite torcedora, capaz de integrar, mente mais popular e contendora, ganhou signifi-
regular e até mesmo manter a ordem na assistên- cativo espaço e apelo torcedor, as autodenominadas
cia, nos espetáculos esportivos. Estas torcidas nas- Torcidas organizadas de futebol, que originalmen-
ceram inspiradas e bastante delineadas pelas fortes te surgiram num contexto de efervescência políti-
motivações de época, alicerçadas e difundidas em ca, como foi o caso da primeira agremiação torce-
palavras como juventude, raça, nação e ordem 3, dora, a Gaviões da Fiel5. Em parte autônomas das
cujos papéis consistiam tão somente em propagar vidas institucionais dos clubes6 , muitas vezes em
o futebol oficial dos clubes, dos dirigentes e demais confronto aberto com os dirigentes destes, estas tor-
artífices dos espetáculos esportivos, tais como os cidas rapidamente se popularizaram e hoje domi-
meios de comunicação e a crônica esportiva4, co- nam o cenário das organizações torcedoras, sobre-
responsáveis pela invenção do já então denomina- tudo na cidade de São Paulo, já que em outros es-
do esporte-rei. tados o atrelamento aos clubes ainda é verificado
Este modelo de assistência instituído por estas como um modelo preponderante.
De modo genérico, este torcedores, não mais
uniformizados mas organizados, podem ser tipifica-
2
dos como sendo predominantemente do sexo mas-
Os anos 40 são marcados por um redimensionamen-
culino, oriundos das classes populares e possuindo
to significativo do futebol profissional com a inauguração
do estádio do Pacaembu, que passa a congregar milhares de idades variando entre 15 e 18 anos, estudantes que,
torcedores nas partidas (por volta de 60 mil torcedores nos esporadicamente, exercem alguma atividade remu-
jogos que estavam envolvidos os times mais populares). Tal nerada, embora, é preciso salientar, este perfil típi-
fato alavancou a participação popular nestes eventos espor- co-ideal não seja, de fato, aquele que caracterize e
tivos, o que gerou uma maior preocupação por parte das
prepondere entre os subgrupos dirigentes destas or-
autoridades em conter e regular a conduta torcedora. É neste
ganizações, à propósito, muito mais complexas do
período que os jornais esportivos começam a noticiar esque-
mas de segurança e de prevenção de como evitar brigas entre ponto de vista etário, geracional e da segmentação
os assistentes, como atesta a matéria intitulada O policia-
mento de amanhã no Pacaembu (A Gazeta Esportiva, sá-
bado, 16 de setembro de 1944), por motivo do jogo São Pau-
lo versus Palmeiras. 5 Discutia-se, na ocasião, a legitimidade do então pre-
3 Apenas para lembrar, este período é marcado, no sidente corintiano Wadih Helu, que estava há aproximada-
plano internacional, pela segunda grande guerra e o nazi- mente 15 anos a frente do Sport Club Corinthians Paulis-
fascismo. No âmbito nacional, pelo estado centralizador ta. Os Gaviões são a primeira e atualmente a maior torcida
getulista, aliás, grande propagador dos esportes a serviço de organizada existente no Brasil. É relevante correlacionar o
um ideário de nação baseado na saúde social. De algum surgimento dessas instituições torcedoras num contexto mais
modo, como pode ser notado, estas primeiras organizações amplo de valorização das instituições populares num perí-
torcedoras evocam tais aspirações nacionalistas. odo em que os direitos políticos e a cidadania estavam cer-
4 Em 3 de maio de 1943 o jornal A Gazeta Esportiva ceados pelo regime militar.
traz em sua matéria A Torcida Líder em Ação duas fotos 6 De modo geral, estas torcidas caracterizam-se por
da torcida uniformizada corinthiana empunhando faixas de serem instituições sem fins lucrativos, organizadas burocra-
exaltação à pátria e aos jornalistas beneméritos dos espor- ticamente por estatutos e cargos eletivos. Possuem sedes e
tes: Para uma Pátria grande e raça forte; Salve! Cronistas e organizam-se em função de várias atividades em torno do
locutores esportivos. Fatos que atestavam a plena anuência futebol (festas, excursões, etc). Para maiores detalhes sobre
deste modelo de participação de torcedores no arranjo ins- os desdobramentos sociais e simbólicos destas organizações
titucional do futebol profissional da época, como acontece no que diz respeito às formas de sociabilidade gestadas con-
ainda com parte das torcidas na atualidade. sultar Torcidas Organizadas de Futebol, citado.

Revista Brasileira de Educação 211


Liuz Henrique de Toledo

em termos de estratificação social 7. Todavia, é ine- festação popular e simbolicamente relevante de nos-
gável a presença marcante e destacada destes seto- sa identidade.
res juvenis e populares em torno do futebol, bem Não obstante, um ciclo mais ou menos recor-
como o forte papel agregador que estas torcidas rente de acontecimentos fatais, inaugurado por vol-
organizadas suscitam, mesmo entre aqueles jovens ta do final da década de 809 , vêm colocando em
que não participam ativamente ou cotidianamente cheque, no domínio público, a participação dessas
destas organizações. organizações torcedoras como co-atores do ritual
A vivência e a fruição de uma partida de fute- do futebol profissional. Esta radicalização da con-
bol transcendem seus limites convencionais de tem- duta predominantemente juvenil, acarretando uma
po e espaço para muitos destes aficcionados. A cons- sucessão de tragédias em torno do futebol, ao que
trução da pessoa do jovem torcedor organizado, ou tudo indica não consiste num fenômeno circunscrito
de milhares de outros que sancionam esta modali- somente às manifestações esportivas de massa no
dade de participação coletiva no futebol ou em ou- Brasil, sendo observadas, com outras implicações
tras práticas esportivas, requer um investimento históricas e culturais, também em um nível interna-
simbólico rico e plural em experimentações que, cional. Contudo, naquilo que concerne ao âmbito
num certo sentido, caracteriza uma demanda pre- nacional, modalidades variadas de transgressão ju-
dominantemente juvenil. Como enfatiza Helena venil vem sendo analisadas por alguns autores10 que
Abramo, abordando outros contextos de manifes- as vinculam a um contexto mais amplo e que dizem
tação dessa experiência geracional, os jovens utili- respeito, sobretudo, a crise dos papéis desempenha-
zam-se do tempo e dos elementos de consumo dis- dos pelas instituições populares ou vicinais (Zaluar,
poníveis, aqui, no caso, o futebol como um bem de 1996). Momento caracterizado pela fragmentação,
consumo e entretenimento “(...) para abrir espaços recuo e desinvestimento nestas tradicionais institui-
significativos de vivência e para elaborar e expres- ções que, num período recente de nossa história,
sar as inquietações relativas à sua condição (...)” garantiam uma dada inserção e supriam uma carên-
(Abramo, 1994, 79). Além do mais, como demons- cia institucional regular entre as populações desasis-
tro alhures8, as torcidas cumpriam e, em parte, pen- tidas pelos poderes constituídos11.
so que algumas ainda o fazem, este papel institu-
cional de garantir aos torcedores um certo espaço
de exercício e participação coletiva nas franjas do
9 Cronologias da violência no futebol podem ser da-
futebol organizado profissionalmente, historica-
tadas a partir de 1988 com a morte de um torcedor e diri-
mente marcado por um gerenciamento autoritário
gente da Mancha Verde palmeirense, Cléo. De lá para cá
e elitista desde o seu surgimento enquanto mani- adensaram-se as estatísticas sobre delitos torcedores.
10 Trabalho aqui, basicamente, com duas autoras que
atualmente vem elaborando instigantes análises sobre as
novas modalidades transgressoras de inserção juvenil na
7 Dada a complexidade e variedade de grupos que parti- esfera pública, a saber, Zaluar (1996) e Peralva (1996;
cipam destas torcidas pode-se constatar também projetos 1996b).
diversificados de participação na esfera pública, que extrava- 11 Zaluar analisa o desinvestimento popular em algu-
zam os limites do universo do futebol. Por exemplo, inúmeras
mas instituições (religiões afro-brasileiras, o universo do
torcidas participam ativamente dos festejos carnavalescos samba, associações de bairro e etc) associando-o a um com-
como blocos e escolas de samba, aliás, a Gaviões da Fiel,
plexo processo (relacionado à globalização) de fragmenta-
uma torcida corintiana, como se sabe, já ganhou um campeo-
ção local de determinados grupos e práticas culturais. Im-
nato oficial do carnaval na cidade de São Paulo, em 1995.
possível reconstituir toda a linha argumentativa da autora,
8 Consultar o livro Torcidas Organizadas de Futebol, porém o que ela enfatiza, e assumo os riscos de imprecisão
citado. ao elaborar um mau resumo, são as consequências devas-

212 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Short cuts

Atualmente proibidas, as torcidas organizadas, sos mas que, como milhares de outros, preenchiam
ao menos nos campeonatos locais e jogos realiza- suas vidas adolescentes com o futebol, bruscamen-
dos no estado de São Paulo, estão afastadas formal- te interrompidas pelas participações trágicas decor-
mente dos estádios, como veremos, e veementemen- rentes do envolvimento em brigas e confrontos ge-
te combatidas nos meios de comunicação e crôni- neralizados. O material etnográfico que sustenta
ca esportiva. No entanto, constituem-se, mesmo que toda a argumentação que segue provém de depoi-
de maneira transitória, numa referência expressiva, mentos, manchetes, fragmentos de histórias de vida
seja no que se refere às modalidades de sociabilidade sistematizados a partir de uma pesquisa documen-
e comportamento (verbal, estético) por elas estimu- tal realizada na imprensa escrita alicerçada ainda
lados, seja no que se refere às contendas ou as trans- por uma pesquisa de campo12 sobre as práticas so-
gressões observadas entre jovens torcedores em tor- ciais dos agrupamentos torcedores na cidade.
no destes padrões coletivos de conduta. Contextualizar estes dramas individuais nos
Sendo assim, esta mesma conjuntura gestada quais se envolveram estes jovens consiste em reto-
por estas atuais torcidas, que alimentam convicções mar, ainda que de modo sumário, algumas das ex-
e paixões irrefreadas entre torcedores, também afas- plicações mais correntes sobre a violência urbana,
tam, por opção ou compulsoriamente, muitos des- ou melhor, sobre determinadas modalidades e ex-
tes mesmos jovens torcedores das arquibancadas. pressões da violência observadas entre agrupamen-
Uns pelo cessar ou arrefecimento da paixão, cir- tos juvenis ou com a participação dos mesmos, so-
cunstância em que abandonam as hostes e a mono- bretudo em se tratando de contendas torcedoras.
mania pelo futebol em função de outras atividades, Campo crivado de armadilhas conceituais de pou-
outros por terem sido vitimados nas contendas, in- co vigor analítico, todavia de grande apelo socio-
clusive com a privação da própria vida. Outros, lógico, seja no discurso da mídia ou até mesmo no
ainda, por estarem entre aqueles que responderam discurso científico, explicações tais como a fome,
(e estão respondendo), moral e judicialmente, pe- a pobreza, a crise econômica13, a desesperança fruto
los delitos e transgressões cometidos. desta conjuntura, ou até mesmo aquelas que ape-
É a partir desses últimos, torcedores direta- lam para a infalibilidade da violência como carac-
mente envolvidos em casos de violência física, que
desenvolvo a presente análise. Indivíduos tidos por
parte significativa da mídia e da opinião pública 12Convivi com torcedores por um período de três anos,
como delinquentes, bárbaros, socialmente pernicio- entre 1990 a 1993, na ocasião em que desenvolvi a pesqui-
sa de mestrado no departamento de Antropologia Social na
USP e que resultou no livro já citado em notas anteriores.
tadoras que tais mudanças acarretam em vários domínios 13 Muitas das explicações veiculadas na mídia possu-
como, por exemplo, a intensificação, a partir do final dos em um forte componente determinista, econômico ou socio-
anos 80, da presença jovem no tráfico de drogas, alimenta- lógico, aludindo que “(...) a selvageria ligada ao futebol tem
do tanto por um novo reordenamento econômico, quanto um componente social, que o desemprego e a falta de perspec-
pelo desinvestimento aludido acima. Como exemplos cita tiva levam muitos jovens a extravasarem frustrações de for-
o avanço de certas manifestações religiosas intolerantes que ma violenta (...)” (Folha de S. Paulo, editorial, 26/10/94).
reordenam e segregam indivíduos e famílias, alimentadas por Observaremos que nem sempre a violência pode ser contextua-
uma ampla demonização midiática de certas práticas reli- lizada por estas variáveis tão objetivas. A antropóloga Alba
giosa mais tradicionais, ou a popularização de novas práti- Zaluar também critica esta postura confortável de determi-
cas de expressão e entretenimento jovem (igualmente exclu- nadas análises ao “(...) tornar o econômico o fator deter-
dentes) que também possuem uma natureza contendora e minante ou a pobreza a explicação de fatos que, como to-
fragmentária, tal como pode ser verificado na lógica do funk, dos os outros fatos sociais, são coisa e representação, coisa
diverso do samba que congregava gerações e grupos mais e ideal ao mesmo tempo, sempre foi a maneira mais pobre
extensos. de explicar qualquer um deles (...)” (Zaluar, 1996, 53).

Revista Brasileira de Educação 213


Liuz Henrique de Toledo

terística de um país de etnia indecisa, enfim, tendem minado entre uma parcela imensa de torcedores, orga-
a adensar o debate cotidiano acerca do comporta- nizados ou comuns. Basta observar que o contingen-
mento transgressor e dos conflitos urbanos de um te policial nos estádios continua a ser expressivo14.
modo geral. Outro dado a ser levado em conta é que as
Inúmeras vezes os discursos sobre a violência punições às atitudes delinquentes, que permanecem,
podem vir imbuídos de um excessivo essencialismo repito, latentes nos estádios, inibidas apenas pela
que busca uma explicação para a violência no di- forte e agora intensificada intolerância policial, o
lema brasileiro, denunciando a convivência contra- que revela outra faceta da violência, sensibilizam ou
ditória em nossa formação histórica entre formas conscientizam pouco, apesar de alguns torcedores
hierárquicas (patriarcais, coronelistas, autoritárias) serem presos, julgados e sentenciados. O que só
e impessoais (da ordem da igualdade entre indiví- confirma o distanciamento entre estes sistemas pu-
duos) na constituição da sociedade brasileira. No nitivos legais e as representações de justiça, ordem
entanto, como adverte Alba Zaluar, “(...) tentar e legalidade presentes entre determinados agrupa-
explicar as formas atuais de manifestação da vio- mentos sociais. Aliás, muitas vezes ser preso ou de-
lência entre nós, apelando para o hibridismo de uma tido em contendas torcedoras só vem adensar bio-
cultura brasileira que apresenta esses valores hierár- grafias já repletas de atitudes socialmente reprová-
quicos expressos paradigmaticamente na relação veis, porém com forte caráter persuasivo e praze-
senhor-escravo que se reconstitui sempre é eternizar roso, características muito peculiares e simbolica-
uma forma cultural, é seguir à risca a lógica iden- mente valorizadas entre parcelas expressivas dos
titária contrastiva e é também negar a história que segmentos juvenis.
põe o institucional e o cultural em eterna transfor- Mais ainda, a frequente exorcização da violên-
mação (...)” (Zaluar, 1996, 49). cia, como se ela fosse um fenômeno à parte das so-
Naquilo que diz respeito às sanções mais seve- ciedades, não leva em conta o caráter ontológico e
ras impostas às modalidades de transgressão obser- até mesmo atemporal da violência como constitu-
vadas entre torcedores, ou seja, prisões e processos tiva de qualquer ordenamento social15, inclusive no
judiciais, geralmente tais atitudes violentas são qua- desenvolvimento das modalidades esportivas.
lificadas como fenômenos exógenos ao futebol, cir-
cunscritas somente às organizações torcedoras (tor-
cidas organizadas), o que na prática sustenta e tende 14 Apesar do arrefecimento das lutas abertas entre tor-
a se justificar na perpetuação da repressão e exclu- cedores, em maio de 1997 houve uma outra morte de um
são dos socialmente perigosos e desajustados do torcedor e uma generalizada manifestação violenta de tor-
cedores na partida entre os times do Guarani Futebol Clu-
arranjo institucional do futebol profissional. No
be e do Sport Club Corinthians Paulista, na cidade de Cam-
entanto, a expiação destes torcedores perante a opi-
pinas. O fato se deveu a venda de uma carga excessiva de
nião pública, como será mencionado, feita muitas ingressos, o que impossibilitou milhares a de torcedores
vezes de maneira precipitada, não garante a exclu- ocuparem as dependências do estádio Brinco de Ouro. Nem
são do uso da violência física como linguagem en- a polícia, sequer a Federação Paulista de Futebol assumiram
tre os jovens torcedores, muito embora se observe, a responsabilidade pelos incidentes.
momentaneamente, uma diminuição das contendas 15 Maria Lúcia Montes sintetiza esta argumentação da
desde a proibição das manifestações dos agrupa- seguinte maneira: “(...) nenhum sistema normativo se sus-
tenta sem a sanção que obriga a respeitá-lo, através da vio-
mentos torcedores no estado de São Paulo.
lência organizada, simbólica ou concreta, através da qual
É preciso enfatizar, todavia, que na prática não
ele se impõem e se conserva ao longo do tempo. Longe de
só os agrupamentos torcedores estão participando ser uma excrescência indesejada na vida social, irrupção
dos jogos, de modo mais ou menos velado, como caótica da natureza em meio à cultura, a violência consti-
o nível de animosidade e intolerância continua disse- tui, portanto, no avesso da norma e da ordem que instaura,

214 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Short cuts

Uma outra dimensão crucial para se compre- discussões a respeito das regras esportivas e a ne-
ender a eclosão das manifestações transgressoras em cessidade em conter a violência entre jogadores. A
estádios de futebol reside na própria constituição justiça desportiva constitui outro foco de controvér-
do campo esportivo, aspecto raramente levado em sias na gestão da equanimidade no cumprimento
conta nas análises que circunscrevem e esgotam a das regras e manutenção de ordem desportiva (...)”
compreensão do fenômeno da violência nos limites (Toledo,1997, 113-114). A conduta torcedora, so-
do comportamento torcedor. No entanto, “(...) o bretudo entre aqueles que militam no futebol pro-
processo de constituição das configurações espor- fissional, em grande medida, faz parte desta lógica
tivas esteve sempre imbricado ao processo de civi- inerente ao processo de esportificação17.
lização (parlamentarização da vida pública)16, ou Estas considerações feitas acima podem ser
seja, na criação das mediações institucionais regu- adensadas com as descrições de dois fatos amplamen-
ladoras por um lado e auto-controle individual na te divulgados pela mídia que estimularam, de modo
resolução dos conflitos, por outro [em qualquer decisivo, uma política de repressão, por parte dos
instância da vida social: seja no âmbito da política poderes públicos, às coletividades organizadas de
ou no âmbito dos costumes, jogos e divertimentos]. torcedores: um que ficou vulgarmente conhecido
O advento dos esportes contribuiu para o desenvol- como a guerra do Pacaembu e outro como o caso
vimento desse processo e, dessa forma, o fenôme- do gordo do ABC, cronologicamente anterior àquele.
no esportivo esteve vinculado, desde sua gênese, à O gordo do ABC, o são-paulino Reinaldo Ma-
domesticação mais geral dos conflitos deflagrados rin, foi acusado de ter vitimado o adolescente Ro-
nas sociedades. Desta maneira, parece impossível drigo de Gásperi, à época com 13 anos, office-boy
abordar quaisquer fenômenos esportivos, sobretu- de uma ótica em Perus, região da zona norte da
do o futebol, lugar da emergência de identidades e cidade de São Paulo, ao arremessar uma bomba de
antagonismos coletivos por excelência, ocultando fabricação caseira na torcida corintiana por ocasião
do horizonte das análises os processos conflitivos, da partida entre São Paulo Futebol Clube e Sport
transgressores e violentos que eclodem de tais ma- Club Corinthians Paulista, taça São Paulo de fute-
nifestações sociais. Até hoje observamos acirradas bol juvenil, torneio tradicional que acontece todos
os meses de janeiro e que antecede as temporadas
do futebol profissional (campeonatos estaduais e
seu fundamento oculto que, ao manifestar-se, como trans- competições nacionais).
gressão e ruptura da ordem, manifesta também o embasa- Adalberto dos Santos, à época com 20 anos,
mento último em que esta se assenta. Neste sentido, tanto palmeirense, foi um entre dezenas de outros torcedo-
quanto a norma, a violência, como forma ou resultado da res que se engalfinharam na guerra do Pacaembu,
sua transgressão, constitui também ela uma linguagem, atra-
final de um campeonato de juniores entre São Paulo
vés da qual uma sociedade nos fala do seu modo de organi-
zação, dos valores que reputa fundamentais, da sua concep- Futebol Clube e Sociedade Esportiva Palmeiras, no
ção sobre o mundo, a natureza e o sobrenatural, e do lugar ano de 1995. Único indivíduo responsabilizado e que
que nela ocupa a vida humana, como princípios ordenadores está até hoje (1997) preso, acusado de ser o responsá-
da vida associada (...)” (Montes, 1996, 225).
16 Para uma verificação do processo de constituição
do campo esportivo em interdependência com outras esfe-
17 José Sérgio Leite Lopes, ao resenhar um conjunto
ras sociais consultar Norbert Elias, citado. Segundo este
autor, o futebol concorreu para disciplinar o nível de vio- de textos de Norbert Elias sobre a temática do futebol, uti-
lência da esfera pública das sociedades pré-industriais. O liza-se do neologismo esportificação para adequar a evolu-
condicionamento coletivo e individual às regras impessoais ção do referido esporte ao processo de longa duração de-
e universais formam o apanágio das sociedades ocidentais nominado pela expressão processo de civilização, utilizado
burguesas. por Elias.

Revista Brasileira de Educação 215


Liuz Henrique de Toledo

vel pela morte de Márcio Gasparim da Silva, 16 anos, ra18 foi encontrada, apesar das controvérsias até
são-paulino, que trabalhava como balconista, Adal- hoje não explicadas pois alguns torcedores alega-
berto, ao contrário de Reinaldo Marin (o gordo), não ram que a própria polícia militar havia plantado19
fazia parte de qualquer torcida organizada. a bomba no ônibus, e 99 torcedores, 43 deles me-
nores de idade, foram conduzidos ao 1o distrito po-
*** licial de São Bernardo. Do interrogatório com os
Reinaldo Rocha Marin tinha na ocasião do adolescentes se chegou ao gordo do ABC como o
acontecido, o ano de 1992, 20 anos de idade. Fi- provável culpado pelo arremesso da bomba dias
lho de um pequeno empresário de Santo André, pro- atrás, no campo do Nacional. As próprias circuns-
prietário de uma malharia, o gordo, como era co- tâncias em que foi preso o ajudaram, 45 dias depois,
nhecido na torcida a qual estava associado, a Tor- na sua libertação20. Houve até a alegação de sobre-
cida Tricolor Independente que acompanha o São vivência política do então secretário de segurança
Paulo Futebol Clube, trabalhava com o pai como pública Pedro de Campos em tentar resolver rapi-
vendedor havia três anos e cursava o primeiro ano damente o caso.
do segundo grau na escola estadual Dr. Américo A única testemunha de acusação, Clóvis Ma-
Brasiliense. noel Gouveia, mudou seu depoimento em 13 de
A paixão pelo futebol herdou do pai, que o março alegando ter sido pressionado pela PM no
levava aos estádios desde criança. Rotina que se momento de apreensão da bomba no ônibus: “(...)
alterou bruscamente a partir do dia 23 de janeiro eles me disseram para arrumar as poltronas, fiquei
de 1992, semifinal da taça São Paulo realizada no com a cabeça abaixada durante a revista. Só vi a
estádio do Nacional, clube da segunda divisão da bomba na mão do policial, disse (...)” (Folha de S.
capital paulistana. Havia uma superlotação no es- Paulo, 14/03/92).
tádio, ânimos acirrados como de costume, insultos Pouco antes de ser libertado, no dia 14 de mar-
disparados por ambas as partes e uma proximida- ço, Reinaldo concedeu uma entrevista à Folha de
de perigosa entre as torcidas rivais, imposta pelas S. Paulo (num dia em que haveria um jogo entre São
reduzidas dimensões do estádio. Num determinado Paulo e Palmeiras) alegando que jamais iria a um
momento do gol do São Paulo Futebol Clube, além estádio novamente: “(...) Logo de início é bom di-
da explosão de alegria incontida do lado da torcida zer que nem quero saber com quem o São Paulo vai
são-paulina, uma bomba de fabricação caseira é jogar ou deixar de jogar. Quero mesmo é sair da
arremessada a esmo em meio aos corintianos ainda
aturdidos pelo tento adversário. Bomba sem ende-
reço determinado, a não ser pelo contraste das co- 18Em tempo, estas bombas caseiras consistem em bo-
res dos opositores, atingiu o outro aglomerado tor- linhas de gude confinadas misturadas a pólvora.
cedor. Situação em que mal se podia identificar os 19 Torcedores juram: foi armação foi uma das man-
contendores, sequer qualquer atributo que os indi- chetes do Jornal da Tarde do dia 29/01/92 trazendo alguns
vidualizassem. Um gol, a explosão posterior, espan- relatos dos torcedores envolvidos na ocasião. Porém a tese
to, alegria, dor, indignação compuseram o cenário da armação pela polícia também não ficou comprovada.
que vitimou o corintiano Rogério de Gásperi. 20 A Folha de S. Paulo, de 8 de fevereiro de 1992, trou-
Passados alguns dias uma caravana da Torci- xe uma matéria em que a reconstituição do caso num teste
simulado não confirmava ser Reinaldo o autor do arremesso
da Tricolor Independente é detida na serra do mar,
da bomba. Pela posição em que se encontrava no estádio e
rodovia Anchieta, ocasião em que os são-paulinos
a provável distância que o separava de Rogério (45 metros)
iriam acompanhar o time num outro jogo, desta vez seria impossível a ele arremessar um artefato de 250 gramas
contra o Santos Futebol Clube, na Vila Belmiro, na a tal distância, segundo as simulações feitas pela recons-
cidade de Santos. Uma bomba de fabricação casei- tituição pericial.

216 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Short cuts

cadeia. Mas como até aqui dentro a rivalidade con- renses invadiram o gramado para comemorar o 1x0
tra o Palmeiras é grande, e não posso fugir das brin- e apupar os torcedores adversários, predominante-
cadeiras dos colegas de cela, espero apenas que não mente os organizados, que se agrupavam numa par-
haja violência. Porque foi por causa dela que vim te da arquibancada. O revide veio logo em seguida
penar nesse inferno. Continuo tricolor, mas nunca com os são-paulinos pulando e derrubando alam-
mais pretendo passar na porta de estádios de fute- brados, situados ao lado e ao fundo de um dos gols
bol, nem ver pela TV ou ouvir no rádio. Quando a e, misturando-se aos palmeirenses, policiais, joga-
bola tiver rolando no Morumbi vou pra algum can- dores assustados, profissionais da imprensa que co-
to do pátio da cadeia pra não ouvir o radinho dos briam o evento entre outros, travaram uma sequên-
palmeirenses. Eu não quero ficar falando sobre os cia de investidas, retrocessos, avanços e recuos uns
times porque pode ser ruim pra minha imagem. Não contra os outros, munidos de muito entulho deixa-
quero que fiquem pensando que estou querendo do atrás do gol em virtude de uma reforma no se-
aparecer ou ser candidato a alguma coisa no futu- tor comumente conhecido como tobogã (arquiban-
ro (...) Hoje sei que há coisa muito mais importan- cada atrás do gol). Paus e pedras foram desferidos
te no mundo do que futebol. Aqui na cadeia, por entre os torcedores. As imagens de um jovem com-
exemplo, tem um monte de gente que já cumpriu balido, à deriva sobre suas pernas, percorrendo com
pena mas não saiu porque ficou esquecido pela jus- dificuldades pela lateral do gramado, por fim pro-
tiça. E alguns, como eu, que não são culpados e jetado contra o alambrado, desmaiado, demonstra-
aguardam julgamento há anos. É triste. Não dese- va, ao vivo pela TV, o tamanho da agressividade
jo nem ao pior inimigo (...)” (depoimento de Rei- coletiva que se instaurava naquele momento. O sal-
naldo Marin à Folha de S. Paulo, 08/03/92) do foi ainda pior com a ocorrência de uma morte,
Passemos à guerra do Pacaembu. A partida era segundo os primeiros laudos médicos, por lesões
uma final de campeonato de juniores21 entre São generalizadas, de um adolescente, Márcio Gasparim
Paulo Futebol Clube e Sociedade Esportiva Palmeiras da Silva, atribuída ao já referido adolescente Adal-
e, como no jogo anterior onde Reinaldo Marin pro- berto B. dos Santos (Toledo, 1997, 110).
tagonizou o ocorrido, este também revestia-se de Durante todo o segundo semestre e os anos de
pouca importância se comparado às pelejas acirra- 1996 e 1997 pode-se verificar os desdobramentos do
das que marcam e instilam animosidades na cidade, fato23. Forte pressão da imprensa, o ministério pú-
desde as primeiras décadas deste século, entre os blico do Estado designando um promotor de justiça
grandes times profissionais. Se não fosse pelos fatí-
dicos acontecimentos ambos os jogos aqui em ques-
tão ficariam confinados às estatísticas esportivas.
zões do desfecho funesto desta partida, alegando que a in-
Difícil descrever as imagens, abundantemen-
terrupção brusca pelo gol fatal, sem dar chances de recupe-
te veiculadas nas TVs e estampadas nos jornais. ração ao adversário, gera uma maior tensão entre os aficcio-
Raro encontrar alguém que não as tenha visto. Fin- nados, fato que colaborou para o acirramento dos ânimos.
do o jogo, por morte súbita22, torcedores palmei- Pista interessante porém insuficiente para compreender todo
o desencadeamento do acontecido.
23 Entre outros o afastamento dos grupos organiza-
dos dos estádios, indiciamento de Adalberto por homicídio
21A categoria de juniores faz parte dos departamen- doloso, suspensão das atividades e extinção da Torcida Or-
tos amadores dos clubes profissionais. É uma das etapas para ganizada Mancha Verde, suspensão das atividades da são-
se chegar ao futebol profissional. paulina Torcida Independente, proibição dos cantos de guer-
22Morte súbita, ou gol de ouro, consiste no término ra nos estádios, proibição de venda de bebidas alcoólicas,
do jogo imediatamente após um dos contendores fazer um bem como de levar aos estádios paulistas bandeiras e ins-
gol. Houve, na ocasião, quem atribuísse a esta regra as ra- trumentos percussivos.

