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Caderno Iterra 11 PDF
Caderno Iterra 11 PDF
Desenho de capa: “Símbolo da Turma José Martí” - arte construída pelos estudantes do curso de
Pedagogia Iterra/Uergs com a participação da educadora Ir. Elda Broilo.
Projeto gráfico:
Diagramação:
ITERRA
Rua Princesa Isabel, 373
Cx Postal 134
95 330 000 Veranópolis/RS/ Brasil
Fone / fax: 54 3441 1755
Endereço eletrônico: iterrageral@iterra.org.br
3
Sumário
Apresentação
Apresentação
1
Este número foi organizado pelo Coletivo de Coordenação do Setor de Educação do MST e divulgou textos sobre
cinco turmas de “Pedagogia da Terra” desenvolvidas em diferentes parcerias e regiões do país; foram textos
solicitados a estudantes de cada turma com o objetivo de registrar e socializar o percurso e as características principais
das experiências em andamento (ou já concluídas) há mais tempo. Há também neste Caderno um texto mais geral que
busca chamar a atenção para esta identidade de formação em construção: como diferentes cursos, com distintas bases
formais de currículo, com diferentes sujeitos humanos, mas com um mesmo sujeito coletivo, o Movimento Social,
passam a se vincular desde um nome simbólico comum: “Pedagogia da Terra”.
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Que foram organizados e se encontram disponíveis para consulta no Centro de Documentação “Haydée Santamaría
Cuadrado” do Iterra.
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mais amplo de ressignificar a formação profissional dos pedagogos, e mais amplamente dos
educadores, fazendo isso desde o reconhecimento da especificidade do campo, de seus sujeitos, e
das experiências educativas de Movimentos Sociais que influenciam sua dinâmica atual e que
estão empenhados na construção da Educação do Campo.
E o terceiro objetivo desta publicação é chamar a atenção (de nós próprios e de possíveis
interlocutores que possamos ter pela leitura deste Caderno) para a importância do registro e da
sistematização das práticas na reflexão dos sujeitos de cada processo pedagógico e para o diálogo
entre elas. Sem registros não há análise; e sem análise não há como atingir o patamar necessário às
transformações que buscamos e à formação humana a que temos direito.
No mesmo tempo em que apresentamos este Caderno há uma segunda turma deste curso e
deste convênio em andamento, a “Turma Margarida Alves”, que já se encaminha para sua última
etapa de curso em 2007 e que também está produzindo suas narrativas sobre o processo formativo
vivenciado. Também nesse período o Iterra se prepara para o início de uma nova experiência, de
um novo curso, uma Licenciatura em Educação do Campo, que vai desenvolver em parceria com a
Universidade de Brasília e com apoio do Ministério da Educação, a partir do segundo semestre
deste ano e também envolvendo as organizações da Via Campesina Brasil. Nosso trabalho de
formação de educadores, portanto, continua; e os desafios de uma prática mais reflexiva, também.
O Caderno foi organizado em quatro partes. Na primeira delas há um texto que informa
brevemente sobre o curso e sua primeira turma, buscando também construir uma chave de leitura
para esta experiência formativa através de algumas reflexões sobre o perfil do pedagogo da terra e
as intencionalidades do processo de educação desenvolvido.
Nas partes seguintes a palavra está com a Turma José Martí. Socializamos algumas de suas
produções escritas que integraram a intencionalidade do registro e da leitura do movimento
formativo do curso. A segunda parte divulga um dos produtos finais do processo de construção
coletiva da “Memória da Turma”. A terceira traz uma amostra dos Memoriais de Aprendizado
escritos por educandos e educandas na etapa final do curso. E a quarta parte foi composta com
alguns textos que dão conta da leitura/análise que a turma fez sobre seu processo formativo.
Em anexo trazemos a lista de formandos e formandas da Turma José Martí, os principais
autores deste Caderno e a letra da canção que criaram para simbolizar seu compromisso
profissional e militante.
Boa leitura e boa reflexão a todos e todas!
Parte 1
Este texto é um exercício de memória e projeto. Relembra um processo para construir uma
chave de leitura sobre seus acontecimentos e resultados e ao mesmo tempo para a projeção de sua
continuidade. O processo rememorado tem como objeto a formação de educadores do campo
desenvolvida através de um curso de Pedagogia. Seu projeto político-pedagógico específico o
integra a um conjunto de práticas identificadas hoje pelo nome de “Pedagogia da Terra”.
Nossa ferramenta de rememoração foi a leitura de escritos produzidos durante o acontecer
da experiência de uma turma em particular: a “Turma José Martí”; em uma especificidade de
desenho organizativo e pedagógico de curso: o do “Pedagogia da Terra da Via Campesina”. Foram
lidas produções da turma, da coordenação do curso e os memoriais de aprendizado construídos
pelos estudantes na última etapa; textos de registro e textos de memória reflexiva do processo
formativo vivenciado.
Duas interrogações principais orientaram nossa leitura e escrita, e elas estão referenciadas
em algumas reflexões desta década de construção prático-teórica da Educação do Campo. Foram
as mesmas perguntas que orientaram um exercício semelhante feito pela própria Turma José Martí
nas etapas finais de seu curso. A primeira interrogação é sobre o perfil de formação do pedagogo
da terra, do educador do campo, que estamos construindo: quais os traços mais significativamente
trabalhados neste curso; que perfil orienta e se projeta desde esta experiência formativa. A segunda
interrogação diz respeito às intencionalidades do processo de formação: como se chega a produzir
este perfil, quais foram as principais estratégias pedagógicas deste processo; como se forma um
educador do campo.
Esta reflexão integra um duplo desafio coletivo. O primeiro foi assumido pela Turma José
Martí e pela coordenação deste curso: através da reconstituição do processo “passar a limpo” o
projeto político-pedagógico da “Pedagogia da Terra da Via Campesina”, pensando em próximas
turmas, novas parcerias e também em outros cursos. O segundo desafio é da Educação do Campo:
avançarmos na reflexão teórica sobre seu projeto educativo e as práticas de formação de
educadores que podem ajudar a constitui-lo. Nesta perspectiva, embora este texto inclua elementos
de narrativa, seu objetivo não é contar a experiência vivenciada por esta turma, mas sim abstrai-la.
Escolhemos focalizar neste texto as questões do perfil de formação e das intencionalidades
do processo formativo porque elas foram identificadas, junto com os educandos e as educandas
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Da Unidade de Educação Superior do Iterra e Coordenação do Curso de Pedagogia. Texto concluído em março de
2007.
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Deste mesmo convênio de Pedagogia, há uma segunda turma em andamento no ITERRA, a Turma “Margarida
Alves”, que iniciou o curso em 2003 e deverá conclui-lo em junho de 2007.
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O MTD não integra a Via Campesina, mas participou desta e de outras de suas iniciativas.
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Há outra parceria no mesmo formato entre a Uergs e a Fundação de Desenvolvimento, Educação e Pesquisa da
Região Celeiro (FUNDEP), feita para realização do Curso de Desenvolvimento Rural e Gestão Agroindustrial,
também com duas turmas.
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conjunto de cursos que desde 1998, em diferentes lugares, com diferentes sujeitos, particularmente
os educadores e as educadoras Sem Terra, vêm se construindo como uma identidade de formação.7
Também foi aos poucos identificado como “Pedagogia da Terra da Via Campesina”, para afirmar
uma novidade desta experiência em particular, que foi a da participação de diferentes organizações
camponesas na construção de um processo formativo desta natureza e, conseqüentemente, no
desenho de novos traços no perfil do educador do campo e no modo de conduzir sua formação.
O currículo do curso de Pedagogia da Universidade foi adequado para uma organização em
oito etapas intensivas, com tempos e espaços alternados entre Universidade (Tempo Escola, em
torno de 50 dias letivos) e locais de trabalho/militância dos estudantes (Tempo Comunidade, em
torno de 90 dias).
O Tempo Escola do curso acontece na sede do Iterra em Veranópolis, Rio Grande do Sul,
compartilhando o espaço físico e pedagógico do Instituto de Educação Josué de Castro (IEJC),
escola de educação básica de nível médio e de educação profissional mantida pelo Iterra.
A primeira turma de estudantes deste curso, também a primeira a iniciar o curso na Uergs,
decidiu já na primeira etapa que queria ser chamada de “Turma José Martí”, em homenagem a este
pensador revolucionário latino-americano. Seus integrantes têm algumas características comuns.
As principais talvez sejam duas: a de que todas as pessoas tiveram em sua base de formação
processos produtivos próprios do campo e a de que foram indicadas para o curso pela sua
participação nas Organizações e Movimentos Sociais que constituíram a parceria com esta
Universidade.
Concluíram o processo do curso 45 estudantes (10 homens e 35 mulheres) originários de
comunidades rurais dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo.
Quando começaram o curso sua média de idade era de 22 anos, incluindo pessoas de 17 a 40 anos,
com tempos de envolvimento nos Movimentos Sociais também diferentes: de menos de um mês
até pouco mais de 15 anos.
Educadores, educadoras e docentes que trabalham nas turmas especiais deste convênio são
originários de diferentes instituições. No convênio, garantir os professores é uma atribuição da
Universidade, mas desde o início instituímos um acordo de indicação conjunta, que aos poucos foi
assumindo o caráter de negociação, facilitada e dificultada pelo fato de que a Uergs não tinha no
período de realização desta primeira turma seu corpo docente concursado e nem dispunha de
professores para todos os componentes previstos na base curricular do curso. O Iterra participa da
escolha dos docentes a cada etapa, e isto tem significado também a possibilidade de incluir
educadores da rede nacional de intelectuais vinculados ao debate dos Movimentos Sociais e da
Educação do Campo.
As relações de gestão deste curso são complexas e por isso mesmo potencialmente
formadoras; há as relações entre a Uergs e o Iterra; entre a Uergs e os estudantes e entre o Iterra, a
escola e os estudantes; há também as relações entre as diferentes organizações da Via Campesina;
entre o Iterra, a Uergs e estas organizações; há ainda as relações entre educadores e educandos,
entre os estudantes de diferentes turmas que estudam na escola no mesmo período e entre os
estudantes da própria turma. Particularmente a situação de realizar um curso de diferentes
Movimentos Sociais em uma instituição vinculada a um movimento específico acabou se tornando
um objeto privilegiado para desenvolver uma formação na perspectiva de construção e
enraizamento do projeto de Educação do Campo da Via Campesina.
O projeto político-pedagógico do curso para esta turma teve a marca da construção
processual, exatamente pelas circunstâncias objetivas das parcerias e do processo de implantação
da própria Universidade.
7
Uma abordagem deste percurso pode ser encontrada no texto “Pedagogia da Terra: formação de identidade e
identidade de formação” (Cadernos do ITERRA, 2002).
9
O Iterra participou das discussões que serviram de base para a elaboração do projeto do
curso regular de Pedagogia da Uergs. A equipe de implantação da Universidade promoveu
seminários no segundo semestre de 2001 com a participação de diferentes segmentos da sociedade,
incluindo representação de Movimentos Sociais e Movimento Sindical do Rio Grande do Sul. As
experiências de diferentes Universidades que desenvolvem cursos de Pedagogia também foram
consideradas.
Não houve tempo para uma discussão institucional (na ou com a Universidade) sobre o
perfil específico do profissional da Educação do Campo vinculado aos Movimentos Sociais e que
exigências de adequação curricular isso poderia implicar. As organizações entenderam que seria
melhor apresentar sua demanda específica já no processo de implantação do curso e realizar
imediatamente a primeira turma. As referências teóricas e políticas predominantes no debate da
base curricular8 combinadas com a indicação de um currículo flexível a diferentes demandas,
sinalizavam a abertura necessária para esta construção, facilitada pela coordenação pedagógica
conjunta entre as instituições e a realização do curso no espaço físico do Iterra.
Algumas definições da Universidade na montagem da primeira base curricular do curso
foram importantes para ajudar no desenho do processo formativo que construímos depois em cada
turma do Iterra. Destacamos: a carga horária reservada para componentes de formação geral
(abordagem histórico-sociológica e filosófica) e de estudos de teoria pedagógica; uma pluralidade
de abordagens teóricas, mas tendo um fio condutor de interpretação da realidade e de visão de
educação, explicitado na própria escolha dos componentes curriculares e nas ementas propostas; a
ênfase na pesquisa, como processo desenvolvido ao longo do curso e integrador de outros
componentes curriculares; estudos eletivos cujo foco temático ou de práticas poderia ser definido a
cada etapa em que fossem oferecidos, de acordo com as demandas do processo de formação;
abordagem da Educação de Jovens e Adultos como parte do projeto do curso e feita na perspectiva
da Educação Popular e não de recorte necessariamente escolar. 9
A especificidade do projeto político-pedagógico do curso como “Pedagogia da Terra da
Via Campesina” foi compreendida e desenhada no processo, através da intencionalidade no
planejamento de cada etapa. Este trabalho envolveu coordenação do curso, educandos, educadores
e o colegiado das organizações da Via Campesina. As decisões foram registradas nos documentos
que orientaram o cotidiano pedagógico das etapas, no Tempo Escola e no Tempo Comunidade.
Por isso na introdução deste texto fizemos menção ao desafio de “passar a limpo” o projeto
do curso, uma vez que ele foi elaborado passo a passo, ratificando decisões, retificando caminhos,
construindo estratégias, criando e recriando processos. Uma leitura atenta dos registros deste
percurso nos permite perceber transformações que foram sendo feitas no seu projeto original e nos
interroga sobre o diálogo entre a especificidade dos sujeitos da Educação do Campo e as diferentes
concepções de formação de educadores e de desenho do curso de Pedagogia.
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Especialmente o referencial do materialismo histórico-dialético e da educação popular e a ênfase no vínculo da
Universidade com projetos de desenvolvimento regional.
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A partir da mudança de gestão da Uergs, que aconteceu em 2003, foram feitas algumas alterações na base curricular
do curso ao longo da realização das etapas; algumas por mudança de concepção de formação e outras para atender a
exigências de reconhecimento do curso. Um exemplo de alteração que gerou muitas tensões no processo da Turma
José Martí foi a do entendimento da EJA passar a ser estritamente escolar e apenas no recorte da alfabetização em
anos iniciais do ensino fundamental. Outra foi a da retirada da pesquisa como processo ao longo do curso ficando
reduzida à elaboração de um trabalho de conclusão apenas nas duas últimas etapas. Neste caso conseguimos manter no
Iterra o processo tal como tínhamos desenhado junto com a primeira reitoria da Universidade. E uma terceira alteração
importante foi a retirada dos Estudos Eletivos, convertendo-os em outras disciplinas.
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Uma síntese sobre a forma pedagógica desta escola pode ser encontrada no texto “Instituto de Educação Josué de
Castro: características gerais da organização escolar e do método pedagógico”, 2006.
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Mais importante que aprender as respostas é ser provocado/educado para formular estas
perguntas; de modo estrutural em relação à sua tarefa, e a cada situação, a cada reflexão,
acumulando elementos teórico-práticos que permitam uma atuação crítica em práticas educativas
concretas.
Há, no entanto, dois elementos de compreensão que são fundamentais para constituir este
objeto de formação: um deles diz respeito à idéia de processo como “sentido primeiro da
pedagogia”; entendendo que “a formação do ser humano se torna possível ao longo do tempo, ao
longo de um processo educativo”. É ela que leva a então se interrogar: mas como se educa, como
se transforma um ser humano? (Arroyo, 2004, pág. 226). A outra compreensão necessária se refere
à palavra conduzir, entendida não como a ação de uma pessoa que tenta conformar o destino
formativo da outra, mas sim como intencionalidade e diretividade na atuação coletiva sobre as
circunstâncias objetivas em que determinado processo educativo acontece e que permite a cada
pessoa fazer escolhas que vão desenhando sua ação/formação/transformação.
2a) Um pedagogo da terra se orienta por uma visão alargada de educação, de pedagogia.
Esta visão que a vincula aos processos de formação do ser humano e que permite ao pedagogo, à
pedagoga, alargar também sua tarefa, seu horizonte de trabalho, suas perguntas, complexificando e
tornando ainda mais fascinante o desafio de sua formação.
Um dos primeiros estudos desencadeados pelo curso com os educandos e as educandas da
Turma José Martí (iniciou na primeira e continuou de diferentes formas até a quinta etapa) foi
sobre as matrizes de formação humana. Foram diferentes atividades que provocaram a reflexão
sobre como se forma o ser humano; problematizando concepções de educação, perguntando sobre
que processos formadores ou que dimensões destes processos podem ser intencionalizados na
perspectiva do projeto societário que vem sendo construído pelos Movimentos de que fazem parte.
Este conjunto de estudos acabou demarcando uma base de compreensão sobre educação; talvez
por isso apareça destacado na maioria dos memoriais de aprendizado da turma.
Neste processo os sujeitos da Pedagogia da Terra começaram a se interrogar sobre até que
ponto as ações desenvolvidas pelo Movimento Social que integram estão sendo educativas; sobre
que transformações os processos de luta ou as relações de trabalho estão produzindo nas pessoas e
no próprio sujeito coletivo que elas passam a constituir; sobre que conhecimentos e que valores
estas ações estão ajudando a produzir; sobre como podem, afinal, tornar-se educadores em sua
atuação cotidiana no Movimento.
Ao fazerem este tipo de reflexão, os pedagogos da terra estão retomando as
discussões/interrogações de origem da pedagogia: “a polis é ou não é educativa?” “como se forma
o ser humano, o cidadão da polis?” questões que foram se perdendo nos projetos liberais de
educação (Valle, 2002; Arroyo, 2004). Mas as retomam de um jeito novo, mais radical, porque
fazem a discussão sobre como formar aqueles seres humanos que foram excluídos da polis.
Nosso curso trabalhou pela compreensão de que processos intencionais de
educação/formação das pessoas podem acontecer em diferentes lugares sociais, diferentes
situações, diferentes tempos da vida. Implicam em um mesmo desafio que é o de transformação do
ser humano ou sua formação mais plena, mas têm especificidades, nas “pedagogias”, nos métodos,
nas didáticas próprias a cada sujeito, aos tempos de formação, à materialidade de cada situação.
