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ROBBE-GRILLET, Alain. Por um novo romance. Tradução de Cristóvão Santos.

Lisboa:
Publicações Europa-América, 1965.

Sobre nouveau roman: “designação cômoda abrangendo todos os que procuram novas formas
romanescas, susceptíveis de exprimir (ou de criar) novas relações entre o homem e o mundo, todos
os que estão decididos a inventar o romance, isto é, a inventar o homem. Sabem esses que a
repretição sistemática das formas do passado é não só absurda e vã como também pode ser
prejudicial: escondendo-nos a nossa situação real no mundo presente, impede-nos, ao fim e ao cabo,
de construir o mundo e o homem de amanhã.” (p. 10)
“De futuro, aliás, os objectos pouco a pouco perderão a sua inconstância e os seus segredos,
reunirão ao falso mistério, à interioridade suspeita que um ensaísta denominou 'o coração romântico
das coisas'. Estas já não serão o vago reflexo da alma indecisa da personagem principal, a imagem
dos seus tormentos, a sombra dos seus desejos. Ou, antes, se acaso as coisas servem apenas de
apoio transitório às paixões humanas, não aceitarão a tirania das significações senão aparentemente
– e por ironia –, para melhor mostrar até que ponto são estranhas ao homem.
Quanto às personagens do romance, é natural que venham a ser objecto de múltiplas interpretações
e dêem ensejo a comentários psicológicos, psiquiátricos, religiosos ou políticos, segundo as
preocupações de cada um. Depressa nos apercebemos da sua indiferença a respeito destas supostas
virtualidades. Ainda que o herói tradicional seja constantemente solicitado, dominado, destruído
pelas interpretações que o autor propõe, sempre relegado para um algures imaterial e instável, cada
vez mais longíquo, mais fantástico, o herói futuro, pelo contrário, lá se conservará. E são os
comentários que ficarão algures; diante da presença irrefutável, aparecerão como inúteis,
supérfluos, e mesmo desonestos.” (p. 24)
“É importante a revolução que se operou: não só já não consideramos o mundo como um bem
nosso, nossa propriedade privada, decalcada sobre as nossas necessidades e domesticável, mas
também já não acreditamos na tal profundidade. Enquanto as concepções essencialistas do homem
caíam no descrédito, a ideia de 'condição' substitui de futuro de 'natureza', a superfície das coisas
deixa de ser para nos a máscara do seu âmago, sentimento que precede todo o 'além' da metafísica.
Era, pois, toda a linguagem literária que tinha de mudar, o que, aliás, já vai acontecendo.
Verificamos continuamente a repugnância crescente dos mais lúcidos pela palavra de carácter
visceral, analógico ou mágico. Enquanto o adjetivo óptico, descritivo, o que se contenta com medir,
situar, limitar, definir, mostra provavelmente o caminho difícil de uma nova arte romanesca.” (p.
27)
“O romance de personagens pertence inteiramente ao passado, caracteriza uma época: a que marcou
o apogeu do indivíduo. […] Era alguma coisa o ter uma fisionomia num universo em que a
personalidade representava do mesmo passo o meio e o fim de toda a pesquisa.
O mundo de hoje está menos seguro de si próprio, talvez mais modesto, pois renunciou ao poder
soberano da pessoa, mas também mais ambicioso, porque vê muito mais. O culto exclusivo do
'humano' cedeu o passo a uma tomada de consciência mais vasta, menos antropocentrista. O
romance parece vacilar, tendo perdido o seu melhor apoio de outrora, o herói.” (p. 33)
“Todos os elementos técnicos da narrativa – emprego sistemático do pretérito perfeito e da terceira
pessoa, adopção incondicional do desenvolvimento cronológico, intrigas lineares, curva regular das
paixões, tensão de cada episódio para um fim, etc. –, tudo visava impor a imagem de um universo
estável, coerente, contínuo, unívoco, completamente decifrável. Como a intelegibilidade do mundo
não era posta em questão, o contar não constituía problema. O estilo romanesco podia ser simples.
Mas a partir de Flaubert tudo começa a oscilar. Cem anos mais tarde, todo o sistema não é mais que
uma recordação; e é a esta recordação, a este sistema morto, que se quer à viva força acorrentar o
romance.” (p. 37)
“Em qualquer dos casos, trata-se de reduzir o romance a uma significação que lhe é exterior, de o
tornar um meio para atingir um valor que o transcende, um além-de, espiritual ou terreno, a
Felicidade futura ou a Verdade eterna. […] A existência de uma obra de arte, o seu peso, não estão à
mercê de grades de interpretação que coincidiriam ou não com os seus contornos. A obra de arte, tal
como o mundo, é uma forma viva: existe, não tem necessidade de justificação. A zebra é
incontestavelmente real, não obstante as suas listras serem desprovidas de sentido. O mesmo
acontece com uma sinfonia, uma pintura, um romance: é na sua forma que reside toda a sua
realidade.” (p. 49)
“condenar, em nome do humano, o romance que põe em cena semelhante homem, é adoptar o ponto
de vista humanista, segundo o qual não basta mostrar o homem lá onde está: deve-se ainda
proclamar que está em toda a parte. Com o pretexto de que o homem não pode ter do mundo senão
um conhecimento subjetivo, o humanismo decide ver nele a justificação de tudo. Verdadeira ponde
de alma lançada entre o homem e as coisas, o olhar do humanismo é principalmente o penhor de
uma solidariedade.