Revista Brasileira de Educação 217


Liuz Henrique de Toledo

para acompanhar o caso, abertura de inquérito poli- Em fevereiro de 1997 o juiz Sérgio Rui da Fon-
cial. Não cabe aqui reconstituir toda esta sequência seca denuncia-o por homicídio triplamente quali-
de eventos, aliás rica do ponto de vista de uma in- ficado, motivado por crueldade, impossibilidade de
vestigação mais detida na medida em que veio à baila defesa da vítima e futilidade25 (briga entre torcedo-
uma série de contradições no andamento do inqué- res). A defesa, ainda alegando incongruências nos
rito em função de possíveis irregularidades nos pron- laudos periciais, propôs que o renomado legista For-
tuários médicos do torcedor vitimado. Era necessá- tunato Badan Palhares depusesse como testemunha
rio, como no caso do gordo do ABC, um rápido pro- de defesa, o que não foi permitido pelo referido juiz
cedimento para indiciar e apresentar ao público os a pedido da promotoria que alegou que o legista não
responsáveis. Apesar de uma série de irregularida- havia “acompanhado as investigações e por isso,
des evidenciadas na ocasião, por exemplo a presen- não poderia ir a plenário” (O Estado de São Pau-
ça de uma grande reforma no estádio, o que impli- lo, 10/04/97). O advogado de defesa Laertes Tor-
cava numa evidente ausência de condições em sediar rens consegue, desse modo, o adiamento do julga-
qualquer partida, e outras relativas à condução da mento que estava marcado para 14 de abril deste
cirurgia e dos laudos médicos, o único indivíduo efe- mesmo ano.
tivamente culpabilizado pela morte de Gasparim foi Quais semelhanças guardam estes dois acon-
Adalberto. Tal como na lógica sacrificial, cataliza- tecimentos e tantos outros ocorridos com adoles-
ram-se as violências parciais (institucionais, sobre- centes ou jovens torcedores de futebol? Em que me-
tudo), convergindo-as para uma única pessoa, como dida é possível verificar um padrão de conduta mais
se pudessem evitar que a “(...) violência se espalhasse objetivo e causal nestas contendas? Tomando como
por toda a sociedade (...)” (Rifiotis, 1996, 9). exemplo grande parte das mortes entre torcedores,
A precipitação dos fatos culminou na prisão constata-se que um número reduzidíssimo delas acon-
preventiva de Adalberto sob a alegação de clamor teceu em função de vendetas ou vinganças na dis-
popular. Um balanço feito pela promotoria da ca- puta por algum bem, material ou simbólico, que
pital em novembro de 1996, passados quinze me- extravazasse os limites temporais dos jogos futebo-
ses, computou 23 indiciados, denunciados por cri- lísticos (em São Paulo, ao menos, é raro estas ati-
me de rixa e um preso, acusado de homicídio do- tudes violentas ocuparem o tempo da esfera coti-
loso, Adalberto. Ainda que as imagens claramente diana, em geral torcedores não se confrontam para
mostrem a sua participação no acontecido há indí- além dos limites dos dias de jogos).
cios de que o golpe considerado fatal por ele desfe- Dezenas destes confrontos aleatórios envolve-
rido não tenha sido o causador da morte de Gas- ram indivíduos sem quaisquer vínculos uns com os
parim. Suspeita-se que houve um erro (na leitura da outros. Vínculo no sentido de uma ação recíproca
chapa e na abertura do crânio) na cirurgia feita no mediada por uma história previamente comparti-
adolescente vitimado 24. lhada entre os contendores. Se tal fato ocorresse
certamente a cronologia da delinquência em torno
do futebol seria alimentada por casos ainda mais
24 Os advogados de defesa de Adalberto pediram a contundentes como ocorre, por exemplo, com as
exumação do corpo de Márcio e uma perícia para indicar participações juvenis nos bandos rivais do crime
que o golpe desferido pelo réu não foi aquele que vitimou organizado, no tráfico de drogas e disputas por pon-
o referido adolescente. Até janeiro deste ano (1997) o laudo tos e bocas de fumo, cuja modalidade de violência
ainda não havia sido divulgado pelo IML, ou seja, seis meses
após o pedido. O advogado de defesa iria solicitar em juízo
tal documento no intuito de comprovar sua hipótese de que
não foi o golpe desferido por Adalberto que matou o são
paulino Márcio Gasparim (Folha de S. Paulo, 16/01/97). 25 Grifo do autor.

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Short cuts

conflagrada possui, sociologicamente, outros ele- tuações similares às relatadas: “(...) Eu nunca fui de
mentos definidores26. organizada (...) bota aí que a pior coisa da vida é
A exposição aos perigos (e aos prazeres) par- viver sob as influências dos outros. Isso leva os ga-
tilhados na forma da contenda futebolística entre rotos a agir [sic] no embalo, que foi o que me le-
torcedores mobiliza dezenas de jovens em situações vou a encarar uma situação dessas (...) não se pode
similares cujos desfechos potencialmente poderiam viver sob o incentivo dos outros para praticar uma
ser tão trágicos como aqueles vivenciados por Ma- briga (...)” (depoimento de Adalberto ao Jornal da
rin, Adalberto e, principalmente, por Gasparim e Tarde, 16/04/96). A própria fala de Adalberto ao
Rodrigo de Gáspari. A despeito do débil esforço por enfatizar um caráter coletivo das investidas, afir-
parte de alguns segmentos dirigentes das organiza- mando que os jovens vivem de embalos, deixa trans-
ções torcedoras (torcidas organizadas) em conterem parecer, todavia, que tais atitudes são opções que
as transgressões e em que pesem todo o aparato vão além da imediata solidariedade coletiva. Pare-
quase bélico (bombas caseiras, pedras, paus) e sim- ce que há um forte elemento desagregador de iden-
bólico que sustentam a atribuída intolerância des- tidades neste comportamento manifesto e um for-
tas torcidas (os gritos de guerra, representações de te apelo individualizador na busca de prazer e emo-
masculinidade posta à prova nestas coletividades, ção em tais atitudes, contudo não destituídos de
etc), parece por demais linear tributar exclusivamen- apreensão, recuos e medos.
te a uma ação organizada, valorizando uma dada O indivíduo agredido, preso ou até mesmo mor-
identidade coletiva desses agrupamentos, a ocorrên- to simplesmente se fudeu, foi vacilão, como comu-
cia destas situações de conflito. Por quê, ainda, esta mente dizem os torcedores, demonstrando não so-
modalidade de violência é constatada de modo mais mente um desprezo pela existência do outro, e aqui
reincidente a partir dos anos 80? inclui-se os próprios aliados de uma mesma torci-
Não querendo negligenciar o caráter coletivo da, como pude constatar várias vezes observando
de tais investidas, motivadas obviamente por uma circunstâncias semelhantes as relatadas neste arti-
centralidade e catalização das animosidades por go, mas, paradoxalmente, por parte do agressor,
parte dos agrupamentos torcedores, tais manifesta- uma certa representação de desapego da sua pró-
ções revelam, entretanto, que a mobilização de al- pria integridade física.
guns elementos profundamente desagregadores, que Entre os jovens torcedores de futebol das clas-
parecem animar determinadas condutas individua- ses populares, de modo preponderante, é muito
lizadoras, compõem o universo de possibilidades de usual, no linguajar evocativo de afirmação e bra-
ação diante de situações tais como no caso do gor- vura entre os grupos, o uso do termo apavorar para
do ou da guerra do Pacaembu. denotar algum feito espetacular, audacioso e social-
O relato de Adalberto em certa medida corro- mente perigoso (um roubo da bandeira adversária,
bora com esta análise ao negar uma identidade27 pequenas transgressões em estabelecimentos comer-
substantiva que se quer atribuir às torcidas em si- ciais, brigas) até uma atitude mais deliberadamen-
te agressiva. Apavorar revela um êxtase e prazer na
atitude furtiva, evidenciando, ainda que de modo
26 Para uma interessante análise sobre o envolvimen- variável, um acontecimento limite que, ao mesmo
to de jovens no tráfico de drogas consultar Alba Zaluar, Da
Revolta ao Crime S.A. São Paulo. Ed. Moderna, 1996, e o
texto da mesma autora citado no presente artigo. Outros
autores, tais como Peralva (1996), também vêm estudando banos, gerações, classes sociais, afirmando que se tais iden-
a inserção juvenil no tráfico de drogas. tidades existem, no contexto destes grupos específicos, en-
27 José de Souza Martins adverte para o uso inadequa- tretanto se “(...) superpõem e se anulam no decorrer de um
do do termo identidade no estudo de pequenos grupos ur- único dia (...)” (Martins, 1996, 38).

Revista Brasileira de Educação 219


Liuz Henrique de Toledo

tempo, traduz-se em temor e angústia na realização efeito perverso engendrado nas próprias sociedades
do próprio ato. Quanto mais individualizada for a modernas, politicamente igualitárias que, entretan-
transgressão maior o prazer suscitado na atitude de to, ao superdimensionar a noção de indivíduo, mui-
apavorar terceiros. Apavorar, por fim, consiste nu- tas vezes acabam abortando experiências mais co-
ma ação em que embora motivada pelo comporta- letivas de socialização devido a um processo de
mento coletivo instituído pelos grupos torcedores “(...) liquidação de antigas formas de regulação das
é profundamente desagregadora. Momento em que relações humanas (...)” (Peralva, 1996b, s/n). Des-
alguém se destaca do anonimato da torcida e con- sa maneira, a sociedade “(...) já não funciona sufi-
quista uma certa visibilidade, ainda que efêmera e cientemente como matriz protetora, abandonando
socialmente reprovável. o indivíduo face à angústia da morte. No caso do
Alguns outros fenômenos vêm sendo concei- jovem, aos efeitos da desregulação social, agregam-
tuados na literatura especializada sobre sociabilida- se os de uma mutação cultural, que debilita a anti-
de e delinquência entre os segmentos juvenis pela ga preeminência exercida sobre ele pelo adulto: a
expressão comportamento de risco, cujo “(...) en- desregulação não é apenas social, mas também in-
gajamento voluntário dos sujeitos em um risco de ter-geracional. Essa dupla desregulação parece tor-
morte é o mecanismo ao qual recorrem para enfren- ná-lo em muitos casos mais sensível ao engajamento
tar a angústia diante de um mundo desprovido de à violência como forma de gestão da angústia da
proteção (...)” (Peralva, 1996b, s/n). E segue a au- morte (...)” (Peralva, 1996b, s/n).
tora: “(...) No contexto de um Estado de direito frá- As condutas torcedoras, particularmente os ca-
gil e incapaz de assegurar os requisitos básicos de sos extremos aqui expostos, em certa medida podem
uma ordem legal [como é o caso brasileiro], o ape- ser informadas pela categoria precedente (conduta
lo à ordem se manisfesta sobretudo através da vio- de risco) só que não exatamente para tipificar tais
lência policial e extra-policial contra o jovem (...). atos beligerantes, mas, antes, para inseri-los neste
A violência do jovem, ao contrário, parece mais movimento mais amplo de desregulação e recuo ins-
diretamente pautada pelo engajamento em condu- titucional descrito acima, ao que parece, correlacio-
tas de risco, envolvendo significados plurais” (Peral- nado aos processos sociais de fragmentação e desin-
va, 1996b, s/n). vestimento nas instituições populares mencionados
Vale ressaltar, ademais, que tais condutas são por Zaluar, citados em parágrafos anteriores.
caracterizadas por se constituírem em atitudes auto- No caso da presença do outro (dos adversários)
referidas, ou seja, individualizadas, cuja inexistên- nas transgressões protagonizadas por torcedores de
cia do outro como objetivo de consumação da trans- futebol, lembrando que a violação aqui não se ca-
gressão concretiza uma situação limite de negação racteriza por ser auto-referida como nas condutas
do ato de realizar-se no ou pelo outro, mesmo que de risco típicas29, o que ocorre é que o contendor
pautada numa sociabilidade negativa, como o en- ou oponente em potencial parece também não con-
frentamento ou a aniquilação física do desafeto. sistir no objetivo da ação, mas tão somente no ob-
Segundo ainda esta autora, o que permeia as jeto, espécie de anteparo que simplesmente veicula
atitudes que envolvem condutas de risco é a angús- ao mesmo tempo uma negação do coletivo e uma
tia da morte28 revelada pela e na ação transgressora, auto-afirmação, que parecem evidenciar também
uma manipulação angustiada da morte. O engaja-
mento dos torcedores em circunstâncias semelhan-
28 Segundo Peralva (1996b), citando outros autores
tais como Edgar Morin, a acentuação da angústia da mor-
te consiste num fenômeno generalizado das sociedades onde
29 A autora vem estudando, como expressão mais ra-
o processo de individuação foi intenso, como nas socieda-
des ocidentais. dical de condutas de risco, o surf ferroviário.

220 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Short cuts

tes às descritas acima em grande parte é voluntá- Referências bibliográficas


rio (e solitário), nem sancionado nem coibido pe-
las coletividades torcedoras, fragilizadas que estão ABRAMO, Helena, (1994). Cenas Juvenis: punks e darks
num contexto de repressão e despolitização de seus no espetáculo urbano. São Paulo: Scritta/ANPOCS.

quadros. O apelo a um projeto de torcida, tão va- CALVINO, Italo, (1960). O Visconde Partido ao Meio. São
lorizado em determinados momentos por inúmeros Paulo: Companhia das Letras.

daqueles organizados, parece não mais estimular e ELIAS, Norbert, (1995). Em busca da excitação. Lisboa:
mobilizar os jovens sócios que buscam, nessas mes- Difel.

mas formas de organização, uma via mais segura LOPES, José Sérgio Leite, (1995). Esporte, emoção e con-
(dada até mesmo pelo próprio anonimato da mul- flito social. MANA: estudos de Antropologia Social, v.
1, n. 1, out. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
tidão) de aparição espetacular no domínio público.
O que pode acarretar em efeitos até mais perversos MARTINS, José de Souza, (1996). A peleja da vida cotidi-
ana em nosso imaginário onírico. In: MARTINS, José de
de atomização e desregulação ainda maior de tais
Souza (org.). (Des)figurações: a vida cotidiana no ima-
condutas intolerantes nos estádios.
ginário onírico da metrópole. São Paulo: Hucitec.
Saímos, então, do terreno propriamente instru-
MONTES, Maria Lúcia, (1996). Violência, cultura popu-
mental do uso da violência, ou seja, aquele que atri-
lar e organizações comunitárias. In: VELHO, Gilberto,
bui uma dada racionalidade à ação30 (a violência ALVITO, Marcos. Cidadania e violência. Rio de Janei-
como um meio consciente para se atingir um deter- ro: UFRJ/FGV.
minado fim, como um roubo, um sequestro, qual- PERALVA, Angelina, (1996). Note pour une analyse com-
quer ação terrorista ou mesmo uma ação policial parative de la violence juvénile en France et au Brésil.
mais ostensiva ante algum delito por exemplo), para Paris: Centre d’Analyse et d’Intervention Sociologiques,
ingressar num âmbito mais subjetivo (e porque não Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, set. Multi-
grafado. (Document provisoire).
dizer movediço) de sua dimensão. Neste momento
as análises igualmente instrumentais perdem em mui- __________, (1996b). Juvenização da violência e angústia
da morte. Caxambu, 20. Encontro Anual da Associação
to seu valor heurístico.
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências, out.
Estamos diante, portanto, de fenômenos intri-
TOLEDO, Luiz Henrique de, (1996). Torcidas Organiza-
gantes e que ainda não foram suficientemente es-
das de Futebol. Campinas: Autores Associados, ANPOCS.
clarecidos nas análises. As ações transgressoras en-
__________, (1996b). A cidade das torcidas: representações
tre torcedores relatadas aqui, e me parece pouco
do espaço urbano entre os torcedores e torcidas de fute-
razoável explicá-las como sendo, exclusivamente,
bol na cidade de São Paulo. In: MAGNANI, J. C., TOR-
demandas conscientemente organizadas por coleti- RES, L. Na metrópole: textos de Antropologia Urbana.
vidades torcedoras, indicam um processo, senão de São Paulo: Edusp, Fapesp.
esgotamento, ao menos de impasses e crises na for- __________, (1997). Identidades e conflitos em campo: a
mação de identidades coletivas, sobretudo entre os guerra do Pacaembu. Revista da USP. São Paulo, n. 32.
segmentos jovens, errantes viscondes habitantes dos ZALUAR, Alba, (1996). A globalização do crime e os limi-
grandes centros urbanos. tes da explicação local. In: VELHO, Gilberto, ALVITO,
Marcos. Cidadania e violência. Rio de Janeiro: UFRJ/
FGV.
__________, (1996b). Da revolta ao crime. São Paulo:
30 O que se constatou a partir da
Guerra do Pacaembu Moderna.
foi uma verdadeira demonização, no senso comum, dos gru-
pos de torcedores desordeiros, como se estes pudessem ser
comparados a outros agrupamentos que se utilizam das ações
transgressoras e violentas como um meio para atingir obje-
tivos pré-determinados.

Revista Brasileira de Educação 221


Espaço Aberto

Quando o sociólogo quer saber o que é ser professor


Entrevista com François Dubet

Entrevista concedida à
Angelina Teixeira Peralva
Marilia Pontes Sposito
Universidade de São Paulo

Tradução de Ines Rosa Bueno

Em entrevista concedida à Revista Brasileira Paris: Seuil, 1991; Sociologie de l’experience. Paris:
de Educação em setembro de 1996, durante breve Seuil, 1994 (Edição portuguesa: Lisboa, Instituto
estada no Brasil, o sociólogo François Dubet reflete Piaget, 1997) e A l’école. (com Danilo Martucelli)
sobre a sua experiência de um ano como professor Paris: Seuil, 1966.
de história e geografia em um colégio da periferia
de Bordeaux, França. Conhecido por suas pesquisas Por quê, enquanto pesquisador, você escolheu
sobre a juventude marginalizada na França, Fran- lecionar por um ano em um colégio?
çois Dubet quis vivenciar, diretamente como profes- Eu quis ensinar durante um ano por duas ra-
sor, os dilemas da escola francesa contemporânea. zões um pouco diferentes.
François Dubet é pesquisador do Centre d’Ana- A primeira é que nos meus encontros, coleti-
lyse et d’Intervention Sociologiques (CNRS - École vos ou individuais, com professores, eu tinha a im-
des Hautes Études en Sciences Sociales), professor pressão de que eles davam descrições exagerada-
titular e chefe do departamento de sociologia da mente difíceis da relação pedagógica. Eles insistiam
Universidade de Bordeaux II e membro senior do muito sobre as dificuldades da profissão, a impos-
Institute Universitaire de France. É autor de mais sibilidade de trabalhar, a queda de nível dos alunos,
de uma dezena de livros, entre os quais: La galère: etc. E eu me perguntava se não era um tipo de en-
jeunes en survie. Paris: Fayard, 1987; Les lycéens. cenação um pouco dramática do seu trabalho.

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Espaço Aberto

A segunda razão é que, durante uma interven- mente muito apoio, muita simpatia (...) Aliás, não
ção sociológica com um grupo de professores, en- é preciso esconder que o fato de ser um homem no
contrei duas professoras com uma resistência muito meio de mulheres pode também ajudar. Era um cli-
grande ao tipo de análise que eu propunha. Elas dei- ma bastante agradável.
xaram o grupo. Uma delas escreveu uma carta em A minha primeira surpresa, e que é fundamen-
que me criticava particularmente por não ter lecio- tal, corresponde ao que os professores dizem nas
nado, de ser um “intelectual”, de ter uma imagem suas entrevistas. Os alunos não estão “naturalmen-
abstrata dos problemas. Foi um pouco por desafio te” dispostos a fazer o papel de aluno. Dito de ou-
que eu quis dar aulas para ver do que se tratava. tra forma, para começar, a situação escolar é defi-
Devo dizer que esta experiência não era nada nida pelos alunos como uma situação, não de hos-
central para mim já que não era o coração do meu tilidade, mas de resistência ao professor. Isto signi-
trabalho de pesquisa; nunca imaginei seriamente fica que eles não escutam e nem trabalham espon-
escrever um livro sobre a minha experiência de pro- tâneamente, eles se aborrecem ou fazem outra coi-
fessor. Assumi uma classe de cinquième, 2º ginasial sa. Lá, na primeira aula, os alunos me testaram, eles
(que começa após os cinco anos de escola elemen- queriam saber o que eu valia. Começaram então a
tar), com crianças de 13/14 anos, em um colégio conversar, a rir (...) Um aluno, um menino que es-
popular, bastante difícil em que o nível dos alunos tava no fundo da sala, fazia tanto barulho que eu
é baixo e dei aulas durante um ano. Portanto, da pedi para ele vir se sentar na frente. Ele se recusou.
volta às aulas em setembro até o mês de junho, qua- Fui buscá-lo, o levantei e o trouxe para frente. Ele
tro horas por semana, ao lado de minhas ativida- gritava: “Ele vai quebrar meu ombro!” Bom, final-
des de acadêmico, de chefe de departamento, me mente, depois de dez minutos, houve um contato
esforcei para ser um professor razoável. Ensinei his- (...) fiquei muito contente que o menino tivesse 13
tória e geografia já que são disciplinas que me in- anos, pois se tivesse pego uma classe de troisième
teressavam e que não requeriam uma formação es- (3º ginasial) e que o menino tivesse 1,80 m e pesasse
pecífica como o inglês ou as matemáticas, pelo me- 75 kilos, eu estaria com problemas. Ou se eu fosse
nos no nível escolar em que eu trabalhava. uma jovem professora de 22 anos, não sei como
Podemos dizer muitas coisas sobre esta expe- teria reagido.
riência. A minha segunda surpresa: é preciso ocupar
Logo, me dei conta de que a “observação par- constantemente os alunos.Não são alunos capazes
ticipante” era um absurdo. Durante duas semanas, de fingir que estão ouvindo, sonhando com outra
tentei ficar observando, isto é, ver a mim mesmo coisa e não fazer barulho. Se você não os ocupa com
dando aula. Mas após duas semanas, estava com- alguma coisa, eles falam. É extremamente cansati-
pletamente envolvido com o meu papel e eu não era vo dar a aula já que é necessário a toda hora dar
de maneira algum um sociológo, embora tivesse me tarefas, seduzir, ameaçar, falar (...) Por exemplo,
esforçado para manter um diário de umas cinquenta quando a gente fala “peguem os seus cadernos”, são
páginas no qual redigi minhas impressões. Entretan- cinco minutos de bagunça porque eles vão deixar
to, não acredito que se possa fazer pesquisa se co- cair suas pastas, alguns terão esquecido seus cader-
locando no lugar dos atores; eu acho que é um sen- nos, outros não terão lápis. Aprendi que para uma
timentalismo sociológico que não é sério ou que aula que dura uma hora, só se aproveitam uns vin-
supõe muitas outras qualidades diferentes das mi- te minutos, o resto do tempo serve para “botar or-
nhas. Contudo, eu fiz este trabalho em boas con- dem”, para dar orientações. Tive muitas dificulda-
dições pois fui muito bem acolhido pela grande des. Por exemplo, não sabia como contar histórias
maioria dos professores que ficaram bastante sen- e fazer com que os alunos escrevessem ao mesmo
sibilizados pelo fato de eu ir dar aulas e tive real- tempo. Se eu contasse a história de Roland e de

Revista Brasileira de Educação 223


Espaço Aberto

Carlos Magno, os alunos me escutavam como se eu Como acaba se construindo uma relação com
contasse um conto de fadas e não escreviam nada. os alunos?
E quando escreviam, obviamente, não entendiam Sem me dar muito conta disso, os alunos eram
nada do que eu dizia, eles perguntavam se era para sensíveis ao fato de eu me interessar por eles como
escrever com caneta azul, vermelha ou sublinhar (...) pessoas, isto significa que eu falo com eles, que eu
É extremamente difícil e eu tive uma grande agita- me lembro de suas notas, de suas histórias (...) No
ção na sala, muito penosa, que durou mais ou menos fim do ano, eles gostavam muito de mim. Me de-
dois meses. Durante estas dificuldades, falei disso ram presentes. Fizeram uma festa quando eu fui
com os meus colegas. Disse a meus colegas que eles embora. Enfim, eles me suportavam. E eu também.
bagunçavam e eu estava tão mais surpreso com a Era uma relação muito complicada já que era ao
bagunça porque, tendo sido assistente muito jovem mesmo tempo afetivo, muito disciplinar e muito
ainda, nunca tive a menor sombra de um problema rígido. Com os alunos, digamos que eu tive o sen-
desta natureza. Porém lá, de cara, eu não contro- timento que começava a aprender pouco a pouco
lava nada e os meus colegas apreciaram talvez que a dar aulas.
eu tivesse tido problemas, já que alguns me ofere- Quando olho para os meus colegas, havia mui-
ceram um livro: Comment enseigner sans stress? (co- tos deles que eram muito fortes, que davam boas
mo ensinar sem estresse?) Talvez eu pudesse dizer aulas. Havia outros que visivelmente, não conse-
que sentia dificuldades porque meu status social me guiam. O que mais me chamou a atenção, foi o cli-
permitia dizê-lo sem ter o sentimento de vergonha. ma de receio para com os alunos na sala dos profes-
Pode ser mais duro para um professor iniciante. sores. Isto quer dizer que alguns professores tinham
medo antes de entrar na sala. Não era um colégio
Você disse que fez um “golpe de estado”. violento. Não havia agressões, não havia insultos
Depois de dois meses, eu estava um pouco de- mas era obviamente uma provação; como fazê-los
sesperado: eu não conseguia nunca dar a aula. E en- trabalhar, como fazer com que ouçam, como fazer
tão um dia, fiz um “golpe de estado” na sala. Dis- com que não façam barulho? Esta é a dificuldade,
se aos alunos: de hoje em diante não quero mais não é a violencia.
ouvir ninguém falar, não quero mais ouvir ninguém Mas numa sala de professores, nunca se fala
rir, não quero mais agitação. Aliás, não era bagun- disso, todo o mundo parece ser um bom professor.
ça, era agitação. Eu disse: vocês vão colocar as suas Mesmo que a gente visse colegas chorando, ou
cadernetas de correspondência, a caderneta em que outros que nunca vinham, que passavam pelo cor-
se colocam as punições, no canto da mesa, e o pri- redor. No final das contas, achei que a descrição que
meiro que falar, eu escrevo a seus pais, e ele terá os professores entrevistados faziam na pesquisa era
duas horas de castigo. E durante uma semana foi o bastante correta. Realmente, a relação escolar é a
terror, eu puni. De fato, facilitou a minha vida e priori desregulada. Cada vez que se entra na sala,
tenho a impressão de que esta “crise”deu aos alu- é preciso reconstruir a relação: com este tipo de
nos um sentimento de segurança, já que eles sabiam alunos, ela nunca se torna rotina. É cansativa. Cada
que havia regras, eles sabiam que nem tudo era per- vez, é preciso lembrar as regras do jogo; cada vez,
mitido. Depois, as relações se tornaram bastante é preciso reinteressá-los, cada vez, é preciso amea-
boas com os alunos e bastante afetuosas. É preciso çar, cada vez, é preciso recompensar (...) A gente
reter desta história extremamente banal que o fato tem o sentimento de que os alunos não querem jo-
de ser sociológo pode permitir explicar o que acon- gar o jogo e é muito difícil porque significa subtemer
tece, mas não de antecipar melhor que a maioria das à prova suas personalidades. Se eu falo de charme,
pessoas. de sedução, não é por narcisismo, é de fato o que a
gente realmente experimenta. É uma experiência