Buscamos ser contraponto a dois reducionismos, produtos da visão moderna/liberal que
tem predominado nos meios educacionais e na visão sobre formação de educadores: o de que
educação é igual à escola e que escola é igual a ensino, sendo a dimensão da “instrução” a única
para a qual efetivamente se precisa preparar o educador; e de preferência uma instrução que seja
apenas instrumental.
Estes reducionismos são na realidade armadilhas; construções sociais com objetivos
políticos perversos. O capitalismo se sustenta através de um projeto educacional/cultural que vai
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muito além da escola e da dimensão do conhecimento (Mészáros, 2005); e é este projeto maior que
a sociedade não coloca em discussão quando determina que os profissionais da educação somente
se preocupem e se ocupem consciente e coletivamente (quando por exemplo se encontram para
atividades de formação) de conteúdos e métodos de ensino, ou mais reduzidamente ainda, de
instruções de recorte apenas cognitivo.
Nos Movimentos Sociais já há um certo acúmulo teórico sobre esta visão mais alargada de
educação, produzido talvez pela força das experiências formadoras vivenciadas por estes sujeitos
na dinâmica de sua organização. Embora lutem pelo direito à escola e valorizem muito a
especificidade do processo educativo que pode acontecer através dela, aos Movimentos parece
mais difícil conceber a escola como o lugar supremo de educação; o único para o qual parece justo
formar profissionais. Não é isso que vivem em sua realidade; não foi a escola que lhes garantiu o
protagonismo social que conquistaram. Não é esta a inspiração que trazem da “Pedagogia do
Oprimido”; não é esta a “Pedagogia do Movimento” que buscam construir.
Por isso a Educação do Campo vinculada aos Movimentos Sociais, ao mesmo tempo em
que tem a escola como objeto central de sua luta por políticas públicas, tensiona esta concepção
“escolacentrista” que absolutiza o papel da educação escolar ou toma a escola como referência
central para pensar qualquer processo educativo. A centralidade da reflexão pedagógica da
Educação do Campo está na dimensão educativa da práxis social, retomando a reflexão sobre a
força formadora do trabalho, da cultura, da luta social, como matrizes educativas do ser humano e
que não podem deixar de ser intencionalizadas como práticas pedagógicas em um projeto
educacional que se pretenda emancipatório, e por isso mesmo, omnilateral.
Mas a materialidade potencialmente formadora destas práticas sociais não tem como ser
reproduzida/vivenciada integralmente na escola; e nem deve sê-lo. A escola precisa integrar-se a
uma totalidade formadora mais ampla, vinculando seus processos de socialização, de produção de
conhecimento, de formação ética a outras práticas educativas.
Da mesma forma a luta dos Movimentos Sociais pela democratização do acesso ao
conhecimento, às ciências, às tecnologias tem importância estratégica na formação dos sujeitos
capazes de construir alternativas para um projeto mais justo e sensato de desenvolvimento de
campo e de país. Mas esta luta é, pela sua própria natureza, também uma crítica a um outro
reducionismo que tem predominado nas discussões sobre educação e que foi denominado pelos
seus críticos de “cognitivismo” e “cientificismo” porque absolutiza a dimensão intelectual do
conhecimento e a ciência, ou algumas formas de conhecimento e de ciência, tentando desvinculá-
las da materialidade de sua construção histórico-social.
Na visão da Educação do Campo esta materialidade precisa ser explicitada e eticamente
assumida para que o campo possa ser objeto de produção do conhecimento necessário às
transformações buscadas. Também para que se combine com a democratização de outras
dimensões da cultura igualmente importantes na construção deste novo projeto social, seja no
campo dos valores, das artes ou da chamada “cultura universal”, seja no próprio campo da
sabedoria popular sobre diferentes questões do mundo do trabalho e da vida social como um todo.
Este não é um debate específico da Educação do Campo; é um dos grandes debates do
chamado “mundo moderno”, motivado pela superficialidade de concepções a que estes
reducionismos estão levando e ao conseqüente “empobrecimento da vida social”, pela própria
insignificância que a reflexão sobre as grandes questões passa a ter nela (Valle, 2006). E ainda que
este seja um debate crucial para a teoria pedagógica, para as práticas de educação (aliás, talvez por
isso mesmo), parece que precisa continuar fora do horizonte de formação dos educadores, das
educadoras, embora na prática o oriente.
Estes reducionismos que predominam na sociedade também estão muito arraigados entre
nós, na Universidade e nos próprios Movimentos Sociais. No caso do nosso curso este tipo de
discussão foi recorrente e a construção prática do perfil do pedagogo dela desdobrada foi por isso
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mesmo repleta de tensões, que afinal foram avaliadas como muito importantes para que educandos
e educadores fossem clareando e firmando concepções de educação, de pedagogia.
Embora estas questões não sejam próprias da nossa especificidade, o que talvez seja
específico é a circunstância objetiva, a identidade própria dos sujeitos destes cursos, que exigem
mais escancaradamente esta ampliação da visão de educação: que sentido teria pensar em uma
Pedagogia da Terra centrada na docência ou na instrução? Acaso o grande problema da Educação
do Campo está na redefinição de conteúdos e métodos de ensino? Pode até haver problemas nisso
também, mas considerar que esta é a questão que justifica a especificidade é mais do que um
reducionismo; é um desvio de sua concepção originária.
11
Esta afirmação é de Joceli Andrioli, estudante do curso em seu Memorial de Aprendizados, pág. 5. Veranópolis,
setembro de 2005. A expressão “Pedagogia do Movimento” está sendo usada no sentido de uma práxis pedagógica
que tem como origem e referência os Movimentos Sociais e um projeto de transformação da sociedade e do ser
humano. “A Pedagogia do Movimento se constitui na historicidade das ações (o jeito que o Movimento vai
construindo para formar um sujeito coletivo e educar as pessoas que dele participam) e das reflexões pedagógicas dos
Movimentos Sociais, cuja dinâmica aciona ou põe em movimento diferentes matrizes de formação humana, entre as
quais, e com centralidade, a matriz pedagógica combinada da luta social e da organização coletiva” (Caldart, 2005).
14
primeiro porque a educação escolar se empobrece muito quando não colocada em perspectiva e na
relação com outros processos formadores do ser humano. Em nosso entendimento não há
Educação do Campo sem essa perspectiva. E segundo porque na situação atual da agricultura
brasileira se o educador não souber atuar na formação dos camponeses, não souber trabalhar com a
organização das comunidades, das famílias, não encontrará mais escolas do campo em que possa
exercitar sua pedagogia.
Os pedagogos da terra são também convocados a se apropriar do debate político-teórico
realizado nesta década de construção do movimento por uma Educação do Campo para poderem
contribuir nas suas formulações pedagógicas. São chamados a produzir novos conhecimentos
sobre a especificidade dos processos formativos dos sujeitos do campo e particularmente dos que
participam de Movimentos Sociais, e sobre como a escola pode dialogar com estes processos sem
deixar de cumprir as tarefas educativas que lhe são próprias.12
5a) O pedagogo da terra desenvolve sua atuação e formação como práxis. Quer dizer, é o
educador, a educadora, que aprende a juntar teoria e prática em um mesmo movimento que é de
transformação do mundo e autotransformação humana, de modo a poder ajudar a desencadeá-lo
nos processos educativos que acompanha.
O conceito de práxis de Leandro Konder, desde Marx, foi inspirador de reflexões
importantes para a Turma José Martí, sintetizando uma das perspectivas formativas centrais do
curso: “A práxis é a atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no mundo,
modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la, transformando-se a si mesmos. É a
ação que, para se aprofundar de maneira mais conseqüente, precisa da reflexão, do
autoquestionamento, da teoria; e é a teoria que remete à ação, que enfrenta o desafio de verificar
seus acertos e desacertos, cotejando-os com a prática. (...) A práxis é a atividade que, para se tornar
mais humana, precisa ser realizada por um sujeito mais livre e mais consciente. Quer dizer: é a
atividade que precisa da teoria” (2002, pág.115-6).
Mas não se entende teoria aqui como teoricismo ou como conhecimento apenas em sua
dimensão cognitiva. A reflexão teórica que integra o movimento da práxis diz respeito à
capacidade de interpretação/análise crítica e tomada de posição diante da realidade; é o
conhecimento que se constrói também como uma escolha ética que fundamenta e organiza o
pensamento produzido desde o agir humano. Da mesma forma que as práticas identificadas como
formadoras não se referem ao ativismo, mas às práticas sociais que efetivamente exigem a
transformação das pessoas, integrando processos de produzir e transformar o mundo; processos
que podem envolver múltiplas dimensões e diferentes materialidades.
A perspectiva da práxis é um desafio formativo fundante da intencionalidade do tipo de
processo pedagógico de que aqui se trata. No curso buscamos trabalhá-la tanto nas relações
estabelecidas durante o Tempo Escola, como na dinâmica das relações sociais constitutivas do
Tempo Comunidade, nas estratégias de inserção de educandos e educandas nas organizações, nas
práticas educativas, e no desafio específico de ir formulando neste movimento as questões para o
seu aprofundamento de estudos.
A partir deste princípio foi possível para a turma desenhar/ler alguns traços considerados
fundamentais no perfil do pedagogo da terra e que juntam teoria e prática: capacidade
organizativa, atuação política, convicções sobre o que é educar e como se educa; capacidade de
leitura da realidade; capacidade de síntese para integrar diferentes conhecimentos e articular
vivências educativas; agilidade e discernimento na tomada de decisões e na sua implementação;
parâmetros coletivos para posicionamentos pessoais; valores e visão de mundo que exijam o
exercício sistemático de interrogar-se e de refletir sobre os processos em que está inserido.
12
Uma referência bibliográfica importante para apropriação deste debate é a Coleção “Por Uma Educação do
Campo”, publicada pela articulação nacional de mesmo nome desde 1999.
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Mas não parece que escapar desse dilema seja tentar eliminar a tensão; ou deixar de
intencionalizar processos; pelo contrário, significa trabalhar a intencionalidade pedagógica tendo
esta tensão como referência.
Nesta perspectiva há já uma intencionalidade que pode fazer muita diferença: é possível
organizar processos educativos que vão construindo o protagonismo dos educandos na condução
de sua própria formação. E isso se consegue mais facilmente quando se “desindividualiza” o
processo; ou seja, não se trata de um indivíduo conduzir outro indivíduo (o que é pretensioso e
geralmente acaba se tornando autoritário), mas de um sujeito coletivo fazer a autocondução do
processo formativo das pessoas que o integram. E nesta mesma intencionalidade está a criação de
ferramentas capazes de materializar a “democratização” da condução pedagógica.
Em nossas experiências de cursos de formação uma estratégia pedagógica fundamental
nesta direção é o processo de construção de uma “coletividade educadora” e duas ferramentas
importantes para isso têm sido o “Projeto Metodológico” (PROMET) de cada etapa e uma
estrutura orgânica de “Acompanhamento Político-Pedagógico” de cada turma.
O Projeto Metodológico é o nome dado a uma forma de elaborar o planejamento específico
de cada etapa, registrando as decisões pedagógicas tomadas. No documento que o materializa
constam justamente as intencionalidades do processo, considerando um determinado recorte de
tempo, o Projeto Político-Pedagógico do curso (no que já estiver formulado previamente) e uma
leitura cuidadosa da situação atual da turma (olhando para o conjunto de seus membros) e da
realidade mais ampla em que o curso e seus sujeitos coletivos se inserem.
A elaboração do PROMET é atribuição dos educadores, mas sua estratégia pedagógica
implica no envolvimento progressivo dos educandos nesta tarefa. O documento é discutido com
toda a turma nos primeiros dias do Tempo Escola de cada etapa e envolve decisões também para o
Tempo Comunidade. Pode ser retificado, transformado; mas depois de aprovado pelo conjunto dos
envolvidos terá que ser implementado.13 Ajustes podem ser feitos no andar da etapa, sempre que o
processo exigir, mas não podem ser arbitrários e precisam ser avalizados pela coletividade de
educandos e de educadores.
A Turma José Martí identificou o PROMET como uma estratégia pedagógica importante
na sua formação; primeiro porque permitia aos educandos “se enxergar na totalidade da etapa e do
curso”; ter claro os desafios e o caminho a seguir; e segundo, porque aos poucos foi levando-os a
compreender cada intencionalidade e suas razões (ou a leitura do processo que as justificava)
possibilitando que passassem a interferir na sua escolha e a participar mais ativamente da
condução de sua formação.
A organização do Acompanhamento Político-Pedagógico, por sua vez, pode ser feita em
diferentes níveis, envolvendo várias pessoas e considerando diferentes dimensões da formação.
Também é uma atribuição dos educadores que aos poucos vai envolvendo os educandos. Na forma
pedagógica que desenhamos no Iterra este conjunto é coordenado por um coletivo constituído
especificamente para esta tarefa.
Acompanhar é orientar e fazer junto com os educandos seu processo de formação. É ajudar
na compreensão de que sempre há escolhas a serem feitas e que é preciso aprender a decidir sobre
caminhos a seguir, mas também a construir, coletivamente, por conta própria.
O acompanhamento pode envolver (e é bom que envolva) muitas pessoas desde que se
consiga construir uma unidade (que não quer dizer uniformidade) de atuação: em torno da
implementação do PROMET e pela construção de uma leitura coletiva do processo formativo que
está sendo vivenciado pelos educandos, seja como coletividade seja como indivíduo, e para além
do movimento planejado. Seu objeto fundamental de análise/condução diz respeito às relações
13
No Iterra costumamos brincar fazendo um jogo de linguagem: o que se PROMET(e) se cumpre!
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sociais que vão se estabelecendo no processo, visando torná-las mais plenamente educativas na
direção do projeto de ser humano que serve de referência ao curso.
Na Turma José Martí a tarefa de acompanhamento envolveu diferentes coletivos, sendo os
principais identificados os seguintes: o colegiado das organizações sociais responsáveis pelos
educandos (um interno à turma e outro externo), a coordenação do curso, o coletivo de
acompanhamento político-pedagógico à turma (organizado desde a dinâmica do IEJC), os núcleos
de base que foram a estrutura primária de organização dos próprios educandos, e aos poucos a
coordenação dos núcleos de base da turma, que foi desafiada a coordenar o processo chamado de
“auto-acompanhamento”, iniciado na sétima etapa.
Estas ferramentas, ou outras que podem ser criadas com intencionalidade semelhante, ao
mesmo tempo complexificam e democratizam a condução do processo pedagógico. Se utilizadas
com sua intenção originária, contribuem na capacitação dos pedagogos, especialmente para que
aprendam a intencionalizar processos dando-se conta das tensões e contradições que o trabalho de
formação do ser humano envolve.
De qualquer modo, ações e ferramentas de condução de processos formativos não
prescindem da postura (ética, pedagógica, política) daquelas pessoas que estão na condição ou na
tarefa de “educadores”. E uma postura fundamental que aprendemos com nossas experiências é a
de não pretender ter o controle total do processo de educação: seja por negar a historicidade do
próprio perfil da formação esperada, 14 seja por considerar que tudo o que acontece fora do que foi
anteriormente pensado ou intencionalizado é necessariamente um desvio educativo; algo a ser
eliminado.
A grande sabedoria da condução de um processo pedagógico, e para a qual também se pode
ser educado, é assumir como “guia” o movimento real do processo, buscando fazer uma adequada
interpretação de seu espiral de avanços e retrocessos, de contradições, de conflitos; de movimentos
às vezes lentos e progressivos, às vezes acelerados e abruptos. Há um movimento pensado (as
intencionalidades) que produz um movimento real de transformação da realidade, das pessoas, que
quase nunca é igual ao movimento pensado e que deve produzir um novo movimento pensado para
continuidade do processo e assim sucessivamente, mas nunca sem muitos “saltos e sobressaltos”,
exatamente porque o desafio assumido é o de emancipar as pessoas de qualquer subserviência;
inclusive aos processos pensados para educá-las.
No exercício de memória-projeto que estamos fazendo neste texto, trata-se agora de
identificar algumas intencionalidades importantes que integraram o movimento pedagógico
realizado na formação da Turma José Martí, Pedagogia da Terra da Via Campesina, abstraindo
para uma reflexão mais geral sobre o movimento a ser pensado para a formação de educadores.
Dialogamos para isso, uma vez mais, com a análise feita entre estudantes e coordenação do curso,
e com a reflexão sobre o perfil de formação construído; certamente as intencionalidades aqui
indicadas não esgotam o movimento real, a experiência formativa como um todo; também não se
pretende aqui fazer um balanço de seus resultados; apenas pensar em algumas referências para que
esta reflexão continue.
1a) Preparar para a condução de processos pedagógicos através da vivência refletida do seu
processo formativo no curso. Porque esta pode ser uma experiência processual comum ao grupo,
ainda que diferenciada para cada pessoa, que pode ser lida e analisada coletivamente. Em nosso
“Pedagogia da Terra” esta foi a intencionalidade-mestra, que fundamentou e articulou as demais.
Este próprio texto é um de seus produtos e se pretende também uma de suas ferramentas. Ela
implica em dois movimentos articulados: (a) uma seleção cuidadosa das intencionalidades
14
Todo o desenho de perfil de formação é histórico e sempre projeção de tendências do presente, ou do movimento da
realidade atual.
19
15
Estamos usando a palavra “experiência” aqui no sentido indicado por Jorge Larrosa desde reflexões de Walter
Benjamin: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece”.
(Bondía, 2002, pág. 21) Para que o que se passa se torne uma “experiência” é fundamental a “exposição”, “nossa
maneira de ‘ex-pormos’, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência
aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ‘ex-põe’... A palavra experiência “contém
inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo” (pág. 24-5). O que insistimos nós é que embora esta atitude de
“exposição” seja pessoal, subjetiva, ela pode ser provocada ou acelerada pela materialidade e intencionalidade da
prática a que a pessoa deve se “ex-por” para então autotransformar-se.
20
mas é parte de uma prática mais ampla. E a prática não pára para que se possa pensar sobre ela; o
movimento da realidade não se interrompe para que se possa entendê-lo. É preciso aprender a
“tomar distância” sem ter que sair do lugar; é preciso “parar para pensar” ou para sentir ou para
contemplar a ação, mas sem necessariamente ter que “parar de agir”.
em si mesmo, mas sim de uma totalidade formadora muito mais ampla que é a práxis social onde
os educandos se inserem.