No domínio literário, a expressão desta solidariedade aparece sobretudo como a pesquisa, erigida
em sistema, das relações analógicas.
A metáfora, com efeito, nunca é uma imagem gratuita.” (p. 59)
“Admitido o princípio desta comunhão, falaria da tristeza de uma paisagem, da indiferença de uma
pedra, da fatuidade de um balde de carvão. Estas novas metáforas já não fornecem informações
apreciáveis sobre os objectos submetidos ao meu exame, mas o mundo das coisas terá sido tão bem
contaminado pelo meu espírito que será doravante susceptível de uma emoção ou de um rasgo de
carácter. Serei eu, apenas eu, a esquecer que sinto a tristeza ou a solidão; os elementos afectivos
serão em breve considerados a realidade profunda do universo material, a única realidade – por
assim dizer – digna de prender a minha atenção.” (p. 62)
“Portanto, trata-se essencialmente de descrever a nossa consciência. […] além disso, esta natureza
não pertence apenas ao homem, pois constitui o laço entre o seu espírito e as coisas: efectivamente
somos convidados a acreditar numa essência comum a toda a 'criação'. O universo e eu já não temos
senão uma única alma, um único segredo.” (p. 63)
“Recusar a nossa pretensa 'natureza' e o vocabulário que lhe perpetua o mito, supor os objectos
puramente exteriores e superficiais, não é – como se tem dito – negar o homem; mas, sim, repelir a
ideia 'panantropológica' contida no humanismo tradicional, e provavelmente em todo o humanismo.
Não é outra coisa senão levar até às últimas consequências a reivindicação da minha liberdade.” (p.
64)
“Se esses objectos são, como se diz, mais 'humanos' que os nossos, é unicamente – e nisso estamos
de acordo – porque a situação do homem no mundo que habita já não é hoje a mesma que há cem
anos. E de nenhum modo porque a nossa descrição seja demasiado neutra, demasiado objectiva,
visto que precisamente não o é.” (p. 148)
“Não só é o homem quem, nos meus romances por exemplo, descreve tudo, mas é o menos neutro,
o menos imparcial dos homens [...] Assim é fácil mostrar que os meus romances – como os de todos
os meus amigos – são mesmo mais subjectivos que os de Balzac, por exemplo. Quem descreve o
mundo nos romances de Balzac? Qual é o narrador omnisciente, omnipresente, que está em todo o
lado ao mesmo tempo, que vê simultaneamente o verso e o reverso das coisas, que segue a um
tempo os movimentos da cara e os da consciência, que sabe o futuro de qualquer aventura? […]
Enquanto nos nossos livros, pelo contrário, é um homem quem vê, sente, imagina, um homem
situado no espaço e no tempo, condicionado pelas suas paixões, um homem como vocês e eu. E o
livro só relata a sua experiência, limita e incerta. É um homem daqui, um homem de agora, que
enfim é o seu próprio narrador” (p. 149)
“Reconheçamos primeiro que a descrição não é uma invenção moderna. O grande romance francês
do século XIX em especial, com Balzac à cabeça, está cheio de casas, mobiliários, trajos, longa e
minuciosamente descritos […] Tratava-se então quase sempre de levantar um cenário, definir o
quadro da acção e apresentar a aparência física dos seus protagonistas. […] garantia, pela sua
semelhança com o mundo 'real', a autenticidade dos acontecimentos, das palavras, dos gestos, que o
romancista neles punha.” (p. 158)
“É que o lugar e o papel da descrição mudaram completamente. Enquanto as preocupações de
ordem descritiva enchem o romance, perdiam ao mesmo tempo o seu sentido tradicional. Já não se
trata para elas de definições preliminares.” (p. 159)
“[...] a imagem é posta em dúvida à medida que se constrói. Mais alguns parágrafos e, quando a
descrição acaba, vê-se que nada ficou de pé atrás dela” (p. 160)
“Já não se trata aqui de tempo que corre, pois que, paradoxalmente, os gestos, pelo contrário, só se
dão cristalizados no instante.” (p. 160, 161)
“Compreende-se por isso como é falso dizer que semelhante estilo tende para a fotografia ou para a
imagem cinematográfica. A imagem, tomada isoladamente, só pode fazer ver, à maneira da
descrição balzaquiana, e pareceria portanto feita, pelo contrário, para substituir esta, de que aliás o
cinema naturalista não se priva.” (p. 161)
“As rupturas de montagem, as repetições de cena, as contradições, as personagens subitamente
cristalizadas como em fotografias de amador, dão a este presente perpétuo toda a sua força e toda a
sua violência. Já não se trata então da natureza das imagens, mas da sua composição, e é ali apenas
que o romancista pode encontrar, embora transformadas, algumas das suas preocupações de estilo.”