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Espaço Aberto

muito positiva quando funciona, a gente fica con- todas as provas, não faziam nada, eram muito gentis
tente; quando não funciona, a gente se desespera. mas tinham decidido que não trabalhariam. É com-
Eu vivi muito dificilmente este ano, aliás, no Natal pletamente desesperador: no início eu os puni e no
queria parar. fim não os punia mais, já não adiantava, tê-los-ia
punido todos os dias.
O que este “golpe de estado” mudou funda- Os alunos são adolescentes completamente to-
mentalmente? mados pelos seus problemas de adolescentes e a
Para mim foi muito negativo porque a gente comunidade dos alunos é “por natureza” hostil ao
se sente reduzido a expedientes. Fiz reinar o terror mundo dos adultos, hostil aos professores. Eles po-
durante algumas semanas e depois relaxei. Mas eles dem encontrar um professor simpático, eles podem
sabiam que todos os meses, eu teria recomeçado. No encontrar um professor interessante, mas de qual-
fundo eu estava persuadido, como professor univer- quer forma, eles não entram completamente no jo-
sitário, que a gente podia jogar com a sedução in- go. Eles permanecem nos seus problemas de ado-
telectual. Falando bem e sabendo mais coisas do que lescência, de amor, de amizade e o professor fica
eles, eu achava que podia seduzí-los intelectualmen- sempre um pouco frustrado porque, mesmo se os
te. Nenhum efeito. Foi preciso mobilizar muitos alunos queiram, individualmente, estabelecer rela-
registros, sedução pessoal, ameaças, disciplina, que ções com os professores, coletivamente, eles não
eu desconhecia completamente, que nunca havia querem tê-las.
usado na minha vida universitária. Mas é uma his- Eis um pouco do que eu observei e devo dizer
tória fracamente controlada. Isto significa que a que isto correspondia exatamente ao que diziam os
gente não consegue observar e dar aula ao mesmo professores nas entrevistas individuais ou coletivas.
tempo. A gente dá aula e só faz isso. Depois de al- Eles não exageram. É realmente uma situação em
guns anos, talvez se tenha experiência suficiente que a gente tem grandes dificuldades para conquis-
para ver as coisas e fazê-las ao mesmo tempo mas, tar os alunos. É um trabalho que se recomeça a cada
neste ano, me comportei como um iniciante. O “gol- dia embora, repito, não se trate de alunos malva-
pe de estado” é um fracasso pedagógico e moral, dos, agressivos, racistas, mas antes alunos fracos em
mas permitiu fixar uma ordem bastante estúpida a geral.
partir da qual a gente pode tentar controlar uma
relação pouco regulada. De fato, no colégio, é pre- O que é que você achou dos programas es-
ciso trabalhar na transformação dos adolescentes colares?
em alunos quando eles não têm vontade de se tor- É uma das coisas mais espantosas. O progra-
nar alunos. ma é feito para um aluno que não existe. Digamos
Podemos fazer outras observações muito ba- mais simplesmente que é feito para um aluno ex-
nais sobre a heterogeneidade das classes. Estamos tremamente inteligente. É feito para um aluno cujo
lidando com alunos extraordinariamente diferentes pai e cuja mãe são pelo menos professores de filo-
em termos de performances escolares. Somos obri- sofia e de história. É feito para uma turma que tra-
gados a dar aula a um aluno teórico, um aluno mé- balha incessantemente. O programa é de uma am-
dio que não existe, tendo de certa forma o sentimen- bição considerável e não se pode realizá-lo materi-
to de que vamos deixar um pouco de lado os bons almente. O programa é também uma grande abs-
alunos, porque existem, e que vamos deixar de lado tração, até em história e em geografia. Por exem-
os maus alunos. plo, não há cronologia, é uma história de sociólo-
Outra coisa que me chamou a atenção, são gos, não é uma história que conta histórias. Por isto,
alunos que, depois de dois meses, “entraram em fiz como todos os meus colegas, daí a metade do
greve”, alunos que nada fizeram. Tiravam zero em programa e contei a história, mas nada do que pe-

Revista Brasileira de Educação 225


Espaço Aberto

diram que eu fizesse. Até porque as pessoas acham tomem realmente em mãos as suas próprias dificul-
que os alunos que cumpriram este programa adqui- dades. É o preço de um sistema que é ao mesmo
riram completamente os dos anos anteriores. tempo democrático, quer dizer, um sistema em que
Procura-se então outros meios, mas é muito todo mundo é igual e meritocrático, isto é, que or-
demorado. Eu os levei para ver um filme sobre a dena os valores.
Idade Média na televisão: O Nome da Rosa. Assistir Assim, muitos alunos são extremamente infe-
ao filme levou quatro horas porque era preciso ex- lizes na escola, sentem-se humilhados, magoados.
plicar as palavras: a palavra inquisição, a palavra Eu tenho a imagem de uma relação bastante dura
ordem religiosa (...) Eu diria que este sentimento de que é compensada por toda a sua vida juvenil, por
absurdo da situação pedagógica é reforçado pelo suas brincadeiras, por seus amigos. Mas para mui-
fato dos programas se dirigirem para alunos abs- tos alunos, a situação escolar não tem nenhum sen-
tratos, alunos que não existem, enquanto que, quan- tido. E é portanto vivida como uma pura violência,
do eu estava em cinquième (segundo ginasial), com não uma violência simbólica de classe como diz Bour-
a mesma idade deles, tinha programas infantis, pro- dieu, mas uma violência individual pedagógica, de
gramas muitos simples. A gente experimenta um relacional.
descompasso entre os programas e os alunos.
Isto faz com que o trabalho do professor seja Esta desregulação da relação pedagógica, será
muito cansativo com o tempo e entretanto, muitos preciso concebê-la como uma evolução geral da
professores o fazem muito bem, apesar de tudo. escola ou antes como um problema de métodos
Mas muitos jogam a toalha. Isto significa que eles pedagógicos?
fingem dar aula para alunos que fingem ouvir. En- Não sou pedagogo mas não acredito, como a
tretanto, os alunos parecem sensíveis ao fato de que maioria dos meus colegas, em uma pedagogia mi-
a gente quer vê-los bem sucedidos. lagrosa. Uma pedagogia não é uma pura ferramenta
Gostaria de apontar duas outras dificuldades. na medida em que não há corte entre a pedagogia
A primeira tem a ver com a extrema brutalidade da e a personalidade. A pedagogia é uma técnica da
seleção. Os conselhos de classe são cansativos por- operacionalização da personalidade. Quando se pe-
que na verdade, a gente decide o destino dos alu- de a um professor para mudar o seu método, não
nos em alguns minutos. A segunda coisa é a manu- se pede apenas que ele mude de técnica, pede-se para
tenção de uma ficção sobre os alunos. De certa for- que ele próprio mude. E, no fundo, a gente vê mui-
ma, por estarmos numa sociedade democrática, a to bem o tipo de sabedoria professoral, que não é
gente considera que todos os alunos têm o mesmo um absurdo, quando os professores dizem: “Exis-
valor, que eles são iguais. Ao mesmo tempo, eles tem métodos que me servem e métodos que não me
têm obviamente performances desiguais. Porém, a servem.” A gente vê professores que adotam méto-
gente sempre lhes explica que se eles não obtiverem dos tradicionais que funcionam muito bem e outros
bons resultados é porque não trabalham bastante, que têm métodos ativos que funcionam. Mas a gen-
e na realidade, isso nem sempre é verdadeiro. É por te vê também professores que se obrigam a aplicar
eles terem dificuldades de outra ordem, porque isto métodos que não são os seus e não dá certo. E aliás,
não interessa para eles (...) Nunca se lhes dá real- os alunos são muito sensíveis a este tipo de adequa-
mente os meios de compreender o que lhes aconte- ção da personalidade do professor e de seu estilo
ce. Só se diz para eles: se você trabalhar mais, terá pedagógico. Temos então interesse em deixar uma
melhores resultados. Mas eles sabem que isto nem multiplicidade de métodos possíveis.
sempre é verdadeiro; há, então, um tipo de ficção Para o colégio, o problema é múltiplo. É ob-
no julgamento escolar que faz com que nunca se viamente preciso que a situação escolar tenha sen-
permita aos alunos suas própria explicações ou que tido para os alunos o que não é exatamente o caso

226 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Espaço Aberto

nos estabelecimentos populares já que os alunos que res: a recíproca também tem de existir. Seria neces-
lá estão não são mais os antigos bons alunos oriun- sário refundar um trabalho educativo sobre o apren-
dos das boas famílias para quem a escola é uma dizado de um tipo de democracia escolar. A pala-
coisa normal. Portanto, a escola não pode mais es- vra democracia quer dizer que as regras de vida em
perar que o sentido da situação escolar venha de grupo são regras definidas, aplicadas e recíprocas.
fora, das famílias cujo julgamento os professores Porém, na realidade, há um regulamento interior
fazem aliás muitas vezes. É preciso portanto rever nos colégios, que se aplica vagamente (...).
a oferta escolar. Seria preciso rever os programas e Finalmente, creio que a situação escolar se esva-
as ambições de um modo que os alunos não sejam zia de todo seu sentido nos meios populares já que
colocados de entrada em situações de fracasso. Para os alunos não acreditam mais que os diplomas vão
falar mais simplesmente, eu acho que eles devem lhes permitir abandonar sua origem social; muitos
aprender menos coisas, mas é preciso que eles as alunos têm a impressão que a escola não serve para
aprendam. Claude Allègre, que dirigiu durante mui- nada. É claro que este problema não se limita so-
to tempo o ensino superior na França, dizia: é pre- mente á escola, ele tem sobretudo a ver com a si-
ciso que os alunos de colégio aprendam poucas coi- tuação do mercado de trabalho. A gente poderia
sas mas que aprendam coisas difíceis e que as sai- imaginar desenvolver aprendizados que pareçam
bam. Precisamos ter tempo para ter certeza que eles mais úteis.
as conheçam pois o que os faz progredir é ter su- Então, eu acho que há coisas a serem feitas no
perado a dificuldade. Porém, ao invés disso, en- colégio, pelo menos coisas que deveriam permitir
sina-se cada vez mais coisas sem nunca ter o tem- tornar a relação pedagógica muito menos tensa,
po de verificar se são assimiladas. Então, os alunos muito menos difícil do que ela é. Hoje em dia, as
são definidos por lacunas. Não se pode manter pro- dificuldades do sistema se tornam os problemas psi-
gramas feitos para uma pequena elite da burguesia; cológicos e pessoais dos indivíduos; na medida em
tanto faz para a elite da burguesia, ela perderá um que as contradições do sistema não são administra-
pouco de tempo no colégio, isto não é muito grave. das e explicitadas politicamente, as pessoas as vi-
Depois, seria preciso ver, no caso do colégio, vem como problemas individuais.
o lugar da adolescência pois hoje em dia o colégio
é definido por um tipo de guerra fria entre os ado- Quando você fala de democracia escolar, de
lescentes e a escola. Não acredito de jeito nenhum cidadania escolar, será que você pode falar com
que a pedagogia consistiria em reconciliar os alu- mais precisão sobre estas idéias? Qual é o lugar de
nos e os professores, em torná-los amigos. Mas, me produção destas regras na medida em que você
parece que deveria ter regras de vida em grupo par- fala de enfraquecimento, de desaparecimento das
tilhadas, isto é, que o mundo do colégio seja um instituições?
mundo em que haja uma cidadania escolar. Have- No colégio, é preciso recriar um quadro nor-
ria em termos de educação para a cidadania, coi- mativo, tenho convicção disto. Mas acredito que
sas fundamentais a serem feitas, ou seja, verdadei- este quadro deva ser criado de um modo democrá-
ros contratos de vida comum entre os professores tico, ou seja, a partir de uma definição dos direitos
e os alunos mas que suporiam obrigações para es- e dos deveres. Porém, hoje em dia na França, aqui-
tes alunos, obviamente, mas também obrigações lo que se chama “retomada nas mãos” é a defini-
para os professores. Por exemplo, os alunos têm o ção do poder mas não a definição do direito. E isto
dever de entregar os trabalhos na data prevista, mas por uma razão extremamente simples, é que esse
é preciso que os professores tenham o dever de en- quadro normativo deveria envolver tanto alunos
tregar as correções na data prevista. Por exemplo, como professores, é isso que me parece importan-
os alunos têm o dever de não xingar os professo- te. Mas o que os professores pedem muitas vezes,

Revista Brasileira de Educação 227


Espaço Aberto

é um quadro disciplinar que os proteja sem obrigá- ca. Mas mudar o modo de nomeação dos profes-
los a cooperar. Na França, você sabe isto tanto quan- sores é uma revolução nacional. Porém, como te-
to eu, cada professor, uma vez na sala, é extrema- mos o sentimento de não poder mudar as regras,
mente autônomo. Os alunos estão diante de rela- criamos múltiplos dispositivos novos. Muitas vezes,
ções estilhaçadas a partir das quais tentam se virar, sou hostil a esses dispositivos novos, eu o digo cla-
agir, mas eles não sob um quadro normativo. É pre- ramente. Sou, por exemplo, contra o dispositivo de
ciso oferecer um quadro, importa dar aos alunos os ajuda nos deveres. Sou contra a idéia de que vamos
meios de criar este quadro. resolver os problemas escolares, escolarizando mais
Atualmente, as diferenças entre os estabeleci- alunos ainda que não aprendem durante a aula. O
mentos são muito importantes. A gente vê muito que os alunos não aprenderam durante sete horas
bem, por exemplo, que certos colégios que deveriam de matemática, não o aprenderão em dez horas. Sou
conviver com a violência não a conhecem, e outros, totalmente hostil ao sistema dos mediadores. Co-
a priori protegidos, são violentos. Dito de outra loca-se pessoas cuja profissão é falar com as famí-
forma, a violência escolar não é só produto da vio- lias. Não, é preciso que os professores aprendam a
lência social. Há colégios que puderam criar siste- falar com as famílias como elas são e não como elas
mas, que têm a capacidade de criar civilização, e deveriam ser, para que as famílias não tenham medo
outros não. Por exemplo, a maioria dos casos de de ir ao colégio.
violência contra professores, são quase sempre res- Não se trata de dizer: criemos uma escola ideal,
postas à violência sofrida por alunos, violência real, criemos uma escola justa, criemos uma escola de-
violência simbólica, pouco importa. O quadro nor- mocrática. Trata-se de criar as condições para dar
mativo cria, quando existe, ao mesmo tempo, um aulas normalmente o que supõe, efetivamente, um
sistema disciplinar rígido, e um modo de expressão certo número de mudanças, de programas, de mo-
possível dos alunos. Quando se trata de ordem e dos de funcionamento que não são em si conside-
liberdade, ao mesmo tempo, da disciplina e da de- ráveis mas que pedem mudanças de hábitos.
mocracia. Quando é só disciplina, acaba explodindo
ou, então, quando não há disciplina, é a rua que Como é que se pode levar em conta a sociabi-
entra no colégio. Mas isto sugere algumas mudan- lidade dos alunos? Será que é preciso se inspirar nos
ças na gestão do sistema. Já que equipes coerentes modelos inglês ou americano? Mais convivência,
precisam ser construidas, seria necessário que os será possível?
professores sejam cooptados pelas equipes. Como Até um certo ponto, é preciso que o colégio
criar uma vida em comum em um colégio, quando aceite que haja uma vida adolescente na escola e que
os professores são nomeados pelo computador, quan- não a considere como desvio. É preciso dar um qua-
do eles não escolheram ir para lá? A formação de dro a esta vida adolescente, é preciso que os alunos
um quadro educativo supõe que se mude profun- façam outras coisas que não seja assistir às aulas no
damente um certo número de regras de funciona- colégio, mas eles devem fazê-lo num quadro norma-
mento, e a prova que isto é possivel, é que há colé- tivo, com regras que os eduquem. Será que precisa-
gios que o fazem. mos adotar o modelo inglês ou americano? Aí eu
O problema na França é que para mudar um tomaria mais cuidado. Quando se compara o siste-
pequeno aspecto do funcionamento, é preciso to- ma escolar francês, tanto em termos de performance
car no conjunto do sistema. É a tradição centrali- quanto de problemas de conduta, violência (...), no
zadora, que já teve grandes virtudes. Sabemos muito conjunto o sistema escolar francês funciona melhor.
bem que os professores precisariam escolher o seu Além disso, a escola é uma construção histórica longa
estabelecimento, ser cooptados por seu estabeleci- fortemente associada à cultura de uma sociedade,
mento para que haja uma coordenação pedagógi- não é uma tecnologia que se pode importar.

228 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Espaço Aberto

Não acho que a escola deva se tornar um clu- retores tenham poder, que este poder seja contro-
be de vida juvenil. Mas é verdade que o sistema lado, supõe que os sindicatos não defendam siste-
escolar francês, no momento, está extremamente maticamente todo colega (...).
rígida e precisaria ser agilizado. Mas, eu repito, em
termos de performances globais, é preciso muito Como produzir esta mudança? O que o minis-
cuidado. tério pode fazer?
Eu acho que esta mudança supõe menos dire-
Será que a escola deveria ser socializadora? trizes ministeriais do que mudanças do modo de
Sim, mas ela o é de fato. Ela o é, inclusive quan- orgranização. Por exemplo, se a gente quiser a au-
do não funciona. Mas não acredito que ela deva ser tonomia dos estabelecimentos, isto é dos estabele-
socializadora da maneira como muitos entendem na cimentos capazes de ter políticas, é obviamente pre-
França hoje em dia: conservadora, volta da moral, ciso que os professores sejam cooptados num esta-
volta da disciplina, volta dos princípios (...) Eu acho belecimento. Quando é nomeado por um com-
que ela deve ser socializadora de um modo muito putador, o professor diz, eu venho, faço o trabalho,
mais democrático, muito mais aberto. O debate não o resto não é problema meu. Isto não requer dire-
é entre permissividade e autoridade, eu acho que isto trizes, requer regras, requer por exemplo que os
é um falso debate. É preciso ter ao mesmo tempo professores sejam recompensados. Porém, um pro-
autoridade e liberdade. fessor tem uma carreira “biológica”, quer dizer que
Nos anos 80, o colégio das Minguettes era um não recebe mais quando ele trabalha mais ou me-
colégio violento, catastrófico. Chegou um diretor lhor, ele ganha mais à medida que fica velho. Qual
que disse: Bom vamos fazer duas coisas simultâ- é a consequência deste mecanismo? É que depois de
neamente, insisto, simultâneamente. Primeiro, va- algum tempo, os professores entendem que seu in-
mos estabelecer uma disciplina mecânica, “estúpi- teresse é se engajar menos. É claro, não digo que é
da”: quem brigar será expulso, quem xingar um preciso punir os professores, mas que o professor
professor será expulso, quem roubar será expulso, que dedica muito tempo organizando uma viagem
portanto sem negociação. Segundo, e ao mesmo para a Inglaterra, que dedica muito tempo para fa-
tempo, qualquer aluno que brigar, que insultar pro- zer teatro, é preciso reconhecer isto e pagá-lo.
fessor (...) sabemos que ele apresenta alguma difi- São mudanças que não parecem importantes
culdade e ele terá a possibilidade de falar a respei- mas que são consideráveis. Mas as diretrizes que
to com os adultos. Mas isto não impede que ele seja dizem: é preciso se comportar desta maneira com
expulso, ele seja punido. Os alunos se deram con- os alunos, são ineficazes. Um professor faz o que
ta de que nem tudo era possível e portanto a taxa quer na sua sala. É portanto necessário encontrar
de violência baixou sendo que eles podiam também modos de organização que farão com que o traba-
ser ouvidos e ajudados. Por exemplo, o aluno que lho seja coordenado. Diretrizes, os ministérios as
xinga o professor é punido, mas ele pode dizer por- promulgam diariamente, e são tão ótimas que não
que ele xingou o professor, e o aluno tem a sensa- têm efeitos reais.
ção de que seu problema será levado em conta. Os
alunos pedem para que haja um pouco de recipro- Houve nos últimos anos grandes mudanças
cidade, eles querem aceitar um certo número de coi- na formação dos professores. O que você pensa
sas já que eles não têm escolha mas é preciso que a sobre elas?
regra seja justa e envolva a todos, pois não faria Os IUFM são uma mudança considerável por-
sentido se os adultos fizerem o que eles proibem que que na França, o sistema era o seguinte: formava-
as crianças façam. Este tipo de atitude supõe mu- se pedagogicamente os mestres da escola elementar
danças consideráveis no sistema, supõe que os di- e não se formava os professores de colégio. Os pro-

Revista Brasileira de Educação 229


Espaço Aberto

fessores do secundário eram apenas definidos pelo paz de fazê-lo. Há um grande êxito na França, por-
nível de conhecimento, selecionados por concursos. que pouco a pouco os mestres da escola elementar
Agora todos seguem uma formação pedagógica nos aprenderam a falar tanto para alunos como para
IUFM. Não se tem certeza se os IUFM funcionam crianças. Durante muito tempo os mestres france-
sempre bem, mas o princípio de uma formação dos ses só falaram com alunos. Ao longo dos anos, de-
professores é um bom princípio. senvolveu-se uma sensibilidade para a infância, para
a psicologia. A terceira coisa que joga a favor da
Você pode nos dizer se há questões cruciais no escola primária tem a ver com o romantismo da
quadro da formação? infância. Enquanto é possível se comportar de for-
Ao lado da didática, seria necessário um pou- ma relativamente brutal em relação aos adolescen-
co de psicologia dos adolescentes, um pouco mais tes, com as crianças é diferente. A presença dos pais
de sociologia. Quanto ao resto, acho que é preciso é muito mais forte também. E último lugar,apesar
uma formação prática, ou seja estágios, que os pro- de tudo, a lógica seletiva é muito menos forte na
fessores sejam guiados, orientados por pessoas que escola primária, portanto aproveita-se o tempo, as
tenham experiência, por pessoas que ajudem, que pessoas são menos obcecada pelo nível, pela per-
apoiem (...) Porém, a formação é muito mais cen- formance, peloos exames de fim de ano.
trada sobre os princípios pedagógicos, sobre uma São estas razões que me fazem pensar que é
ideologia pedagógica. A profissão de docente é uma preciso “primarizar” o colégio, já que de qualquer
prática, ela requer um aprendizado de práticas, de forma todo o mundo tem acesso a ele. É preciso
experiências, de mestres de estágio, de ajuda nos continuar uma pedagogia da repetição enquanto
momentos de dificuldades (...) Mas o ensino na Fran- que o colégio retomou o modelo do colégio “bur-
ça é muito normativo porque existe uma convicção guês” da pedagogia de acumulação. Ensina-se um
muito forte entre os professores: há uma solução programa do primeiro ginásio, ele é adquirido, a
pedagógica para todos os problemas. É preciso pre- partir daí faz-se o programa do segundo, ele é ad-
parar as pessoas para todas as dificuldades. Deve- quirido, a partie daí faz-se o do terceiro (...). Na
ria haver cursos sobre a violência porque a gente verdade, sobretudo são lacunas que se acumulam.
deveria aprender a responder a isto como se aprende E quando se fazem testes sobre as performances em
a ensinar as matemáticas: é um absurdo. Esta for- matemática, a gente se dá conta de que a grande
mação deveria ser mais ágil, muito mais longa e causa de fraqueza em matemática é que as crianças
muito menos ideológica. não entendem o problema. O que significa que eles
não sabem ler o suficiente para entender o problema.
Você tem uma imagem muito interessante, re- Da mesma forma, é preciso sublinhar a gran-
lativamente harmoniosa, da escola primária que de qualidade da escola maternal que muito bem
parece ter evoluido no bom sentido. administrou a idéia de uma socialização infantil e
Em primeiro lugar, os mestres de escola são de um pré-aprendizado escolar. Se aprende coisas
claramente melhor formados por uma razão mui- e ainda se permanece na infância. É aliás, eu acho,
to simples, é que ensinar a ler para crianças é uma a única escola em que se requer os mesmosdiplomas
profissão particular. Eu sei ler e escrever, sou inca- para ensinar para crianças de dois anos e para crian-
paz de ensinar crianças a ler. Sendo que se me lar- ças de quinze anos. Não se confia crianças de dois
garem amanhã em uma classe do último ano do anos a guardas, confia-se elas a gente qualificada,
colégio, se fizer um pequeno esforço, posso dar uma tão qualificada quanto qualquer outro professor.
aula de francês, posso dar uma aula de matemáti-
ca, posso dar uma aula de história (...) Não digo que Diz-se que o aprendizado dos alunos de colé-
seria uma boa aula, mas sou intelectualmente ca- gio tem a ver com seu apêgo aos professores.

230 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Espaço Aberto

Acho que é verdade por três razões. A primeira


é que, psicologicamente, os alunos de colégio não
estão em condições de distinguir o interesse pela
disciplina do interesse por aquele que ensina a dis-
ciplina. É preciso uma forte maturidade intelectual
para distinguir o interesse pela disciplina do inte-
resse por quem a ensina. A segunda razão é que esta
observação é confirmada pelos alunos cujas notas
variam sensivelmente em função dos professores, e
isto na mesma disciplina. A docimologia confirma
este julgamento. A terceira razão é mais científica.
Um dos colegas de Bordeaux, Georges Felouzis, fez
um estudo sobre o efeito professor. Ele testa alunos
no começo do ano, os testa no fim do ano e mede
o aumento de suas performances. Obviamente, o
efeito professor é considerável. Isto significa que há
professores que ensinam muitas coisas a muitos alu-
nos, há professores que ensinam muitas coisas a
alguns alunos, e há professores que não ensinam
nada a nenhum aluno. Quando os alunos dizem
“depende do professor”, este tipo de medida con-
firma sua impressão.
O problema é que não se sabe o que determi-
na o efeito professor. O método pedagógico esco-
lhido não faz a diferença. Os homens não são mais
eficientes que as mulheres, os antigos não mais que
os novos. Há velhos professores totalmente inefi-
cientes e pessoas que começam eficientes logo na
primeira semana. A ideologia do professor também
não tem nenhum efeito. O único elemento que pa-
rece desempenhar um papel é o efeito pigmaleão,
isto é os professores mais eficientes são em geral
aqueles que acreditam que os alunos podem progre-
dir, aqueles que têm confiança nos alunos. Os mais
eficientes são também os professores que vêem os
alunos como eles são e não como eles deveriam ser.
Ou seja são os que partem do nível em que os alu-
nos estão e não aqueles que não param de medir a
diferença entre o aluno ideal e o aluno de sua sala.
Mas evidentemente, nas atitudes particulares, en-
tram também orientações culturais gerais, interes-
ses sociais, tipos de recrutamento e de formação.
Não são apenas problemas psicológicos.

Revista Brasileira de Educação 231


232 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6
Resenhas

jovens e sobre diversos tipos de isto é, um tipo antigo de


DUBET, François. La galère: movimentos sociais. Vários destes embarcação movida a vela e a remo
jeunes en survie. Paris: temas reaparecem neste livro onde, a (normalmente por escravos, o que
Fayard, 1987, 503 p. partir da experiência de vida dos deu origem também, em francês ao
(reedição francesa por atores jovens no contexto significado de galera como
Éditions du Seuil em 1993) conturbado das periferias urbanas, infortúnio, trabalho forçado,
são analisados o desenvolvimento do condenação à pena de remar neste
individualismo, as experiências tipo de embarcação). Na gíria
Através da análise da fragmentadas, a fugacidade das francesa, a palavra deu origem ao
experiência cotidiana de jovens de relações e a forte presença da verbo galèrer, significando estar à
periferias de grandes cidades subjetividade. deriva, viver de forma incerta, em
francesas, François Dubet faz a É importante explicar o condições precárias, provavelmente
leitura do fim de um mundo popular conceito central do trabalho: galère. não tendo claro o rumo e sem
e do esgotamento de um tipo de O autor não a define de imediato, suficiente visão de horizonte para ter
sociedade organizada em torno da preferindo descrever o seu projetos.
classe operária e dos movimentos protagonista (ou “personagem Para deixar mais claro o
sociais onde ela era protagonista. A sociológico”). Assim, indica como conceito, reproduzimos dois trechos
partir da análise das condutas de tipo de jovem da galère um rapaz de do livro. No primeiro, o autor
jovens pobres das grandes cidades, o vinte anos, com baixo nível de procura indicar os contornos do
autor interpreta os principais escolarização, sem qualificação, fenômeno social galère, indicando
desafios da sociedade industrial, sua freqüentemente desempregado, que ela “resulta de uma série de
crise e suas mutações. Tais mutações realiza pequenos trabalhos para fatores convergentes, sem que se
deram origem a um sistema social sobreviver, sem vínculos sociais possa determinar um modelo rígido
com contornos não muito bem estáveis, passa seu dia em longos de causalidade. Um jovem tem tanto
definidos, mas onde nem trabalho períodos de ócio nas ruas ou cafés, mais possibilidades de se encontrar
nem família são o centro da possivelmente filho de pai operário na galère se ele vive no meio
socialização e onde há crescente e/ou imigrante, vive em um conjunto popular, urbano e não tradicional,
exclusão e forte crise dos habitacional de periferia, onde a em conjuntos habitacionais e
movimentos coletivos. droga e a delinqüência não estão periferia, onde freqüentemente se
O autor é professor da ausentes. O cotidiano desse jovem é reúnem estes fatores. A galère não se
Universidade de Bordeaux II e expressão de uma experiência desenvolve onde os jovens estão
pesquisador do Centre d’analyse et coletiva e os indivíduos que ainda inseridos em redes tradicionais
d’intervention sociologique (CADIS), correspondem a esta descrição de solidariedade e onde a referência
onde realizou estudo sobre certamente se reconhecem na ao movimento operário é ainda
movimento operário, lutas experiência da galère. forte” (p.58).
estudantis, colegiais, políticas sociais O termo galère tem o mesmo No segundo trecho, a galère é
urbanas e políticas destinadas aos significado que galera em português, definida como “a expressão, nos