Trabalhar com estas tensões e os conflitos que delas emergem no dia a dia de um processo
concreto é sem dúvida um aprendizado importante na formação do educador. E este aprendizado
implica em dar-se conta que um “erro fatal” para nossa intencionalidade maior é a desarticulação
entre as dimensões ou entre o trabalho pedagógico feito em torno delas; “fatal” porque impede que
o processo se realize como práxis. Ou seja, é preciso pensar em intencionalidades específicas para
que o processo seja conduzido não apenas de forma multidimensional, mas efetivamente na
perspectiva “omnilateral”, que no sentido marxiano vai bem além de justapor diferentes
dimensões, mas visa a totalidade pensada da formação do ser humano.
Na particularidade de um processo desse tipo há um risco permanente de que ou o estudo
seja secundarizado porque outras dimensões acabam sendo mais envolventes ou, ao contrário,
outras dimensões, da formação ou de diferentes tipos de práticas, sejam preteridas em relação aos
estudos sempre que as situações da “vida real” não tenham apelo imediato de solução. Isso parece
uma visão dicotômica e excessivamente redutora da própria concepção de estudo, e de fato é; mas
é ainda a que predomina na formação anterior de educandos e educadores e por isso emerge no
cotidiano de processos “reais” precisando ser enfrentada/trabalhada.
Pensando uma vez mais neste tipo de curso de que aqui se trata, nossa experiência aponta
que o desafio da articulação implica necessariamente em uma ressignificação dos processos de
estudo, de modo que a “vida real”, desde a que pulsa ali mesmo na coletividade da turma e da
escola ou a que continua pulsando lá nas comunidades ou organizações de origem dos educandos,
das educandas, seja seu objeto e também os docentes do curso se assumam como formadores,
integrando-se na construção do seu projeto/processo pedagógico.
Elas foram nomeadas pela turma como “estratégias pedagógicas” e interpretadas como a própria
intencionalidade formativa do curso. E foi refletindo sobre cada uma delas que os educandos e as
educandas destacaram como especialmente formadora a exigência da produção de obras,
individuais e coletivas.
A turma identificou nesta perspectiva atividades de natureza distinta e que envolveram
tipos diferentes de ação, produzindo obras de materialidades também diferentes. Foi indicada com
especial destaque a atividade de inserção da turma na dinâmica do IEJC que envolveu múltiplas
ações e produziu vários tipos de obras: desde ajudar a garantir o próprio funcionamento da escola
até o pão da mesa do café ou o parque infantil construído para as crianças que estão junto com seus
pais na escola; também o processo da pesquisa que culminou na apresentação do trabalho
monográfico e depois em artigos dos grupos de pesquisa.
Foi destacada nesta mesma perspectiva a importância da participação sistemática em
eventos da Educação do Campo com tarefas delegadas à turma, como por exemplo a de ter que
produzir a mística de abertura da II Conferência Nacional Por Uma Educação do Campo. Da
mesma forma a turma identificou como fortemente formadoras as práticas pedagógicas e o ter que
se enxergar planejando e dando aulas seja em uma escola de acampamento seja nas escolas
públicas de Veranópolis; também a construção da memória da turma foi identificada como
estratégia pedagógica do curso e igualmente o desafio de a cada Tempo Escola trazer indicações
materiais de que a inserção militante na organização se ampliava ou aprofundava. 16
Mas qual a força educativa destas atividades e das obras que produziram? Possivelmente
sua capacidade de provocar e de objetivar a “ex-posição”, o envolvimento das pessoas no processo
formativo: a uma idéia, a um texto ou a uma aula as pessoas podem se por de acordo, se opor ou
ignorar, sem se deixar envolver efetivamente, afetivamente; em uma atividade que é delas, e cujas
obras serão o seu espelho, as pessoas se expõem, se mostram ainda que não queiram; ainda que
resistam. E seja qual for a natureza da atividade/da produção ela acaba trazendo diferentes
dimensões à tona: a dimensão cognitiva, a emotiva, a ética, a organizativa, a operativa, e pode
revelar identidades que também ajuda a constituir.
A força das obras está na objetivação do processo vivenciado. Como elas são externas aos
sujeitos, passam a ter existência própria; ou seja, elas “falam por si mesmas” e por isso “expõem”
seus produtores. Se a mística da abertura de uma conferência nacional “não toca os participantes”,
de nada adianta aos seus realizadores tentar explicar o que queriam ter feito ou porque não o
fizeram; seria inútil até para si mesmos. De igual modo acontece quando um trabalho monográfico
chega inconcluso na etapa em que deveria estar sendo apresentado à banca. Ou o contrário. O
objeto toma força de processo porque não permite subterfúgios, escancara. Sempre há explicações
a dar sobre tudo o que acontece ou não acontece, mas elas não mudam a imagem do espelho
porque não têm a materialidade do que ele mostra. E isso permite às pessoas indagar sobre o que
lhes está acontecendo e pode levá-las a tomar o processo de formação em suas mãos, seja de modo
individual ou coletivo.
É possível que esse processo de compreender como se desenvolve sua própria formação
inclua também um aspecto que vem sendo destacado em estudos mais recentes da psicologia
sócio-cultural e que se referem à “externalização do trabalho mental” produzida pelas obras e que
é um outro tipo de obra para a qual deveríamos prestar mais atenção: a “externalização produz um
registro de nossos esforços mentais, um registro que fica ‘fora de nós’, e não vagamente ‘na
memória’. É algo parecido como produzir um rascunho, um esboço, uma ‘maquete’. (...) Esse
registro nos liberta, até certo ponto, da tarefa sempre difícil de ‘pensar sobre nossos próprios
pensamentos’, embora freqüentemente chegue ao mesmo objetivo. (...) O processo de pensamento
16
A descrição e reflexão sobre cada atividade identificada podem ser encontradas no texto da turma José Martí
“Estratégias Pedagógicas que nos formaram”, de setembro de 2005.
23
e seu produto tornam-se interligados, (...) [porque] o pensar se realiza em seus produtos” (Bruner,
2001, pág. 31-2).
Isso nos abre novas possibilidades para pensar o próprio acompanhamento pedagógico, ou
a intencionalização do processo formativo, justamente a principal tarefa para a qual pensamos
estar formando nossos pedagogos. A idéia não é nova, a de conhecer o que a pessoa pensa, ou até
como ela é, muito mais pela expressão do seu fazer, do que pelo que ela diz ou mesmo pelos seus
comportamentos; mas nem tão novo é o entendimento de como esta revelação acontece ou o que
acontece com a mente da pessoa neste processo e que implicações há para a pedagogia, ainda tão
presa a uma tradição “verbalista” e de “conversão pela palavra”.
Quem absolutiza na educação a lógica do ensino, seja na atuação do educador seja na
reação esperada do educando, jamais compreenderá do que afinal isso trata.
5a) Definir estratégias de estudo que levem ao aprendizado da elaboração própria. Porque
nosso objetivo é formar um pedagogo/educador que não seja apenas “consumidor” ou
“reprodutor” de conhecimentos, mas sim um sujeito capaz de produzir conhecimento novo, de
17
Na Turma José Martí a terceira etapa do curso foi um tempo forte de primeiras sínteses, motivadas pelo cotejo entre
estudos teóricos e relações sociais que aos poucos iam sendo construídas na escola ou refletidas no Tempo
Comunidade. No Projeto Metodológico da etapa, uma afirmação expressou o momento da turma e lhe serviu de guia
reflexivo importante, por isso a trazemos de volta aqui: “Se queremos crescer, precisamos evitar a tentação de nos
aferrar a modos de sentir e de pensar que estão funcionando mal; precisamos fazer o esforço cansativo, difícil,
incômodo, no sentido de abrir nossas cabeças para a aventura de pensar o novo” (Konder, 1992). O processo de
pesquisa e as práticas político-pedagógicas de inserção na escola e nas organizações de origem foram outras
circunstâncias fortes na exigência destas sínteses.
25
18
A expressão está em Demo, 2006. Estamos utilizando-a aqui com alguns ajustes de interpretação.
19
Ao mesmo tempo em que é pedagogicamente importante descentrar o processo educativo das aulas, entendidas no
sentido estrito de momento do “discurso didático”, é preciso aprender sobre a importância de “boas aulas” e da postura
dialógica que se exige de educandos e educadores para que possam potencializá-las como parte do processo formativo.
26
20
Quem não pergunta não cria; e quem não tem método (não confundi-lo com a formalização/cristalização de
técnicas) somente cria em situações extraordinárias. No cotidiano a elaboração teórica própria geralmente é fruto do
rigor metodológico ou da reflexão sobre o caminho que vai sendo percorrido/construído pelo pensamento.
21
Narrativa e reflexão específicas sobre o processo de pesquisa vivenciado pela Turma José Martí estão na Introdução
que elaboramos para o livro “Como se formam os sujeitos do campo?” onde foram publicados estes artigos produzidos
pelos grupos de pesquisa (Caldart, Paludo e Doll (org), 2006).
22
Mas que precisa incluir a reflexão sobre que conhecimento e produzido por quem a serviço do quê.
27
própria palavra enquanto não se dominar tudo que já se pensou ou escreveu sobre o tema; e
também somente se pode propor intervenções na realidade depois de chegar a uma criação teórica
original. Isso é teoricismo, tão estreito e danoso quanto o ativismo.
As questões da “vida real” exigem um diálogo permanente entre teoria e prática; tão
profundo e “inteligente” quanto se consiga fazer a cada momento. E um diálogo/confronto que
não se restringe ao âmbito da pesquisa (nem da ciência), sendo objetivo e construção do processo
formativo como um todo, mas para o qual a pesquisa pode se tornar uma ferramenta pedagógica
muito importante.
A pesquisa potencializa outro aprendizado que não lhe é exclusivo, mas que ela ajuda a
tornar ainda mais necessário: escrever o que efetivamente se quer dizer; construir uma forma de
exposição que consiga socializar o que foi buscado e como foi buscado, o que foi pensado e como
foi pensado; um texto que não “traia” o processo da pesquisa nem seus resultados. Todos sabemos
algo sobre o tamanho deste desafio.
6a) Buscar construir no cotidiano do curso parâmetros éticos de uma convivência humana e
socialmente justa. Porque a formação ética pode fazer grande diferença no ‘destino’ social destes
educadores; para o que vão continuar fazendo consigo mesmos e com aqueles que buscarem
educar. E valores se formam, se firmam ou se retificam fundamentalmente no exercício da
convivência, ou das diferentes relações humanas (interpessoais) e nos comportamentos individuais
e coletivos que acabam revelando os resultados produzidos pelas nossas intencionalidades
formativas, no que se refere ao “ethos”, ao jeito de ser das pessoas. E este modo de ser se constrói
fundamentalmente nas relações sociais que constituem a materialidade de um processo educativo.
Em nossa experiência a forma pedagógica da escola e a dinâmica pensada para o curso
permitem/exigem trabalhar com uma das concepções básicas da construção destes parâmetros, que
diz respeito ao entendimento da relação indivíduo-coletivo ou mais amplamente da relação
indivíduo-sociedade. Esta relação está no centro de muitas tensões vivenciadas no cotidiano de
processos formativos que têm uma perspectiva de totalidade e que recolocam a referência de
projetos coletivos.
Vivemos em um tempo e um tipo de sociedade que tem no “culto ao indivíduo” e sua
contraposição a qualquer forma de coletividade e à própria sociedade, supostamente responsáveis
pela não realização da “liberdade individual plena”, um dos seus produtos históricos. O
capitalismo tornou possível e necessário criar a ilusão de que a liberdade é ‘naturalmente’
individual e que a privacidade é um valor supremo, para poder absolutizar uma ordem social que
pelo “avanço vitorioso das forças produtivas” é capaz de tornar o ser humano cada vez mais
independente, mas que por opor as pessoas entre si, e desumanizar as relações de trabalho
(necessariamente sociais) é incapaz de torná-las efetivamente livres.23
23
István Mészáros, em seu livro “A teoria da alienação em Marx”, capítulo IX, “Indivíduo e sociedade”, nos ajuda na
análise: “O avanço vitorioso das forças produtivas do capitalismo cria um modo de vida que coloca uma ênfase cada
vez maior na privacidade. À medida que avança a liberação capitalista do homem em relação à sua dependência direta
da natureza, também se intensifica a escravização humana ante a nova ‘lei natural’ que se manifesta na alienação e
reificação das relações sociais de produção. Diante das forças e dos instrumentos incontroláveis da atividade produtiva
alienada sob o capitalismo, o indivíduo se refugia no seu mundo privado ‘autônomo’. (...) [E] é induzido, ou mesmo
compelido, a retirar-se para seu pequeno reino privado (...) na medida em que, com a extensão da produção de
mercadorias, o seu papel como consumidor privado adquire uma significação cada vez maior para a perpetuação do
sistema capitalista de produção” (2006, pág. 236). E o “que resta, depois da ‘desvalorização do mundo do homem’
pelo capitalismo é simplesmente a ilusão desumanizada de uma realização pela ‘interiorização’, pela ociosidade
‘contemplativa’, por intermédio do culto da ‘privacidade’, da ‘irracionalidade’ e do ‘misticismo’ – em suma, por meio
da idealização da ‘autonomia individual’ como contraposta aberta ou implicitamente à ‘liberdade universal’” (pág.
241).
28
Este nos parece um parâmetro especialmente importante hoje, porque uma das expressões
do “culto ao indivíduo” tem sido a absolutização da diferença ou do chamado “direito à diferença”,
tirando-a de sua própria historicidade. A diferença não pode ser considerada um valor em si,
vinculado à lógica da falsa “autonomia individual” e descolado da vida real a que se refira. Seu
valor está vinculado à “reciprocidade social” (Mészáros). Não pode justificar privilégios nem
desagregação da coletividade ou obstáculo para seu florescimento. Temos “direito” a “ser
diferentes” sempre que esta diferença nos remeta a direitos coletivos e a um horizonte
emancipatório.
Nem a diferenciação nem a padronização de comportamentos, de características ou de
idéias são nosso objetivo em um processo formativo. O que buscamos, novamente, é o equilíbrio
próprio a uma convivência humana e socialmente justa.
7a) Fazer do curso uma ferramenta de enraizamento da Educação do Campo. Como prática
social e como concepção de campo e modo de pensar a educação de seus sujeitos. Porque sendo
esta experiência de formação de educadores ‘fruto‘ da construção prático-teórica da Educação do
Campo também pode se tornar sua ‘raiz’, à medida que forme os sujeitos continuadores de seu
projeto originário. No curso trata-se de uma “intencionalidade-tempero” que está presente no
conjunto das estratégias pedagógicas e na reflexão do perfil de formação do pedagogo da terra, do
educador.
Mas como um curso universitário pode ajudar a enraizar a Educação do Campo? A Turma
José Martí, que continua a nos servir como referência nesta reflexão, nasceu desafiada a participar
da construção do movimento “por uma Educação do Campo”. Esse foi um dos traços fortes da
identidade comum trabalhada pelo curso entre as organizações da Via Campesina que o
constituíram.
Já em sua primeira etapa de formação a turma participou da “II Conferência Estadual Por
Uma Educação do Campo” (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 2002). Na sexta etapa teve a tarefa
de preparar a mística de abertura da “II Conferência Nacional Por Uma Educação do Campo”
(Luziânia, Goiás, 2004, cujo encerramento foi preparado por outra turma de Pedagogia da Terra
que acontecia no Pará). Mais do que tudo foram momentos de perceber/vivenciar a materialidade
deste movimento nacional de diferentes organizações e entidades do campo e sentir-se sujeito
desta construção.
A cada etapa do curso havia um momento específico para a chamada “análise de
conjuntura” da Educação do Campo que focalizava avanços e retrocessos tanto na dimensão de
luta por políticas públicas como do enraizamento das ações educativas em cada organização ou
Movimento Social. Foi durante este curso e pela mobilização dos estudantes que as organizações
da Via Campesina passaram a participar mais do debate da Educação do Campo e de sua
articulação em cada estado ou região. Em certo momento o colegiado de coordenação do curso
passou a se constituir em fórum de debate da Via Campesina sobre esta questão.
Também foram feitos alguns ajustes nas ementas de componentes curriculares para garantir
estudos específicos sobre a realidade do campo e algumas questões particulares trazidas pelas
diferentes organizações: juventude, gênero, controle de energia,... Na mesma estratégia foram
reforçados conteúdos de formação geral que pudessem ajudar a consolidar a visão de mundo que
fundamenta o projeto político-pedagógico da Educação do Campo.
Aos poucos a intencionalidade principal deste processo foi ficando mais clara: são os
sujeitos e as práticas sociais em que estão envolvidos, à medida que efetivamente reconhecidas no
diálogo pedagógico, que exigem o tratamento da especificidade, bem mais do que programas ou
conteúdos de ensino podem ou devem garantir. Quanto mais complexas e coletivas as práticas de
Educação do Campo em que se inserem educandos e educandas, e isso quer dizer ir além das
práticas particulares de cada organização ou Movimento Social, mais ela se torna objeto do curso.
30
Por isso, se essa inserção não puder ser condição de entrada, deve ser intencionalidade do
processo, desafio que deve ser transformado em estratégia pedagógica de cada Tempo
Comunidade, integrando o exercício da práxis.
Da mesma forma, garantir e intencionalizar este diálogo, que é político, pedagógico e
epistemológico, pode ajudar efetivamente a provocar a emergência dos sujeitos (pessoas e
coletivos) na condução do seu processo formativo. Ele integra o movimento permanente, e às
vezes contraditório, entre o particular e o universal na produção do conhecimento, na construção
do ferramental teórico de análise da realidade e na consolidação de valores próprios às novas
relações sociais pretendidas.
Um curso em si mesmo não tem a força material necessária ao enraizamento de uma prática
social como a Educação do Campo, mas o projeto formativo que o produz e se produz a partir dele
pode compor o processo de “territorialização” desta prática. Parafraseando Bernardo Mançano
Fernandes, talvez seja possível afirmar que a Pedagogia da Terra da Via Campesina se constitui
como um “território imaterial” que procura contribuir com a formação dos “territórios materiais”
da Educação do Campo, o que quer dizer com a produção do campo como um espaço de vida
plena e de uma educação comprometida com esta vida e seus sujeitos (In: Molina, 2006, pág.