(p. 162)
As novas estruturas cinematográficas, o movimento das imagens e dos sons, mostram-se
directamente sensíveis ao espectador desprevenido; chega a parecer a muitos que o seu poder é
infinitamente mais forte que o da literatura. Mas provocam também, no seio da crítica tradicional,
reacções de defesa ainda mais vivas.” (p. 162)
“Compreende-se que as três censuras não constituam no fundo senão uma só: a estrutura do filme
não dá confiança suficiente à verdade objectiva das coisas. […] O que desconcerta os espectadores
enamorados de 'realismo' é que já não se tenta aqui fazer-lhes crer no que quer que seja – direi
quase: antes pelo contrário... O verdadeiro, o falso e o fazer crer tornaram-se mais ou menos o
assunto de toda a obra moderna[...]” (p. 163)
“É assim que encontramos ali, no estilo cinematográfico, uma função próxima da assumida pela
descrição em literatura: a imagem assim tratada (quanto aos actores, ao cenário, à montagem, nas
suas relações com o som, etc.) impede de crer ao mesmo tempo que afirma, como a descrição
impedia de ver o que mostrava.” (p. 163, 164)
“É o mesmo movimento paradoxal (construir destruindo) que se encontra no tratamento do tempo.
O filme e o romance apresentam-se à primeira vista sob a forma de desenvolvimentos temporais –
contrariamente, por exemplo, às obras plásticas, quadros ou esculturas. O filme, à semelhança da
obra musical, é mesmo minutado de maneira definitiva (enquanto a duração da leitura pode variar
até ao infinito, de uma página para outra ou de um indivíduo para outro). Em todo o caso, filme e
romance encontram-se hoje em dia na construção de instantes, de intervalos e de sucessões que já
nada têm que ver com os dos relógios ou do calendário. Tentemos precisar-lhes um pouco o papel.
Nos últimos anos temos repetido que o tempo era o 'personagem' principal do romance
contemporâneo. Desde Proust e Faulkner, os retornos ao passado, as rupturas de cronologia,
parecem com efeito estar na base da própria organização da narrativa, da sua arquitectura. O mesmo
acontece, evidentemente, ao cinema: toda a obra cinematográfica moderna será um reflexão sobre a
memória humana, as suas incertezas, a sua obstinação, os suas dramas, etc.” (p. 164)
“[...] as pesquisas actuais parecem, pelo contrário, pôr em cena quase sempre estruturas mentais
privadas de 'tempo'. E é justamente o que as torna logo à primeira tão desconcertantes. […] O
universo no qual se desenrola todo o filme é de maneira característica o de um presente perpétuo
que torna impossível todo o recurso à memória. É um mundo sem passado que se basta a si próprio
em cada instante e se paga sucessivamente. Este homem, esta mulher, só começam a existir quando
aparecem na tela pela primeira vez; antes não são nada; e, uma vez terminada a projecção, de novo
já nada são. A sua existência só dura o que dura o filme.” (p. 165)
“Assim, a duração da obra moderna não é de maneira nenhuma um resumo, um abreviado de uma
duração mais extensa e mais 'real' que seria a da anedota, ou da história contada. Há, pelo contrário,
identidade absoluta entre as duas durações. Toda a história de Marienbad não se passa nem em dois
anos, nem em três dias, mas exactamente em hora e meia.” (p. 166)
“Mas dir-se-á: que representam nestas condições as cenas a que assistimos? Que significam em
particular as sucessões de planos diurnos e nocturnos, ou as numerosíssimas trocas de trajos,
incompatíveis com uma tão curta duração? É aí evidentemente que as coisas se complicam. Não
pode tratar-se aqui senão de um desenvolvimento subjectivo, mental e pessoal.” (p. 166)
“ […] do mesmo modo que o único tempo que importa e o do filme, a única 'personagem'
importante é o espectador; é na sua cabeça que se desenrola toda a história, que é exactamente
imaginada por ele” (p. 166, 167)
“Mais uma vez a obra não é o testemunho de uma realidade exterior, mas por si só a própria
realidade. Logo, é impossível ao autor tranquilizar esse espectador inquieto sobre a sorte dos heróis
após a palavra 'fim'. Após a palavra 'fim' já não se passa absolutamente nada , por definição. O
único futuro que a obra pode aceitar é um novo desenvolvimento idêntico: tornar a pôr as bobinas
do filme no aparelho de projecções.” (p. 167)
“Do mesmo modo, era absurdo julgar que no romance La Jalousie, publicado dois anos mais cedo,
existia uma ordem de acontecimentos, clara e unívoca, e que não era a das frases do livro, como se
eu próprio me divertisse a misturar um calendário preestabelecido, como se baralham cartas. A
narrativa era, pelo contrário, feita de tal maneira que qualquer tentativa de reconstituição de uma
cronologia exterior levaria cedo ou tarde a uma série de contradições, portanto a um beco sem saída.