Revista Brasileira de Educação 233


Resenhas

jovens das classes populares, da um trabalho sociológico completo, integrado, com fortes ligação à
decomposição do sistema de ação da que dialoga com diversas tradições família e ao trabalho, identidade
sociedade industrial, da ruptura de teóricas e apresenta detalhada operária e identidade comunitária,
um modo de integração popular discussão metodológica, ao analisar enfim é o mundo da classe
tradicional, do esgotamento de um os resultados de um extenso trabalho trabalhadora que a sociologia
ator histórico — o movimento de investigação. Na primeira parte classicamente interpretou em termos
operário — e, enfim, do bloqueio e da obra, consagrada ao quadro de consciência de classe. O grupo
da transformação de certas formas analítico e conceitual, o autor formado nesta última cidade
de participação e de mobilidade” analisa o fim do mundo da classe funcionou de certa forma como um
(p.167). operária organizada, que se havia “grupo de controle” em relação aos
Nada parece mais distante do desenvolvido no período entre as demais, possibilitando estabelecer
movimento operário e das lutas duas guerras mundiais, a fratura do contraponto e comparações.
sociais organizadas do que as mundo industrializado, os laços O autor compara o contexto
experiências dos jovens de periferias sociais (regulação e solidariedade) de socialização e de instituições a
urbanas. O repertório de destruídos, o vazio da socialização e que estão relacionados os jovens
socialização e de ação destes inclui a crise da escola republicana. Em nesses diferentes contextos: “apesar
mais apatia, droga, música, seguida, são interpretados os de estarem em um universo onde
violência, e se distancia de elementos resultados da pesquisa realizada com estão presentes os serviços sociais, os
de integração, vivência do conflito, base na metodologia de intervenção jovens de Seraing falam o tempo
participação e sistema de ação. sociológica, desenvolvida pelo grupo todo da família. Ao contrário, na
Contudo, para Dubet movimento coordenado por Alain Touraine no malha mais frouxa da periferia (nas
operário e galère são momentos de CADIS. O método, aplicado a este demais cidades estudadas), os jovens
um mesmo processo social, sendo caso, consistiu na formação de que “galeram” falam sempre das
que a segunda é a expressão, no diversos grupos formados por instituições. Assim a escola, os
meio jovem, do fim do movimento jovens, cada grupo sob a serviços sociais, os estágios e os
operário e da perda da centralidade coordenação de dois pesquisadores. clubes de jovens aparecem como um
do trabalho e da família como Além de reuniões de discussão entre segundo conjunto de socialização,
fatores de socialização. Uma parte os jovens, foram realizadas reuniões distinto do primeiro, a família” (p.
significativa dos jovens da galère é em que estes se encontravam com 371).
formado por descendentes de interlocutores de diversos tipos (pais, Para os jovens dos bairros
gerações de operários militantes dos educadores, trabalhadores sociais, onde a realidade operária sofreu
anos 1950-60, concentrados nos políticos, sindicalistas, músicos, forte transformação, a socialização
bairros dos centros industriais onde animadores culturais, policiais, etc). não passa mais essencialmente pelo
a realidade do trabalho fabril e a Em tais reuniões, o objetivo era mundo do trabalho. Eles vivem de
presença ativa do partido comunista reforçar a capacidade de expressão forma acentuada um vazio de
(por isso eram chamadas banlieues dos atores e produzir material que socialização, não têm mais uma
rouges), ajudavam a atribuir permitisse interpretar os sentidos da imagem positiva nem do trabalho
significado à dominação e à ação atribuídos por eles. O nem da luta operária. Por sua vez,
subalternidade de sua condição fundamento da proposta nesse contexto, a escola foi,
social. Mas o jovens de que fala metodológica é desenvolver uma sobretudo na França, um símbolo do
Dubet encontraram um mundo sociologia que vai da ação ao laço político, de um princípio de
completamente diferente, onde, sistema. unidade face à diversidade da
ainda que quisessem (e esse não é o Foram desenvolvidas sociedade, entrou em crise profunda
caso), jamais poderiam seguir a atividades com grupos em 4 cidades e tornou-se incapaz de preencher os
mesma trajetória de trabalho e de francesas (Orly, Sartrouville, objetivos igualitários que ela
participação que seus pais. Suas Champigny e Clichy) e uma cidade professa. O estudo aponta, ainda,
formas de construção de identidade, belga (Seraing, na periferia operária para a importância do Estado
expressão social e de reação à de Liège). O estudo estabelece uma (através das políticas sociais) e os
dominação e à exclusão tampouco oposição entre as quatro primeiras e meios de comunicação de massa na
poderiam ser as mesmas. a última, já que Seraing é a imagem socialização dos jovens da galère.
La galère: jeunes en survie é de um meio operário organizado e A partir do material coletado,

234 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Resenhas

Dubet analisa a galère como desemprego, à educação e à No segundo, se refere às desordens


resultante das transformações imigração. na família e no meio social. A
ligadas ao fim do mundo industrial e Nesse contexto é possível exclusão (não marginalidade) se
portanto da anomia, da exclusão e existir ação coletiva? Seria possível manifesta através do desemprego, da
da ausência de movimento social. estudar as condutas marginais dos procura de trabalho, da falta de
Como abordagem teórica, propõe, jovens, a galère hoje, como aceso ao consumo, do estar fora da
em lugar da sociologia das condutas estratégias de ação, esboços de escola, da estigmatização e do
marginais dos jovens, a sociologia conflitos ou reivindicações culturais racismo. Ela se manifesta também na
dos movimentos sociais. A galère larvais? esta é a pergunta central do frustração gerada por uma forte
não é vista como mera conduta estudo. a sociologia dos movimentos integração cultural que acompanha a
anômica ou estigma, tal como as sociais define a sociedade como exclusão social e econômica. A raiva
interpretações sociológicas da sistema de integração e de conflito, aparece de forma difusa, sem alvo
marginalidade, notadamente a contudo a experiência da galère determinado, ela é provocada pelo
Escola de Chicago nos anos 30, procede da crise e decomposição de sentimento de exclusão e de
sobre a delinqüência juvenil. Bandos um sistema de ação, da falta de impotência frente à desorganização.
e turmas desapareceram quando os integração e de formas de expressão E revela um sentimento generalizado
bairros se tornam heterogêneos e do conflito. Nela não há a definição de dominação, falta de sentido para
quando uma cultura de massa de um adversário social, nem de um esta dominação, niilismo, ausência
invadiu o mundo popular. A conflito específico. Por outro lado, a de futuro e de esperança.
experiência da galère não repousa reflexão teórica sobre os Na galère a ação é
sobre nenhum princípio estável. Há movimentos sociais sempre se desorganizada, sem direção,
condutas de excesso e de apoiou sobre movimentos manifesta por todos os lados por
dependência, delinqüência, violência, “positivos” com a elaboração de um atores pouco integrados, excluídos e
droga, ócio e música, mas não há projeto social e a busca de enraivecidos porque a dominação a
realmente formação de uma autonomia. Seria possível apoiar-se que estão submetidos não lhes faz
subcultura marginal. A experiência sobre o quadro teórico da análise sentido. Sua ação decorre da falta de
cotidiana mobiliza redes frágeis (em dos movimentos sociais para estudar regulação, da anomia e da exclusão
lugar de turmas), delinqüência e um objeto tão distante dele como a e também da ausência de
trabalhos no setor informal, galère (caracterizada pela movimentos sociais e consciência de
revelando relações sociais diluídas hetertonomia)? Seria possível classe. Diante desse quadro, se
freqüentemente marcadas pela observar a transformação da galère pergunta qual seria a capacidade de
heteronomia. em ação autônoma, organizada ou ação dos atores da galère, que são
A galère é, antes do que uma um movimento social latente? muito frágeis, marginalizados e
conduta marginal de jovens pouco Na galère os jovens estão em dependentes para serem
ou mal integrados, uma ação de situação de exclusão e considerados como sujeitos de um
classe perigosa. Essa parte da desorganização. Porém, ela não é novo movimento social. O que os
juventude representa uma ameaça puro espaço de dependência e de caracteriza é a recusa do mundo
difusa à juventude trabalhadora e à ausência de ação social. O que não industrial e operário, o apelo à
sociedade em seu conjunto. A existe é um princípio único e dignidade e à liberdade e o refúgio
expressão “classes perigosas”, criada organizado. Existe heterogeneidade, em ilhas de resistência individuais
por Louis Chevalier, se refere ao ruptura e fragmentação. Há ação (atividades expressivas, sobretudo
lumpenproletariado na formação da fragmentada e dispersa em distintas música e dança). O que motiva sua
sociedade industrial, uma massa lógicas. Dubet identifica três pólos ação é cultural e é nesse âmbito que
social disforme temida pelos em tornos dos quais estão as manifestam sua vontade de
cidadãos e pelas instituições, sobre a dimensões de ação da galère: autodeterminação.
qual o poder realizou uma ampla desorganização social, exclusão e Dubet analisa ainda o
empresa de controle e socialização. raiva. Elas representam três lógicas movimento de jovens e sua luta
Tal como as classes perigosas ao ou orientações de ação. A contra o racismo na França dos anos
longo do século XIX, a experiência desorganização é interior e exterior 80, em especial a Marcha pela
atual da galère reúne problemas ao indivíduo. No primeiro caso ela é igualdade e contra o racismo,
relacionados ao urbanismo, ao desorganização afetiva e identitária. realizada em 1983. Depois da

Revista Brasileira de Educação 235


Resenhas

grande mobilização nacional, pesquisa foram constituídos, na


ocorreu a volta à periferia e o DUBET, François; maior parte dos casos, por
fortalecimento de uma vida MARTUCCELLI, Danilo. A sociólogos, aos quais vieram
associativa. Na visão do autor são os l’école: sociologie de associar-se professores-pesquisadores
jovens imigrantes que têm maiores l’expérience scolaire. Paris. em Psicologia e em Ciências da
capacidades de transformar as Seuil, 1996, 362 p. Educação.” (p. 347).
lógicas da galère, porque estão A integração intelectual das
constantemente desafiados por um equipes de pesquisa foi assegurada
apelo de identidade ao enfrentar o François Dubet, professor de por grupos de reflexão, que se
racismo e ao vivenciar a dualidade Sociologia na Universidade de reuniam periodicamente, incluindo,
do sentimento de não pertencimento Bordeaux II, após uma trajetória de além dos profissionais já
e da vontade de integração. Esses quase vinte anos (sua primeira mencionados, estudantes que
jovens imigrantes conseguem definir- publicação — “Lutte etudiante”, em elaboravam suas teses em Sociologia,
se melhor ao confrontar-se ou aliar- co-autoria — data de 1978), publica, em Psicologia e em Ciências da
se a outros atores. com Danilo Martuccelli (pesquisador Educação, como também psicólogos
Para que seja possível no CNRS) os resultados de uma escolares e um orientador
encontrar saídas da galère, os atores pesquisa de campo, por meio da qual educacional.
devem encontrar nela dimensões puderam, juntamente com sua A pesquisa desenvolveu-se em
positivas, pontos de apoio de uma equipe, observar e entrevistar alunos dois momentos. Primeiramente, uma
ação organizada e de um projeto, cuja idade escolar corresponde às vez escolhidos os estabelecimentos,
espaços de resistência e de séries iniciais do ensino fundamental procedia-se à coleta dos documentos
autonomia. O que é certo é que não (“les écoliers”), à segunda fase do e à realização de entrevistas
é o trabalho o que alavanca a ensino fundamental (“les collégiens”) semidiretivas junto aos sujeitos da
mobilização, mas sim os problemas ao ensino médio (“les lycéens”). pesquisa, para se formar, segundo os
da autonomia e da personalidade, a Ambos, pesquisadores na autores, uma imagem de cada
busca de maior capacidade de École des Hautes Études em Ciências situação. Em um segundo momento,
expressão cultural. Nesse sentido, Sociais, Paris, debruçaram-se sobre as equipes desenvolviam um estudo
aparecem com força os aliados os dados coletados, buscando em profundidade de cada tipo de
externos, tais como os animadores ultrapassar a mera constatação, atores, mediante um trabalho de
culturais que atuam nesses espaços descrevendo e objetivando grupo, momento esse considerado,
urbanos. compreender a experiência que cada pelos autores, como a parte principal
Ao final do trabalho, não fica aluno tinha em sua escola. da pesquisa.
claro o que o autor espera das É importante ressaltar que “À Como membro do CADIS
diferentes instâncias de socialização l’école” como seu subtítulo indica — (Centro de Análise e de Intervenção
em relação aos jovens da galère que “Sociologia da experiência escolar”, Sociológica), grupo criado por Alain
buscam inserção e sentido. Para o significa um amadurecimento das Touraine, François Dubet utiliza
leitor, fica ainda o mal estar diante idéias apresentadas por Dubet em mais uma vez, em sua carreira de
da ausência de projetos e de saídas obra anterior — “Sociologia da pesquisa, o método da “intervenção
para o problema da exclusão social. Experiência” (Paris, Seuil, 1994). sociológica”, visando extrair as
Delimitando seu campo de análise, dimensões e os mecanismos da
Cristina Almeida Cunha Filgueiras ou seja, a escola, os autores a experiência social, levando os atores
CIEPLAN - Corporación de revisitam, partindo de seu interior, não somente a testemunhar sua
Investigación Economica para da experiência que os alunos experiência, mas também a
America Latina (crianças, adolescentes e jovens) produzirem uma análise de seus
vivenciam por intermédio das problemas.
relações com os adultos, seus Durante quase três anos,
professores e pais. quatorze grupos reuniram-se duas
vezes por semana, além de alguns
A pesquisa meio-períodos de trabalho. Os nove
“A fim de melhor analisar os grupos de estudantes e cinco de
processos educativos, os grupos de adultos (incluindo grupos de

236 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Resenhas

professores, de pais e um de escola, entendendo que a escola não certas disciplinas. (...) A escola não é
especialistas da infância e da se reduz à sala de aula, que ela é somente desigual, ela produz
juventude) foram compostos visando feita também de mil relações entre também diferenças subjetivas
diversificar os contextos sociais, professores e alunos, que ela é um consideráveis, ela sustenta uns e
incluindo membros dos meios dos espaços essenciais da vida enfraquece outros, uns se formam na
populares e das classes médias. Cada infantil e juvenil”. (p. 11). escola, outros fora, apesar dela e
grupo de intervenção foi composto Preocupados com as mudanças contra ela”. (pp. 17 e 18).
por uma média de dez pessoas que pelas quais passam a escola, na A primeira parte, Educação e
descreviam, contavam, expunham França, tanto em sua forma como escola, é composta de um capítulo
suas escolhas, suas estratégias, suas em sua natureza (novos valores, que aborda as mudanças da escola
emoções a partir daquilo que os unia novas regras, novos objetivos), os atual em relação à escola
e produziam suas reflexões que autores preocupam-se em detectar republicana, mostrando como a
foram objeto de uma discussão como os alunos constroem sua Educação não pode mais ser pensada
posterior com os pesquisadores. experiência, na qual estes ‘fabricam’ como uma prática institucional. É
Dubet e Martuccelli afirmam: relações, estratégias e significados, nesse capítulo que os autores
“A principal originalidade desse por meio dos quais eles se explicitam a definição de
método refere-se à construção de um constituem a si mesmos. “experiência escolar”, um dos
debate entre os pesquisadores e os A sintonia entre teoria e conceitos-chave de sua obra:
atores”. (1996, 15). Os método manifesta-se na medida em “Experiência escolar será definida
pesquisadores propõem análises que, através da “intervenção como a maneira pela qual os atores,
sociológicas do trabalho do grupo e sociológica”, a “experiência social” individuais ou coletivos, combinam
pedem aos atores que reajam, passa a ser desvendada. diversas lógicas da ação que
reconhecendo-se nas análises “É necessário apreender a estruturam o mundo escolar”. (p. 62).
apresentadas ou mesmo recusando-as. experiência por meio de um grupo, A segunda parte — “Na escola
Cabe ressaltar a presença de para fazer emergir a especificidade elementar” — é composta por três
um outro material de pesquisa, além dos trajetos e das sensibilidades capítulos, em que os autores
dos grupos de intervenção: pessoais, evitando o fechamento do apresentam os fenômenos detectados
anotações de entrevistas individuais testemunho sobre si mesmo, e as respectivas análises sobre o
junto aos alunos e aos adultos, e de provocado, algumas vezes, pela mundo dos alunos; as relações entre
observações realizadas no decorrer relação face a face da entrevista os pais e a escola, e a experiência
da formação dos grupos. individual.” (pp. 14 e 15). social dos professores.
Ainda na Introdução, os A terceira parte — “No
A obra autores referem-se ao processo de Colégio” — é estruturada em quatro
O livro está dividido em cinco formação dos atores: capítulos: o primeira aborda a
partes: 1. Escola e Educação; 2. A “Inicialmente, os alunos da experiência colegial, incluindo as
escola elementar; 3. No colégio; 4. No escola elementar são dominados por expectativas, as estratégias escolares,
liceu; 5. Educação e Sociologia, além um princípio de integração, de as diferenças de gênero (rapazes e
de uma Introdução, Conclusão, um interiorização das expectativas dos moças), bem como as tensões e os
Posfácio e um anexo intitulado adultos. Depois, no colégio — (que sentimentos vivenciados no interior
Pesquisa, apresentando alguns detalhes corresponde, no sistema escolar da escola. Os dois seguintes
dos grupos de intervenção e indicando brasileiro, às séries da segunda etapa descrevem a experiência colegial em
os componentes e os pesquisadores do ensino fundamental) — eles contextos sociais contrastantes —
responsáveis por cada grupo. entram na afirmação de uma um colégio de periferia, popular e
Na Introdução, os autores subjetividade que introduz uma certa um “bom colégio” de classes médias.
apresentam o problema central do tensão com a escola. Enfim, no liceu O último capítulo aborda a
livro: (que corresponde ao nosso ensino experiência dos professores.
“Perguntando sobre o que a médio) eles atingem uma Na quarta parte — “No liceu”
escola fabrica, nós gostaríamos de racionalidade definida pelas —, os autores apresentam dois
saber que tipos de ator social e de utilidades escolares, e uma capítulos refletindo, no primeiro,
sujeito se formam durante longas possibilidade de “vocação”, sobre a vida juvenil, as escolhas e
horas e numerosos anos passados na construída pelo interesse próprio por estratégias, o instrumentalismo

Revista Brasileira de Educação 237


Resenhas

escolar, as tensões da experiência, experiência destaca mecanismos observou uma continuidade entre a
dentre outros temas. No segundo objetivos que nos informam sobre o objetividade das regras e a
capítulo, encontramos reflexões sobre sistema escolar, seu funcionamento e subjetividade dos alunos,
alguns dos fenômenos detectados, ou suas relações com seu meio ambiente, conformando uma integração, no
seja; a subjetivação, a alienação e a afirmam os autores (p. 303). colégio, observou-se uma fase de
resistência à ordem escolar. Dentro dessa perspectiva, a distância extrema, o inverso do
A última parte do livro, sociologia da experiência escolar é ocorrido na escola elementar,
“Educação e Sociologia”, tem por concebida também como uma consolidando-se uma cultura
objeto, segundo os autores, não a sociologia da escola e, portanto, adolescente, oposta ou paralela à
descrição precisa do campo da torna-se necessário indagar sobre o cultura escolar (p. 328). Já no liceu,
Sociologia da Educação, mas, sim, a lugar dessa perspectiva no interior constatou-se uma redução das
ordenação de um raciocínio, da Sociologia da Educação, tarefa tensões, em que “a diversificação da
associando as mutações da escola às que os autores se propuseram experiência acentua-se e dá lugar a
de suas análises. Três grandes realizar em seu último capítulo. uma diferenciação crescente dos
períodos são destacados pelos Finalizando o livro, Dubet e indivíduos”. (p. 330).
autores: no interior da Sociologia da Martuccelli apresentam uma Buscando tornar claras quais
Educação, o “momento fundador” conclusão e um posfácio. Na seriam as grandes linhas que
da escola republicana, referente a um primeira, eles buscam apresentar os deveriam conduzir a uma mutação
pensamento social que se poderia resultados, as possíveis respostas às do sistema escolar, os autores
qualificar de “paideia funcionalista”; indagações que nortearam a apresentam seu posfácio, destacando
em seguida, um período marcado pesquisa. No posfácio, os autores, ao a importância de “... uma mutação
por uma série de críticas, que, se debruçarem sobre a escola na do sistema escolar, capaz de tornar o
segundo os autores, são ainda o França, apresentam alguns princípios funcionamento mais aceitável e mais
coração da Sociologia da Educação de ação possíveis. harmonioso para os alunos e
atual, e cuja teoria da reprodução “Este livro gostaria de ser ao professores”. (p. 337).
pode aparecer como uma síntese mesmo tempo científico e Encerrando a obra, Dubet e
durante os anos setenta. Em seguida, “engajado”. Ele gostaria de dizer Martuccelli fazem um apelo à
com a emergência de um sentimento sobre a experiência dos atores da audácia dos educadores, no sentido
de crise profunda da escola, com o escola e descrever os mecanismos os de buscarem responder, mediante
declínio dos contra-modelos mais sutis. Mas não se pode uma política educacional, os desafios
revolucionários, a Sociologia da consagrar tantos esforços, ter que as transformações sociais
Educação — afirmam os autores — encontrado tantos alunos e propõem, não se fechando em uma
diversificou-se e freqüentemente faz professores, ter conhecido tanto as nostalgia paralisante. (p. 346).
de si a “especialista” dos problemas alegrias e os sofrimentos e evitar Enfim, pelo que foi possível
da escola. O último capítulo volta-se todo julgamento”. (p. 18). abordar, nos limites deste texto,
para a reflexão de fenômenos Repassando as análises esperamos haver comunicado a
próprios desses três períodos, desenvolvidas em torno das três importância desse livro para
partindo da análise do “sistema”, e experiências escolares — na escola profissionais da Educação, bem
pretendendo penetrar na “caixa elementar, no colégio e no liceu — como para psicólogos e sociólogos
preta” da escola. diferentes fenômenos são apontados, envolvidos com a escola e
“Um tipo de atenuação opera- o que reforça a idéia de que preocupados com o tema da
se. O abandono das ilusões da “(...) para compreender o que adolescência e de juventude. A
paideia funcionalista e o a escola fabrica, não basta estudar os análise da experiência escolar de um
distanciamento dos encantamentos programas, os papéis e os métodos grupo de crianças, adolescentes e
da postura crítica traduzem-se na de trabalho, é necessário também jovens trouxe elementos férteis, que
proliferação de estudos visando detectar a maneira como os alunos abrem portas a futuras pesquisas
testar a democracia real da escola” constroem sua experiência, como com desdobramentos temáticos.
(pp. 320 e 321). eles “fabricam” relações, estratégias,
Partindo da análise da significações por meio das quais eles Maria Amélia G. C. Giovanetti
experiência escolar dos atores e de se constituem em si mesmos”. (p. 14). Universidade Federal de Minas Gerais
sua subjetividade, a sociologia da Se na escola elementar se

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Resenhas

riquenhos em Nova York e Boston. treze estavam situadas em Los


SÁNCHEZ-JANKOWSKI, Martín. Ao fazê-lo pode perceber que entre a Angeles, vinte na área de Nova York
Islands in the Street: Gangs juventude pesquisada havia uma e quatro eram de Boston. Dentre as
and American Urban Society. grande quantidade envolvida em etnias representadas estavam
Berkeley: University of gangues em todos os grupos étnicos. irlandeses, afro-americanos, porto-
California Press. 1991. Ocorreu-lhe então que, caso ele riquenhos, mexicanos, dominicanos,
quisesse entender sociologicamente jamaicanos e centro-americanos. O
as comunidades de baixa renda, seria número de membros da gangue
O livro de Jankowski oferece necessário entender porque o também variava: as menores tinham
uma visão clara sobre gangues e sua fenômeno das gangues persistia nos cerca de trinta e quatro membros
situação no interior de uma Estados Unidos. por mais de cem sendo que as maiores contavam com
sociedade urbana como a dos anos. Essas observações mais de mil. O autor conviveu com
Estados Unidos. Sua pesquisa é encaminharam-no para o esses jovens, suas famílias e
dinâmica, partindo da vivência desenvolvimento do projeto de comunidades, participando de suas
dentro das próprias organizações e pesquisa que o levou a interagir com reuniões e envolvendo-se em
um trabalho de campo paciente, esses grupos num extenso período de atividades e até em brigas. Apenas
detalhado e cientificamente tempo. ficou acertado que ele não se
embasado. Através dele pode-se Historicamente o termo envolveria com drogas e
repensar o sujeito da pesquisa, o gangue sempre teve uma conotação procedimentos ilegais. Obviamente,
jovem das classes desfavorecidas, negativa. Nos Estados Unidos, desde foi necessário usar tais recursos para
desmistificando a imagem que se faz o século dezenove havia certos maior veracidade na coleta de dados.
das gangues, apresentando seus grupos no oeste sem lei que atuavam Houve, também, a
elementos como seres humanos e roubando diligências, bancos, minas colaboração de pessoas que
não criaturas dignas de pena ou que e ‘saloons’. Eram considerados foras- mantinham contato com gangues em
causam medo. da-lei e um problema social, níveis variados tais como familiares,
Islands in the Street traz uma econômico e moral. Estas gangues líderes de comunidades, políticos,
profunda análise sociológica e entraram para a mitologia dos fora- burocráticos do governo, oficiais da
interpretativa dos motivos que levam da-lei. mas o séc. XX trouxe uma força policial, representantes da
os jovens a entrar nas gangues e nova configuração socioeconômica mídia e pessoas que mantinham
porque são por elas aceitos, como se com a chegada de milhões de algum tipo de negócio com membros
organiza, como se relacionam com trabalhadores imigrantes. As de gangues. Os métodos usados
as comunidades onde vivem, com a dificuldades que surgiram com o envolveram, além da observação
força policial e com os meios de enorme contingente que chegava ao participante, uma reflexão sobre os
comunicação. Martín Jankowsky país, posteriormente agravadas pela padrões de ação de cada grupo, bem
empregou dez anos e cinco meses Grande Depressão Econômica, como a análise dos depoimentos
neste projeto de pesquisa e inicia o quando o crime organizado instalou- pessoais dos envolvidos. Uma das
prefácio dizendo que o termo se e os grupos que o compunham estratégia importantes era obter a
“gang” no Webster’s New American eram chamados gangues. No entanto opinião e o ‘feeling’ dos membros
Dictionary tem como um de seus aqueles agrupamentos de adultos que participavam de uma ação antes,
significados o termo “journey”, diferiam dos grupos compostos por durante e depois de cada evento. Os
jornada. E compara o período de jovens estudados por Jankowski. registros foram feitos tanto por
tempo que usou para a pesquisa Sua pesquisa procura analisar escrito como por gravações. O
como uma longa jornada pelas a gangue como uma organização e o tempo gasto com cada gangue
comunidades urbanas às quais os fenômeno da gangue em geral. Para variava de acordo com os eventos
grupos estudados pertenciam. isso Jankowski acreditou ser que cada uma delas vivenciava, cuja
O estudo originou-se de uma necessário conduzir um estudo importância ou relevância eram
pesquisa feita pelo autor sobre a comparativo. Dessa forma seria avaliadas no momento
atitude política dos jovens possível entender o que havia em imediatamente após serem vividos.
mexicanos na década de 70. Naquela comum e o que era particular a cada Essa flexibilidade, aliada ao
época ele quis comparar os gangue. A amostra estudada embasamento teórico que Jonkowski
resultados com amostras de porto- consistia em 37 gangues, sendo que aplicou ao seu trabalho, lhe confere

Revista Brasileira de Educação 239


Resenhas

um enfoque abrangente não ao modo como o indivíduo decide explora quais as maneiras em que a
encontrado em pesquisas anteriores. ingressar na gangue e como esta o política e as agências governamentais
Também imprimiu a elas um caráter recruta. O capítulo 3 levanta a afetam o modo como as gangues
interativo que fez com que os questão que tem intrigado os operam. A análise então se volta
próprios membros das gangues o pesquisadores e o público em geral: para uma das questões que causa
considerassem um igual e o que acontece numa gangue? maior perplexidade diante da
esquecessem estar tratando com um Apontando para este tema produz sociedade americana: por que o
acadêmico, fator benéfico para tal uma descrição da dinâmica interna sistema de justiça criminal não tem
interação. Jankowski acabou sendo das gangues, tanto como se tido capacidade de erradicar gangues
aceito como o pesquisador que organizam, suas funções, quanto e ou controlá-las? O capítulo 8 prova
estava com eles e isso era um fato quais fatores influenciam as a interação entre as gangues e o
normal. Havia respeito e organizações a se comportar de sistema de justiça criminal de forma
entendimento mútuo. Ele relata, determinadas maneiras. O capítulo 4 a entender seu impacto nas
também, que, contrariamente às suas identifica como a organização se operações das gangues.
expectativas, as pessoas mantém e examina tanto o tipo de O capítulo 9 lida com o
entrevistadas que interagiam noutros atividade econômica em que os contínuo debate sobre se a mídia tem
níveis com as gangues também se membros da gangue se envolvem ajudado a informar o público sobre
mostraram acessíveis. A introdução quanto os fatores a influenciar o a natureza das gangues e o problema
do livro relata como se travou todo sucesso ou o fracasso dessa social ligado a elas, ou tem
o contato e seu desenvolvimento, atividade. exagerado sobre o assunto todo.
explicando quais as variáveis A violência da gangue — Uma atenção particular é devotada à
consideradas. tópico que tem ocupado a atenção análise de como as gangues e a mídia
O conteúdo estudado pública, em parte pelo enfoque dado se relacionam e avalia os efeitos
desenvolve-se ao longo de oito pela mídia — é assunto do capítulo desta última sobre as formas como
capítulos, numa linguagem leve que 5. Trata-se de uma análise da as gangues venham a conduzi seus
não esquece o rigor científico. No sociologia da violência das gangues, negócios.
primeiro capítulo inicia um enfoque que busca determinar a A conclusão faz algumas
apresentando uma teria sobre natureza e as causas da violência, e colocações finais sobre as gangues
gangues, oferecendo uma breve como os indivíduos e a organização em si e sua natureza dentro da
definição do fenômeno, teorizando como um todo compactua com isso. sociedade americana. Ao fazê-lo, o
sobre quais fatores afetam o O capítulo 6, que encerra a autor tenta esclarecer os dilemas e
comportamento das gangues primeira parte, examina a relação dificuldades que estas apresentam à
enquanto organizações; porque entre as gangues e as suas sociedade.
certas gangues persistem e comunidades locais. A questão Algumas observações feitas
sobrevivem enquanto outras central remete-se ao papel, se há por Jankowski são particularmente
declinam o morrem. Finalmente algum, que a comunidade representa importantes. Pode-se ressaltar os
examina porque gangues como um na forma em que a gangue opera. As diferentes tipos de organização
fenômeno têm sido capazes de comunidades vêem as gangues como dentro da gangue, os quais ela
persistir ao longo do tempo na tão perigosas e destrutivas que denomina modelo vertical-
sociedade urbana americana. deveriam ser erradicadas? Elas vêem hierárquico, modelo horizontal-
Os capítulos seguintes os participantes como indivíduos comissional e por último, o modelo
apresentam dados de como os incompreendidos, legítimos influencional. Cada um deles é
elementos avançados na teoria se membros da comunidade que devem estudado de forma a determinar qual
aplicam à vida diária. Os cinco ser defendidos dos abusos dos é mais eficiente na manutenção do
capítulos da parta I enfocam a policiais e do ataque da mídia? Ou grupo, sua organização e atividades.
dinâmica interna da gangue no seu elas simplesmente não pensam nada As tradições étnicas são
ambiente local. O capítulo 2 começa a respeito das gangues? consideradas na medida que
a investigação, endereçando a Na parte II, Jankowski vai da influenciam comportamentos muito
questão mais fundamental: quem dinâmica interna das gangues seu particulares de cada uma das etnias,
entra para uma gangue e por que? meio às suas relações com o mundo especialmente dos grupos irlandeses
Há uma atenção particular dirigida fora da comunidade. O capítulo 7 e mexicanos.