29).24
Referências Bibliográficas
24
Segundo Fernandes, “territórios são espaços geográficos e políticos, onde os sujeitos sociais executam seus projetos
de vida para o desenvolvimento. Os sujeitos sociais organizam-se por meios das relações de classe para desenvolver
seus territórios. No campo, os territórios do campesinato e do agronegócio são organizados de formas distintas, a partir
de diferentes classes e relações sociais” (pág. 29). “O território é uma fração do espaço geográfico e ou de outros
espaços materiais ou imateriais. (...) o território imaterial é também um espaço político, abstrato. Sua configuração
como território refere-se às dimensões de poder e controle social que lhes são inerentes” (pág. 33).
31
10. MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.
11. MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006.
12. MOLINA, Mônica Castagna e JESUS, Sonia Meire Santos Azevedo de (orgs) Contribuições para a
construção de um projeto de Educação do Campo. Coleção Por Uma Educação do Campo, n. 05,
Distrito Federal: Articulação Nacional Por Uma Educação do Campo, 2004.
13. FERNANDES, Bernardo Mançano. Os campos da pesquisa em Educação do Campo: espaço e
território como categorias essenciais. In.: MOLINA, Mônica Castagna (org.) Educação do Campo e
Pesquisa. Questões para reflexão. Brasília, MDA, 2006, pág. 27-39.
14. VALLE, Lílian do. Os enigmas da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
15. ______. Educação. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (org.). Dicionário da Educação
Profissional em Saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2006, pág. 99-106.
Documentos consultados
1. Construção da Memória da Turma José Martí. Registros do processo. Veranópolis, maio de 2003 a
novembro de 2005.
2. Instituto de Educação Josué de Castro: características gerais da organização escolar e do método
pedagógico. Documento que integra a sistematização do processo pedagógico do Iterra/IEJC.
Veranópolis, outubro de 2006.
3. Memoriais de Aprendizado dos estudantes da Turma José Martí. Veranópolis, setembro de 2005.
4. Memória do Processo de Pesquisa na Turma José Martí. Texto elaborado em janeiro de 2006.
5. Memória da Turma José Martí. Veranópolis, setembro de 2005.
6. Projeto Metodológico de cada etapa do curso. Veranópolis, março de 2002 a setembro de 2005.
7. Projeto Curso Pedagogia Anos Iniciais do Ensino fundamental: Crianças, Jovens e Adultos. UERGS,
2001 e 2004.
32
Parte 2
Ousando, os trabalhadores e trabalhadoras vão além dos limites impostos por aqueles que
querem explorá-los. Ousando, os camponeses resistem na terra ou conquistam-na novamente
depois de terem perdido o direito de cultivá-la. E ao resistir, semeiam vida, esperança, semeiam o
alimento. Colhem comida, colhem cultura, colhem um jeito próprio de viver. Vivem em constante
semeadura e colheita; uma faz parte da outra.
Durante o processo de resistência, os camponeses aprendem que quando estão sozinhos as
coisas ficam mais difíceis e se torna necessária a organização. Resistir já não basta. É preciso
inventar novos jeitos. É preciso fazer semeadura com enxadas e canetas, na terra e nos cadernos,
porque o latifúndio da riqueza e da terra está junto com o latifúndio do saber e do conhecimento.
Estudar e conhecer são tão fundamentais quanto arar a terra.
Por isso, estudamos, nos organizamos. Por isso, a necessidade de uma Turma de
Pedagogia. Esse texto-memória conta a história desses sujeitos, porém de uma parcela bem
particular: uma Turma de Pedagogia da Terra da Via Campesina.
Falar em memória tem sido comum na sociedade em geral. Porém é necessário delimitar de
que memória falamos e para que serve. A memória valorizada socialmente é também
desvalorizada em alguns momentos. Valorizada ao aumentarem os mecanismos de registro e
gravação dos fatos, dos acontecimentos e das pessoas. Porém, extremamente desvalorizada na
medida que não é posta como parte da construção do conhecimento.
Segundo Madalena Chauí, a memória é a garantia de nossa própria identidade. É poder
dizer “nós” reunindo tudo o que fomos e fizemos a tudo que somos e fazemos. A memória
individual ou coletiva traz o que possuiu maior significação. Por isso, geralmente não guardamos
um fato inteiro, e sim, os detalhes mais importantes do mesmo e que nos marcaram. A memória é a
organização/síntese de acontecimentos. Não é neutra porque traz uma interpretação dos fatos.
A memória não é a totalidade da realidade, mas fragmentos com sentido. Em nosso caso
fomos lembrando e registrando os momentos marcantes de cada etapa. A reflexão da nossa
história, agora trazida nesse texto, é parte de algo construído desde o início do curso e que foi
chamado de “Memória da Turma”. A cada etapa algumas pessoas ficaram responsáveis por essa
25
Este texto é parte da obra final produzida pela turma com o nome de “Memória da Turma José Martí” e entregue a
cada educando e educanda e também a educadores e educadoras do curso e das organizações da Via Campesina na
solenidade de formatura realizada em 23 de setembro de 2005. Além deste texto cronológico a obra inclui uma
contextualização histórica da criação do curso, um balanço dos objetivos atingidos no processo e os textos sobre
estratégias pedagógicas e sobre as fases de formação da turma que foram inseridos na parte 4 deste Caderno. Há um
documento específico do curso de registro detalhado das decisões e dos passos de construção da memória da turma em
cada etapa. Está disponível no Centro de Documentação do Iterra.
26
Canção inspiradora de muitos momentos de construção da Memória da Turma José Martí.
33
sistematização, sendo na maioria os secretários e secretárias dos Núcleos de Base (NB’s) 27. Nas
três primeiras etapas era um trabalho feito por estudantes que integravam o Colegiado de
Coordenação dos Movimentos. A partir disso, nasceu a idéia de fazer a sistematização da história
toda. Este trabalho foi baseado nos documentos, nas discussões da turma, nas memórias guardadas.
Ele traz a bonita história da Turma Pedagogia da Terra José Martí. Começou a ser elaborado na
sétima etapa do curso, em que mais uma pessoa passou a ocupar o posto de trabalho responsável
pelos registros, com a tarefa específica de sistematizar o que a turma construísse e decidisse que
deveria compor esta sua obra coletiva final. 28 Ainda nesta etapa a turma se debruçou duas vezes
sobre o texto para pensar sua elaboração. Durante a última etapa do curso a turma teve vários
momentos de reflexão sobre a memória, desde os acréscimos na parte da história cronológica, bem
como momentos de análise sobre a trajetória vivida.
Este texto tem a intenção também de trazer presente a memória/história da turma como
algo marcante em nossa formação, sistematizar algumas reflexões, angústias, conflitos e
contradições, e a superação que fizemos. Além de ser um texto importante para nós, tem o objetivo
de contribuir com outras experiências educativas/formativas nas nossas organizações, ao olhar
limites e avanços nesse processo específico.
27
NB é a instância organizativa de base do IEJC.
28
O registro da memória da etapa de cada turma é atribuição de um dos postos de trabalho que integra a Unidade
Sistematização do IEJC. A criação deste posto de trabalho foi uma decisão tomada pela escola a partir e durante o
processo vivenciado pela Turma José Martí.
29
A turma Magistério VIII, Roseli Nunes, que ficou responsável por fazer a mística de abertura da nossa turma já
havia acabado seu Tempo Escola e por isso, somente alguns dos educandos/as da turma fizeram a mística.
Convivemos depois por duas etapas com esta turma que muito contribuiu com nossa formação pelo tempo que já
tinham na escola e pelo acúmulo de discussão enquanto educadores e educadoras do povo.
34
Nosso lema é Trabalho, Terra e Teto. Nós também queremos fazer a revolução neste país (Maria
Santa, MTD).
Sejam educadores formadores, ajudem os camponeses a elevar sua auto-estima, acreditar em si
mesmos e na sua organização (Paulo Facione, MPA).
Não esqueçam que o que trouxe cada um de vocês aqui foi o vestibular da luta (Érico,
PJR).
alguns medos e significações. Antes do Encontro estudamos nos nossos NB's as prestações de
contas do mês anterior, os orçamentos do mês seguinte e fizemos avaliação da vivência social.
Esta, uma espécie de crítica e autocrítica para que cada pessoa ajudasse e fosse ajudada pelas
demais na sua melhor construção como lutadores do povo e como seres humanos. O Encontro da
Coletividade do Instituto tem uma mística própria e se constitui como um espaço pedagógico de
aprendizagem sobre como gerir uma escola. É a Assembléia para decisões e apontamentos. Porém
no início não tínhamos essa compreensão, o que nos fazia ficar muito tensos nos momentos do
encontro. A própria dinâmica era organizada de uma maneira formal que dificultava a participação
das pessoas nas decisões e particularmente a nossa participação já que éramos novos no Instituto.
Essa inserção e construção enquanto coletividade do IEJC era um desafio. A outra grande
tarefa era a construção do coletivo da turma que necessitava dar passos para irmos nos entendendo
e estabelecendo objetivos, metas e desafios. O fato de estarmos em diversos Movimentos e
Pastoral trouxe também elementos diferentes de análise e de identidade. Alguns já conheciam
relativamente a história de algumas das organizações, mas isso não era do domínio de todas e
todos. Por isso, a necessidade e importância de fazer o Seminário dos Movimentos, como sendo
um espaço de socialização da história de luta, dos objetivos e da organização. Permeou dentro da
turma, ao longo das primeira e segunda etapas, um certo agrupamento por organizações. As
pessoas tinham dificuldades de se abrir para os debates das outras organizações, entender cada
processo, bandeiras de luta específicas e as próprias relações estabelecidas eram restritas às
próprias organizações de origem.
Uma constante foi a sobreposição dos objetivos e interesses pessoais sobre os coletivos.
Um exemplo era a organização dos quartos que são de quatro, cinco a dez, onze pessoas. Muitos
não entendiam essa necessidade da convivência coletiva, o que ocasionava conflitos nos quartos
pelos interesses diferenciados entre as pessoas.
Por entender a importância de conhecer a história das pessoas, para melhor conviver e
melhor ajudar foi que fizemos a socialização das nossas histórias de vida. Essa atividade foi
realizada nos NB's. Sentimos a dificuldade de falar dos medos, dos problemas que nos cercam. Por
isso, muitos choraram e todos passaram a ter mais apoio dos companheiros e das companheiras e
um certo compromisso com a formação dos demais, principalmente do NB. Essa prévia foi
importante para a construção do Memorial de Vida, o “vestibular” para ingresso oficial na
Universidade. O Memorial foi construído e ao mesmo tempo revivemos sonhos, dúvidas, certezas,
momentos marcantes da vida.
Fizemos também o Teste de Conhecimentos Gerais, este para uso interno na Escola, no
qual tivemos um baixo desempenho. Tivemos dificuldades ao responder as questões, o que revelou
algumas deficiências que teriam que ser levadas em conta e, na medida do possível, supridas
durante o curso.
O nome e os objetivos da turma foram momentos de debate e discussão. Os objetivos
foram elaborados a partir de propostas iniciais que fizemos nos NB's. Quanto ao nome, discutimos
bastante. A primeira proposta é que fosse uma construção da turma. Na primeira plenária não foi
possível fechar, as pessoas queriam manter o combinado de ser um nome construído e nenhum dos
nomes agradou completamente. Então, foi necessário fazer uma votação, já que não foi possível
chegar a um consenso. Na votação o nome escolhido foi José Martí. Esse nome demorou a ser
incorporado. Na avaliação da primeira etapa a turma falou que sentia a necessidade de estar
estudando sobre esse lutador para melhor compreender o sentido de ter esse nome. Ao
conhecermos a história do educador, poeta, pensador da transformação social, cubano
internacionalista, agarramos como sendo digno de dar nome à turma e durante o curso fizemos
estudos e seminários para aprofundarmos o conhecimento sobre ele e seu ideário pedagógico e
político.
36
30
As Cirandas Infantis são uma prática constante nos Movimentos Sociais, principalmente no MST. É um espaço de
educação infantil para crianças de 0 a 6 anos com a tarefa de trabalhar as várias dimensões do ser criança. Para
maiores informações ver: Cadernos de Educação do MST, nº 12, 2004.
37
Outro elemento importante que marcou o início das etapas foi o estudo do PROMET31 pois
trazia os desafios e as atividades concretas que nos eram propostas. Muitas vezes nos confundimos
com tanta sigla diferente para ser decorada e compreendida. Os PROMET's das etapas preparatória
e primeira foram construídos pela coordenação do curso e do IEJC e pelo colegiado dos
Movimentos/Pastoral.
O Colegiado Interno da Via Campesina na turma foi constituído e reuniu-se pela primeira
vez para discutir como poderiam estar contribuindo, política e pedagogicamente com a turma. Aí
foram escolhidas pessoas para fazerem a memória da turma, da etapa preparatória e da primeira
etapa. Essa discussão sobre a memória, apesar de aprofundada, tinha apenas indicações e a turma
deveria ir construindo o jeito de elaborar. A primeira memória foi construída por dia e colocou,
principalmente, os elementos sobre as disciplinas e conteúdos estudados, não conseguindo trazer
presente as relações estabelecidas. Durante a etapa I realizamos o Seminário da Memória da etapa
preparatória em que as grandes discussões foram: deveria constar nomes quando se relatava os
fatos; que tipo de fato deveria ser registrado? como construiríamos a memória? Essas eram as
preocupações da turma do ponto de vista do jeito de escrever.
As aulas dessa primeira etapa estavam ligadas ao estudo sobre os sujeitos: Crianças, jovens
e adultos; a história da educação e política geral. Tivemos contato com conceitos marxistas
importantes como mais-valia, modos de produção, relações de produção e fomos questionando
nossas concepções de mundo. Também aprendemos sobre como usar e a importância do Diário de
Campo no ato de pesquisar.
Um momento marcante foi o estudo sobre as matrizes pedagógicas formativas do ser
humano: a cultura, o Movimento Social, a exclusão e o trabalho. Essas matrizes foram
aprofundadas em outras disciplinas e outros espaços, durante todo o curso e fazem parte da nossa
concepção de educação. Estudamos também, textos literários e lembramos de nosso tempo de
criança, devorando histórias infantis. Foi, principalmente, no estudo dos componentes curriculares
que começamos a aprofundar a história com um olhar diferente, desde o ponto de vista da classe
trabalhadora. Elementos importantes de análise foram trazidos pelos educadores e educadoras da
turma, que contribuíram para argumentar o contraponto necessário à história, contada nas escolas,
que só evidencia os grandes heróis das elites.
Uma “disciplina” que perpassou todas as etapas foi a da pesquisa. Ainda na primeira etapa
tivemos algumas noções metodológicas e uma experiência prática: observamos algumas pessoas
dentro do próprio Instituto. Alguns observaram as crianças, outros observaram os jovens. O
primeiro contato com a pesquisa foi no sentido de testar a nossa capacidade de estranhamento, de
observar os detalhes que passam desapercebidos. Olhar principalmente os sujeitos, as pessoas ao
estabelecerem relações. Para pensar o processo geral da pesquisa se reuniu o Colegiado dos
Movimentos. Nessa reunião se decidiu a linha de pesquisa, quais seriam os espaços importantes, os
sujeitos a serem pesquisados.
O Tempo Comunidade começou ainda no IEJC com muitos trabalhos, apontamentos e
saudades. Tivemos o Ato de Envio32 para o nosso primeiro TC que foi o menor que tivemos
durante o curso: apenas quarenta dias. Era preciso fazer atividades relacionadas ao curso e
aprofundar a inserção, ou iniciá-la se fosse o caso, na organização que nos enviou ao curso. Foram
muitas recomendações quanto às atividades a serem desenvolvidas e como nos organizar para
fazê-las. Uma leitura importante que fizemos nesse primeiro TC foi do livro "O Manifesto
31
O Projeto Metodológico – PROMET – é o documento projetivo de cada etapa. Consta nele todos os objetivos do
curso, da etapa, as metas de aprendizagem, as disciplinas a serem trabalhadas.
32
O Ato de Envio é realizado no final do Tempo Escola quando as turmas saem para o Tempo Comunidade. Essa é
uma prática realizada no IEJC com todas as turmas que aí estudam.
38
Comunista" (Karl Marx e Friedrich Engels), que tivemos que interpretar respondendo algumas
questões que foram entregues no início do TE II.
Os desafios foram grandes na pesquisa que realizamos sobre os sujeitos do campo. Foi um
exercício de observação, para aprender a estranhar aquilo que era normal, corriqueiro. Tivemos
dificuldade de fazer o estranhamento da realidade, de relatar e refletir sobre a mesma, além de
fazer a sistematização. Muitos de nós fizemos a observação no local onde moramos e isso fez com
que ficasse ainda mais difícil, pois a tendência de ‘normalizar’ o que existe e acontece é ainda
maior.
Foi também um período de espera por parte de alguns. Espera de que alguém do
Movimento dissesse que atividade era necessário ser feita. Tínhamos muitas angústias e vontade
de fazer, de mostrar serviço. Afinal, o curso estava nos munindo de capacidades de fazer a leitura
da realidade e era preciso utilizar-se disso. Porém, em muitos casos nos acomodamos não
percebendo o que fazer. Em outros casos, dos companheiros e companheiras que já estavam há
algum tempo na militância, entraram já com tarefas a serem cumpridas. Foram tarefas
diferenciadas pelo nível de inserção que cada educando e educanda tinha em sua organização.
Houve reflexões dizendo que o Movimento não entendia o curso e por isso não deu tempo pra
fazer as atividades. Depois, começamos a nos perguntar quem é o Movimento, questionando se
não éramos, também responsáveis por puxar a frente e entender o que era preciso ser feito para
contribuir com as organizações.