E isto também não com o fim estúpido de desorientar a Academia, mas precisamente porque não
existia para mim qualquer ordem possível fora da do livro. Este não era uma narração emaranhada
de uma simples anedota estranha a ele, mas ainda aqui o próprio desenvolvimento de uma história
que não tinha outra realidade senão a da narrativa, desenvolvimento que, aliás, não se operava em
parte nenhuma a não ser (p. 167) na cabeça do narrador invisível, isto é, do escritor e do leitor” (p.
167, 168)
“Na narrativa moderna dir-se-ia, entretanto, que o tempo está cortado da sua temporalidade. Ele já
não flui. Já não realiza nada. E é sem dúvida o que explica esta decepção que se segue à leitura de
um livro de hoje ou à representação de um filme. […] Não só pretendem nenhuma outra realidade
senão a da leitura, ou do espectáculo, mas também parecem sempre em vias de se contestar, de se
porem eles próprios em dúvida à medida que se constroem. Aqui o espaço destrói o tempo, e o
tempo sabota o espaço.” (p. 168)
“A descrição não progride, contradiz-se, anda à volta. O instante nega a continuidade.” (p. 168, 169)
“Ora, se a temporalidade preenche a espera, a instantaneidade ilude-a; do mesmo modo que a
descontinuidade espacial se desprende da armadilha da anedota. As descrições de que o movimento
extrai toda a confiança nas coisas descritas, os heróis sem naturalidade como sem identidade, o
presente que se inventa constantemente, como no fio da escrita que se repete, desdobra, modifica, e
contradiz, sem nunca se acumular para constituir um passado – portanto uma 'história' no sentido
tradicional –, tudo isto não pode senão convidar o leitor (ou o espectador) a um outro modo de
participação análogo àquele que tinha por hábito.” (p. 169)
“Porque, em vez de o desprezar, o autor hoje proclama a absoluta necessidade que tem do seu
concurso, um concurso activo, consciente, criador. O que lhe pede não é o aceitar um mundo já
pronto, acabado, cheio, fechado sobe si próprio; é, pelo contrário, o participar numa criação, o
inventar por seu turno a obra – e o mundo – e aprender assim a inventar a sua própria vida.” (p.
169)
“Resta, portanto, a significação imediata das coisas (descritiva, parcial, sempre contestada), isto é, a
que situa aquém da história, da anedota do livro, como a significação profunda (transcendente) se
situa além. É nela que incidirá de futuro o esforço de pesquisa e criação.” (p. 181)
“Mas os diferentes níveis de significação da linguagem que acabamos de assinalar têm entre si
múltiplas interferências. E é provável que o novo realismo destrua algumas das oposições teóricas.
A vida dos nossos dias, a ciência de hoje, realizam a transposição de muitas antinomias categórcas
estabelecidas pelo racionalismo dos séculos passados. É normal que o romance, que, como toda a
arte, pretende preceder os sistemas de pensamento e não segui-los, esteja já em vias de fundir entre
si os dois termos de outros pares de contrários: fundo-forma, objectividade-subjectividade,
significação-absurdo, construção-destruição, mem´roa-presente, imaginação-realidade, etc.” (p.
181, 182)
“Repetimos, da extrema direita à extrema esquerda, que esta arte nova é desastrada, decadente,
desumana e sombria. Mas a boa saúde a que este juízo alude é a dos antolhos e do formol, a da
morte. Somos sempre decadentes em relação às coisas do passado […]. O que propõe a arte de hoje
ao leitor e ao espectador é em qualquer caso uma maneira de viver, no mundo presente, e de
participar na criação permanente do mundo de amanhã.” (p. 182)
“[...]E que as formas romanescas passam, é justamente o que diz o Novo Romance![...] É possível,
com efeito, que chegue esse dia, e mesmo muito cedo. Mas assim que o Novo Romance começar a
'servir para alguma coisa', quer seja para a análise psicológica, para o romance católico ou para o
realismo socialista, será para os autores a indicação de que um Novíssimo Romance vai nascer,
embora ainda não se saiba para que poderá servir – a não ser para a literatura.”

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