240 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Resenhas

Finalmente, examina a questão resultou em um capítulo da coleção. vezes, no mesmo espaço, com o
da mídia e sua relação com as Em outras palavras, apesar dos passar do tempo. É impossível não
gangues. A atenção que a TV, subtítulos: “Da antigüidade à Era notar que o social se sobrepõe ao
jornais e filmes chamam para as moderna” (primeiro volume, 8 biológico.
gangues traz vantagens e capítulos, 372 páginas) e, “A época Para os organizadores da obra,
desvantagens. Mas é particularmente contemporânea” (segundo volume, 9 a juventude pode ser entendida
prejudicial a visão estereotipada capítulos, 382 páginas), “História como um conjunto de problemas que
trazida especialmente por programas dos Jovens” não é uma obra de se colocam para um indivíduo entre
sensacionalistas e filmes caráter macro-histórico. Mais ainda, uma primeira fase de separação e a
preconceituosos, onde aqueles que os organizadores incentivaram a fase final de agregação do processo
não são brancos e pertencem a apresentação de modelos de socialização. Os estudos
população de baixa-renda carregam interpretativos múltiplos, o que descrevem as complexas relações
automaticamente o estigma da segundo eles, evitaria síntese sociais concretas que o grupo neste
imoralidade e da corrupção de uniformizadora e até redutiva do estágio do processo pode manter
costumes. Essa colocação, entre problema. No entanto, essa com a comunidade ou sociedade
outras, faz do estudo de Martín organização da obra não deve nos mais ampla. Relações, essas, que
Sánchez-Jankowski uma obra levar a vê-la como mera coletânea de podem ser marcadas por
indispensável àqueles que se dedicam textos autônomos sobre um mesmo solidariedade e/ou conflito. Lendo os
à pesquisa nesta área. tema. É possível encontrar ao longo estudos podemos nos deparar com
da leitura dos dois volumes certa circunstâncias de vida dos jovens
Rosely Aparecida Romanelli unidade de procedimentos de muito familiares e outras
Mestranda - Faculdade de Educação, trabalho privilegiados pelos absolutamente diversas daquelas que
Universidade de São Paulo pesquisadores e uma tentativa mais conhecemos. Podemos, ainda,
ou menos constante responder à acompanhar o esforço dos
questões que serão apresentadas a historiadores para delimitar a
seguir. condição do grupo de jovens
LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-
O título escolhido para a cobertos pelo corpo documental, já
Claude (Orgs.). História dos
coleção já sugere o desafio lançado a que, na maioria dos casos, a
Jovens. São Paulo:
cada participante da coleção: condição verificada não pode ser
Companhia das Letras, 1996.
escrever uma história dos jovens, estendida a todo o grupo e para
2 v. Tradução de Cláudio
não da juventude. A preocupação, longos períodos. Afinal, a condição
Marcondes, Nilson Moulin,
neste caso, foi a de descartar as do jovem que está no campo não é a
Paulo Neves, Maria Lúcia
“imagens fortes” que em nossa mesma daquele que está na cidade;
Machado.
sociedade conotam o termo ou, a condição dos jovens que
“juventude”. O primeiro objetivo de pertencem a sexo ou classe social
cada estudo foi o de desvendar a diversas podem variar
Uma geração não pode sujeitar construção social e simbólica que profundamente dentro de uma
às próprias leis as gerações futuras diferentes sociedades, em diferentes mesma sociedade e período
Artigo 28, Declaração dos épocas, tecerem dando corpo a idéia determinados. Para o leitor, refletir
Direitos do Homem, 1793 de juventude. Por isso, quase todos sobre tais circunstâncias pode
os capítulos se iniciaram por uma revelar-se um um exercício agradável
“História dos jovens” é uma definição do termo específica para o e útil de desmonte de certos
coleção composta a partir da período estudado. Isso é alcançado preconceitos. Pode, também, sugerir
colaboração de diversos através da análise de documentação outras categorias ou enfoques para a
historiadores europeus do campo da jurídica, ou, estudando práticas pensarmos a temática da juventude
história social. Cada colaborador sociais que envolviam os nos nossos dias.
desenvolveu uma periodização personagens nesta faixa etária que Os estudos têm ainda em
interna e específica para a delimitamos como juvenil. Os comum a preocupação de buscar
compreensão do jovem na sociedade estudos mostram que as idades que modos de pensar, representações ou
e tempo referente ao seu tema de delimitam o fim e o início da imagens que as sociedades ou os
estudo. Cada estudo, por fim, juventude variam com espaço e às próprios jovens construíram sobre si.

Revista Brasileira de Educação 241


Resenhas

Lendo a coleção de uma maneira “progressivamente sugeriram formas são relatadas ao longo dos dois
não autorizada, percebi que pode ser orgânicas de socialização e controle: volumes da “História dos Jovens”,
datada a questão tão atual da desde a escola, em que as idades são temos a impressão de que podemos
continuidade/descontinuidade entre sempre identificadas com mais olhar nossos problemas com mais
as gerações. Ao longo dos capítulos precisão, até o exército e o sistema tranqüilidade. Nem sempre as
referentes a Grécia clássica até jurídico” (p. 13). A afirmação que “crises” têm o caráter apocalíptico
Reforma protestante, apresentados serviu de epígrafe para essa resenha que pretendem os seus divulgadores.
no primeiro volume, a preocupação não seria concebível um século antes Como sugerem os organizadores da
das sociedades era claramente o de na Europa, mesmo entre aqueles que coleção, para compreensão do
preparar e garantir adesão dos viam a rebeldia como um traço enígma da juventude em nossa
jovens aos valores e padrões inerente à juventude. Os jovens sociedade, talvez tenhamos que nos
políticos e sociais vigentes. No começam a ser representados a partir deparar, como fizeram os
mundo clássico a vida do jovem era das rebeliões liberais juvenis do historiadores nestes estudos, com a
marcada por um conjunto de século XIX como sujeitos naturais, nossa sociedade como um todo. Ou
práticas rituais e formativos potencialmente livres das dominação seja, com “elementos de
asseguravam assimilação dos dos padrões da história da sua desagregação associados a períodos
modelos necessários para a época. Sujeitos que, como agentes da de mudanças, os elementos de
perpetuação da vida civil. É também história, poderiam fazer reascender o conflito e as resistências inseridos
bastante ritualizada a vida do jovem desejo, a natureza, a verdade, numa nos processos de integração e
das camadas privilegiadas durante a época corrompida. O projeto reprodução social”(p. 12, vol. 1).
Idade Média. A juventude inspirava jacobino, expresso particularmente
medo e desconfiança, estava na Convenção de 1792 na França, Guia de leitura
associada a fraqueza de espírito e a pretendeu criar através da escola, Volume 1
desordem. Mas, através do belo e uma geração com padrões de Alain Schanapp defende em
penoso caminho até tornar-se um pensamento e comportamento seu capítulo “A imagem dos jovens
cavaleiro, o jovem vinculava-se a revolucionários. Essa crença, na cidade grega” que a continuidade
defesa e manutenção das instituições. bastante arraigada ao projeto de (ou reprodução) da sociedade grega
Os jovens das camadas privilegiadas liberdade e igualdade até os nossos esteve fundada na paidéia, um
na Idade Moderna européia ora dias, foi, também, a idéia força do sistema de tradições, instituições e
tinham seus destinos conduzidos fascismo e do nazismo, movimentos práticas rituais que formavam o
pela manutenção das linhagens e políticos autoritários, como futuro cidadão. Essa paidéia, mostra
patrimônio da família. Esse é o caso mostrarão os três últimos estudos o relato, foi sendo configurada e
tanto daqueles que tiveram seus que compõe o segundo volume. É construídas desde a época arcaica
casamentos arranjados, como muito recente na história ocidental a até o período clássico. O autor
daqueles que por decisão paterna instituição de uma “subcultura” mostra que a idéia de agrupamento
foram conduzidos aos conventos. própria de uma geração. Foi só a por classe etária, organização
Quando são descritas as partir dos anos 50, nos Estados praticada originalmente em Creta foi
“vagabundagens juvenis noturnas”, Unidos que, como mostrou o mantida ao longo da história das
tão freqüentes a partir de 1550 nas capítulo assinado por Luisa cidades-estado. O autor relata o
comunas e cidades, elas quase Passerini, conhecemos grupos de funcionamento e o significado da
sempre podem ser entendidas como jovens apartados do mundo dos prática da ginástica, da caça, o
desordens vinculadas e adultos. Foi também neste contexto serviço militar, a constituição do
compreendidas pelos adultos, apesar que os jovens passaram a estruturar companheirismo (solidariedade com
das constantes medidas repressivas. um vocabulário, gosto estético e os indivíduos da mesma faixa etária)
Essa regularidade tende a se inverter musical específicos. e as relações rituais entre adultos e
ao acompanharmos a descrição das A atual constância de notícias jovens (pederastia-philia), práticas
relações estabelecidas pelos jovens e trágicas envolvendo jovens imprensa rituais que asseguraram modelos de
adultos ao longo do segundo brasileira e mundial, têm bem viver e do estilo necessário para
volume. insistentemente sugerido a idéia de viver civilmente.
No prefácio, os organizadores “crise”. Quando comparada às O capítulo “O mundo
afirmaram que os Estados modernos inúmeras e diferentes “crises” que romano” assinado por Augusto

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Resenhas

Fraschetti nos mostra a difícil ligações do bacharel (aspirante de nos livros) produzidas na Europa do
trajetória de jovem da nobreza cavaleiro) com o seu senhor. A século XIV e XV, os jovens nas raras
romana até o ingresso definitivo na autora defenderá que a busca do vezes que foram representados,
vida autônoma. A partir dos 15/16 jovem por um destino heróico, que ocupam as margens ou o segundo
anos os jovens abandonavam em no plano simbólico era a busca plano da representação. A cor verde,
meio a uma cerimonial doméstico os exemplar da morte, possível geralmente associada à
emblemas da infância e adotavam a esteticamente bela, estava vinculado licenciosidade, desordem,
“toga viril”. Desde então, podiam a defesa das instituções e a inconstância, doença; e, também, a
acompanhar os negócios públicos e sobrevivência do próprio grupo esperança e sorte, aparece era
jurídicos, mas como “aprendizes”. social dominante. “Uma flor do mal: também a cor mais utilizada na
Essa aprendizagem deveria durar até os jovens na Itália medieval (séculos representação da juventude.
os 28/ 30 anos quando, segundo os XIII-XV)” assinado por Elisabeth Depois de apresentar
legisladores romanos, terminaria a Crouset-Pavan apresenta o documentos que indicam a
adolescência e se iniciaria a conflituoso processo de integração/ concepção que a época moderna
juventude, que se estendia até os 45/ marginalização do jovem do sexo construiu sobre os jovens, Norbert
50 anos. O autor, através da masculino das elites nas cidades- Schindler em “Os tutores da
descrição de rituais e instituições estado italianas. Apesar dos desordem: rituais da cultura juvenil
tipicamente romana procura nos inúmeros rituais instituídos com o nos primórdios da era moderna”
apresentar o conteúdo simbólico que objetivo de induzir os jovens a partir analisa decretos comunais contra os
a juventude tinha para os romanos. dos 18 anos, na defesa e participação tumultos noturnos praticados por
Elliott Horowitiz nos política nas cidades, o estudo das jovens do sexo masculino, que
apresentará “Os diversos mundos da atas das reuniões dos conselhos de tornam-se muitíssimo freqüentes a
juventude judaica na Europa: 1300- governo deixa transparecer o medo e partir de 1550, período da Reforma.
1800”. Seu estudo se desenvolveu a ameaça que este grupo As “vagabundagens noturnas”
através do estudo de textos de representava para a elite governante. parecem ser fruto da resistência de
filósofos, poetas e sobretudo, leis e Deve-se ressaltar que esse jovem, uma nova moral que tentava se
práticas defendidas pelos rabinos. chamado a participar da vida impor, e poucas vezes, parece ter
Podemos acompanhar o processo de política e social da cidade, vivia sido tratado como um conflito
implantação da educação para os quase sempre uma total dependência geracional. O autor vai tentando
jovens das comunidades judaicas, em relação ao pai, não só chefe da acompanhar nos debates das
que ao longo dos séculos estudados família, como chefe do negócio da autoridades comunais o “consenso
tendeu a estender sua família. Os grandes pregadores do tácito” que se estabelecia entre os
compulsoriedade para além dos período, mostra a autora, também jovens e adultos nestes rituais de
filhos das famílias mais abastardas, denunciam o perígo da confronto.
como tendeu a ampliar o tempo de juventude.Defendiam que, antes dos A partir da segunda metade do
duração obrigatória. Trata ainda das 40 anos “o jovem” estava sujeito à século XVI, na França e na Itália,
jovens de famílias pobres que se fragilidade do corpo e da alma, mais da metade dos homens em
empregavam como domésticas e dos portanto, deveriam ser controlados e idade adulta não se casa. Na
processos de casamento. governados. São inúmeros e graves Inglaterra, no final do século XVII e
Através da literatura européia os conflitos e tentativas de início do XVIII, esse fenômeno
do século XI ao XVI, Christiane administrá-los, relatados neste atinge mais de um terço dos homens
Machello-Nizia apresentará a estudo. O capítulo seguinte, “Os em idade adulta. As cifras não são
construção de valores e emblemas da juventude: os atributos muito diferentes para as mulheres.
representações que marcaram e representações dos jovens na Renata Ago, em “Jovens nobres na
profundamente o jovem palaciano imagem medieval” escrito por Era do absolutismo: autoritarismo
da Idade Média européia: aventura, Michel Pastoureau, será a último paterno e liberdade” discutiu o
generosidade, lealdade contratual, estudo a tratar desse período. Nele resultado das políticas familiares que
elegância de maneiras e de coração. se confirma a posição marginal do instaurou um mundo repleto de
“Cavalaria e Cortesia” descreve jovem no conjunto das conventos, onde eram encerrados
ainda o processo de adouber representações do mundo medieval. jovens sem nenhuma escolha pessoal
(ordenação do cavaleiro) e as íntimas Nas miniaturas (imagens inserida ou vocação. A autora discutiu ainda,

Revista Brasileira de Educação 243


Resenhas

a concepção pedagógica podia passar pela alfabetização, pela dos mortos, reconstruindo
renascentista que atribuiu aos pais a superação dos regionalismos e ritualmente a memória da aldeia e da
responsabilidade última pela integração na nacionalidade; e, por nação.
felicidade e escolhas dos filhos, que fim, por uma concepção mais “A juventude operária: da
nem sempre como ela tentará duradoura no imaginário coletivo de oficina à fábrica”, capítulo assinado
mostrar, poderá ser explicada por virilidade e masculinidade. Sintetiza por Michelle Perrot, é longo e denso.
uma simples oposição autoritário/ a autora: entre 1618 a 1763 a A autora trabalhou principalmente
liberal. França combateu durante 73 anos, a sobre dois tipos de fontes primárias:
Volume 2 Áustria, 92 anos, as Províncias os relatórios das juntas médicas que
“Imagens da juventude na era Unidas 62 anos, a Espanha 82, a atestam, ao longo do século XIX,
moderna” assinado por Giovani Inglaterra apenas 45. Seguiram-se a não só a dispensa militar e o flagelo
Romano é um capítulo curto que essas guerras profissionais outro da pobreza e do trabalho precoce
trata dos pintores e pinturas que século de guerras revolucionárias. sobre a saúde dos filhos dos
retratam os jovens no período Lembrar esse contexto basta para operários; e, autobiografias de
indicado no título. justificar a importância do tema. operários. Em relação ao jovem
“A guerra tem traços juvenis” Daniel Fabre descreverá a operário, temia-se a vagabundagem,
é a frase de abertura do capítulo festa-ritual tradicional que ocorria a libertinagem e seu espírito
escrito por Sabrina Loriga, que em uma aldeia camponesa na contestador e, por isso, defendia-se a
descreve por um lado o processo de Montanha Negra languedociana. necessidade de salvar a juventude.
instalação da prestação de serviço Seus dados decorrem da observação Para concretizar essas
militar obrigatório na Europa a ou da memória dos antigos representações, a autora trata das
partir do século XVIII, do outro moradores da região, o que cobre os três imagens emblemáticas
lado o capítulo tenta dar conta de anos 60 para cá. Mas a sua questão produzidas sobre os jovens operários
apresentar, como indica o título, “A é a de operar dentro de uma análise na França do século XIX: o
experiência militar”. A partir de regressiva. Ou seja, procurar o aprendiz, o apache e a grisette.. A
1798 na França, a convocação sentido constitutivo da própria autora mostra as transformações que
prendia o jovem dos 20 aos 26 anos juventude contido neste tipo de a própria delimitação da faixa etária
para o serviço de defesa da nação. festa-ritual, tradição que remonta ao sofreu no período. O atestado de
Isso representou um Antigo Regime, quando elas eram primeira comunhão foi, por muito
“envelhecimento” das fileiras dos bastante comum em todas as aldeias tempo, o documento exigido dos
soldados que podiam começar a e cidades européias. O tradutor pais para o ingresso da criança no
servir, já que no século anterior, era avisa-nos numa nota de rodapé que mundo do trabalho e o casamento,
comum o ingresso no exército a o título do original francês tanto rito que acontecia entre os 28/25
partir dos 15, 16 anos. Muitos dos pode ser traduzido, como ele o fez, anos para os homens, 26/24 anos
jovens convocados precisavam por “Ser jovem na aldeia” como para as mulheres operárias, o marco
deixar um vínculo de trabalho “construir-se jovem na aldeia. Essa para o ingresso na vida adulta. A
familiar ou mesmo em uma oficina. ambigüidade parecer ser a própria instituição do ensino obrigatório e
A autora relata uma série de formas hipótese do autor. Além de nos gratuito na França, em 1882, levou a
de resistência à convocação: proporcionar um relato muito substituição do atestado religioso
casamentos foram antecipados, agradável e divertido, o autor pelo diploma escolar. A carteira de
doenças foram simuladas e até coloca-nos questões muito registro de trabalho obrigatória para
mutilações foram preferidas à interessantes sobre os conflitos e todos os menores, instituiu, depois
prestação compulsória do serviço solidariedades que se estabeleciam de idas e vindas, os 18 anos como
militar. E se a maioria dos soldados tradicionalmente entre as gerações. marco da maioridade. A autora
eram do sexo masculino, a autora E, mais, sobre uma certa pedagogia discute ainda a complexa relação
lembra que, até o início do século que se escondia sob a forma desses família-fábrica e jovem. Mostra um
XIX, a mulher participava rituais. Em três dias de festa conjunto de tramas que vão
normalmente da vida dos ocorriam missas, bailes, refeições em libertando o jovem da opressiva
acampamento militares. Para esses comuns, namoros, farças juvenis que condição de filho-operário de uma
jovens a experiência militar varavam a madrugada, e até, idas ao oficina-família, para uma situação de
representou uma aprendizagem que cemitério ligando a vida dos vivos e família patriarcal transmissora de

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um conhecimento profissional, até, a na Convenção de 1792, pretendeu subjetivista e voluntarista de fazer


generalização da individuação do criar através da escola, uma geração política que a historiografia
assalariado, tão aspirada pelos com padrões de pensamento e socialista e acadêmica francesa,
jovens, mas tão cheia de comportamento revolucionários. De divulgou ao analisar a Revolução
conseqüências sociais e culturais. Há fato, esse projeto demorou para se Francesa. O autor terminou o artigo
um destaque especial para a questão realizar. Para o autor, que concorda se reportando aos ecos destas
da aprendizagem profissional, para a com Ariès, ele só pode ser concepções entre os populistas
legislação trabalhista e enfim, para a considerado totalmente implantado, russos e na trajetória intelectual de
condição feminina nas fábricas e/ ou na França, na segunda metade do Lenin.
oficinas-ateliês mantidas por damas século XX. Vale a pena acompanhar Laura Malvano em “O mito
de caridade e religiosas. esse penoso processo de da juventude transmitido pela
Como estudar a experiência implantação, lendo esse estudo. imagem: o fascismo italiano”
dos jovens nos colégios e liceus se “Jovens rebeldes e analisou a vasta documentação
raramente esses nos deixaram fontes revolucionários: 1789-1917” escrito iconográfica encontradas nas bienais
escritas? Ou podemos considerar por Sérgio Luzzanatto é um capítulo dirigidas pelo Sindicato Fascista das
seus trabalhos escolares, produzidos arrebatador. Extremamente erudito é Belas Artes. Mostra que essa arte
sob a observação e vigilância dos mais ainda, provocativo. No século dirigida por ideais políticos foi
severos mestres um documento XIX, defende o autor, “a juventude impondo símbolos que indicavam
confiável? Para escrever “Os jovens deixou de existir, mas hipertrofiou o um estilo de vida fascista, o modo de
na escola: alunos de colégios e liceus imaginário” Defende ainda que o vida de conceber a vida. Ela
na França e na Europa (fim so jacobinismo criou a própria substituiu o “look” juvenil
século XVIII ao fim do XIX)” Jean- concepção de geração ao confiar o inconformista composto por caveiras
Claude Caron estudou documentos sucesso da Revolução aos jovens e à com punhal entre os dentes dos
deixados por mestres, diretores, sólida formação cívica e nacional primeiros anos, por imagens mais
pedagogos e, pelas memórias que que lhes seria incutida através da respeitáveis e tranqüilas. A autora
políticos e romancistas registraram escola leiga e gratuita. Descreve analisa a força simbólica de imagens
em suas obras. Para entender a vida ainda os conflitos criados por um como “Mamma Itália” e de seus
de um estudante nos colégios e liceus projeto que depositava nos jovens filhos jovens, saudáveis esportistas.
no século XIX, é preciso reconstituir, toda a esperança mas que permitia a Indica a insistência da ideologia
mostra o autor, rotina violenta que plena participação política somente fascista na representação do povo
impunham. Quase sempre o jovem aqueles que ultrapassassem os como um jovem viril e na enfática
era um interno que lamentava o quarenta anos. Trata ainda do propaganda de famílias numerosas,
afastamento da família, e, que drama daqueles que, imbuídos dos modelo de família rural imposto a
passava em média onze horas em ética e do heroísmo dos tempos todo conjunto da sociedade. Analisa
posição sentada em uma postura que revolucionários, sobreviveram à ainda as ilustrações dos inúmeros
teoricamente era silenciosa. O autor revolução e acabaram amargurados periódicos que veiculavam idéias
descreveu através dos testemunhos acusando aqueles que sendo fascistas, criando imagens fortes. Um
da época, as péssimas condições dos cronologicamente jovens, exemplo tratado é o balilla, menino
prédios, a debilidade no preparo dos partilhavam do velho espírito não fardado que enfrentou um soldado
professores e dos conteúdos revolucionário. Mas o autor mostra austríaco. A situação das jovens
ministrados. A experiência dos que se em 1848 a juventude francesa também aparece neste estudo,
jovem pode ser captada sobretudo, demostrava uma profunda através do mesmo recurso. Essa
nas longas e constantes descrições de indiferença à participação política, a exaltação do jovem concreto se
conflitos entre alunos e seus juventude de outro países europeus transforma numa exaltação do Dulce
professores e administradores continuava sacrificando suas vidas considerado, o mais jovem de todos
escolares. O principal mérito do pelos projetos dos velhos, e quase os jovens, símbolo dos símbolos.
artigo é o de traçar uma cronologia sempre exilados revolucionários. O Pouco a pouco, a ideologia fascista
que delimitará qualitativamente a autor passará pela criação do “estilo vai enveredando para uma apologia
função social e política da instituição bohemien” que marcará a juventude daqueles que têm idéias jovens, e a
escolar na França. O projeto no período da Comuna, e pela sua derrota como lembrará o estudo
jacobino, expresso particularmente consolidação de uma visão deixará um entulho mental que

Revista Brasileira de Educação 245


Resenhas

pesará sobre as gerações Era preciso lutar para acabar com “o constituição da idéia e do campo de
cronologicamente jovens após a que havia de judeu dentro de cada estudos que tenta revelar o que era o
derrota do fascismo. um”. Corresponder a vontade do adolescente (teenager) e seus
A partir dos 10 anos o jovem Fürer, obedecer implicava na problemas. Ela sintetiza os estudos
alemão era convocado a tornar-se autoprodução de gestos, trajes, mais significativos desenvolvidos por
um soldado do Reich. De acordo cantos, slogans, etc. psicólogos, sociólogos e até
com o depoimento de Erika Mann, Aproximadamente 40% da jornalistas que deram corpo a atual
citado por Eric Michaud, pertencer a juventude alemã esteve alheia a concepção de adolescência. Seguindo
juventude na Alemanha nazista imposição de ingresso nas HJ. Os as próprias pistas oferecidas por esse
poderia implicar em fazer a poucos jovens que resistiram debate, a autora descreveu a
saudação hitlerista de 50 a 150 vezes abertamente e que no período experiência do jovem americano no
num só dia. O projeto nazista, preferiram o jazz ou o swing, e as período. A parte das relações com
colocou em segundo plano a família vestimentas inglesas, também foram pais e professores esses jovens
e a escola como meios de formação alvo de perseguição do Estado que se criaram uma sub-cultura onde
para os jovens. O Estado assumiu quis jovem. tornaram-se referentes de si
esse papel de maneira direta através “A juventude, metáfora da próprios. Isso só foi possível a partir
do controle do Partido sobre as HJ, mudança social. Dois debates sobre da generalização e prolongamento
unidades da juventude hitlerista. A os jovens na Itália fascista e so da vida escolar. A high school criou
partir de 1932 integrar uma HJ Estados Unidos da década de 50” espaços de convivência que cobriram
implicava para o participante assinado por Luisa Passerini, tentará o dia a dia do jovem de uma
pequenos privilégios, e, parece que a mostrar as semelhanças ideológicas maneira totalmente apartada do
atração que elas exerciam vinha que poderemos encontrar em dois mundo adulto. Neste ítem a autora
justamente do fato de propiciar uma contexto tão diferentes. O leitor não tratou ainda das diferença que
certa liberdade para o jovem, frente encontrará um trabalho comparativo marcavam os jovens do sexo
a forte opressão que esses sentiam propriamente dito; acho que as masculino e feminino nestes
em relação a família e escola. A semelhanças, se existem de fato, não agrupamentos. Por fim, a autora
partir de 1935 a passagem pela HJ foram devidamente explicitadas apresentou uma interessante análise
tornou-se requisito necessário para o nesta apresentação. A leitura do da produção cinematográfica que,
ingresso nas universidades e em capítulo vale pela excelente síntese nos anos 50, teve o jovem e seus
certas profissões liberais. O estudo que a autora faz da condição juvenil problemas como tema e esse mesmo
apresenta as características em cada um desses dois períodos e grupo como público consumidor.
específicas que revestiam as BDM, contextos abordados. A autora São nestes filmes que se institui pela
associações similares para as jovens. defenderá que o fascismo, primeira vez na história, uma
Mas tese do artigo “Soldados de alimentando-se do problema da estética que diferencia o jovem do
uma idéia: os jovens do Terceiro reintegração ex-combatentes com o adulto. Produção que apresentará, o
Reich” ultrapassa os limites da fim da Primeira Guerra, (não por jovem como o restaurador de uma
apresentação da condição da acaso, jovens), transformará o sociedade desordenada e sem rumo,
população que compreendemos problema político e social em algo bastante similar ao que foi
como jovem, porque ser jovem, de problema geracional. Após sua defendido pelo fascismo italiano em
acordo com a ideologia nazista era consolidação, o fascismo não mais anos anteriores.
sobretudo um comportamento. Para defendeu o jovem biológico, mas do
possuir ou manter uma alma jovem espírito jovem: inquieto, belicoso, Dirce Spedo Rodrigues
era preciso corresponder aos desejos arrojado, generoso, característico de Mestranda - Faculdade de Educação,
do Fürer. Um povo inteiro foi todo genuíno “faci”. A autora Universidade de São Paulo
infantilizado pelo Estado, que analisou também a produção
retirou toda a responsabilidade dos cinematográfica do período que
indivíduos sobre as suas vidas e representou de alguma forma a
exigiu, no lugar dela, obediência propaganda destes ideais. O estudo
cega. O estudo insiste no difícil sobre os jovens norte-americanos no
exercício praticado por cada alemão anos 50 foi organizado em três
que, neste contexto, aderiu ao Fürer. frentes. A autora apresenta a

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do rock no campo da música popular socialidade baseada na empatia. Dai