Etapa II
Retornamos para a escola para a etapa II com todos os trabalhos feitos, que foram
entregues no primeiro dia de aula. Esse Tempo Escola foi, de 2 de julho a 16 de agosto, de 2002. O
processo de inserção no IEJC foi menos difícil que na etapa anterior. O fato de já conhecermos o
Instituto e o funcionamento do mesmo contribuiu para que mais rapidamente nos inseríssemos,
muito embora, haja muitos aspectos que vão mudando constantemente. Por isso, a cada volta era
preciso “entrar no barco andando” e ir tentando compreendê-lo.
As Noites Culturais realizadas, principalmente nos sábados a noite, se constituíam como
espaço importante de relação com o coletivo do IEJC. Esse espaço, com trocas de experiências,
enquanto cultura musical, danças, poesias, dinâmicas e brincadeiras. Em alguns momentos, as
noites culturais não foram o espaço de integração. Até se estabeleceu uma certa competição entre
as turmas, apesar de não ser essa a intenção. O que aprendemos foram as expressões distintas, a
valorização desses jeitos de cada um. A nossa turma tinha a maioria das pessoas da Região Sul do
Brasil, enquanto as outras turmas tinham mais diversidade, o que enriquecia a troca. Às vezes,
nossa turma teve dificuldade de aprofundar a inserção nesses momentos, fazendo seus espaços e
não conseguindo se integrar com os demais. Havia também uma certa resistência e não
entendimento da importância do próprio Tempo Cultura, sendo que participamos muitas vezes
porque era um tempo educativo obrigatório.
Num dos sábados, tivemos o que chamamos de “Noite Latina”. Foi uma participação
especial de Pedro Munhoz e Oscar Jara, 33 que nos encantaram com sua bonita voz e o conteúdo
das canções.
Os domingos no IEJC eram para organização pessoal, atividades de sobrevivência feita
pelos NB's, como limpeza e alimentação, algumas reuniões necessárias e muitos aproveitavam
para lavar roupas, passear na cidade, ler algo que não deu tempo durante a semana. Outra atividade
realizada pela turma como contribuição era de uma pessoa por NB ajudar na Ciranda nos
33
Pedro é cantor e compositor ligado aos Movimentos Sociais e Oscar Jara um educador da Costa Rica, vinculado à
Educação Popular, que estava visitando a escola.
39
domingos por determinado tempo. Geralmente a ajuda era na limpeza e ornamentação dos espaços
da Ciranda Infantil.
Os componentes curriculares da etapa foram na linha da história do Brasil enquanto
formação social e enquanto Educação. Conseguimos perceber as relações entre a história política,
social, econômica e a ligação que a educação teve com esses outros processos e períodos
históricos. Quer dizer, a história brasileira pensada desde outros povos que aqui invadiram e se
adonaram e suas artimanhas para se manter no poder. Por outro lado, o caminho que se aponta
enquanto classe trabalhadora e como pensar o processo de transformação. Essas, como outras
disciplinas iam nos situando no mundo e no Brasil, bem como na questão específica da educação.
No aprofundamento sobre a educação desde a nossa perspectiva, as aulas foram fundamentais,
como a discussão sobre Educação Popular. Aprendemos e tiramos lições importantes das tentativas
de fazer educação de um jeito diferente desde a necessidade da classe trabalhadora, inclusive com
a contribuição do companheiro Oscar Jara, da Costa Rica, que nos falou sobre sua experiência de
Educação Popular e sistematização das práticas educativas.
É importante dizer que em alguns componentes curriculares houve dificuldades no seu
desenvolvimento, devido as concepções diferentes dos educadores não ligados as nossas
organizações e pela nossa postura em relação aos mesmos. A turma se fechou para os educadores,
o que distanciou a relação e a compreensão dos próprios conteúdos.
Tivemos a devolução daquilo que produzimos na pesquisa durante o Tempo Comunidade,
já com muitos apontamentos. Em seguida, na disciplina sobre pesquisa fizemos algumas reflexões
sobre o processo de desnaturalização, de estranhamento da realidade. Para a realização da pesquisa
a turma foi organizada em grupos: infância, jovens, adultos, educadores e idosos. O foco de
pesquisa foi “como se formam os sujeitos do campo”.
Para a divisão dos grupos, algumas organizações fizeram a combinação do que pesquisar.
O MMC tirou como linha pesquisar as mulheres nas diferentes faixas etárias. A PJR definiu que
pesquisaria jovens e educadores. O MAB tentou garantir pesquisas sobre todos os sujeitos. O MPA
tentou contemplar os sujeitos, porém tinha menos educandas, não conseguindo estar em todos os
grupos de pesquisa. O MTD fez a discussão de que as duas educandas pesquisassem crianças e
jovens pela necessidade do Movimento entender essas faixas etárias no sentido de intencionalizar
melhor o trabalho organizativo. O MST contemplou a afinidade e a necessidade da realidade em
que estavam atuando, tentando garantir todas as fases a serem pesquisadas. Houve algumas trocas
de educandas e educandos dos grupos de pesquisa. O motivo era que alguns temas se encaixavam
melhor com o outro grupo, ou por discussão nas organizações. Cada Grupo de Pesquisa contou
com a colaboração de professores e professoras de instituições universitárias que colaboraram
orientando os grupos e os educandos e as educandas na realização do trabalho.
A continuidade da pesquisa se deu no TC. Fizemos observação de sujeitos do grupo etário
em que seria a nossa pesquisa para construção da monografia.
Naquela etapa os Grupos de Estudo também tiveram a tarefa de contribuir mais
intencionalizadamente com o avanço do conhecimento de cada um e cada uma de seus membros.
Havia uma meta de tentar avançar o próprio desempenho dos grupos, que na etapa anterior ficou
falha. Porém, ficou bastante restrito aos estudos e avaliações dos componentes curriculares e não
conseguimos aprofundar o acompanhamento individual de cada educanda e educando em suas
leituras e estudos. Os grupos de estudo conseguiram avançar no desempenho de seu papel,
proporcionando momentos coletivos de debate sobre as disciplinas e estudos. No entanto, faltaram
momentos de leitura e estudo individual para suprirmos nossas necessidades de aprofundamento.
O IEJC realizou, nesse período, um processo chamado “emulação das místicas”. Era feita
uma avaliação das místicas realizadas durante a semana, com o levantamento dos nomes nos NB's
e a escolha na Coordenação dos Núcleos de Base do Instituto (CNBI). Essas eram homenageadas e
os NB's que as fizeram tinham um “prêmio”, geralmente um livro. Muitas vezes os NB's da nossa
40
turma foram emulados. Aconteceu que um dia, dois coordenadores de NB's da turma chegaram
atrasados na CNBI em que se fazia a emulação das místicas e, por isso, as indicações não puderam
ser relatadas por esses coordenadores, conseqüentemente não foi emulada a mística de um dos
nossos NB's, o que causou um certo conflito, pois as pessoas gostavam de receber os prêmios e
sentirem-se elogiadas pelo desafio de elaborar melhor o tempo de mística da coletividade. Ao
mesmo tempo em que era um processo bonito de valorização do trabalho feito, às vezes, se tornou
motivo de competição entre os NB's e entre as turmas. Por isso, a dificuldade do como fazer a
valorização do que é bem planejado e bem feito, sem estabelecer competição no processo de
educação/formação das pessoas.
Naquela etapa foi a primeira vez que tivemos crítica e autocrítica na turma. Foi um
momento com preparação prévia, estudo nos NB's e dicas de quem já havia feito. Tivemos medo
desse momento afinal era uma coisa nova, que a maioria da turma ainda não tinha feito. A crítica
foi um espaço de toda turma. Foi um tanto superficial porque as pessoas tinham um certo medo de
dizer o que realmente percebiam nos outros. Algumas avaliações foram pessoais e não trouxeram
elementos de contribuição.
No final do Seminário a turma avaliou que a maioria das críticas sobre as pessoas que eram
feitas nas conversas informais não apareceu no momento de crítica, com a tendência de
despolitizar o processo de ajuda através da crítica, apontamento dos desvios, limites e desafios.
Surgiu aí e em outros momentos na turma um conflito sobre a construção da coletividade. A
pergunta era: como se constrói a coletividade, com que elementos, o que é realmente uma
coletividade e, principalmente, que tipos de relações se estabelecem e/ou devem ser estabelecidas.
Tivemos um importante seminário acerca desse tema que fomentou importantes discussões sobre o
coletivo, as relações e interesses individuais e as possíveis superações.
Ao longo da etapa, tivemos a discussão de que diminuímos a animação, cantando menos e
socializando poucas dinâmicas em relação ao que fizemos na etapa 1. Outro limite foi em relação
aos tempos educativos que não foram tão valorizados, com participação fraca, principalmente nos
Tempos Educação Física e Notícia, nos quais as pessoas não participavam e usavam o tempo para
fazer outras atividades. Houve avanços em relação ao fluxo de informações NB e coordenação da
turma.
Realizamos durante a etapa algumas produções. Uma, a nobre tarefa de fazer a mística de
formatura da Turma MAG VII, Herdeiros de Zumbi e contribuímos na preparação: painel, limpeza
e ornamentação do Instituto, organização dos espaços e alimentação nos dias que antecederam a
formatura, realizada no dia 20 de julho de 2002. Outra obra que produzimos foi a Síntese dos
Aprendizados, no final do Tempo Escola, onde nos debruçamos para pensar sobre o que marcou,
os ensinamentos e os aprendizados que tivemos. Importante para o auto-ajeitamento das idéias.
Afinal de contas, que aprendizados ficam, essa era a grande questão que cada um, cada uma foi
motivado a responder. Nas avaliações dos componentes curriculares também produzimos várias
obras. Ao final de cada disciplina fomos desafiados a produzir textos-síntese, para percepção dos
educadores sobre a nossa aprendizagem e para servirem como conceito de avaliação para a
Universidade.
Outra tarefa que a turma tinha o desafio de construir era a memória da etapa. Nessa tarefa,
a turma como um todo, não se envolveu ficando bastante sob a responsabilidade das pessoas
escolhidas mais os/as secretários dos NB's. A turma ainda não tinha compreensão da importância
da Memória. A visão era de que tínhamos mais uma tarefa a fazer.
O Tempo Comunidade 2 trouxe maiores desafios de inserção e de contribuição das pessoas
da turma. Tivemos o desafio de ler e interpretar o livro Pedagogia do Movimento Sem Terra.
Houve um avanço na inserção política nas organizações. Muita dificuldade de ligar a militância, as
atividades do curso, a família e a sustentação financeira. Houve bastante ativismo das pessoas, no
41
sentido de que participaram de inúmeras atividades para as quais foram designados, porém, pouco
ajudaram a construir processos nas organizações.
O acompanhamento aos educandos, às educandas por parte das organizações foi diverso.
Onde havia entendimento sobre a importância do ato de acompanhar, houve avanços na inserção,
no entanto, se percebeu que muitos acompanhantes por não terem clareza do seu papel, tiveram
dificuldade de contribuir com os educandos/as.
Durante esse Tempo Comunidade aconteceu eleição presidencial e a maioria da turma se
envolveu. O Brasil escolheu um Presidente oriundo das classes operárias e a animação e
expectativa do povo em relação às mudanças naquele momento foi grande.
Outra atividade importante durante esse TC foi o plebiscito da ALCA, em que muitos
educandos e educandas ajudaram. O plebiscito conseguiu reunir dez milhões de assinaturas em
todo Brasil dizendo não ao Acordo de Livre Comércio das Américas.
Etapa III
Voltamos para o IEJC em 3 de janeiro de 2003, agora para a nossa terceira etapa. Tínhamos
o grande desafio de melhor organização como turma. Além disso, o próprio aprofundamento
teórico em relação à questão da educação e do ato de pesquisar. Para o Tempo Comunidade o
objetivo era de avançar no debate da Educação do Campo em cada organização.
Logo no início fizemos o Seminário do TC, como em todos os retornos para o Tempo
Escola. O Seminário do TC, juntamente com o Seminário da Memória do Tempo Escola anterior,
eram fundamentais para relembrarmos o caminho percorrido, os limites e apontar os desafios a
seguir durante o Tempo Escola.
Quanto aos estudos, já na primeira semana tivemos aula de Sociologia da Educação. Foi
um espaço importante de discussão das visões de mundo intrínsecas na sociedade e que
influenciam a nossa ação. Algumas dinâmicas e “pegadinhas” do educador ajudaram a nos darmos
conta do que e como pensamos o mundo e as relações. Entendemos muitos jeitos que existem de
pensar e porque as pessoas pensam assim e não de outra forma. Nessa mesma linha, no
componente Filosofia da Educação, estudamos a análise de Marx sobre as Teses de Feuerbach. Foi
importante para compreendermos que uma teoria sempre tem outras teorias intrínsecas.
Durante uma aula socializamos e refletimos sobre a observação feita no grupo de base
durante o Tempo Comunidade. Foi uma troca importante no sentido de entendermos os métodos
usados no trabalho com o povo, os principais equívocos, limites e como poderíamos contribuir no
avanço desse trabalho em nossas organizações. Tivemos também a contribuição do companheiro
João Pedro na discussão sobre a Questão Agrária no Brasil, na qual fez um resgate da
concentração da terra desde o período colonial até os dias atuais.
No intuito de entender o processo de educação/formação das pessoas, realizamos o estudo
de “Clássicos da Pedagogia”. Nesse primeiro contato com as teorias sobre a educação os grupos de
estudo foram desafiados a estudar alguns livros que sistematizam as concepções de educação e
pedagogia. Posteriormente cada grupo fez uma apresentação sobre o clássico para toda a turma.
Foi uma tarefa que exigiu esforço, pois poucos já haviam estudado e aprofundado as teorias
pedagógicas. Outro estudo importante foi a aula de Língua Espanhola. Nessa aula, aprendemos
dicas importantes sobre o espanhol, palavras mais usadas e também cantamos algumas músicas.
Tivemos o desafio de elaborar o projeto de pesquisa a partir das observações já feitas
durante os TC's anteriores, das aulas de metodologia da pesquisa, da nossa escolha de qual faixa
etária pesquisar e da contribuição dos orientadores e das orientadoras. A construção dos projetos se
deu em meio ao desafio coletivo da turma e, que muitas vezes, se tornou um desafio individual,
pois as pessoas tinham muita ansiedade de acabar, de fazer o seu projeto. Outro limite enfrentado
42
foi em relação à própria estrutura, pois tínhamos poucos computadores e horários escassos para
produzir e digitar o que escrevíamos. Através dos Grupos de Pesquisa nos ajudávamos e contamos
também com a contribuição dos orientadores e orientadoras de cada grupo. Cada grupo foi
acompanhado/orientado por duas pessoas que contribuíram durante todo o processo da pesquisa e
na elaboração da monografia. Avançamos na própria compreensão da importância de pesquisar, de
alguns métodos de pesquisa e no sentido de colocar no papel o que iríamos tentar entender e
buscar respostas.
Um elemento que nos unificava como turma era o desafio de produção de obras coletivas.
Nessa etapa a turma foi designada a participar enquanto Via Campesina do Fórum Mundial de
Educação, que se realizou em Porto Alegre. Além disso, fizemos a mística de abertura da
Assembléia Mundial dos Campesinos. Durante o Fórum, a turma foi convidada a expor sua
experiência numa mesa temática.
Aproveitamos para visitar a UERGS, onde escutamos, por alguns minutos, o
pronunciamento do novo Reitor. Pela sua fala foi possível observar que o projeto da Universidade
sofreria uma transformação significativa, pois a compreensão de desenvolvimento do Reitor
apresentava um conteúdo substantivamente diferenciado da proposta original da mesma. Além
disso, não sabíamos como seria a nossa relação com a atual Reitoria. Na oportunidade, também
escutamos o companheiro Fausto (da Via Campesina / Nicarágua) que nos falou sobre as
definições da Assembléia dos Camponeses.
Essas atividades, fora do IEJC, proporcionaram lições importantes sobre nossa capacidade
organizativa e nossa unidade de turma. Muitas vezes, não conseguimos ter a mesma compreensão
dos encaminhamentos e nos atrapalhamos em nossas ações. Depois de avaliarmos os limites, ficou
como desafio avançarmos na capacidade organizativa e na nossa própria unidade, capacidade de
diálogo e consenso.
De volta à escola participamos de um momento comemorativo dos 19 anos do MST. Foi de
comemoração pela grandeza do Movimento e pela importante luta que faz na sociedade.
Como participação no trabalho prático no IEJC, no domingo fizemos uma roçada
juntamente com toda coletividade, para suprir as necessidades econômicas apontadas durante a
elaboração do orçamento do mês seguinte. Esses momentos por serem entendidos como educativos
e fundamentais no nosso processo de formação eram encarados pela maioria como serviço ao
coletivo. Porém, isso não era um consenso. Muitas pessoas da turma reclamavam por precisar
trabalhar no domingo, dizendo que eram atividades penosas.
A vivência no Instituto durante essa etapa foi conflituosa, com muitas reclamações em
relação aos horários, ao Regimento da escola, às regras estabelecidas. A idéia era de que como não
participamos da construção do método, então não éramos sujeitos desse processo. Alguns grupos,
dentro da turma, fizeram discussões de como mudar algumas regras ou partes do seu método de
condução que estava sendo o grande problema.
Um questionamento que se colocou nessa terceira etapa foi em relação aos tempos
educativos apertados, os horários cheios e o pouco tempo vago para o próprio descanso. A questão
que se colocava era se isso realmente é educativo e formativo para as pessoas e, que aprendizados
poderíamos construir em meio a tantas tarefas a serem cumpridas. Logo no início da etapa as
pessoas já se sentiam cansadas e com pouca disposição de realizar as atividades. Isso fez com que
a turma propusesse mudança dos horários. Essas mudanças propostas foram levadas em conta
pelas pessoas responsáveis do IEJC e quando voltamos do Fórum Mundial de Educação haviam
algumas mudanças significativas nos horários, o que alegrou a turma. Na nova organização dos
horários havia mais tempos vagos e levantaríamos mais tarde. Essas críticas e proposições da
turma, enquanto parte da coletividade do IEJC, foram muito importantes para nós, ao
conseguirmos entender o processo; e também para o Instituto, enquanto coletivo que ao se colocar
em conflito repensou alguns elementos de sua prática educativa.
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Aconteceu uma plenária da turma, a qual chamamos de “plenária dos desabafos” no intuito
de socializar os conflitos que estávamos passando e quais eram os sentimentos que permeavam a
turma. Nessa plenária, várias pessoas falaram do cansaço e esgotamento pelas muitas tarefas e
questionaram o próprio método da escola. Entendia-se que aí estava o “problema”. O fator positivo
é que conseguimos fazer proposições, pensar diferente desde aquilo que estávamos criticando,
porque o grande dilema era o fato de criticar e não propor mudanças para avançar. Durante toda a
etapa ficou uma certa competição entre quem defendia o jeito que a Escola se organizava e os
outros que questionavam. Apareceu também, um conflito com o acompanhamento da turma, feito
por pessoas da própria turma. Em muitos momentos, houve o sentimento de que as decisões eram
tomadas de cima para baixo, fazendo com que muitos se revoltassem e a culpa recaía sobre as
pessoas que faziam o acompanhamento. Muito também, porque essas pessoas tinham dificuldade
de aproximação com a turma e não estavam em todos os tempos educativos que a turma
vivenciava, parecendo haver privilégios a alguns.
Participamos como Instituto de atividades na comunidade de Veranópolis. Uma foi a
Marcha pela Paz, por ocasião do Dia Mundial de luta contra a guerra, onde mostramos a cara para
a comunidade e a nossa capacidade organizativa, bem como nossa simbologia. Também fomos
várias vezes em jogos de futebol em algumas comunidades do interior do município; e nos sábados
a noite, principalmente os meninos, jogavam futebol de salão num ginásio na cidade. Esses
momentos contribuíam na própria integração com a comunidade, pondo uma outra imagem dos
Movimentos Sociais, que não aquela pregada pela grande mídia para distanciar a sociedade das
organizações.
O trabalho no Instituo também foi um ponto polêmico na nossa vivência. Estudado desde a
primeira etapa como matriz formativa do ser humano e assim entendido por nós como princípio
educativo. Porém, a relutância contra esse tempo foi constante. Havia a compreensão de que o
trabalho era cansativo e em conseqüência disso dificultava o estudo e a aprendizagem. Esse
entendimento não era de toda a turma, mas conseguia provocar análises e envolver o coletivo na
discussão. Em alguns de nós, ficava a indignação pelos outros não entenderem a importância do
trabalho.
Um momento de construção como turma foi o processo de crítica e autocrítica, desta vez
realizado nos Movimentos e Pastoral, onde apontamos nossos limites e desafios individuais e
coletivos. Esse momento não foi consenso, pois uma parte da turma pensava que a crítica deveria
ser com o grupo todo. A partir dessa avaliação de cada educando e educanda, o Parecer Descritivo
da etapa foi construído nos NB's, num processo de crítica e autocrítica. Os pareceres eram
enviados às organizações para terem noção dos nossos aprendizados, limites e desafios a serem
superados.
Nesse Tempo Escola iniciamos a construção do símbolo da turma. Numa noite, nos
reunimos para começar. No primeiro momento dissemos uma palavra que simbolizava a unidade
da turma. Depois fizemos desenhos individuais e coletivos que expressassem tais sentimentos.
Neste dia, ficou encaminhado que o grupo que havia organizado o processo até ali, faria a
sistematização. A finalização do símbolo aconteceu na etapa seguinte com a contribuição da Irmã
Elda, numa tentativa de contemplar os elementos significativos e que mais apareceram nos
desenhos individuais.
Um pouco antes dessa etapa, havia sido lançado o caderno n. º 6 da coleção Cadernos do
ITERRA, no qual consta um texto sobre a experiência da nossa turma. Lemos o caderno e ficamos
bastante animados por ver a importância do curso e da turma, para a discussão pedagógica e de um
novo jeito de fazer educação. Nesse texto há uma citação referente à discussão que fizemos com
uma educadora sobre nossa identidade. A questão levantada pela educadora é de que nós
precisávamos ter orgulho de sermos universitários. Num primeiro momento, todos calaram diante
da fala. Depois, houve algumas intervenções no sentido de dizer que éramos militantes de
Movimentos/Pastorais Sociais e que essa era a primeira característica de nossa identidade. Por
44
parte de alguns ficou a dúvida de o que realmente deveríamos cultivar, porém fomos afirmando
essa unidade enquanto organizações e luta.
Outro momento que construiu unidade foi a leitura do livro de literatura Fontamara,
através do qual nos identificamos com os "cafones" personagens do livro. Eles eram camponeses,
num primeiro momento ingênuos, depois iam tomando consciência de sua opressão e lutavam por
seus direitos. Ficamos por muito tempo nos chamando uns aos outros com expressões como
“cafones” ou “cafonada” e para as crianças “nossos cafoninhos” que pra nós significava
camponeses lutadores.
Numa manhã, uma companheira da turma, responsável pelo IEJC, foi até a rádio de
Veranópolis falar sobre a existência da nossa turma no Instituto e escutamos sua entrevista. A
entrevista foi realizada pelo fato da comunidade Veranense estar questionando por não poderem
participar dos Cursos de Pedagogia existentes no Instituto.
Para o TC dessa etapa foram encaminhados muitos trabalhos do curso e outros enquanto
Movimento e Pastoral. Leitura de livros, pesquisa e observação em sala de aula sobre métodos de
leitura e escrita. E o grande desafio de iniciar a pesquisa de campo, que seria a coleta de dados
para elaboração da monografia. Além disso, uma pesquisa nos Movimentos sobre a concepção de
formação/educação dos mesmos. No geral, houve avanço na inserção. A maioria reclamou sobre a
visão que os Movimentos têm sobre o estudo e a pesquisa, como se fossem atividades individuais e
não de qualificação dos militantes. Levamos o desafio de puxar o debate da Educação para dentro
das organizações e essa foi uma tarefa que permeou todo o curso. Aos poucos, foi sendo
internalizada nos Movimentos e na Pastoral.
Etapa IV
A Etapa 4 transcorreu durante o período de inverno, iniciando dia 6 de junho de 2003. Foi
um período de muito frio, chegando a 8° graus negativos. Dezenove pessoas não chegaram para o
Ato de Abertura da Etapa, o que era um problema, pois toda a preparação para o início da etapa,
feita pela coordenação do curso e a CAPP ficava prejudicada, criava-se um descompasso na
inserção da turma no processo e na organicidade.
Quatro educandos não retornaram para o curso, aumentando para 13 o número de
desistentes e ficando a turma em 47 pessoas. Com essa diminuição, também foi destituído mais um
NB, o Caio Prado Júnior, ficando cinco Núcleos de Base na turma. Duas pessoas a mais foram
convidadas a contribuir naquela etapa, como membros do Coletivo de Acompanhamento Político-
Pedagógico da turma, sendo seis companheiros e companheiras da turma com atribuição de fazer o
acompanhamento da turma como um todo.
Retornávamos para um novo desafio, após a agitada Etapa 3. O seminário de memória da
34
turma realizado no início de cada etapa, desta vez teve um ingrediente a mais, que foi uma
“entrega teórica”, acerca de como fazer a leitura do processo, para tentarmos entender o
significado da Etapa III, uma etapa de muitas polêmicas, sendo caracterizada como um “divisor de
águas” no processo de nossa formação. Foi nessas discussões que fomos nos dando conta de que
há sempre uma tensão entre o individual e o coletivo, e nos questionando como conciliar essas
tensões. O conflito se materializava sobre a vivência nos horários do Instituto. Naquele seminário
demos um passo à frente, também na compreensão do que é identidade e começamos a matutar
qual seria a base de construção da nossa identidade, dado que éramos de organizações diferentes.
Nos perguntávamos também: temos mesmo que ter uma identidade enquanto turma?
34
Feito sempre ao início de cada etapa, a partir do texto de memória da etapa anterior, com objetivo de rememorar
onde paramos, fazer o “engate” entre um período e outro, e avaliar quais questões e desafios se colocavam para a etapa
que se iniciava.
45
Compreendemos que uma pessoa pode ter (e tem) várias identidades, desde que não sejam
contraditórias entre si, e o que acontece é que as pessoas normalmente têm uma identidade maior,
mais forte, que dá rumo às suas ações, quando o processo é consciente. De certa forma, essas
questões tranqüilizaram o debate, deixando de ser uma preocupação, mas caindo quase no outro
extremo, que era não discutir mais sobre a identidade da turma.
Os focos de aprendizagem que estavam direcionados no Projeto Metodológico daquela
etapa eram: avançar na capacitação organizativa, na formação e na postura de pedagogos e na
qualificação como estudantes universitários. Começava a despontar a idéia de irmos assumindo
responsabilidades quanto ao nosso processo de formação e, por isso, fomos desafiados a definir as
oficinas e seminários que teríamos naquela etapa.
Estiveram na Escola conosco, naquele período, duas turmas do curso Técnico em
Administração de Cooperativas: a turma Antônio Conselheiro (TAC VIII), que estava na Etapa 3 e
o TAC IX, que estava na Etapa Preparatória. Com ambas as turmas tivemos relações de convívio
positivos e momentos de conflito. Em relação ao TAC VIII parecia que, de ambas as partes, não
nos dávamos muito bem. Neste período, tivemos atritos por causa de uma sala de aula que o
Instituto estava utilizando na parte usada pela Universidade de Caxias do Sul. Era o TAC que
estava designado para estudar lá, porém as aulas deles eram à tarde e nesse horário, tinha muito
barulho naquela sala, por causa das crianças de uma Escola que também funcionava no mesmo
prédio. Como nossas aulas eram de manhã e neste período não tinha barulho, nos propuseram
trocar. Nós trocamos, mas a maioria da turma não gostava daquela sala e, além disso, tínhamos
três companheiras grávidas e isso dificultava seu deslocamento, pois tinham muitas escadas.
Propusemos destrocar e a turma do TAC resistiu, pois se sentiam prejudicados e nós quase que
impusemos a volta à sala 412, que era vista por muitos de nossa turma como a “nossa” sala.
Com a turma do TAC IX os maiores conflitos foram de convivência, pois não nos
entendíamos bem. Nossa turma achava que eles eram muito “piazada” e eles nos chamavam de
“trombose”, que queria dizer algo que trancava, que não deixava “correr” o sangue, no caso, não
permitíamos construir relação.
Por outro lado, se existiam alguns conflitos, também convivemos e construímos momentos
bonitos como coletividade do IEJC. Aconteceram fatos como o da festa junina e quadrilhas que
integrou a coletividade, onde as turmas se envolveram para fazer apresentações e se divertir.
Houve também os jogos de futebol das meninas e dos meninos com times de Veranópolis, que
unificava a identidade da escola perante a comunidade.
Os componentes curriculares que estudamos nesta etapa nos remeteram a aprofundar três
grandes campos do conhecimento, que foram a teoria marxista sobre a lógica do capital, como se
dá a extração da mais-valia, a concorrência entre os capitalistas. Fez com que a turma se desse
conta de que, no capitalismo, não há saída para a classe trabalhadora. Uma segunda linha de
questões estudadas foi a das matrizes pedagógicas, as quais, desde o início do curso, eram tidas
como de grande importância na formação do ser humano. Isto nos deu maiores elementos para
nossas observações dos sujeitos de nossas pesquisas, que se desenvolvia neste período. Tivemos o
seminário a respeito do pensamento pedagógico de Makarenko, sobre o qual havíamos lido o livro
“Vida e Obra de Makarenko”, no Tempo Comunidade, e o seminário contou com a presença da
autora do livro, Cecília Luedemann.
Nas aulas de Português e Literatura nos debatemos com nossa restrita formação escolar em
escrita e nos desafiamos a superar nossos limites, a partir dos vários recursos de linguagem
trabalhados na disciplina. Naquela etapa, o trabalho foi direcionado ao estudo da literatura dos
Movimentos Sociais contribuindo para com nossa sensibilização em relação ao tema, a partir do
qual passamos a enxergar com mais propriedade a literatura feita dentro dos nossos Movimentos
e/ou por apoiadores que têm visão de mundo semelhante à nossa. Resgatamos produções e/ou nós
mesmos produzimos algumas obras, em teatro, historia infantil, contos e histórias orais,
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incentivados pela idéia de publicarmos um livro sobre o tema, com algumas amostras de obras
populares, feitas nos Movimentos. A turma não agarrou a idéia da publicação e, por isso, não se
esforçou para garanti-la; terminou sendo esquecida.
Foi a última etapa em que tivemos o componente curricular de Português e Literatura e nos
sentíamos ainda fragilizados, sem bom domínio do processo da escrita. Por isso, buscamos garantir
algumas oficinas que nos qualificassem para o grande desafio de escrever a monografia, que
começava a tomar corpo, pois trouxemos do TC nossos primeiros escritos sobre os resultados das
pesquisas.
A questão da pesquisa foi se colocando como desafio de outra ordem, naquela etapa. De
posse dos primeiros dados, começamos a matutação de como sistematizá-los, lemos alguns textos
de apoio e vimos, no diálogo com os orientadores e orientadoras, uma grande ferramenta de apoio
e passamos a ver mais sentido para os grupos de pesquisa. Fomos desafiados a fazer uma
apresentação dos primeiros resultados de pesquisa, sistematizados nos grupos, para o conjunto da
coletividade do IEJC. Foi uma atividade muito importante para nós, pois, se por um lado, nos
motivava o fato de produzir sínteses, nos organizarmos nos grupos e apresentar nossa primeira
compreensão dos sujeitos, por outro lado mostrava o quanto ainda tínhamos que aprofundar e,
principalmente analisar os dados coletados e ensaiar um sumário. Alguns de nós não havíamos
ainda conseguido muitos dados, e nos sentimos desafiados a buscá-los com seriedade no TC
seguinte.
A discussão sobre a identidade da turma teve alguns caminhos reabertos por conta da
construção de alguns símbolos, ou seja, o desenho e a canção que representassem o que se tinha
construído até então. A idéia do desenho foi mais tranqüila, conseguiu ser objetivado em
elementos com os quais a turma se identificava e percebia um sentido, como as raízes, tronco e
galhos segurando a Via Campesina, o casulo, a borboleta, as sementes como estrelas, expressando
a idéia do movimento como transformação. Com o desenho, confeccionamos as camisetas,
passando a ter uma expressão da representação que a turma fazia de si mesma.
A canção não teve a mesma fluência, foi uma questão mal resolvida desde o momento de
sua criação e assim permaneceu várias etapas. Não conseguimos finalizar em “alto e bom som”,
houve descontentamento com o ritmo da música, muitas pessoas não gostaram, porém, não
conseguimos aprofundar. Havia várias concepções, gostos e estilos e havia também uma
fragilidade em fazer a discussão aberta. A canção construída valorizou o aspecto do conteúdo, as
aprendizagens construídas no curso e, com isto, todos se identificavam. A dificuldade estava em
cantar a música, não “embalava”, não conseguíamos seguir o mesmo ritmo e nem decorar a letra.
Vários foram os episódios envolvendo a “música da turma”. Na construção do ritmo da música
contamos com a ajuda do companheiro Zé Pinto, cantor do MST.
Um fato que começou a acontecer, naquela etapa e que permaneceu nas seguintes, chamou
atenção da turma, foi o fato de 28 pessoas se encontrarem por acaso num domingo à tarde, numa
pastelaria da cidade. A repetição destes encontros revelava um elemento da nossa cultura, em que
a idéia de sentar-se num “bar”, lanchar e “jogar conversa fora” atraía a maioria da turma como
opção de lazer.
Nessa etapa muitas brincadeiras foram feitas, informalmente nos quartos, por iniciativa de
algumas pessoas e que ficaram guardadas na memória de quem esteve envolvido. Aconteceu
também a nossa primeira ida ao Balneário Bom Retiro, mesmo sendo no inverno e não podendo
desfrutar de banho no rio, foi um dia muito agradável, com jogos, brincadeiras risos e almoço
junto a natureza. Acompanharam-nos nesse passeio dois repórteres das revistas Veja e Época, que
fizeram algumas entrevistas e observações. Estavam fazendo uma pesquisa no MST, em vários
locais no RS, e ficaram alguns dias no ITERRA. Posteriormente ao olharmos a revista ficamos
chocados com as distorções feitas do que dissemos; apareceram declarações contrárias ao que
realmente tínhamos falado. A revista falou muito mal da juventude Sem Terra.
47
Algumas situações fortes de solidariedade foram requeridas dentro da turma, como no caso
da crise de convulsão que aconteceu com um companheiro da turma, durante uma das aulas e que,
ao mesmo tempo em que abalou as pessoas, foi grande o esforço por socorrê-lo. O convívio com
este companheiro, aumentou em nós a dimensão da necessidade de cuidado com as pessoas. Em
outras situações de pessoas doentes procurávamos atender e contribuir para com as mesmas, sendo
sempre mais forte a solidariedade dos moradores, das moradoras do mesmo quarto, pelo fato de
estarem mais próximos.
Ainda na questão da saúde, a notícia de que nossa companheira da coordenação do curso
estava com seu problema de coluna agravado e que teria que fazer uma cirurgia, sensibilizou a
turma e provocou gestos de carinho e solidariedade.
Na busca de sensibilizar a nossa formação, para as mais variadas dimensões, na etapa 4
tivemos duas atividades importantes que nos fizeram refletir e avançar: um seminário sobre
gênero, no qual, entre outras coisas, nos questionamos se era correta a política de ter sempre um
companheiro e uma companheira na coordenação das instâncias da turma, sendo que o número de
homens era bem menor, sendo em torno de 25% dos membros dos NB’s. Nos demos conta de que,
a política instituída, levava a que os companheiros se capacitassem bem mais do que as
companheiras, pois se repetiam na coordenação das instâncias e sabíamos que isso é um elemento
de capacitação/formação. Esse fato deu margem a que, nas etapas seguintes, os NB’s passassem a
escolher duas companheiras para coordená-lo, mantendo-se a idéia de um companheiro e uma
companheira naquelas instâncias que eram do Instituto e também, na coordenação da turma, por
serem os membros da CNBI.
A cada etapa buscou-se ter alguma atividade voltada à sensibilização musical e/ou de
outras artes, e, desta vez, tivemos uma oficina de sensibilização musical e também uma noite de
música latino-americana.