GUERREIRO, Goli. Retratos de brasileira a partir dos anos 60. a categoria “tribo”: uma forma de
uma Tribo Urbana: rock Inicialmente é discutida a agregação social determinado por
brasileiro. Salvador: Centro relação do rock com a problemática ambiências, sentimentos e emoções,
Editorial e Didático da da cultura, no caso a efervescência reunindo aqueles que pensam e
UFBA,1994. cultural dos anos 60. É uma forma sentem de maneira coincidente. Não
de compreender a música como uma há um projeto definido, o grupo é
dimensão presente na história movido pelo desejo de estar junto
“Retratos de uma tribo cultural da humanidade, num presente vivido coletivamente.
urbana” é um livro que trata do acompanhando as transformações A vida cotidiana das “tribos” é
rock brasileiro, sua história, sua do homem e da sociedade, caracterizada pela estética — o sentir
música e seus shows. Se inscreve expressando, de alguma forma, na em comum; pela ética — o laço
numa tendência que tem melodia e nas letras, a relação do coletivo e pelo costume — o resíduo
caracterizado os estudos sobre a indivíduo com seu mundo, no seu que fundamenta o estar junto. É esta
juventude nos últimos anos, tempo. Nesse sentido, o rock e sua a noção que vai orientar a análise
focalizando-a na sua dimensão expansão mundial é situado no dos rockers.
cultural, seus valores e contexto dos movimentos juvenis da O primeiro capítulo é uma
comportamentos. É toda uma década de 60, definidos como etnografia do show de rock. O
abordagem que ressalta a emergência “contracultura”. Este movimento é objeto de análise é o evento coletivo
de culturas juvenis visíveis numa fruto de um conjunto de fatores enquanto um ritual, onde um olhar
multiplicidade de estilos de vida, de sócio-culturais, entre eles a criação, panorâmico capta os movimentos
alguma forma vinculadas à música, pela cultura de massas, de uma dos corpos, os gestos, as relações
numa expressão típica da subcultura juvenil, com um mercado existentes, a emoção coletiva que
complexidade crescente do mundo próprio e uma consciência etária. O flui. Para a descrição etnográfica,
urbano. Mas diferente de grande campo da arte é o espaço Guerrreiro constrói um show
parte dos estudos existentes nesta privilegiado de representação do hipotético, escolhendo 3 bandas
área, o trabalho não tem como novo ideário, que manifesta-se numa (Paralamas do Sucesso, Legião
objeto grupos determinados ou postura crítica radical à sociedade Urbana e Titãs) que, entre outros
mesmo indivíduos na sua industrial, aos padrões de critérios, abarcariam o universo de
especificidade. Tematiza o rock e comportamento e valores vigentes. É estilos de rock no Brasil. Busca
seus shows, buscando ai um retrato nesse contexto que o rock’n’roll, mostrar que o show é manifestação
momentâneo do comportamento e expressão da geração “transviada” de um neotribalismo
visão de mundo de uma parcela dos anos 50, é reelaborado como o contemporâneo, um ritual moderno
significativa da juventude. principal veículo da revolta e que conjuga fragmentos de
O trabalho de Guerreiro, rebeldia da juventude. Uma nova movimentos arcaicos com a alta
originalmente uma dissertação de concepção de música, de estilo de tecnologia, fazendo dos seus
mestrado apresentada ao programa execução e de letras das canções participantes membros da “tribo”
de Antropologia Social da USP, selou um vínculo identitário que urbana rocker.
propõe-se a compreender o expandiu para todo o mundo. Mais Os diferentes momentos do
fenômeno do rock e resgatar o do que um estilo musical, tornou-se show, como a chegada ou a saída; a
universo cultural dos rockers no um fenômeno cultural. agregação das pessoas em grupos e
Brasil. Para isso desenvolve três tipos Em seguida a autora faz uma sua localização pelo espaço, cada um
de abordagens: caracterização da sociedade deles com significados e emoções
> etnográfica, descrevendo o contemporânea, utilizando o marco próprias; os rituais coletivos, como
show enquanto espaço de teórico de Michel Maffesoli. Para as “olas” ou o acender de isqueiros;
ritualização do rock; ele, o universo de valores na o desejo presente nos olhares e
> sócio-antropológica, fazendo sociedade atual constitui uma nova encontros casuais; a experiência tátil
uma análise interpretativa das “episteme”: a da pós-modernidade. dos corpos se roçando, numa espécie
canções e buscando compor o perfil Neste novo caldo de cultura, as de sexo grupal; a efervescência
sócio-cultural dos rockers no Brasil; relações sociais seriam caracterizadas manifesta na comunhão emocional
> histórica, discutindo o lugar por um “neotribalismo”, uma entre público e artista; a emoção

Revista Brasileira de Educação 247


Resenhas

partilhada do cantar e dançar juntos. Ao descrever e analisar os ser tanto uma metáfora quanto uma
São aspectos que fazem do show um diferentes momentos do show, a categoria, mas sim a sua precisão, de
espetáculo, “a forma como a cultura autora chama a atenção para a tal forma a descrever com maior
de massas se apresenta”. Neste complexidade, no plano real e clareza o fenômeno que se quer
sentido, tem uma dimensão de simbólico, de um evento tão presente estudar, não tomando como dado
negócio capitalista, de investimento no cotidiano da vida dos jovens. exatamente aquilo que é preciso
num mercado juvenil que é cada vez Entre outros aspectos, coloca-nos explicar.
mais uma fonte de lucros, numa diante da controvérsia a respeito da E é o que acontece em relação
configuração produzida pelos meios efetividade ou não da tendência de aos rockers. O leitor não sai
de comunicação de massa. A autora desencantamento do mundo presente totalmente convencido se estes
apenas pontua essa dimensão, o que na sociedade moderna e o constituem-se realmente como uma
deixa em suspenso a questão conseqüente processo de “tribo”, e, aqui, tanto no sentido
polêmica, e necessária, sobre o peso desritualização, numa atomização metafórico quanto categorial.
e o significado da indústria cultural individual no consumo de símbolos. Guerreiro afirma que o show é o
na produção de comportamentos e Na sua especificidade, aponta que os único momento onde se pode falar
valores da cultura juvenil. jovens, através ou apesar da da existência concreta da tribo
Guerreiro torna evidente que indústria cultural, vêm produzindo rocker, mais tarde define o rocker
este mesmo espetáculo tem uma espaços e tempos coletivos onde como consumidor de rock. Se assim
dimensão de ritual, agregando recriam e atualizam significados, é, não há uma vida cotidiana, não há
pessoas, permitindo a experiência de onde experienciam processos rituais. um envolvimento orgânico de uns
sentir e experimentar em comum, Resta saber se é significativo o com os outros, não há a construção
fazendo parte de uma massa humana suficiente a ponto de substituir ou de uma ética. E fica mesmo a
que se reconhece na mesma música, complementar outros espaços e questão: será que os participantes
que acompanha os mesmos gestos no tempos coletivos de referência de dos shows se reconhecem, possuem
mesmo ritmo, e, principalmente, na valores. um sentimento de pertença como
idolatria ao ídolo comum, visto Porém, o capítulo apresenta rockers? Qual o grau de adesão do
como objeto de fascinação e envolto alguns problemas, relacionados ao jovem ao rocker como estilo de vida?
em aura, como um mito moderno. É uso da categoria “tribo”. Um deles é Se o rock foi analisado como
uma catarse de emoções, com um a ambigüidade existente na expressão de um estilo de vida, será
vitalismo que conjuga efeverscência e utilização do termo, ora como uma que em nenhum outro momento
paixão, numa intensificação do metáfora, ora como uma categoria. aqueles jovens não se agregam em
desejo, reforçada pelo roçar dos Na pg. 11 afirma ser uma categoria torno da música? As festas, por
corpos. O show também traz à tona nativa; na pg. 21 afirma que a noção exemplo, não poderiam ser um
o imaginário dos ideais comunitários irá ser usada de uma forma mais desses momentos? Uma outra
presentes no rock, numa atualização descritiva do que como teoria questão é saber como os jovens
dos seus valores fundantes. explicativa da formação da elaboram individualmente essa
Em síntese, ao apresentar o sociedade e na pag. 49, ao definir o experiência, como contribui ou não
show como espaço ritual, a autora rocker, o faz apenas enquanto como elemento de identidade, além
indica que o rock é mais do que consumidor da música rock. Nestas da auto-definição como rocker. Em
simplesmente a música, é uma situações utiliza o termo como outras palavras, será que ser rocker
maneira de ser, ligado a um estilo de metáfora, dando a entender um não significa algo mais além do
vida, onde “os rituais dão forma às agrupamento de iguais, que se estilo musical e seu imaginário? Pode
suas ideologias, valores e posturas”. reconhecem na adesão ao rock, ser que estas questões estejam além
A sua existência, conclui, “nos levam unidos numa “cerimônia” ritual. dos objetivos e da opção
a crer que os novos agrupamentos Mas ao mesmo tempo, na pag. 41, metodológica da autora, que não se
humanos ainda encontram paralelo utiliza a noção como uma categoria, propõe a conhecer especificamente
com movimentos arcaicos que a mente mas sem evidenciar as características uma tribo rocker nem o peso que
humana insiste em preservar. E talvez que a constituem, na perspectiva de tem na vida dos jovens que dela
nem a mais sofisticada tecnologia Maffesoli. A questão, como nos participam. Mas a falta dos sujeitos
que o homem possa alcançar lembra Magnani (1992), não é a na pesquisa e os sentidos que estes
conseguirá aniquilá-los”.(48) utilização do termo em si, que pode jovens atribuem àquela experiência

248 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


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social ali descrita pode ser todas as suas contradições, lado, tenta-se a afirmação do ser, do
responsável por estas lacunas. correspondendo à perplexidade que ego, da liberdade individual. Por
No capítulo seguinte é a vida urbana tem gerado, onde uma outro lado, quando o ego volta-se
desenvolvida uma análise nova forma de ser e relacionar têm para dentro de si mesmo, mergulha
interpretativa das canções, buscando interferido na própria produção dos numa absoluta falta de sentido, num
traçar um perfil sócio-cultural dos sujeitos sociais. O tema do amor e vazio existencial que torna amarga a
rockers. Guerreiro tem como sexo é o que apresenta o número auto definição. A interpretação
pressuposto de que é possível maior de canções, sendo uma grande realizada coincide com análises que
alcançar o imaginário dos rockers inspiração que até então não deu procuram dar conta de uma nova
através das representações que os mostras de cansaço. O amor aparece subjetividade que vem surgindo,
produtores das canções de rock como a força criadora e fruto das possibilidades e limites
elaboram para seus consumidores. transformadora do mundo, capaz de abertas pelo aprofundamento da
Dessa forma analisa 105 discos e fazer coincidir o desejo e o destino. modernidade, onde, pontua Melucci
1100 canções de 22 cantores e O outro tema é a política, que (1996), a identidade não é mais
grupos de rock, utilizando a aparece principalmente a partir de considerada como uma essência mas
proposta de análise de conteúdos de 1985, quando ocorre uma sim uma construção cotidiana,
Laurence Bardin. A própria autora “politização” do rock na esteira da caracterizada pela ambigüidade entre
ressalta, porém, “que é uma, dentre campanha das Diretas-já. As o auto reconhecimento e o
múltiplas leituras que poderiam ser denúncias, a descrença nos poderes heteroreconhecimento. Através das
empreendidas a partir de um instituídos, a impotência diante da músicas, os jovens parecem se
material tão rico”(104), realidade são aspectos de um colocar como os arautos de um novo
principalmente porque a canção é diagnóstico possível do tempo.
uma mensagem ambígua, que envolvimento da juventude com os O terceiro e último capítulo é
contém uma pluralidade de problemas nacionais uma leitura da história da música
significações. Além do mais, são Um último tema é o da popular brasileira desde os anos 60,
mensagens de comunicação oral, em identidade. Chama a atenção a sua onde é recuperada a presença do
que o significado depende muito da recorrência, o que demonstra a sua rock no cenário cultural, e
performance do cantor e do contexto centralidade para a juventude estabelecida as relações entre a MPB
de ocorrência. Não podemos contemporânea. As músicas parecem e o contexto sócio-político
esquecer também que cada receptor expressar que não há mais uma brasileiro. A autora pontua os
pode atribuir um sentido próprio a identidade, e sim uma diversidade momentos mais significativos dessa
uma canção, sendo arriscado delas, fragmentadas, fruto da história, começando pela bossa
qualquer generalização. Assim é heterogeneidade de grupos e valores, nova, chegando até o momento da
problemático poder afirmar que a da realidade cotidiana descrita expansão do rock na década de 80.
interpretação possa expressar o anteriormente. Os conflitos Até este período, o estilo era
perfil de um grupo social tão existenciais estão presentes diante da reduzido ao circuito alternativo. A
heterogêneo. Ao mesmo tempo, incerteza e insegurança da vida, da partir de 1982 aconteceu uma
considerando seus limites, não deixa busca de sentido. As instituições que conjunção de fatores, entre eles, a
de ser um novo veio de análise para eram referência de valores, tais como emergência de uma nova geração
aqueles que se interessam na relação a família e a religião são urbana que até então não se
entre grupo social e música. deslegitimadas como instâncias de reconhecia na produção musical
A autora identifica nas canções orientação. Nessa ebulição, a busca existente. A descoberta deste filão
uma grande variedade temática, das próprias verdades aparece como juvenil levou a indústria fonográfica
terminando por agrupá-las em uma saída, junto com a afirmação a investir em novos grupos musicais.
quatro grandes temas: identidade, do desejo de liberdade individual. O Foi uma resposta industrializada às
amor e sexo, cotidiano e política. No grupo aparece como um espaço para exigências reais da época, um dado
seu conjunto é possível, de forma adquirir parâmetros de significativo que relativiza o poder
genérica, captar possíveis elementos comportamento necessários para a da indústria cultural em criar estilos.
constituintes do imaginário juvenil. construção da auto identidade. Em Foi neste contexto que o rock
O tema do cotidiano expressa o suma as músicas expressam um explodiu como um estilo musical
tempo e o ritmo da metrópole, com conflito fundamental onde, de um nacional, conseguindo articular os

Revista Brasileira de Educação 249


Resenhas

códigos da “urbes” e representar um uma abertura às trocas culturais. Finalizando, podemos dizer
estilo de vida paradigmático da Somos devedores do movimento que o trabalho de Guerreiro não é
juventude urbana. A partir dai tropicalista pela experiência linear, onde o texto sugere mais do
tornou-se “uma forma de expressão revolucionária de uma fusão de que desvela, toca em questões que
cultural que corresponde à sua nossa herança cultural com o que ficam sem respostas, mas ao mesmo
própria maneira de ser e de estar no havia de mais moderno, numa tempo apresenta reflexões e insights
mundo”, transformando-se no estilo reelaboração (ou numa que instigam. Vem reforçar a
dominante ao longo da década. antropofagia, como afirmavam os importância da dimensão artística, e
É importante observar como a próprios tropicalistas) que ampliou nela, a centralidade da música e suas
história recuperada por Guerreiro as possibilidades de produção expressões, como uma forma
nos remete à algumas características cultural para muito além da privilegiada de conhecer a juventude
da história cultural brasileira que tendência nacionalista, presente no como ator social. Neste sentido o
merecem ser ressaltadas. Uma delas é debate sobre o que era ou não livro é uma contribuição
a relação da música com o contexto genuinamente nacional ou mesmo significativa, principalmente se
sócio-político. As canções de entre o erudito e o popular. levarmos em conta a escassa
protesto são um exemplo, mas é o Atualmente o rock não detém bibliografia existente com esse
festival da canção de 1968 que é mais a hegemonia no cenário enfoque. Mesmo não tendo a
paradigmático na evidência da cultural, havendo até prognósticos juventude como objeto da pesquisa,
relação íntima entre a política e a do seu desaparecimento. De muito menos a educação como uma
expressão cultural, quando a qualquer forma ele continua vivo na preocupação presente, é um trabalho
juventude do período consegue influência aos diversos ritmos que deve interessar aos educadores
expressar toda a sua revolta e musicais que coexistem atualmente, na medida em que problematiza, que
indignação nas arquibancadas do cada qual expressando estilos de traz elementos para melhor conhecer
Maracanãzinho e nas letras das vida diversos. É a manifestação da esse setor social tão polêmico quanto
músicas, numa forma lúdica de heterogeneidade cultural presente no pouco estudado.
driblar a censura existente no mundo contemporâneo, que tem na
período. Outro aspecto que chama a tensão entre o particular e o Bibliografia citada
atenção é a dimensão de ruptura e universal, o local e o global um dos
continuidade existente na história da maiores desafios. De qualquer MAGNANI, José Guilherme Cantor.
música. A relação entre a rebeldia e forma, a música continua Tribos urbanas: metáfora ou
o rock é um exemplo, estando influenciando/sendo influenciada categoria? In: Cadernos de
presente desde os anos 50, mas pelos jovens, que parecem sentir Campo, Ano II, nº 2. São
sempre com uma nova feição, “uma através dela alguma coisa que não Paulo: USP, 1992.
nova/velha bandeira”: é a conseguem explicar nem exprimir: MELUCCI, Alberto. Il Gioco dell’io.
delinqüência juvenil e o rock’n’roll; é uma possibilidade de reencontrar o Milão: Saggi/Feltrinelli, 1996,
a contracultura e o hippismo e o sentido. Podemos dizer assim que os 3º ed.
rock dos anos 60; é o punk com seu jovens podem ser reconhecidos como
som pesado, “sujo” e agressivo nos a difícil invenção de maneiras de Juarez Tarcísio Dayrell
anos 70. E o rock no Brasil, a partir viver em um mundo novo, em que Universidade Federal de Minas Gerais
de meados dos anos 80, depois de certamente nossa palavra parece não
uma fase “adolescente”, que mais os guiar. Diante do
recupera a rebeldia através da crítica estranhamento a que são sujeitos pela
sócio-política, se tornando o grito de sociedade, que tende a imputar-lhes
guerra nas passeatas do período. A estereótipos, taxá-los de alienados
música “Inútil”, do grupo “Ultraje a ou outras alcunhas, devemos lembrar
Rigor” por exemplo, se tornou o que esse mundo onde os jovens estão
emblema do movimento dos “caras se construindo e sendo construídos é
pintadas”. Um último aspecto a o mundo possível que nossa geração
ressaltar é a perspectiva de processo construiu e vem deixando como
detectada na cultura nacional, na legado. Se há algum desvio, a
direção de um amadurecimento e responsabilidade é de todos.

250 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Notas de Leitura

jogo, de Giovanni Genovesi; Língua importância de um sistema


FRABONNI, Franco; comum, língua padrão, língua formativo integrado no qual a escola
GENOVESI, Giovanni; literária, de Alessandra Briganti; O desempenha papel central na
MAGRI, Primo; VERTECCHI, léxico dos jovens: uma leitura em educação política dos jovens.
Benedetto (Orgs.). Giovani chave educativa, de Benedetto O quarto tema, Os jovens e
oggi tra realtà e utopia. Vertecchi; e Dicionário do léxico sua imagem, foi construído por
Milano: Franco Angeli, 1994. juvenil, organizado por Maria Fibbi, Primo Magri com base numa
Giovanni Genovesi e Lorenza exploração razoavelmente detalhada
Raponi. dos dados obtidos através de
Esse livro resultou de uma O segundo tema, de autoria de enquetes realizadas com
pesquisa coletiva interuniversitária Franco Frabboni, tem por título adoloscentes e jovens. A partir daí
realizada no decênio compreendido Desorientados inquietos emerge a imagem que os jovens
entre 1982 e 1992 por professores descompromissados. Viagem ao fazem de si mesmos destacando-se o
das universidades de Bolonha, Continente-jovens: em direção a um perfil psicológico, a socialização
Ferrara, Modena e Parma tendo por ponto final de nome participação- (família, amizade e amor), a escola e
título Espaço jovens: pesquisa sobre protagonismo. Aqui o autor, a cultura, o tempo livre, trabalho e
centros de agregação juvenis. lançando mão da metáfora da linha profissão.
A investigação toma como de ônibus, tece considerações sobre o O uso do termo flash na
objeto de estudo a condição juvenil processo através do qual os jovens segunda parte indica que se trata de
privilegiando a agregação juvenil chegam a superar suas inseguranças, abordagens sintéticas iluminando
enquanto comportamento sócio- intimismos e rebeldias por um aspectos específicos da condição
existencial e a oralidade juvenil caminho onde destaca a importância juvenil. Aqui também são destacados
como código de comunicação. da adminstração pública local e do quatro temas: Paideia, philia e eros.
A publicação dos resultados da associativismo. Propugna, então, Reflexões sobre o papel da amizade
pesquisa envolveu a contribuição de pela articulaçãso desses dois e do amor na formação dos jovens,
doze autores abordando oito temas elementos na formulação de uma de Anita Gramigna; Jovens
distintos distribuídos em dois política de juventude tendo por eixo portadores de deficiência em busca
grandes blocos temáticos: Parte I - dois modelos de agregação juvenil: do tempo livre, deMaura Gelati;
Fazer-se homens. As grandes etapas os centros adolescentes e os centros Grupos juvenis espontâneos e
do crescimento; Parte II - Flashes juvenis, descrevendo as respectivas associativismo juvenil organizado,
sobre as problemáticas juvenis. finalidades, sua estrutura e de Liliana Dozza; e As trocas juvenis
A primeira parte compreende conteúdos. internacionais, de Massimo Baldacci.
quatro temas. O primeiro, No terceiro tema, Os jovens e Como destacam os
denominado O léxico dos jovens. a nova política, Enzo Catarsi analisa organizadores na Apresentação do
Reflexões sobre os dados de uma as relações entre os jovens e a livro, a pesquisa espaço jovens se
pesquisa, se subdivide, por sua vez, política no contexto da longa propunha a atingir um tríplice alvo
em quatro tópicos: Linguagem como adolescência, destacando a investigativo, todos eles em

Revista Brasileira de Educação 251


Notas de Leitura

perspectiva eminentemente do diretor da Revista, Giovanni predominantemente pedagógico


pedagógica. Genovesi, versa sobre a necessidade adotado pelos autores, resulta
O primeiro alvo, de caráter de clareza do próprio conceito de inegável a relevância desse número
hermenêutico, se traduziu numa jovem. Os demais artigos abordam, duplo da Revista Ricerche
contribuição ao esclarecimento do todos eles, a questão da juventude Pedagogiche para os pesquisadores
controvertido tema da identidade e em relação com os temas da família da educação e para os educadores de
condição juvenis no contexto atual (Enzo Catarsi), da política (Franco maneira geral.
de uma sociedade complexa e em Cambi), escola e trabalho (Primo
transição. Magri), universidade (Luciana Dermeval Saviani
O segundo alvo, de caráter Bellatalla: os jovens e a universidade; Universidade Estadual de Campinas
argumentativo, envolveu uma e Saverio Santamaita: os jovens
contribuição no sentido tanto de se graduados), a profissão (Angelo
decifrar como de se formular Luppi), os jornais (Anita Gramigna), GUIMARÃES, Eloisa. Escolas,
políticas culturais voltadas à o associacionismo (Franco Galeras e Narcotráfico. Rio
participação ativa dos jovens na Frabboni), a educação profissional e de Janeiro: Departamento de
organização dos próprios espaços os centros de agregação (Maura Educação, PUC-Rio, 1995
sociais e existenciais. Gelati), a sexualidade (Giovanni (Tese de Doutorado).
O terceiro alvo, de cunho Genovesi), a linguagem (Antonio
especificamente investigativo, se Santoni Rugiu), a literatura (Mario
refere à contribuição trazida pelos Valeri), poesia (Marco Riguetti), A tese de Eloisa Guimarães
autores, através de cuidadosa música (Alessandra Avanzini), os tem por objetivo analisar a inserção
pesquisa de campo, à “leitura meios de comunicação de massa da escola pública nos diferentes
(quantitativa e qualitativa) da atual (Luciano Galliani), cinema e teatro processos sociais que vêm se
produção oral dos jovens em (Daniele Seragnoli), esporte desenvolvendo recentemente no
situação de agregação e de tempo (Piergiovanni Genovesi), violência Brasil e, principalmente, no Rio de
livre” (p. 8). (Lino Rossi) e tóxico-dependência Janeiro.
(Giovanni Genovesi). Os processo estudados são
Dermeval Saviani De um modo geral, os artigos exteriores à escola. São eles: o
Universidade Estadual de Campinas se fazem acompanhar de abundantes narcotráfico, as galeras e os
referências bibliográficas, o que se movimentos juvenis. Destacam-se,
constitui num recurso da maior neste último aspecto, os movimentos
utilidade para os leitores de jovens que se constituem a partir
Giovani: Aspetti e problemi interessados em pesquisar o tema ou de ritmos musicais,
educativi della condizione aprofundar o conhecimento das predominantemente “funk” e
giovanile oggi. Ricerche questões a ele relacionadas. “house”.
Pedagogiche, n. 116-117, A simples relação dos títulos, Apesar de exteriores à escola,
luglio-dicembre 1995. como indicado acima, já permite estes movimentos, e aqui está uma
constatar o leque amplo de situações das grandes contribuições desta
referidas à questão dos jovens pesquisa, exercem sobre a escola
Trata-se de um número duplo, abrangido por essa publicação. uma interferência a tal ponto, que a
de caráter monográfico, da Revista Registre-se, ainda, o empenho de transforma, seja em sua organização,
Ricerche Pedagogiche, versando cada autor em abordar de forma seja na sua capacidade de cumprir
sobre a problemática juvenil. sintética mas consistente os com suas funções mais gerais que lhe
O volume reúne, em suas 174 respectivos temas. são atribuídas socialmente.
páginas, vinte artigos resultantes da Em se tratando de um assunto As análises de Eloisa
contribuição de dezoito autores em si mesmo de natureza Guimarães são o resultado de
oriundos de nove diferentes educacional — de vez que os jovens pesquisa etnográfica realizada em
universidades italianas (Bari, são parte integrante, ao mesmo duas escolas municipais cariocas,
Bergamo, Bologna, Chieti, Ferrara, tempo como sujeto e objeto, do sendo a primeira localizada na área
Firenze, Padova, Parma e Pisa). processo educativo — e central da Tijuca, zona norte do Rio
O primeirro artigo, de autoria considerando o enfoque de Janeiro, na proximidade dos

252 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Notas de Leitura

morros, nos anos de 89 e 90, onde méritos da pesquisa realizada por Na organização do movimento
foi pesquisado o universo do período Eloisa Guimarães: a sociabilização o território ocupar lugar de
noturno. A outra escola pesquisada do jovem no Rio de Janeiro pelas destaque. A noção de território é
localiza-se em Jacarepaguá, zona galeras, diferenciando-a do bastante complexa e ultrapassa sua
oeste, realizada entre 91 e 92, sendo narcotráfico. definição geográfica. Apesar de não
o ensino diurno o universo da É comum a sociedade ter sido explorada pela autora em
pesquisa. estigmatizar os membros das galeras toda complexidade que apresenta,
como bandidos e traficantes. A podemos da tese extrair seu sentido
Caracterizando os movimentos autora nos mostra sensíveis como sendo um espaço para
Narcotráfico diferenças existentes entre os dois elaboração simbólica e construção
Nos diz a autora que o movimentos. Existem galeras que da identidade desses jovens. Desarte,
narcotráfico, a partir da década mantém relação com o narcotráfico portanto, que as fronteiras nem
passada tem sofrido significativa inclusive funcionando como sempre são visíveis, porém
expansão em várias cidades do formação de mão-de-obra para este. tacitamente acordadas entre os
mundo. Outras apenas se dispõem a cumprir grupos e, dentro de seus limites, são
No Rio de Janeiro a presença e certas determinações dos “donos dos instauradas regras e formas de
o poder desses grupos se fazem sentir morro”, pois se organizam no comportamentos próprias daquele
não só pela ousadia e violência de território dominado pelo grupo. São muito voláteis,
suas ações, mas também pelo seu narcotráfico. permanecendo em tensão constante,
alto poder de organização e O que ressalta Guimarães, é originadas por contínuas “brigas”
hierarquia interna, além de estarem que não é essa base de sua pelo seu domínio.
associados às estruturas mais amplas constituição. Algumas ações das Além da manutenção e
do crime organizado. galeras inclusive, atrapalham o expansão dos territórios, a violência
O autoritarismo e a violência tráfico, demandando ações de seus é utilizada ainda pelas galeras, para
das ações do narcotráfico não se chefes, tidos ou conhecidos como proteção de seus membros, para
restringem apenas a seus membros, “donos do morro” já que se impor respeito às regras, para defesa
mas afetam a toda a população que articulam e atuam nas áreas da honra que, segundo a autora, é
habita nas áreas por eles ocupadas. dominadas pelo tráfico. Por vista pelos membros das galeras em
O poder das armas de fogo é a exemplo, a briga entre galeras pode seu sentido tradicional, ligada à
garantia do cumprimento de acordos atrair a presença da polícia e afastar brutalidade, masculinidade e
firmados com e entre os traficantes. os consumidores de drogas. virilidade.
A radicalidade nas estruturas Eloisa Guimarães nos aponta O conceito de galera, assim
da vida da população é o que três fatores que se inter-relacionam definido, é realmente uma nova
garante, segundo Guimarães, a para a constituição das galeras: a contribuição aos estudos da
expansão e a sobrevivência do segregação social imposta aos sociabilidade juvenil no Brasil. Em
narcotráfico no Rio de Janeiro. Com grupos de onde elas se originam, a termos comparativos se aproxima
a população, o narcotráfico mantém recente história dos movimentos muito mais do conceito de gangues
duas formas distintas de ação: por juvenis em termos mundiais e a norte-americanas, principalmente de
um lado, instituem sistemas próprios organização do crime existente Los Angeles1 , que àquele
de poder, baseados na força das nesses locais. apresentado por Dubet, sobre as
armas e interferindo nos mais A violência é, sem sombra de galeras francesas2 . No caso
diferentes níveis de vida da população; dúvida, o principal elemento brasileiro e restringindo-se à questão
por outro lado, oferecem “serviços” estruturador das galeras. Porém, da sociabilidade, podemos encontrar
que, na verdade, deveriam ser diferente do narcotráfico, onde as similares nas torcidas organizadas de
supridos pelo Estado, tais como a relações têm por objetivo expandir futebol3 .
proteção contra outros bandidos, os negócios do tráfico e, por “Funkeiros” e “Houseanos”
construção de quadra de esportes, conseguinte ampliar o lucro Os “funkeiros” são grupos de
assistência hospitalar, medicamentos, imediato, as galeras têm na jovens que se constituem a partir do
alimentação, entre outros. organização de seu próprio gênero musical “Funk”, além de um
As galeras movimento o foco central de suas estilo próprio de vestimentas e
Aqui se apresenta mais um dos ações. indumentárias. Apesar de não ser