A idéia de que, para educar é importante trabalhar diversos recursos nos levou a
desenvolver uma “oficina de dinâmicas de grupo” construída pelos NB’s, que foi sistematizada e
ficamos com cópias das dinâmicas para trabalharmos nos espaços educativos em que atuamos.
Naquela etapa, também começamos a aprender a fazer planos de leitura, para nos auto-organizar
nos tempos leitura e, inclusive, para aprender a indicar prioridades de leitura no Tempo
Comunidade.
Na formação de habilidades políticas e pedagógicas, tivemos o seminário sobre método de
direção e formação. Para aprofundarmos a identidade com nosso inspirador José Martí, fizemos
um seminário sobre seu pensamento e a história de Cuba.
Durante o TC, nossa turma contribuiu com a coletividade do IEJC e com os Movimentos
Sociais, fazendo a mística de Abertura da Turma de Pedagogia da Terra II, a segunda turma de
Pedagogia da Terra do convênio da Via Campesina com a UERGS. Para esta tarefa a turma
escolheu um grupo, com representantes de todos os Movimentos, que se encontrou no IEJC nos
dias que antecederam o início do curso, preparou e apresentou a mística e também deu as boas
vindas aos companheiros e às companheiras da nova turma entregando uma pequena lembrança,
um colar com uma semente para cada um, em nome da Turma José Martí.
Outra atividade realizada pela turma foi a venda de rifa, feita religiosamente em todos os
TC. A rifa era uma forma de arrecadar fundos para os gastos que precisávamos ir fazendo durante
as etapas e também para a formatura.
Foram muitas as lutas que os educandos/as participaram, em todos os Movimentos/
Organizações. Consideramos aquele TC mais desafiante, com atividades mais orgânicas e de
maiores dimensões. Muitos de nós começamos a prestar mais atenção para perceber o Movimento
como espaço educativo e a maioria conseguiu propor várias questões ao Movimento/Pastoral,
enquanto atuação pedagógica. Fomos desafiados a desenvolver uma prática pedagógica em
48
Etapa V
Era verão, mais especificamente janeiro e fevereiro de 2004. A Etapa V inicia com a
presença de apenas 26 estudantes dos 47 que compunham a turma ao final do Tempo Escola
anterior. Quem não estava presente no início, foi chegando naquele mesmo dia ou no dia seguinte,
restando ausentes quatro pessoas, duas com justificativa de saúde e duas tidas como desistentes.
Uma desistência se concretizou, passando a 46 o número de integrantes da turma. O NB Patativa
do Assaré foi destituído e seus membros foram integrados aos quatro NB’s que permaneceram
como base de organização da turma.
As três companheiras que estavam grávidas no Tempo Escola anterior vieram com seus
filhos nascidos, somando-se às crianças com as quais já convivíamos e, ao mesmo tempo,
iniciando uma nova história com os bebês na turma.
Realizamos logo no início da etapa, o Seminário da Memória da etapa anterior onde
discutimos as grandes questões que acreditávamos ter movido a turma e os desafios que se
colocavam. Foi no sentido de fazer um balanço da etapa e analisar os fatos. A turma fez uma
autocrítica em relação à sua postura com as demais turmas do Instituto, onde levantamos que havia
um “clima” de que a nossa turma tinha privilégios e se sentia superior às demais. Constatamos
também que, ao contrário da etapa III, na etapa IV nós abafamos os conflitos, houve uma certa
“anomia” e tivemos dificuldades de nos assumir como sujeitos. Crescemos na análise dos fatos e
síntese das idéias. Foi o momento de “nos darmos conta”, de percebermos o essencial dos fatos.
Ficava o desafio de levantar propostas de ação.
O principal foco daquela etapa era a busca do ser autodidata, ou seja, a própria
determinação no estudo e nas reflexões acerca dos temas trabalhados no curso e dos interesses
individuais e/ou das organizações.
A turma retornou do TC sentindo que havia ampliado a sua inserção na base e na condução
dos processos organizativos, políticos e educativos. Trouxemos observações feitas durante a
pesquisa de campo, que propiciaram ir mais fundo e conhecer a realidade dos sujeitos pesquisados.
Tivemos o estudo de Desenvolvimento e Educação, que nos levou a compreender a
urgência e os meios de recriar e valorizar o jeito de ser camponês, e quanto nós temos que
intensificar esta luta, pois o agronegócio representa a ampliação do capitalismo no campo. Foi
combinando este estudo com a questão da educação que começamos a entender, mais
profundamente, os fundamentos da Educação do Campo e todo um novo desafio se descortinava
em nossa frente.
Os Fundamentos da Escola do trabalho, de Pistrak, livro que tínhamos lido no TC, motivou
um seminário sobre o tema. Na discussão fizemos muitas relações com a prática, nos questionando
como trabalhar a educação a partir deste princípio pedagógico e que trabalho pode e deve ser
desenvolvido nas escolas.
Com os dados empíricos coletados na pesquisa e os estudos anteriores de como fazer a
análise de dados fomos desafiados a iniciar nosso Plano Provisório do Trabalho Monográfico
(PPTM), ou o “Sumário Recheado” como o apelidamos. Para isso, foram constantes as atividades
nos Grupos de Pesquisa e o trabalho junto com os orientadores e orientadoras. O exercício de
defesa do Sumário e da tese central que estaríamos defendendo dentro de nossa monografia, nos
ajudou muito para qualificarmos as nossas produções e para percebermos que havíamos dado um
salto, enquanto turma, no processo de pesquisa, compreensão, sistematização, análise, elaboração e
escrita. Foi emocionante ver e pensar na trajetória de cada pessoa desde quando chegamos no
49
curso, quando nossa compreensão intelectual era bem aquém e, naquele momento, nos víamos
“emergindo” com capacidade e domínio intelectual de lidar com teorias e formular teses sobre a
realidade pesquisada.
Fizemos um exercício de defesa dos trabalhos monográficos, dentro das aulas de
metodologia da pesquisa. Esta marcou a etapa, por ser um momento coletivo, sendo este um
exercício de muito esforço individual, de leitura, sistematização, elaboração, procurando avançar
ao máximo ou mesmo conseguindo se “achar” dentro do que cada um estava projetando para sua
produção textual. Um dos elementos que contribuiu para a compreensão do processo de escrita
foram as aulas de Desenvolvimento e Educação, onde aprendemos a “desconstruir”, compreender,
detalhar, analisar o texto.
Estávamos no período de comemoração dos 20 anos do MST, e muito nos envolvemos,
estudando aspectos da história deste movimento, em conjunto com toda a coletividade, e também
nos envolvemos na mística desta data e na festa realizada.
Mais ou menos na metade da etapa, uma companheira tida como desistente, “desistiu de
desistir”, como nos disse a coordenadora do curso. A turma foi chamada a se posicionar se
aceitava o retorno da companheira, à medida que sua desistência era tida como questão pessoal. A
decisão foi de acolher o retorno da educanda, com o sentimento de que precisávamos de todas as
pessoas dispostas a seguir a caminhada e se educar nela.
Na busca de construir a coletividade e a unidade da turma, desde a etapa anterior tínhamos
feito a brincadeira do “amigo secreto” e combinamos de revelar num domingo, onde organizamos
um passeio nos pontos turísticos de Veranópolis e depois fomos passar o restante do dia no
Balneário Bom Retiro. Essa foi uma atividade da turma que ajudou para dar harmonia às relações,
pois ia se criando uma maior camaradagem entre nós e nos construindo com afetividade e alegria.
Desde o TE anterior que detectamos a necessidade de termos uma leitura sobre ate que
ponto a turma estava conseguindo avançar nos desafios e metas de cada etapa. Por iniciativa do
CAPP, fizemos um processo de avaliação que ajudou a enxergarmos “em que pé” estávamos. A
discussão se deu primeiramente entre o CAPP, a coordenação do curso e a Coordenação de
Núcleos de Base da Turma. Depois fizemos uma plenária com toda turma, onde cinco principais
desafios foram colocados para a turma avançar: leitura e interpretação de textos; assumir-se como
pedagogos em construção; disciplina intelectual e coerência entre teoria e prática; busca da entre-
ajuda; superar a auto-suficiência (na relação de coordenar e ser coordenado). Naquela plenária
apareceu a noção de que existiam grupos de articulação na turma, o que ocasionou um certo mal-
estar em alguns, porém, não ficou claro que articulações eram essas.
O cumprimento dos tempos educativos nunca foi exemplar pela nossa turma, porém,
naquela quinta etapa foi grave o descumprimento dos mesmos. Tanto assim, que foi necessário
discutir e tirar encaminhamentos de como tratar o assunto. Os tempos de Educação Física eram os
que as pessoas mais faltavam.
Repetimos nessa etapa algo que religiosamente sempre fizemos como turma: a contribuição
na compra de fraldas para as crianças da turma. Além de contribuir com as mães na hora de buscar
as crianças na ciranda, durante as refeições e intervalos. Vimos como uma forma de solidariedade
com as mães e também de expressar uma concepção, a de que as crianças são de responsabilidade
do coletivo e não apenas de sua família.
Na coletividade do IEJC vivenciamos diversas situações e aprendizados: o método de fazer
a segurança mudou, a partir dos debates do TE anterior. A escola tomou boas medidas no aspecto
da prevenção de incêndio, com instalações adequadas e fazendo oficinas de como utilizar os
equipamentos.
50
Foi um período em que fizemos como escola a comemoração dos 20 anos do MST e nos
preparamos para a comemoração dos 10 anos do ITERRA. A turma se envolveu principalmente
nas produções de artes plásticas, na construção de uma música e do painel dos 20 anos.
Em todas as etapas o trabalho esteve colocado. Nesta, contudo, recebeu um ingrediente a
mais que foi o dia de trabalho externo, que cada turma passou a dedicar para contribuir na
sustentação financeira do Instituto. Fizemos uma roçada, e estes momentos eram sempre
marcantes, pelo tamanho do esforço físico, pelas reflexões sobre o sentido do trabalho e também,
por ser algo que contribuía para aliviar as tensões da vivência um tanto fechada que tínhamos na
escola.
No conjunto da escola, e também dentro de nossa turma, vivemos situações de tensões e
conflitos diante da disciplina. A situação de um grupo de educandos e educandas que entraram no
IEJC fora do horário estabelecido no regimento, gerou muita polêmica, especialmente porque a
discussão não aconteceu nas instâncias, e sim, nos corredores.
Outro ponto de tensão era com relação com os computadores, porque poucos estavam
funcionando, mesmo tendo o espaço físico da informática sido ampliado. Tínhamos muitos
trabalhos para entregar: o sumário da monografia, o relatório da oficina de capacitação
pedagógica, a “desconstrução” de um livro, eram apenas alguns exemplos da necessidade dos
computadores e freqüentemente estragavam, perdíamos trabalhos inteiros já digitados e, nessas
horas, a indignação era geral.
Alguns dos componentes estudados haviam começado a preparar a turma para as didáticas
dos processos pedagógicos, tendo em vista a prática pedagógica que fizemos nessa etapa, e
também por serem fundamentais para a formação de pedagogos. Áreas como leitura e escrita e a
etnomatemática foram nos abrindo a imaginação de estarmos numa sala de aula, com crianças e/ou
jovens e adultos, contribuindo para a construção do conhecimento.
A idéia de que iríamos ter nossa primeira Oficina de Capacitação Pedagógica (OCAP), que
seria num acampamento de 800 famílias Sem Terra, em Cascavel/PR, era uma situação que
despertava muitos sentimentos, um misto de alegria, medo, curiosidade, responsabilidade e
ansiedade muito forte, no período que antecedeu nossa viagem. Tivemos vários momentos de
preparação para o trabalho que íamos desenvolver com a Educação de Jovens e Adultos. Os relatos
de como era o lugar, a organização e os sujeitos do local nos faziam criar imaginação que, na
chegada, logo percebemos que o contexto era bem diferente, mas surpreendente.
Ficamos maravilhados com aquela experiência, que foi nosso primeiro estágio como
educadores e educadoras e, para muitos da nossa turma, foi a primeira vez que entraram numa sala
de aula como educador, educadora. A prática pedagógica foi formativa para nós, começamos a
aprender em que consiste um planejamento, a relação educador/educando, o trabalho coletivo e a
interlocução com o acompanhamento. Além disso, para muitos de nós era uma primeira
experiência também de estar em um acampamento; tivemos grandes aprendizados na organicidade,
nas atividades diárias lá desenvolvidas. Depois da prática no acampamento, ficaram as tarefas de
fazer o relatório e as reflexões sobre o estágio.
Durante a etapa fomos imaginando como deveria ser a pasta da turma. Decidimos como
seria, os desenhos, o modelo. Decidimos por colocar o símbolo da Via Campesina, a frase de José
Martí “O Conhecimento Liberta”. A pasta chegou no dia em que acabou a etapa, depois do ato de
envio. Por isso, muitas pastas foram levadas pelos companheiros que permaneceram umas horas a
mais na escola.
Fomos para o Tempo Comunidade com o grande desafio de escrever a Monografia e trazê-
la pronta, três cópias encadernadas, no primeiro dia do Tempo Escola seguinte.
51
Etapa VI
Que somos capazes sim, de fazer elaborações, desmistificando esta idéia de que alguns sabem e
outros não, e provando que cada vez mais os trabalhadores têm que ir forjando conhecimentos nessa
sociedade de desigualdades.
Para saber que educação queremos é preciso entender que sujeitos temos e que sujeitos queremos
construir.
E nos alerta para a importância da pesquisa, pois que a realidade está sempre em movimento e é
fundamental atualizar a ‘leitura’ da mesma.
Aprendi a cuidar mais dos seres humanos e principalmente perceber o opressor dentro de mim, e
amar mais intensamente e me mostrar para me conhecer também.
A memória também foi um desafio coletivo durante essa etapa. Ainda no início da etapa
tivemos o Seminário da Memória, no qual lemos a síntese da etapa anterior com o objetivo de
entendê-la, olhando mais de longe e apontando os desafios que permaneciam na etapa VI. Para
isso a memória teve sempre um papel fundamental na discussão de início de cada etapa. Era como
lembrar de onde paramos, quais os limites apresentados, em que precisávamos melhorar. A nossa
avaliação, naquele momento, foi de que a etapa anterior foi de consolidação da turma, porém com
pouca mística e animação. Houve uma certa confusão sobre o que era ser autodidata. Alguns
entenderam como “se autocomandar para não ler”, não entendendo o sentido proposto e não
agarrando o desafio.
A construção da memória da etapa se deu pelo posto de trabalho responsável, com a ajuda
da turma, através das secretárias e secretários dos NB’s. No final da etapa tivemos o Seminário da
Memória em que lemos o texto construído e apontamos as sugestões.
Foi uma etapa de poucos componentes curriculares, com os educadores em sala de aula por
vários dias. Na maioria das vezes foram seminários de preparação ou de avaliação, também várias
oficinas em preparação ao estágio. Um componente curricular sobre Concepção e Método no
ensino de Ciências Sociais nos instrumentalizou para as práticas pedagógicas em sala de aula.
Tivemos uma parte dessa disciplina antes, e outra depois do estágio. A outra disciplina foi de
Educação Matemática, com foco na Etnomatemática, a matemática da vida, e aprendemos a lidar
de uma forma menos difícil com esse componente considerado difícil pela maioria das pessoas.
O estudo esteve direcionado pelos Grupos de Estudo, já que na etapa anterior o ser
autodidata havia sido confundido com “eu estudo se quiser”. Por isso, o Plano de Leituras foi feito
de duas formas: um individual e um coletivo no grupo de estudo, juntando os dois num só.
Também tivemos duas pastas de leitura, a individual e a do grupo.
Os seminários foram muitos. Teve uma semana, antes do estágio, em que tivemos cinco
seminários: crítica e autocrítica; tensões, contradições e conflitos na construção da coletividade; a
realidade das escolas de Pontão (local onde realizamos o estágio); sobre Ciclos; e o último que
teve o caráter de oficina em preparação ao estágio. Os seminários sobre as escolas de Pontão e
sobre os ciclos foram praticamente juntos, porém não conseguimos entender bem os ciclos e a
maioria ficou com muitas dúvidas sobre o assunto.
Os estágios foram um desafio. Primeiro tivemos que refazer os relatórios do estágio/OCAP,
que realizamos com jovens e adultos no Acampamento Dorcelina Folador em Cascavel/PR.
Depois, iniciamos a preparação para o Estágio em Anos Iniciais. Realizamos em Pontão/RS, em
sete escolas das redes municipal e estadual. A organização inicial foi desde a divisão por grupos
para cada escola, as questões práticas como alimentação, ciranda infantil, etc e o Seminário com as
professoras das escolas da rede. A coordenação da turma, também fez os acertos com as diretoras
das escolas para acertar os alojamentos, o transporte e a ciranda durante os dias do estágio. Cada
escola apresentou sua experiência e nós fizemos alguns questionamentos. Após, fizemos alguns
combinados em relação aos relatórios e materiais necessários a serem elaborados sobre a prática.
Durante a semana que antecedeu o estágio, também tivemos alguns tempos educativos
alterados para a preparação. Fizemos os planejamentos por escola, por séries e por turmas.
Construímos materiais a serem utilizados e tiramos uma equipe para ser responsável pelos
materiais didáticos. No dia da viagem, numa sexta-feira, acordamos cedo, pegamos o ônibus e lá
fomos nós, rumo a Pontão. Chegando lá, cada grupo foi para as escolas onde trabalhariam, para
fazer a observação da escola e da aula. No sábado, voltamos todos para a cidade para nos
reencontrarmos enquanto turma, juntamente com os educadores das escolas e para socializarmos
os planejamentos. O domingo foi utilizado para integração nas comunidades e nas famílias.
55
Etapa VII
35
Registros da Memória da Turma José Martí, Etapa VI, pág. 18.
56
pedagogos e pedagogas.