Revista Brasileira de Educação 253


Notas de Leitura

uma regra, normalmente, os fronteiras no que diz respeito aos infinitamente mais discretas. Para os
funkeiros são membros das galeras. movimentos, lugares, condições de traficantes, a escola significa a
Os “houseanos” são também vida e violência destas populações. ampliação da área física para suas
grupos de jovens articulados em A Escola atividades e dos grupos sociais sob
torno da música, neste caso Feita essa caracterização dos seu controle. Para a escola, a figura
“house”. Apesar de habitarem as movimentos, devemos retornar dos “donos do morro”, apresentam-
mesmas áreas dos funkeiros, àquele que é o objeto da pesquisa se ora como protetor, ora mediador
procuram deles distinguirem-se, no realizada por Eloisa Guimarães. de grupos em conflito ou
que diz respeito às vestimentas, Segundo a autora, esses sintetizando as duas funções.
padrões de comportamentos e, movimentos estão presentes na É nesse ambiente no qual as
principalmente, a violência. escola levando-a a alterar suas escolas pesquisadas estão
Nos jovens pesquisados pela formas de organização e, o que é mergulhadas negociando sua
autora, o “baile” apresenta-se como mais grave, impedindo-a de existência ou sobrevivência com o
principal meio de diversão. Outras concretizar suas funções mais gerais tráfico ou isolando-se da
formas de lazer são apontadas: atribuídas pela sociedade. comunidade que, segundo conclusão
perambular pelas ruas com os A escola apresenta-se como um da autora, os padrões mais gerais
amigos, ouvir música, conversar com dos espaços sociais do universo que norteiam a organização da
os amigos, assistir televisão, jogos de estudado. E, como nos demais, as instituição escolar são rompidos. A
rua. galeras e o narcotráfico estendem escola perde, seu papel, assim
Estes meios de diversão são sobre ela suas redes de controle. definido por Bourdieu5 , de
hierarquizados pelos jovens e, a Ao longo de mais de trinta transmissão da educação letrada e
autora nos mostra que no topo da páginas, a autora relata de modo na inculcação no sujeito das
hierarquia, distante das demais, está extremamente envolvente o “cerco” categorias e dos esquemas
o baile. e a invasão da escola pelas galeras, perceptivos que tornam possível o
O baile é o acontecimento suas motivações, além de apresentar consenso cultural (p. 6).
mais esperado e desejado pelos os encaminhamentos efetuados pela Nesse sentido, os jovens são
jovens. Durante a semana, por direção da escola. sociabilizados a partir de processos e
aqueles que já o freqüentam ou, por O cerco sobre a escola tem valores exteriores à escola.
aqueles que ainda não possuem duas motivações, segundo Não constróem uma
idade, aguardando ansiosamente o Guimarães: ampliar o espaço experiência escolar, antes são
dia em que poderão frequentá-lo. controlado pelo tráfico e como sociabilizados no que a autora
A autora nos mostra, a partir forma de exercitar os “princípios e chamou de subcultura escolar. Não
da relação que os jovens mantém fazer valer os projetos organizativos são jovens “da” escola, são jovens
com o baile, que a dança e a música, das galeras” (p.40). das galeras, funkeiros, houseanos,
aliadas às formas de se vestir e os Contudo, ressalta a autora, as traficantes, bandidinhos, presentes
sistemas de deslocamentos em origens das brigas não são o “na” escola.
grupos aliados” (p.132), são resultados da ação direta dos A escola torna-se então, uma
indicativos da definição do “modo traficantes, antes passam pela agenciadora de experiências que
de ser” desses jovens. “intermediação de outras esferas estão muito além das desejadas e
Para melhor investigar a sociais das formas de organização atribuídas pela sociedade. Passa a
relação existente entre funkeiros e dos jovens membros das galeras” (p. não mais existir enquanto uma
houseanos, a autora nos apresenta o 79), a partir de onde elas são Instituição (no sentido sociológico
conceito “Cultura da Evitação”4 , desencadeadas, o baile do termo), mas como uma
emprestado de Silva e Milito, pois, principalmente. organização tentando sobreviver.
segundo ela, tal conceito permite Com relação ao narcotráfico, a Eis o que a autora nos
compreender os comportamentos e escola encontra-se em semelhante apresenta como sendo o grande
distanciamentos que se apresentam posição que as populações que desafio das escolas de contextos
nas ruas do Rio de Janeiro, nos residem nas áreas comandadas pelo semelhantes aos aqui descritos:
segmentos das classes médias em narcotráfico: ora subjugada, ora “encontrar formas de relacionamento
relação à população mais protegida. A diferença é em relação à e de convivência com os diferentes
empobrecida, a fim de estabelecer escola as ações do narcotráfico são universos contidos em seu interior e

254 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Notas de Leitura

que se manifestam no meio e não mais comparando-os aos analisar esses jovens-trabalhadores.
circundante, sem abrir mãos de suas movimentos juvenis da década de A autora argumenta que as analises
funções mais fundamentais” (p. 13). 60. Para tanto, procurou traçar um que colocaram o trabalho como
perfil do aluno-trabalhador (de referência central da análise da
Notas quinta à oitava série) de uma escola sociedade, seja apontando um
pública de 1º e 2º graus de três caráter positivo ou negativo na sua
1 JANKOWSKI, B. Les gangs aux turnos de ensino da periferia de grande maioria tiveram como objeto
États-Unis Bilan des Salvador, por meio da compreensão um trabalhador abstrato. Partindo
recherches. Relatório de da relação desse aluno com a escola, sempre de grandes categorias sociais,
Pesquisa, 1992. (mimeo) o trabalho, a família, a cultura, o não levando em consideração o que
2 DUBET, F., LAPEYRONNIE, D. lazer, sua expectativa, aspirações e há de mais específico no
Les quarties d’exil. Paris: Seuil, como está sendo construída sua trabalhador, seus desejos,
1992. cap. 6. La galère. identidade desses múltiplos espaços. aspirações, expectativas, suas formas
3 TOLEDO, Luiz Henrique de. No decorrer do texto vão de socialização e sociabilidade no e
Torcidas organizadas de sendo confirmadas as seguintes pelo trabalho, suas relações com a
futebol. São Paulo: Editores hipóteses: escola e com a sociedade mais ampla
Associados/ANPOCs, 1996 1) A escola pública hoje não é (família, lazer, saúde, etc.).
4 SILVA, Hélio R. S., MILITO, mais freqüentada — como se Além do mais há uma grande
Cláudia. Vozes do meio. Rio de pensava até então — por adultos- parcela de jovens desempregados ou
Janeiro: Relume-Dumará, 1995. trabalhadores e sim por jovens subempregados no mercado informal
5 BOURDIEU, Pierre. Reprodução trabalhadores. Os dados mostram de trabalho o que dificulta uma
cultural e reprodução social. que a grande maioria dos estudantes analise desses jovens a partir do
In: MICELLI, Sérgio (org.). A do período noturno pesquisado está trabalho formal.
Economia das trocas na faixa de 14 a 24 anos, jovens que 3) Os jovens procuram a
simbólicas. São Paulo: se inserem no mercado de trabalho escola como forma de “melhorar a
Perspectiva: 1982b não só por uma questão de pobreza vida” e a mesma propicia situações
material, mas também porque pelo de afirmação de identidade.
Manoel Rodrigues Portugues trabalho passam a ser respeitados e a Os jovens subvertem a ordem
Mestrando - Faculdade de Educação, ter autonomia em relação ao adulto, da escola, ou seja, conseguem
Universidade de São Paulo criam um novo espaço de transformá-la em “locus” de
convivência, possibilidades de fazer sociabilidade, onde criam uma rede
novas amizades, ampliam os significativa de contatos e
horizontes de conhecimento, podem aprendizado (de grande peso na
MARQUES, Maria Ornélia da consumir os bens culturais que os formação de sua identidade) e ainda
Silveira. Os jovens na escola identificam enquanto jovens, etc. essa escola representa a possibilidade
noturna: uma nova presença. Esses jovens que se inserem no de credenciá-lo (via “diploma”) para
São Paulo. Tese (Doutorado) primeiro momento no mercado de um trabalho melhor no futuro —
— Faculdade de Educação da trabalho informal estão sempre uma vez que o mercado de trabalho
Universidade de São Paulo. oscilando entre o trabalho e a escola, tem exigido cada vez mais um alto
pois, mantém com o primeiro uma grau de escolarização. O conteúdo
relação de relativa responsabilidade das aulas é desprezado, talvez
A tese de doutorado de Maria e autonomia. Porém, tem como porque esses estejam distantes da
Ornélia Marques procura entender norte o trabalho formal para o qual realidade cotidiana do educando.
as novas formas de socialização e a escola será um trampolim. A autora parte do princípio
sociabilidade dos jovens das classes A escolha do período noturno que a função da escola — formar o
trabalhadoras moradoras da na maioria das vezes se dá antes cidadão através da socialização dos
periferia das grandes cidades mesmo de se ter um trabalho e as conhecimentos e habilidades básicas
brasileiras e estudantes da escola causas principais são a repetência e o que possibilitem a decodificação das
noturna, partindo de uma abandono da escola diurna. informações e valores transmitidos
compreensão ampla (das diversas 2) O mundo do trabalho não é ao educando no seu cotidiano;
formas de construção da identidade) mais uma referência central para habilitá-los para a participação ativa

Revista Brasileira de Educação 255


Notas de Leitura

e crítica na vida social e política não de infra-estrutura e situações assim os fundamentos sociais da
está sendo cumprida, pois a chamada permanentes de violência. Trata-se compreensão adulta de mundo;
democratização da educação do Jovem Oratório, a maior favela de processo esse que se dá exatamente
ocorrida a partir da década de 70 Mauá, região da Grande São Paulo. no contato com esse mundo adultos,
acabou por expandir uma caricatura À primeira vista, o local é ou seja, é com os adultos que os
da escola. A escola recebeu novos caracterizado por dois mundo bem jovens aprendem a ser adultos
usuários com as velhas estruturas, delineados: os atores da urbanização (Foracchi, 1972). O problema da
ou seja, não se adequou à expansão; da favela, composto por três pesquisa foi, então, pensar quais as
criou formas de atendimento que associações de moradores — a possibilidades dos jovens
não deram conta de atender com Sociedade Amigos de Bairro (SAB), a desenvolverem ações e se
qualidade os novos usuários. União Popular e a Comissão da constituírem coletivamente como
Uma vez não cumprindo a sua Terra, todas com protagonistas sujeitos, já que pareceu-nos ser uma
função a escola acaba sendo diferentes e perspectivas distintas e o hipótese inicial da autora a
apropriada pelos alunos que fazem mundo da violência. Um primeiro possibilidade de “ruptura e
com que ela cumpra o papel de dado instigante está exatamente no recuperação do sentido social
espaço relativamente barato de fato dos jovens não se engajarem com através de uma práxis inovadora
sociabilidade. Os educandos criam afinco no primeiro e na existência de “(p.11) por parte desses jovens.
uma rede de ligações, amizades, razões que levam alguns poucos a Nesse sentido, foram levantados
aprendizado, solidariedade, mas buscarem o segundo. processos combinados de
sempre entre eles, é como se eles O cotidiano do Jardim socialização e dessocialização,
pudessem ter uma relação nula com Oratório, no entanto, não está envolvendo jovens e algumas
os funcionários, professores, marcado unicamente pelo mundo da instituições.
conteúdos programáticos, com as violência e pela ação do movimento A autora estudou a primeira
regras escolares, enfim com tudo que de urbanização da favela. Diferente geração de jovens do Jardim
diz respeito a instituição escolar. formas associativas bem particulares Oratório, nascida no local entre fins
Por fim o texto termina coexistem naquele local, integrando da década de 70, início da de 80, ou
apontando a necessidade de escola vários jovens. Tais formas vinda para lá ainda criança. Para
encontrar novas funções, associativas vão além dos limites da entendê-la, a autora considera
canalizando a energia do jovem, seu família e da casa, verificando-se importante começar por entender
poder de subverter a ordem escolar, entre os próprios jovens e entre sua infância.
de criar novas experiências instituições interferências recíprocas, “A experiências posteriores
independentes das instituições. visto que a “socialização não é um [desses jovens] são sobrepostas às
processo unilateral... É um processo impressões básicas, formando outros
Maria Socorro G. Torquato recíproco, visto que afeta não afeta o estratos, e tendem a receber seu
Mestranda - Departamento de indivíduo socializado, mas também significado do primeiro, quer
Sociologia, Universidade de São Paulo os socializantes.” (Berger, Peter e apareçam como confirmação, quer
Brigite. In: Foracchi, Marialice e como sua negação e antítese.”
Martins, José de S., 1977). (Abramo, 1994)
NAKANO, Marilena. Jovens: Partindo da idéia de que a Para estudar os vários grupos
vida associativa e subjetividade juventude é sensível à crise social — de jovens a autora fez um recorte
- um estudo dos jovens do exatamente por não estar inserida no contendo grupos localizados em
Jardim Oratório. (Dissertação mundo adulto — crescer nas espaços circunscritos, mediados e
de Mestrado). Faculdade de condições de vida proporcionadas tutelados por instituições como a
Educação da Universidade de pelo Jardim Oratório sem dúvida Igreja Católica ou a família; grupos
São Paulo, 1995. não é algo simples. Para entender montados a partir de objetivos
como se dão tais processos, foi específicos como aprender tricô ou
Com este trabalho, a autora necessário enveredar pelas diferentes tocar violão e grupos voltados para
procura pensar o processo de formas associativas que esses jovens “fora”, para a exibição e
socialização de jovens, em um se mostraram capazes de produzir: representação do local em que
ambiente que pode ser considerado ao se unirem em grupos, eles vivem, como os rapazes do futebol
difícil dadas as precárias condições compartilham valores, questionando ou da escola de samba.

256 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Notas de Leitura

A autora chama a atenção Nietzsche, que viam o lobo como Referências bibliográficas
sobre a disposição que têm esses mal, e que logo, elas, como “não-
grupos para o lazer, para muito além lobo”, eram boas). ABRAMO, Helena W. Cenas
de leituras que “deixam de abordar Outra colaboração importante juvenis: punks e darks no
o que isto significa para aqueles que do trabalho de Nakano diz respeito espetáculo urbano. São Paulo:
realizam a atividade, na medida que à própria socialização desses jovens e Scritta, 1994.
o recorte da análise é eminentemente à mediação do mundo adulto. Se por BOURDIEU, Pierre. De quoi parle-t-
classista. (...) [Tais espaços dizem] um lado, a autora reconheceu que é on quand on parle du ‘probleme
respeito também a “um campo onde o contato com adultos que se de la jeunesse’?. In: Les jeunes e
o jovem pode expressar suas aspirações aprende a ser adulto, por outro les autres: contributions
e desejos e projetar um outro modo identifica que jovens e adultos ficam desenvolvimento sciences d
de vida” (Abramo, 1994). enclausurados nas malhas de suas l’homme à la question
O mesmo cuidado deve ser relações. Isso explica o não interesse desenvolvimento jeunes.
tomado com relação às questões dos jovens pelo movimento de Naucresson: CRIV, 1986.
culturais, se tomadas simplesmente urbanização. Tal fato, somado a DUBET, François, LAPEYRONNIE,
como “um reflexo do modo de naturalização de ser favelado, acaba D. Les quarties déxil. Paris: Seil,
produção”, pois esse raciocínio por limitar a noção de direitos — 1992.
tende a remeter para a reflexão que o “movimento produziu e não FORACCHI, Marialice M. A
apenas em torno de questões foi capaz de ampliar”. juventude na sociedade moderna.
externas ao Jardim Oratório, “Essas questões apontam para São Paulo: Pioneira, 1972.
dificultando a compreensão de a necessidade de uma reflexão sobre __________, MARTINS, José de S.
mundos que lá se constróem. a vida democrática pois indicam que Sociologia e Sociedade. Rio de
Finalmente, um último ‘para que (ela) se desenvolva, não é Janeiro: LTC, 1977.
cuidado especial com relação à preciso unicamente que seja aberta, é MAGNANI, José G. C. Lazer dos
religião e à leitura corrente de ver a preciso também que ela se faça trabalhadores. In: Revista São
ação da Igreja Católica como apenas representativa, que os atores Paulo em perspectiva. São Paulo:
“tentativa de manipulação da percebam suas experiências Fundação SEDA: 2(3), jul/set, 1988.
população pobre” (p. 84), individuais através dos jogos ZALUAR, Alba. A máquina e a
desconsiderando as múltiplas coletivos’” (Dubet, 1992). revolta. São Paulo: Brasiliense,
possibilidades que tais atividades A não incorporação da 1985.
podem propiciar. subjetividade é explicativa desse
Os jovens se agrupam para processo. O ouvir o outro, buscar Pedro Augusto Hercks Menin
realizar o que desejam. Amizade e entender suas necessidades, parecer Doutorando - Faculdade de Educação,
solidariedade são elementos centrais ser o grande diferencial para o Universidade de São Paulo
realizando diferentes formas enriquecimento de ações sociais mais
associativas pelo ser e não pelo ter. profundas, mobilizando maior e
A dimensão do “ter”, no entanto, mais comprometido grupo de TEDRUS, Maria Aparecida.
possui importância nesse local: o pessoas. O distanciamento em Jovens: trabalho nas ruas e
consumo acaba sendo um agente relação à escola, vista como experiências de sociabilidade.
negador da condição de favelado, na estigmatizadora e descomprometida São Paulo, 1996. Dissertação
medida em que, na fala deles, vestir- com os alunos atesta essa máxima. (Mestrado em Educação) —
se bem, com roupas da moda, faz Ao realizar um trabalho a Faculdade de Educação da
com que eles se pareçam como respeito dos processos de Universidade de São Paulo.
qualquer pessoa não-favelada. Assim socialização com o jovem e não do
o jovem acaba oscilando entre um jovem — como porta-voz das
individualismo expressivo — da demandas que suspostamente fariam Jovens: trabalho nas ruas e
ordem do ser — e um individualismo parte do mundo dessas pessoas experiências de sociabilidade é o
de mercado — marcado pela auto- (Bourdieu, 1986) — a autora abriu o título de dissertação de mestrado,
definição e pela negação: a de não- canal para esse “ouvir”. Toda a apresentada à faculdade de
favelado (mais ou menos como as riqueza de sua pesquisa partiu dessa Educação da USP em fins de 1996
ovelhas da fábula contada por condição. por Maria Aparecida Leladini

Revista Brasileira de Educação 257


Notas de Leitura

Tedrus. Trata-se de um estudo sobre natureza qualitativa em que a autora grande maioria dos jovens não leva
os jovens que trabalham ou que, nos lançou mão de entrevistas ao conhecimento dos professores o
termos da autora, têm uma estruturadas e informais, visitas seu trabalho nas ruas. Conforme a
“ocupação de ganho” ou “lucrativa” domiciliares, além da observação autora, “ter estudo” é algo
nas ruas, através de depoimentos dos participante. Foi pesquisado um considerado importante e desejado
próprios jovens — a ótica, portanto, grupo de jovens trabalhadores nas pelos jovens; as críticas não se
não é a do mercado de trabalho ou a ruas do centro da cidade de São endereçam à escola em geral, mas a
das instituições que, de uma forma Bernardo do Campo — este grupo uma escola específica, a determinado
ou de outra forma, atuam junto à principal de jovens foi comparado ao professor, a certo diretor. Estar fora
população juvenil (escola, grupo que viveu experiência da escola ou ser subescolarizado é
organizações de defesas de direitos, semelhante na década de 80, algo que deprecia na visão dos
polícia, poder público em geral). São identificado pela autora como jovens pesquisados. No entanto, a
os próprios jovens que descrevem as “primeira geração”. conciliação entre o trabalho nas ruas
suas experiências nas ruas e como se Dos 498 entrevistados, apenas e a escola vai se mostrando cada vez
desenrola sua sociabilidade, esta 4 são meninas, a grande maioria (43) mais difícil para esses jovens que têm
entendida pela autora como a são negros ou descendentes, que ficar atentos a horários, tarefas
construção de relações significativas. encontram-se na faixa etária entre escolares, higiene corporal e
Sem se prender a um conceito 13 e 17 anos (40) e nasceram em assiduidade em um e outro. Em
puramente etário (acompanhando os municípios da Grande São Paulo geral, o abandono da escola não
irmão mais velhos, a autora (31). A maioria dos jovens do sexo costuma acontecer no primeiro ano
encontrou nas ruas cinco crianças, masculino (36) começou a trabalhar de trabalho nas ruas, em que se
entre quatro e nove anos de idade), nas ruas entre oito e onze anos como verifica o empenho de conciliação,
Tedrus propõe-se perceber a vendedor de sorvete, engraxate e mas sim a partir dos anos seguintes.
peculiaridade da condição juvenil de carregador em feiras-livres, O envolvimento com as
uma categoria determinada de geralmente em bairros. Foi drogas, principalmente bebida
jovens: aqueles que nas ruas constatado um universo de 36 alcoólica, cigarro, maconha e crack
encontram uma ocupação lucrativa. famílias, 26 das quais têm a presença ocorre para uma minoria dos jovens,
É nesse mundo da rua, estabelecendo do casal (17 compostas por pai e da mesma forma que a prática de
e rompendo relações, sofrendo mãe morando junto, 7 com atos delinqüentes como pequenos
pressões as mais diversas, fazendo as padrastos e 2 com madrastas). Em furtos.
escolhas possíveis é que o jovem apenas uma família verificou-se a Embora não “decente”, o
constrói sua identidade. presença de outros parentes além ou trabalho nas ruas é visto como um
Esses jovens, observa a autora, no lugar do casal e filhos. A média meio transitório e honesto para se
não se dizem de rua, na rua, ou da de filhos por grupo familiar é cinco. ganhar algum dinheiro, cujo
rua. Embora os estudos realizados Todos residem em vilas periféricas montante mensal varia entre meio e
na década de 80 já tenham feito a da área urbana do município ou de dois salários mínimos. Por outro
distinção entre aqueles que moram municípios vizinhos, a grande lado, segundo a autora, é frágil a
na rua (descritos como “de rua”) e maioria em núcleos de favela, em identificação como “trabalhador de
aqueles que retornam ao convívio casas de madeira ou de madeira e rua”: embora importante porque
familiar depois de uma jornada de alvenaria. possibilita colaborar no orçamento
trabalho (descritos como “na rua” e Quase todos os jovens doméstico e garantir o consumo
esses, sim, objeto do estudo em possuem experiência escolar (apenas individual, a ocupação nas ruas não
pauta), os jovens pesquisados não se dois irmãos informaram nunca terem configura propriamente a identidade
incluem nessa classificação. Para ido à escola), embora se constate um do trabalhador. Esses jovens
eles, “na rua” ou “de rua” são “ou quadro de baixa escolaridade e de afirmam trabalhar nas ruas “para
outros”: “aqueles que roubam”, os defasagem com relação à idade. Dos ajudar em casa” e “porque é
“trombadinhas”, “criança jogada 46 jovens com alguma experiência preciso”, em reconhecimento à
por aí”, “moleque que não têm escolar, 25 estavam indo às aulas pobreza do grupo doméstico; parte
casa”. por ocasião das entrevistas. Por do ganho é entregue à mãe para
Trata-se, porque não dizer, de razões que vão do sentimento de reversão no consumo coletivo da
um primoroso estudo de caso de vergonha ao distanciamento, a família e parte pode ser consumida

258 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Notas de Leitura

individualmente. Tedrus observa que prontos para o ataque. “Na rua você jovens negro, mulatos e brancos com
os jovens pesquisados, apesar dos tem que saber entrar e sair...” são as idade entre 20 e 25 anos, na maioria
limites impostos pela condição palavras de uma jovem que migrantes, todos trabalhadores. O
econômica, na medida de suas exprimem muito bem a inserção em segundo grupo — quatro rapazes e
possibilidades são consumidores de uma confraria quando do ingresso e quatro moças —, considerado
bens caraterísticos da juventude permanência nas ruas e quando da correspondente a um perfil de alunos
urbana, como por exemplo o tênis, o saída, a dificuldade em romper que demanda cada vez mais o ensino
boné, o brinquinho, a camiseta. relações e a necessidade de de adultos, caracterizava-se por ter
Dois caminhos distintos mediadores significativos. ingressado no supletivo a partir da
colocam-se para o jovem que de fato estrategistas, inseridos em pequenas 6ª ou 7ª séries, sendo constituído por
abandona o trabalho nas ruas, confrarias que abrem espaço à adolescentes e jovens entre 17 e 23
inicialmente encarado por ele e sua solidariedade e à diversão, esses anos, brancos, solteiros, morando
família como provisório, jovens não se caracterizam com as famílias e delas dependendo
circunstancial e reversível: o da exatamente como “trabalhadores” financeiramente.
integração, através da inserção no nem como adeptos do “dinheiro A pesquisa mostrou como a
mercado de trabalho legal e que fácil”; são também consumidores e escola assumia um papel
depende essencialmente da presença ao mesmo tempo amigos e completamente diferente para cada
de um mediador significativo (a competidores, livres e submissos, um dos dois grupos. Para o primeiro
família, o empregador ou os empreendedores e conformados. Nas grupo, a escola era um espaço
educadores de rua), e o da palavras da autora “nenhuma dessas desejado, bastante valorizado como
destruição, que envolve a condutas define totalmente aquele que parte de uma etapa da vida
marginalidade, a violência e a busca um ganho nas ruas” (p. 125). considerada “vitoriosa”, na
criminalidade (os mediadores, nesse trajetória de migrantes que se
caso, seriam aqueles vinculados ao Regina Magalhães de Souza percebiam como tendo “melhorado
mundo da delinqüência Mestranda - Departamento de de vida”. Para o segundo grupo,
profissional). Sociologia, Universidade de São Paulo identificado entre seus pares como
Por outro lado, o ganho diário “atrasados”, a escola aparecia como
e a formação de hábitos fonte de conflitos, assumindo um
incompatíveis com o mundo FREITAS, Maria Virgínia de. significado contraditório.
integrado (com a inadaptação a Jovens no ensino supletivo: A convivência dos dois grupos
lugares fechados, chefia, horário diversidades de experiência. era tensa, provocando queixas e
fixo) podem ser considerados como São Paulo: Faculdade de críticas de parte a parte. Os
empecilhos ao movimento de Educação da USP, 1995. primeiros reclamavam da desordem
reversão ou de saída das ruas. Dissertação (Mestrado em e do barulho, considerando que o
Forma-se um terceiro caminho: o da Educação). outro grupo atrapalhava seu
continuidade do trabalho nas ruas aproveitamento nas aulas. Os
na alternância com um trabalho segundos desprezavam os alunos do
legitimado, garantindo o ganho A pesquisa investigou dois primeiro grupo, considerando-os
imediato para a sobrevivência ou em pequenos grupos de alunos do pouco inteligentes.
uma situação de refúgio em função Supletivo Santa Cruz, curso que Apesar de os dois grupos
do perigo de vida que o bairro pode funciona em colégio situado na zona possuírem em comum a condição de
representar. oeste da cidade de São Paulo que excluídos do ensino regular, cada
A título de comentário final, atende, no período diurno, uma um vivia essa condição de forma
cabe reafirmar que o trabalho clientela de alto poder aquisitivo. O distinta. Os jovens migrantes viam a
realizado por Tedrus evidencia um primeiro dos dois grupos — três escola como meio de acesso à
rigor teórico e metodológico digno rapazes e quatro moças — era modernidade e como meio de
de nota. Seu grande mérito é composto por alunos com um perfil inclusão na sociedade urbana. Os
justamente o de demonstrar que os considerado representativo de uma adolescentes e jovens do segundo
jovens trabalhadores nas ruas não clientela mais tradicional de ensino grupo lidavam com a escola de
estão isolados nem muito menos de adultos: alunos que ingressaram maneira instrumental e imediatista,
articulados em bandos e gangues nas séries iniciais do supletivo, demonstrando pouco interesse em

Revista Brasileira de Educação 259


Notas de Leitura

relação ao conhecimento ali representações de seus entrevistados,


VIEIRA, Márcia Núbia Fonseca.
veiculado. A identidade dos o processo de inclusão-exclusão na
primeiros era marcada pelo mundo Herdeiros de Sísifo. São escola e no trabalho.
Paulo: Pontifícia
do trabalho; a identidade dos A análise das entrevistas mostra
segundos definia-se em campos fora Universidade Católica. que tanto os adolescentes quanto
Dissertação (Mestrado em
do trabalho, como na vivência dos suas mães valorizam igualmente a
Educação), 1997.
grupos de amigos de rua, no lazer, escola e o trabalho. Indica que este
no consumo e até mesmo na desempenha um papel importante na
transgressão. constituição da identidade desses
Esses alunos do segundo A autora revisita o debate a jovens, como tais e como trabalhadores.
grupo, que se auto-afirmavam como respeito das relações entre trabalho e E o aspecto mais interessante é o de
a “turma do mal”, reagiam à escola educação, enfocando-o a partir da que os depoimentos permitem à
antagonicamente, suportando-a situação do aluno-trabalhador. autora concluir, pelo menos em
apenas na medida em que a viam Impõe-se uma tarefa árdua, na medida relação ao grupo estudado, que a
como um espaço de socialização e de em que o tema, além de ter sido exclusão da escola não resultou da
experiência de uma vida juvenil bastante explorado, tem suscitado inclusão no trabalho. Para ela, tal
paralela à vida escolar propriamente uma série de generalizações que, exclusão se deve a uma multiplicidade
dita. continuamente reafirmadas se de fatores. Entre estes salienta a
Os dois grupos demonstravam transformaram não só em “verdades” própria escola que, em sua forma de
conferir uma grande importância ao mas, também, em senso-comum. atuar junto aos alunos originários
papel do professor. Para os jovens Uma dessas “verdades” das famílias pauperizadas, promove,
migrantes, o professor valorizado afiança que o bom desempenho entre eles, o descrédito quanto às suas
era aquele que sabia explicar bem as escolar é incompatível com o capacidades de produzir
matérias, demonstrando paciência e exercício simultâneo do trabalho. intelectualmente, fortalecendo, desse
consideração pelos alunos. Para os Esta tese tem contribuído para modo, sua ligação com o trabalho
demais, o professor era visto como o respaldar concepções e práticas pouco qualificado. Um trabalho no
principal responsável pela qualidade sociais relativas às crianças, qual, apesar das condições adversas e
do relacionamento estabelecido com adolescentes e jovens que, por força da exploração, os jovens entrevistados
eles: se o professor “provocava”, de contingências históricas e encontraram “possibilidades de
eles “reagiam”; se o professor pessoais, têm sido obrigados a fazer auto-afirmação e de satisfação de
demonstrava amizade, eles se exatamente aquilo que a “verdade” algumas de suas necessidades”.
consideravam “conquistados”. considera negativo, ou seja, As conclusões da autora, quer a
Apesar de ter trabalhado com trabalhar e estudar, simultaneamente. respeito do trabalho quer relativas à
um pequeno número de alunos, o Tomando por mote essas escola, devem ser olhadas com cautela
estudo traz à luz aspectos concepções e práticas, a autora na medida em que a pesquisa não
significativos da vida escolar de conduziu um estudo com base em implicou o acompanhamento detalhado
jovens de origens sociais diversas, entrevistas realizadas com um pequeno das atividades do trabalho e, menos
colocando questões instigantes para número de adolescentes do sexo ainda, do dia-a-dia das escolas
futuras pesquisas sobre o tema. masculino que trabalhavam, à época freqüentadas pelos entrevistados.
da pesquisa, como empacotadores Apesar dessa ressalva, o texto
Maria Malta Campos em um supermercado da cidade de evidencia que a situação do aluno-
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tais adolescentes trabalhador configura realidades
São Paulo e Fundação Carlos Chagas registravam passagens pela escola em bem mais complexas do que querem
períodos anteriores mas, naquele fazer crer as generalizações
momento, encontravam-se fora dela. simplistas. Aponta, em razão disso,
Suas mães também foram para a necessidade de novas
entrevistadas, tendo em vista a coleta pesquisas que ajudem a desvendá-las.
das expectativas e reações às
experiências escolares e de trabalho Celso Ferretti
dos filhos. O objetivo da investigação Pontifícia Universidade Católica de
foi o de analisar, através das São Paulo e Fundação Carlos Chagas

260 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Resumos/Abstracts

actors as regards the issue of time in de atores políticos e instituições —


Alberto Melucci
complex societies. governamentais e não
Juventude, tempo e movimentos governamentais. Distingue dois tipos
sociais de tratamento na tematização dos
As atuais tendências emergentes no jovens nos meios de comunicação: a)
Angelina Teixeira Peralva
âmbito da cultura e da ação juvenil cultura e comportamento; b)
têm que ser entendidas a partir de O jovem como modelo cultural problemas sociais. Nos estudos
uma perspectiva macro-sociológica A autora reconstrói o papel social do acadêmicos a ênfase recai sobre a
e, simultaneamente, através da jovem ao longo da história de modo discussão dos sistemas e instituições
consideração de experiências a poder esclarecer o significado que presentes na vida do jovem ou
individuais na vida diária. Este a juventude assume na atualidade. A estruturas sociais que conformam
artigo tenta integrar esse dois níveis partir daí, procura analisar como o situações problemáticas. As ONGs
de análise e propõe que: 1) os novo significado de juventude concentram seus programas para
conflitos e movimentos sociais em emerge do conjunto de juventude em dois blocos: 1)
sociedades complexas mudam do transformações pelas quais a programas de ressocialização; 2)
plano material para o plano sociedade contemporânea está programas de capacitação
simbólico; 2) a experiência do tempo passando. profissional. No campo
é um problema central; 3) pessoas Youth as a cultural model governamental, demonstra a timidez
jovens e, particularmente The author reconstructs the social das ações para a população jovem.
adolescentes, são atores-chave do role of youth throughout history so Considerations about youth as a
ponto de vista sa questão do tempo as to establish the meaning that social theme in Brazil
em sociedades complexas. youth assumes today. From this The author analyzes the appearance
Youth, time and social movements perspective she analyzes how the of youth as a social theme in
The emerging trends in youth culture new meaning of youth emerges from academic studies, in the media as
and action have to be understood the accumulated transformations well as among political and
both from a macro-sociological through which contemporary society institutional actors – both
perspective and through the has passed. governmental and non
consideration of individual governmental. Two types of
experiences in everyday life. This treatment are given to this theme in
article tries to integrate these two the media: a) culture and behavior;
leves of analysis and will argue that: Helena Wendel Abramo b) social problems. The academic
1) conflicts and social movements in Considerações sobre a tematização studies emphasize the discussion of
complex societies shift from the social da juventude no Brasil systems and institutions present in
material to the symbolic; 2) the A autora analisa o aparecimento e o youngsters’ lives or social structures
experience of time is a core issue, a tratamento dado à temática that constitute problematic
core dilemma; 3) young people, and juventude no âmbito dos estudos situations. NGO’s concentrate their
particulary adolescents, are key acadêmicos, na mídia além de parte programs for youth in two areas: 1)

Revista Brasileira de Educação 261


Resumos/Abstracts

programs to resocialize; 2) programs


Jerusa Vieira Gomes Maria Ornélia da Silveira Marques
for professional qualification.
Government agencies have been Jovens urbanos pobres: anotações Escola noturna e jovens
timid in developing programs for sobre escolaridade e emprego O presente trabalho é resultado de
youngsters. Analisa a relação entre pobreza, pesquisas com jovens de um bairro
escolaridade e oportunidades de da periferia de Salvador que
emprego. Retoma algumas assertivas freqüentam a escola noturna de 1.o
sobre o assunto, entre elas a estreita grau com o objetivo de tentar
Marilia Pontes Sposito
conexão entre pobreza-fracasso entender as relações que eles
Estudos sobre juventude em escolar-abandono-exclusão social a estabelecem com a escola, o
educação partir das quais questiona a validade trabalho, a família, o lazer e o
Examina a produção de dessas proposições. Recoloca dois consumo e de como essas relações
conhecimento sobre a temática questionamentos: Em que medida a constroem suas identidades. Através
juventude, apontando questões escola é verdadeiramente valorizada de novos referenciais, as análises
advindas do exame de dissertações e pelo jovem pobre e por seu grupo apontam para novas formas de se
teses defendidas nos Programas de doméstico? Qual a perspectiva de compreender a presença dos jovens
Pós-Graduação em Educação, de valorização do critério escolaridade na escola noturna, ao mesmo tempo
1980 a 1995. Analisa como o campo no caso dos empregos acessíveis ao em que questiona a centralizaçãodo
de estudos da Educação vem jovem urbano pobre? Para responder trabalho nas relações que estes
construindo teórica e a isso, a autora recorre à história estabelecem com a escola e a
conceitualmente o tema da juventude familiar de socialização e, mais sociedade mais ampla.
como objeto de investigação, seus especificamente, à história familiar Night schools and youth
modos de aproximação com o de escolarização. The study is a result of research with
fenômeno em questão, seus principais Poor urban youth: notes regarding youth who frequent an elementary
recortes e, dentro do possível, suas
schooling and employment night school in a periphery district of
relações com os processos históricos
The relationship between poverty, Salvador. The objective is to try to
que permitem a visibilidade desse schooling and employment understand the relations that they
segmento na sociedade brasileira nos
opportunities are analyzed here. establish with school, work, the
últimos anos. Some affirmations about the issue family, leisure and consumerism and
Studies about youth in education are taken up and their validity how these relations construct their
The examination of dissertations and questioned, such as the strict identities. By means of new
theses defended in the Post Graduate connection between poverty-school referentials, the analysis indicates
Programs in Education from 1980 to failure-abandon-social exclusion. new forms of understanding the
1995 raises issues that are discussed Two issues are taken up: To what presence of youth in night schools
in the light of production of extent is the school truly valued by and, at the same time, questions the
knowledge regarding youth themes. poor youth and by their domestic predominant position of work in the
An analysis is made as to how the group? What is the perspective of relationship that they establish with
field of studies in Education has giving importance to the schooling the school and with society at large.
been theoretically and conceptually standard when considering
constructing the youth theme as an employment availability for poor
object of investigation. It also urban youngsters? In order to
analyzes its methods in approaching answer this the author resorts to Guy Bajoit, Abraham Franssen
the issue at hand, its principal family history of socialization and, O trabalho, busca de sentido
thematic cuts and, wherever more specifically, to family history Analisa a crise e a mutação das
possible, its relation with historic of schooling. referências culturais entre os jovens a
processes in recent years that give partir das expectativas e atitudes
visibility to this segment of Brazilian destes em relação ao trabalho.
society. Privilegia esta dimensão de análise,
uma vez que o modelo cultural da
sociedade industrial se caracteriza
pela centralidade da ética do

262 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Resumos/Abstracts

trabalho. Questiona as formas de trabalho e nas relações existentes no ao trabalho. Procuram demonstrar
desagregação do modelo cultural do local de trabalho? Dentro dessa como a crise atual tem afetado
trabalho, bem como a emergência de reflexão aborda, principalmente, a sobremaneira a inserção do jovem
novas orientações com relação ao problemática do jovem brasileiro no mercado de trabalho e a relação
trabalho. Examina as representações diante da crise do trabalho e das desta última com o nível de
e atitudes dos jovens com relação ao alterações no mercado e no mundo instrução, com a escolha
desemprego. A partir daí, demonstra do trabalho. profissional, com as expectativas
como as diferentes experiências e Youth and the labor market
futuras desses jovens.
representações do trabalho e do Based on an analysis of the labor Work as choice and opportunity
desemprego aparecem socialmente crisis in the world the author The authors examine young Italians’
diferenciadas. attempts to understand how this relation to work within the
Work, in search of meaning crisis affects youngsters and their framework of present changes in
This article analyzes the crisis and entrance into the labor market. The society by means of research carried
mutation of cultural references analysis carries out the basic out by IARD in 1983, 1987 and
among youth from the perspective of discussion: what project can be 1992. Data of the 1992 survey is
their expectations and attitudes elaborated to face up to the analyzed and shows that the concept
towards work. The analysis transformations which occur in the of youth has undergone change.
privileges this dimension because the working world; to the new processes Among the changes perceived some
cultural model of an industrial and organization of labor; to the are noteworthy such as: the
society is characterized by focusing introduction of new technologies; to prolonging of the age of youth, the
on the work ethic. It questions the the modifications in labor retarding of the transition to
forms which dissociate the cultural qualification; to working conditions adulthood and the disconnection
model of work as well as the and to the relations existing in the from family ties, as well as the
emerging new guidelines related to work place? This reflection discusses change in perception regarding
it. It examines youth’s representation principally the problem of Brazilian work. An attempt is made to
and attitude with regard to youngsters faced with the labor demonstrate how the present crisis
unemployment. From that viewpoint crisis, the changes in the market and has enormously affected the
it demonstrates how different in the working world. insertion of youth in the labor force
experiences and representations of and its relation with the degree of
work and unemployment are socially instruction, with the choice of a
different. profession, with the future
Antonio Chiesi, Alberto Martinelli
expectations of these youngsters.
O trabalho como escolha e
oportunidade
Heloísa Helena Teixeira de Souza Através de pesquisas realizadas pelo
Martins IARD em 1983, 1987 e 1992, os Gonzalo Falabella
O jovem no mercado de trabalho autores procuram examinar a Juventude temporera: relações
A partir da análise da crise do relação do jovem italiano com o sociais no campo chileno depois do
trabalho no mundo, a autora busca trabalho, no contexto das mudanças dilúvio
entender como esta crise afeta o atuais da sociedade. Analisam os Procura demonstrar a
jovem e a sua inserção no mercado dados da pesquisa de 1992, correspondência entre os jovens da
de trabalho. Sua análise se procurando mostrar como o próprio atualidade que trabalham no campo
fundamenta no questionamento: que conceito de juventude tem-se e o caráter da reestruturação da
projetos podem ser elaborados alterado. Dentro das mudanças economia chilena. Parte da reflexão
diante das transformações que percebidas, destacam algumas de que a reestruturação da economia
ocorrem no mundo do trabalho, com características como: o exigiria enorme flexibilidade nas
os novos processos e organização do prolongamento da idade juvenil, o relações de trabalho, e que esta seria
trabalho, com a introdução de novas retardamento da transição para a uma das características desses
tecnologias, que provocam idade adulta e para o desligamento jovens, principalmente das mulheres.
mudanças nas qualificações dos dos laços familiares, bem como a O artigo se organiza em torno de
trabalhadores, nas condições de mudança de percepção concernente três hipóteses, relacionadas entre si:

Revista Brasileira de Educação 263


Resumos/Abstracts

a) o caráter das transformações atrás, até as manipulações cínicas the 1992 youth demonstrations are
vividas no Chile, particularmente no dos meios de propaganda. Neste examined in a historical perspective,
setor agro-exportador e o jovem ensaio, procuro examinar as analyzing changes in both the
rural moderno que dali surge; b) o manifestações de 1992 em uma relational settings and the cultural-
tipo de ação estatal e social que se perspectiva histórica, analisando ideological contexts that have
desenvolvem em vistas das tanto as mudanças nas relações shaped the participation of Brazilian
características deste novo sociais, quanto as reformulações youth during the past three decades.
personagem; c) o perfil particular político-culturais que influíram na The new arrangements where
destes trabalhadores e a organização participação dos jovens brasileiros Brazilian youngsters are involved —
e o movimento social que surgem em nas últimas três décadas. Para family, study, work and sociability
conseqüência deles. compreender as transformações as well as the changes in the network
Youth in seasonal employment: sociais que levaram os jovens da structures of organized groups and
identidade forte de “estudante” nos their attempts to reach wider social
social relations in the Chilean rural
area after the deluge anos 60 à outra identidade, mais sectors – are all explored in order to
abrangente e ambígua, de “cidadão” understand the social
An attempt is made to relate modern
nos anos 90, examino as transformations that led youth from
day youngsters working in the rural
area to the nature of the reconfigurações das redes de família, the strong “student” identity of the
estudo, trabalho, e sociabilidade dos 1960’s to the more universal
restructuring of Chilean economy.
The reflection points out that the jovens brasileiros, junto com as “citizen” identity in the 1990’s. In
mudanças na estrutura das redes dos considering “young citizenship” a
economy’s restructuring demands
grupos organizados, e as “pontes- reformulated concept of collective
great flexibility in labor relations
and that this is one of the articuladoras” que esses estabelecem identity is pointed out – and its
com setores mais amplos. Na relation with social structure or
characteristics of youngsters,
especially women. The article brings consideração da “cidadania juvenil”, position – which questions the static
aponto para uma reformulação and deterministic visions that
together three interrelated
teórica da noção de identidade generally accompany such concepts.
hypotheses: a) the nature of the
transformations Chile has coletiva — e sua relação com a It is suggested that the systematic
estrutura ou a posição social —, analysis of interpersonal and
undergone, especially in the
exporting agricultural sector, and the questionando as visões estáticas e organizational networks, together
appearance and nature of modern pré-deterministas que geralmente with attention to “multivalence” in
acompanham tais conceitos. Sugiro discourse and action, could shed new
rural youth; b) the type of state and
social action that are developed que a análise sistemática de “redes” insight into how political culture is
interpessoais e organizacionais, reformulated through the conflicting
taking into account the
characteristics of this new person; c) focalizando a “multivalência” de ambiguity of social interactions.
the particular profile of these discursos e ações, pode abrir novos
caminhos na compreensão de como
workers as well as the social
organization and movement which a cultura política é reformulada
através da ambigüidade conflituosa Anne Müxel
appear as a consequence.
das interações sociais. Jovens dos anos noventa: à procura
From students to citizens: youth de uma política sem “rótulo”
networks and political participation A autora parte de investigação
Ann Mische The dramatic convergence of realizada ao longo de cinco anos,
De estudantes a cidadãos: redes de Brazilian young people in protests com jovens de faixa etária entre 18 e
jovens e participação política that demanded the impeachment of 25 anos para demonstrar quais são
A convergência dramática dos “caras President Collor de Melo has as percepções dos jovens a respeito
pintadas” nas ruas das principais produced contradictory do sistema político atual. De que
cidades brasileiras em agosto de explanations, ranging from euphoric maneira se apresentam as
1992 tem gerado interpretações celebrations of the rebirth of the representações do sistema político
contraditórias, desde as celebrações 1960’s student resistance to the para a juventude atual: novas ou
eufóricas do “renascimento” da cynical manipulation of the diferentes? Questiona se os hábitos e
resistência estudantil de três décadas propaganda industry. In this article os comportamentos vigentes

264 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Resumos/Abstracts

estariam sendo substituídos por de uma lista de dezoito efetivos quanto ao estabelecimento
exigências e práticas próprias da comportamentos. Sobre estes de relações com o seu ambiente —
geração de hoje. Foram realizadas comportamentos, questionava-se: se organizações rivais, polícia, sistema
trinta entrevistas aprofundadas, nas os consideravam socialmente político, mídia, etc. Para o autor,
quais os jovens relatam fragmentos criticável; se, em sua avaliação, essas relações formam um sistema de
de histórias de vida, a diversidade de consideravam admissíveis; se lhes intercâmbio multiforme que se revela
suas trajetórias sociais e familiares e parecia possível colocá-los em como sustentáculo da existência das
as condições de sua socialização prática. Dentro desses gangues. Propõe analisar a
política, bem como os métodos de comportamentos examinados, a contribuição que a mídia traz para a
estruturação de sua identidade pesquisa mostra a postura do jovem persistência do fenômeno das
política. A análise dos dados obtidos em relação a assuntos como a gangues urbanas norte-americanas.
é apresentada no artigo. sexualidade, o uso de drogas, a Gangs and the press: producing a
violência, a economia e a vida
Youth in the 90’s: looking for national myth
politics without a “label” individual. Based on an investigation of twelve
In order to demonstrate the Transgression, deviation and drugs years about this issue the author tries
perceptions of youth with regard to An increased predisposition to to explain gangs as “organizations”.
the present political system, the transgression with regard to moral As a collective response to an
author bases her article on a research and legal norms of society are economical situation of poverty and
carried out over five years with pointed out utilizing data obtained isolation, gangs create rational
youth in the 18 to 25 age group. in the third IARD research (carried strategies for survival, applied both
How do the representations of the out in 1992). This research, carried to increasing their membership and
political system present themselves out with Italian youth, sought to to establishing relations with the
to youth today: new or different? It understand how they think about surroundings – rival organizations,
is asked if current habits and social norms by way of a list of police, the political system, mass
behaviors are being substituted by eighteen behavior patterns. About media, etc. For the author, these
demands and practices that are these, it was asked: if these behaviors relations establish multiform systems
common to this generation. Thirty would suffer social criticism; if, in of exchange which encourage the
detailed interviews were made in their appraisal, they would consider existence of gangs. An analysis of
which youngsters told fragments of them admissible; if they considered media’s contribution is proposed to
life stories, the diversity of the course them possible to put into practice. verify how it contributes towards the
of their social and family histories Among the behavior patterns persistence of the phenomenon of
and the conditions of their political examined the research shows how North American urban gangs.
socialization as well as the methods youth positions itself in regard to
used to structure their political issues such as sexuality, the use of
identity. The analysis of the data is drugs, violence, as well as economic
Eloisa Guimarães
presented in the article. and individual life.
Juventude(s) e periferia(s) urbanas
Examina uma agremiação juvenil: a
“galera” — grupo formado nos
Carlo Buzzi Martín Sánchez-Jankowski subúrbios cariocas. As galeras estão
Transgressão, desvio e droga As gangues e a imprensa: a relacionadas ao mundo “funk”, sem,
Aponta o aumento, por parte da produção de um mito nacional contudo, que os universos se
juventude, de uma propensão A partir de uma investigação de doze confundam. A expressão designa
transgressiva em relação às normas anos sobre a questão, o autor grupos de jovens da periferia da
morais e legais da sociedade, a partir procura demonstrar as gangues cidade, com relativa organização
de dados obtidos na terceira como “organizações”. Enquanto interna, que se estruturam em torno
pesquisa do IARD (realizada em resposta coletiva a uma situação de suas áreas de residência e das
1992). Realizada com jovens econômica de pobreza e isolamento, quais incorporam os nomes. Analisa
italianos, a pesquisa visava as gangues elaboram estratégias a heterogeneidade dos movimentos
apreender como estes jovens racionais de sobrevivência que se juvenis e como isso aparece nas
percebiam as normas sociais, através aplicam tanto ao aumento de seus “galeras” estudadas. Aponta, ainda,

Revista Brasileira de Educação 265


Resumos/Abstracts

para a intensa fragmentação e life stories systematized by means of


segmentação desses grupos. a written press survey. It also briefly
goes over some of the more current
Youth and urban periphery
The article examines a youth explanations about certain kinds and
expressions of violence observed in
association called “galera” which
youth groups, especially football fan
emerges in the “carioca” suburbs.
“Galeras” relate to “funk” although cheering groups.
they are not quite the same. The
expression designates groups of
urban periphery youth with some Angelina Teixeira Peralva, Marilia
internal organization, structured Pontes Sposito
around their residential areas from
Quando o sociólogo quer saber o
which they get their names. Youth
que é ser professor: entrevista com
movements are heterogeneous and
François Dubet
this is where the “galeras” that are
Entrevista realizada pelas Prof.ª Dr.ª
studied appear. The article also
Marília Pontes Sposito e Angelina
indicates that these groups are
Teixeira Peralva, da Faculdade de
fragmented and divided.
Educação da USP, com o Prof.
François Dubet, da Universidade de
Bourdeaux II quando de sua visita
Luis Henrique de Toledo ao Brasil em 1996. Dubet fala de sua
Short cuts: histórias de jovens, experiência como professor em um
futebol e condutas de risco colégio durante o período de um
A partir de sua convivência por um ano, aponta as falhas do sistema
período de três anos com jovens escolar e sua opinião sobre como
torcedores, o autor analisa a deve ser a escola hoje.
participação de alguns desses jovens When a sociologist wants to know
em casos de violência física nos what it’s like to be a teacher:
estádios. A pesquisa se baseia ainda interview with François Dubet
em depoimentos, manchetes de Professors Marilia Pontes Sposito
periódicos, fragmentos de história de and Angelina Teixeira Peralva of the
vida sistematizados a partir de School of Education of the
levantamento documental realizado University of São Paulo interview
na imprensa escrita. Retoma, ainda Professor François Dubet of the
que brevemente, algumas das University of Bordeaux II when he
explicações mais correntes sobre visited Brazil in 1996. Dubet speaks
determinadas modalidades e of his experience as a professor in a
expressões da violência observadas school during one year, discusses the
em grupos juvenis, principalmente shortcomings of the school system
entre torcidas. and gives his opinion as to how the
Short cuts: stories of youngsters, school should be today.
football and dangerous behaviors
Based on close association with
youngsters from organized cheering
groups over a period of three years,
the author analyzes cases of physical
violence in stadiums, with the
participation of some of them. The
research is also based on testimonies,
headlines in periodicals, fragments of

266 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


Normas para Colaborações

1. A Revista Brasileira de notas, numeradas, ao final do texto, consistência e o rigor da abordagem


Educação aceita para publicação como texto comum. h) Separar teórica. Eventuais sugestões de
artigos relacionados com a títulos de seções, nome do autor, etc. modificações de estrutura ou de
educação, resultantes de estudos do texto principal com um duplo conteúdo por parte da Editoria,
teóricos, pesquisas, reflexões sobre retorno (ENTER/RETURN). i) NÃO serão elaboradas com consenso do
práticas concretas, discussões utilizar formatação especial (recuo, autor.
polêmicas, etc. Os textos devem ser itálico, etc) para citações. Apenas 5. As resenhas não devem
inéditos, de autores brasileiros e separá-las do texto principal com um ultrapassar 10 laudas e as notas de
estrangeiros. duplo retorno (ENTER/RETURN). leitura 2 laudas. A apresentação deve
2. Os originais devem ser 3. Os textos não devem obedecer ao contido no item 2.
encaminhados à Comissão Editorial exceder 40 laudas com 6. Os quadros, gráficos,
em duas vias impressas, devidamente aproximadamente 30 linhas mapas, etc. devem ser apresentados
formatadas, acompanhadas de digitadas em espaço 1,5, em fonte em folhas separadas do texto
disquete, digitado em um dos corpo 12 pontos (ou 10cpi)). Todas (indicando-se neste os locais em que
programas de edição de texto em as matérias devem ser antecedidas do devem ser incluídos) devendo ser
formato padrão para PC (exceto título em português e inglês e de numerados e titulados corretamente
Carta Certa e Fácil). Entretanto, resumo e abstract, sem ultrapassar e apresentar indicação das fontes que
diferentemente das vias impressas, o 10 linhas, com indicação de pelo lhes correspondem. Sempre que
texto que vai no disquete NÃO deve menos três palavras-chaves (key possível, deverão ser confeccionados
ser formatado. Isto é: a) Digitar todo words). O autor deve também para sua reprodução direta.
o texto numa única fonte (tipo), sem fornecer dados relativos à instituição 7. As notas de pé-de-página,
fontes diferentes para títulos, seções, e área em que atua, bem como quando existirem, devem ser de
etc. b) Não utilizar negrito, indicar endereço para natureza substantiva. As menções de
sublinhado ou itálico em títulos e correspondência com os leitores. As autores, no correr do texto, devem
seções. c) Não utilizar caixa alta referências bibliográficas (vide subordinar-se à forma (autor, data)
(tudo em maiúscula) para títulos, abaixo) devem estar incorporadas no ou (Autor, data, página) como nos
seções ou para ênfase. d) Para ênfase texto e as notas devem ser exemplos: (Apple, 1989) ou (Apple,
ou destaque, utilizar itálico e NÃO explicativas. 1989, p. 95). Diferentes títulos, do
negrito ou sublinhado. e) Assinalar 4. A publicação dos artigos mesmo autor publicados no mesmo
os parágrafos com um único toque está condicionada a pareceres ad hoc ano deverão ser diferenciados
de tabulação. f) Dar ENTER/RETURN de membros do Conselho Editorial adicionando-se uma letra depois da
apenas no final do parágrafo. g) ou colaboradores. A seleção de data. Exemplo: (Gadotti, 1995a),
NÃO utilizar a função de nota de artigos para publicação toma como (Gadotti, 1995b), etc.
rodapé (footnote) ou de nota final referência a sua contribuição à 8. A bibliografia será
(endnote) do programa de educação e à linha editorial da apresentada ao final do artigo, em
processamento de texto. Em vez Revista, a originalidade do tema ou ordem alfabética, obedecendo as
disso, simplesmente colocar todas as do tratamento dado ao tema, a seguintes indicações:

Revista Brasileira de Educação 267


Normas para Colaborações

a) Tratando-se de livros: ensino de segundo grau. Em Aberto, Latino-Americana. São Paulo:


sobrenome do autor (em caixa alta)/ v.4, nº 28, p. 35-38. Cortez.
VÍRGULA/Seguido do nome (em c) Tratando-se de coletâneas: d) Tratando-se de teses
caixa alta e baixa)/VÍRGULA/Data, sobrenome do autor do capítulo (em acadêmicas: sobrenome do autor (em
entre parênteses/PONTO/Título da caixa alta)/VÍRGULA/seguido do caixa alta)/VÍRGULA/Seguido do
obra (em itálico)/DOIS PONTOS (se nome (em caixa alta e baixa)/ nome (em caixa alta e baixa)/
houver subtítulo)/Subtítulo (se VÍRGULA/Data, entre parênteses/ VÍRGULA/Data, entre parênteses/
houver)/PONTO/Edição de forma PONTO/Título do capítulo/ PONTO/Título da obra (em itálico)/
abreviada e se não for a primeira/ PONTO/Escrever “In:”/Sobrenome DOIS PONTOS (se houver
PONTO/Local da publicação/ do organizador (em caixa alta)/ subtítulo)/Subtítulo (se houver)/
ESPAÇO, DOIS PONTOS, ESPAÇO/ VÍRGULA/Iniciais do nome do PONTO/Grau acadêmico a que se
Nome da editora/PONTO/Nome do organizador/(SE HOUVER OUTRO refere/PONTO/Instituição onde foi
tradutor, quando houver/PONTO/. ORGANIZADOR, REPETIR ESTA apresentada/VÍRGULA/Tipo de
Exemplo: APPLE, Michael W., OPERAÇÃO SEPARANDO OS reprodução/PONTO.
(1989). Educação e poder. 2ª ed. NOMES ATRAVÉS DE VÍRGULA)/ Exemplo: DI GIORGI,
Porto Alegre: Artes Médicas. Escrever, quando for o caso, Cristiano Amaral Garboggini,
Tradução de Maria Cristina “(orgs.)” ou “(coord.)”/PONTO/ (1992). Utopia da educação popular:
Monteiro. Título da coletânea (em itálico)/ o paradigma da educação popular e
b) Tratando-se de artigos: DOIS PONTOS (se houver a escola pública. Doutoramento em
sobrenome do autor (em caixa alta)/ subtítulo)/Subtítulo (se houver)/ educação. Faculdade de Educação da
VÍRGULA/seguido do nome (em PONTO/Edição de forma abreviada Universidade de São Paulo.
caixa alta e baixa)/VÍRGULA/Data, e se não for a primeira/PONTO/
entre parênteses/PONTO/Título do Local da publicação/ESPAÇO, DOIS Observação: O envio
artigo/PONTO/Título do periódico PONTOS, ESPAÇO/Nome da espontâneo de qualquer colaboração
(em itálico)/VÍRGULA/Volume do editora/PONTO/Nome do tradutor, implica automaticamente a cessão
periódico/VÍRGULA/Número do quando houver/PONTO. integral dos direitos autorais à
periódico/VÍRGULA/Páginas Exemplo: ROMÃO, José E., Revista Brasileira de Educação da
correspondentes ao artigo/PONTO. (1994). Alfabetizar para libertar. In: ANPEd. A Revista não se obriga a
Exemplo: MACHADO, L.R.S., GADOTTI, M., TORRES, C. A. devolver os originais das
(1985). Cidadania trabalho no (orgs.). Educação popular: utopia colaborações enviadas.

268 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


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cilitando seu intercâmbio no âmbito nacional e internacional. É uma publicação quadrimestral, distribuída
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