A discussão sobre a construção e o papel do ser educador ganhou corpo e gerou conflito
durante um grande período da etapa. Houve uma discussão no sentido de entender quem seria mais
importante nos movimentos: educador ou dirigente. Nas discussões abertas sobre o tema era
consenso geral, que as atividades são fundamentais e uma é intrínseca na outra. Ao mesmo tempo
em que um dirigente precisa ser educador, um educador também precisa ser dirigente. Porém, em
muitas falas na turma apareciam outras concepções. Pensamos que fosse pela nossa perspectiva de
atuação nas organizações. Alguns, por atuarem nas escolas com a tendência de supervalorizá-la,
outros que atuam na militância não-escolar com a tendência de pormenorizar a escola. Fizemos,
várias vezes, esse debate nas discussões em sala de aula, nos NB’s e pelas conversas informais.
Cremos não ter esgotado a discussão e sabemos que esse conflito é uma realidade nos nossos
Movimentos/Pastoral.
Outro informe que recebemos no primeiro dia foi sobre a situação do nosso curso. Havia
mudado de nome oficial pela terceira vez. Além disso, uma boa notícia: a UERGS havia voltado
atrás na decisão sobre a carga horária dos estágios. Havia a possibilidade concreta de terminarmos,
ainda nesse ano de 2005 o curso, realizando a formatura no tempo que tínhamos previsto antes.
Esse foi, aliás, um impasse que vivemos por um longo período na etapa, já que a Universidade não
confirmava a data da formatura. No entanto, fomos nos organizando: começamos a fazer os
encaminhamentos mais urgentes e foram organizadas equipes de trabalho para dividir as tarefas.
Além disso, foram tiradas duas pessoas da turma para coordenar as equipes e os encaminhamentos
necessários. As equipes foram trabalhando e realizando as tarefas mais urgentes, de forma que foi
possível fazer um orçamento geral do gasto que teríamos com a nossa festa. Quase na metade da
etapa tivemos a confirmação: 23 de setembro. Numa reunião do colegiado dos Movimentos, foram
apresentadas as idéias e o planejamento da turma em relação à formatura.
Também aceleramos a confecção das nossas roupas. Havia a proposta, ainda da etapa
anterior, de confeccionarmos a roupa da formatura, de algodão cru, e cada um fazer um bordado.
Isso gerou muitos conflitos na turma. Algumas pessoas não queriam usar na formatura esse tipo de
roupa. Aos poucos fomos discutindo e compreendendo o significado de construir uma roupa com
nossas próprias mãos, de um jeito alternativo, porém, sempre existiam divergências. Compramos
coletivamente o tecido e começamos a tirar as medidas para a confecção. Numa oficina de
bordado, que tivemos com a Irmã Elda, ela fez uma sensibilização em torno do que significava
usar roupas de algodão cru. Saímos do Tempo Escola com a tarefa de ir fazendo o bordado durante
o Tempo Comunidade. Doze pessoas fizeram o símbolo da turma na camisa, sendo que os demais
teriam que criar seu próprio desenho para bordar.
A vinda dos Movimentos na escola, também foi aproveitada para fazer reuniões por
organização, onde se debateu a conjuntura dos Movimentos e Pastoral e a atuação dos educandos
dentro da escola. Por ora, quando necessário, se encontra tempo e os próprios educandos fazem
reuniões das suas organizações, principalmente no final de semana. Nessa etapa tiveram alguns
questionamentos da turma em torno da saída de companheiros durante o Tempo Escola para
cumprir atividades dos Movimentos e Pastoral. Aconteceram algumas saídas e isso foi avaliado
como prejudicial à dinâmica da escola e também para o educando ou educanda, que acaba
perdendo o andamento da vida do Instituto.
Alguns Movimentos, também estiveram mais ativos nesse período na escola. Durante o
período de comemoração do Dia Internacional da Mulher (8 de março), o MMC contribuiu na
preparação de uma Jornada Socialista sobre a atuação da mulher na sociedade. Bem como, durante
o período de comemoração do Dia Internacional da Luta Contra as Barragens (14 de março), o
MAB contribuiu com as místicas do Tempo Formatura mostrando a luta dos povos atingidos e a
questão energética.
Como na etapa VI, nesta também enfrentamos as bancas de defesa para apresentação dos
58
trabalhos monográficos. Foram dezenove pessoas da turma com esse desafio. Ficaram ainda quatro
pessoas para defender durante o Tempo Comunidade. Quem iria apresentar, teve alguns tempos
para preparar-se. Alguns conseguiram ensaiar a defesa e foram ajudados pelos companheiros no
sentido de perceber o que ainda poderia ser melhorado. Aqueles e aquelas que já haviam
apresentado na etapa anterior iriam iniciar a elaboração do texto coletivo. Cada grupo de pesquisa
teve a tarefa de elaborar um texto sintetizando as idéias principais tiradas das pesquisas feitas pelos
integrantes do grupo.
Para quem iria defender, muita expectativa e angústia. Depois de todos terem apresentado,
a turma reuniu-se para agradecer aos orientadores e às orientadoras e às pessoas que estiveram
contribuindo nas bancas. Em seguida, a noite, fizemos um jantar na casa de uma companheira da
turma para comemoração.
Durante a janta os NB’s aproveitaram para entregar presentes à Kallena, filha de uma
companheira e um companheiro, integrantes da turma. A Kallena foi a primeira criança da turma
que nasceu durante um Tempo Escola em Veranópolis.
Um outro desafio importante foi o estágio. Embora já havíamos feito nas outras etapas,
nessa tinha um gosto diferente, pois foi nas escolas urbanas de Veranópolis. Deu arrepio na
maioria e também um certo medo. Fizemos algumas oficinas de preparação, além de corrigir os
relatórios do estágio, que fizemos em Pontão, sobre o qual tivemos um seminário que contribuiu
também, para percebermos alguns limites que enfrentamos como superá-los no próximo estágio.
Recebemos algumas informações de que as escolas de Veranópolis eram muito bem organizadas
pedagogicamente. A maioria da turma deu aula pela tarde, sendo que dois companheiros deram
aula pela parte da manhã. Foi uma semana de estágio, e conseguimos estabelecer uma relação com
a Secretaria de Educação e com as professoras do município. Fizemos um seminário antes de
iniciar o estágio e um depois para avaliação reunindo educandos/as da turma, as professoras e
algumas pessoas da secretaria de educação.
Houve grandes dificuldades na relação nossa com as pessoas do acompanhamento, tendo
pouca interlocução. Elas estiveram em poucos momentos na sala de aula, e tivemos dificuldades
de entender algumas críticas que nos faziam.
Após a apresentação das monografias os grupos de pesquisa se dedicaram mais à
construção coletiva do texto sobre os sujeitos do campo que estavam estudando. A idéia era de
publicar o conjunto dos textos num livro.
Antes disso foi organizado um seminário para que os grupos apresentassem a sua síntese e
elaboração sobre a formação dos sujeitos do campo para o coletivo da turma e para o Colegiado
dos Movimentos. O seminário foi um momento de troca de conhecimento sobre as pesquisas. A
partir dessa nossa experiência de pesquisadores, houve um convite para que algumas pessoas da
turma que moram mais perto de Veranópolis e tinham pesquisado temas parecidos contribuíssem
na orientação das pesquisas da turma X do curso Normal. Essa tarefa se estenderia ainda após o
nosso curso, até a apresentação dos trabalhos.
Alguns momentos da turma mexeram conosco e parece que criamos uma certa identidade,
além daquilo que já construímos nas outras etapas. Ainda no início começamos discutindo sobre a
nossa canção e os nossos desentendimentos em torno dela. Apesar de a termos feito coletivamente
não conseguíamos associar o ritmo com a letra. Tivemos a contribuição do cantor e compositor
Pedro Munhoz, que nos falou sobre a música em geral e sobre a nossa. A partir dessa conversa
tivemos o encaminhamento de que deveríamos continuar a cantar a nossa música. Mudamos nossa
visão sobre a mesma e conseguimos cantar com mais vontade durante várias vezes ao longo da
etapa.
No serviço externo, também exercitamos nosso companheirismo e alegria. No dia do
trabalho da turma a maioria foi ajudar na roça, sendo que conseguimos tomar vinho e muitas
59
instruções e indicação do que deveríamos dar conta. As equipes da formatura, com vários
encaminhamentos a serem feitos, a equipe de elaboração da memória com a tarefa de continuar,
um estágio de 150 horas a fazer, uma pesquisa sobre educação especial e o bordado da roupa para
a formatura. O convite não estava pronto e algumas pessoas ficaram com a tarefa de acabá-lo e
enviar a todos.
Durante o TC fomos para as atividades de nossas organizações. As perguntas mais
gritantes, no todo da turma, eram sobre a formatura, sobre o estágio. Houve uma negociação com a
UERGS que nos preocupou bastante. A posição é de que deveríamos usar a beca durante o ato
solene de colação de grau. Além disso, a Universidade coordenaria o momento solene. Essa notícia
chegou via correio eletrônico e nos deixou aflitos.
Os companheiros e companheiras que não haviam feito a defesa de suas monografias
durante as duas etapas anteriores, a fizeram nesse TC, no dia 02 de junho. Fizeram a defesa, mas
acabaram não informando a turma sobre como tinha sido.
Etapa VIII
A nossa oitava e última etapa teve início no dia 18 de agosto de 2005. Tivemos um
significativo avanço no número de companheiros/as que estavam presentes no Ato de Abertura em
relação às etapas anteriores. Estávamos em 32 pessoas.
A CNBT da turma, que fora escolhida ainda no final do TE 7 chegou antes no Instituto e se
reuniram para discutir o andamento da etapa. Nesta reunião, participaram também as secretárias
dos NB’s, como forma de contribuírem na discussão sobre a turma. A equipe de sistematização
também se reuniu para discutir o andamento da memória da turma para o decorrer da etapa e
discutir a proposta de estudo da memória do TE etapa 7.
A mística de abertura trouxe presente o desafio do tempo comunidade que foram as
monografias, as roupas da formatura, os trabalhos dos componentes curriculares e os registros da
prática pedagógica no estágio. Também trouxe presente os desafios deste Tempo Escola, entre eles
novamente o auto-acompanhamento, a memória coletiva da turma e a preparação para a formatura.
Após o ato, iniciamos os encaminhamentos da inserção. Fizemos a ratificação da
coordenação dos NB’s e a CNBT da turma. Depois fizemos um levantamento por Organização,
sobre os companheiros e as companheiras que ainda não tinham chegado e quais os motivos.
Também apontamos os nomes para fazerem parte da Comissão de Disciplina e Ética e do
Conselho Fiscal. Recebemos os informes gerais sobre o Instituto.
A coordenadora do curso nos informou sobre a situação do retorno de uma companheira
que não havia cursado a etapa 7, tendo em vista a não aceitação da UERGS do seu pedido de
transferência para a turma II de Pedagogia, que decidiu pelo seu retorno ao considerar o atestado
médico enviado pela educanda. Desta forma, houve o seu retorno ao curso, bem como a
possibilidade de conclui-lo desde que a educanda fizesse a recuperação dos trabalhos da etapa 7,
fazendo depois a colação de grau em gabinete e não com a turma.
Também fomos informados sobre os encaminhamentos feitos pelo Iterra e pela comissão
da turma com a Universidade durante o TC sobre a nossa formatura. Nos informaram que após o
termino do TE da etapa 7 a UERGS havia enviado uma nova resolução onde nos informava sobre
todos os procedimentos de uma formatura, inclusive o uso de beca, para realizar a colação de grau.
Durante a reunião com a Universidade ficou acertado que a mesma iria fazer a colação de grau,
porém a turma realizaria o ato da formatura conforme o planejamento estabelecido pela nossa
equipe. Também ficou acertado que uma equipe da Universidade viria para a escola durante o TE
8 para acertar o planejamento da formatura. Em relação ao uso das roupas, ficou encaminhado que
ambas as partes faria uma nova avaliação.
61
Após os informes, fizemos a entrega dos trabalhos do TC e fomos para os NB’s fazer o
estudo do PROMET da Etapa. Da construção deste PROMET tínhamos participado ainda no final
do TE anterior. Fizemos então, nessa etapa a construção das metas coletivas da turma e das metas
individuais de cada educando e educanda.
Continuamos com nosso auto-acompanhamento, sendo que a CNBT ficou responsável por
intencionalizar mais o processo. Nesse sentido continuou-se usando o método de fazer reuniões
aos domingos, porém, contando também com a participação das secretárias dos NB’s. Logo no
início da etapa a turma fez o estudo do cronograma geral da etapa na perspectiva de contribuir no
seu “recheio”, colocando as atividades necessárias. O método de repasse de informes nos NB’s
ficou mais dinâmico, podendo ser usado o tempo para discussões políticas, a vivência no IEJC e a
análise sobre o nosso processo de formação.
A etapa foi de afirmação da coletividade da turma, de construção conjunta perante os vários
desafios que se colocaram. As equipes de formatura trabalharam bastante, fazendo os
encaminhamentos específicos, e a equipe geral coordenava no sentido de ter o conjunto das
informações, sendo que algumas vezes realizamos plenárias com toda a turma para os
encaminhamentos políticos e estruturais. Fizemos vários momentos de convites para a formatura:
paraninfo e paraninfa da turma, equipe de acompanhamento dos estágios, turmas que estavam no
IEJC, educadores e educadoras do IEJC, da turma, colaboradores... Também confeccionamos
lembranças e materiais para ornamentação do Salão da Gruta, espaço de nossa formatura. Além
das atividades que diziam respeito à coletividade, também fomos fazendo nossa preparação
individual: conclusão do bordado da roupa, compra de calçados, etc.
O Ato/Cerimonial sempre foi um ponto de conflito com a Universidade. Durante a Etapa
fomos negociando o roteiro do ato. Primeiro, uma comissão da UERGS veio no IEJC para
construirmos a proposta do ato conjuntamente. Depois, tivemos a informação que o Reitor não
aceitaria a proposta construída. Então, pensamos em como garantir a nossa parte no ato,
necessitando dividi-lo em dois momentos.
A turma esteve bastante animada e unida durante toda a etapa, compartilhando
conjuntamente vários momentos. Chamou a atenção, assim como em outras etapas a presença das
crianças pequenas que eram trazidas na sala de aula, de vez em quando, para sua amamentação.
Uma companheira que estava em licença-maternidade, chegou na etapa alguns dias depois do seu
início. Outro momento de descontração foi de várias celebrações de aniversários feitas a noite nos
quartos, após o término das atividades. E durante alguns dias também aconteceram atividades com
exercícios físicos e música, tanto nos quartos como na sala de aula, após as atividades.
No que diz respeito ao estudo esta foi uma etapa um tanto diferente. Os componentes
curriculares oficiais foram apenas dois, porém tivemos muitos momentos de estudo e reflexão
interna. Aprofundamos nas disciplinas, algumas teorias sobre psicologia da educação, e também
sobre a história da EJA no Brasil. Essa última, principalmente, trouxe elementos significativos
sobre o analfabetismo, a situação de preconceito em relação aos analfabetos, sobre o que
refletimos bastante.
Quanto à aula de Psicologia aprofundamos elementos sobre as teses do desenvolvimento e
a aprendizagem. Também aproveitamos para entender melhor sobre a teoria sócio-histórica, na
perspectiva de Vigotsky. Estivemos apreensivos diante das diferentes teorias apresentadas, e
buscamos nos esforçar para fazer o contraponto desde as experiências que tivemos nos estágios.
Durante essa mesma aula estivemos olhando o documentário “ O Ônibus 174” que relata um
assalto a ônibus feito no Rio de Janeiro no ano de 2000, por um menino sobrevivente da chacina
da Candelária, o que nos chocou bastante pelo conteúdo tratar da miserabilidade que sofre a
população brasileira.
Estivemos também refletindo sobre nosso processo de estágio. Logo no início da etapa
quando fizemos o Seminário do Tempo Comunidade, elencamos aspectos significativos sobre o
62
Parte 3
Memorial de Aprendizados
Memorial de Aprendizados de
Alexandra Borba da Silva
Cambia lo superficial
Cambia también lo profundo
Cambia el modo de pensar
37
Cambia todo en este mundo.
36
O conjunto dos Memoriais de Aprendizado da turma está arquivado no Centro de Documentação do Iterra.
37
Canção interpretada por Mercedes Sosa.
64
pensamento. É bom de ver a beleza do movimento histórico na formação das pessoas e na sua ação
na realidade.
Na escrita do Memorial tem dois momentos. No primeiro fiz um relato de opressão e de
vítima:
"Fui crescendo, sempre magrela e fraquinha."
"Na escola, fui me fechando, ficando cada vez mais quietinha, tímida, até porque minha professora
me reprimia (...) Enquanto fui ficando fechada, fui criando dificuldade de criar amizades".
"Nessa época minha mãe já estava muito doente. Lembro que a boca dela era torta por causa das
convulsões e vivia muito triste (...) Ela descontava em mim, me surrava muito".38
Esse olhar que fazia sobre minha trajetória era um olhar de pena de mim mesma. E eu me
apequenava diante da vida. Isso implicava nas minhas ações, na coragem que tinha de encarar os
desafios. Isso veio a implicar dentro do curso, quando deixei de enfrentar debates por entender que
os outros sabiam mais que eu, quando não expus o que eu pensava por pensar que sempre pensava
errado e os outros é que pensavam certo sobre tudo.
No segundo momento do Memorial eu trouxe elementos sobre a entrada no Movimento e
como isso foi mudando a minha existência, o jeito de olhar a vida, o mundo e olhar pra mim.
"Comecei a sentir falta dos amigos (...) e comecei a me indignar com a situação. As barragens não
deram vantagem pra nenhum atingido (a)."
"(...) uma pessoa representando o MAB (...) falou sobre a possibilidade de desenvolver a Educação
de Jovens e Adultos na comunidade, desde que tivesse algum (a) voluntário (a) para dar as aulas, e
eu me dispunha a fazer esse trabalho. Foi um grande desafio. Eu tinha apenas dezesseis anos, nunca
tinha sido educadora e conhecia muito pouco do MAB, mas fui em frente".
"Continuei a militar no MAB, no setor de formação e "eles" acreditaram em mim".
"Acredito que ser educadora é (...) ensinar as pessoas a ler o mundo para serem sujeitos do mundo
em que vivem".39
Há aí uma outra fase da minha vida. Uma fase de busca como ser humano, uma busca pelo
seu reconhecimento perante os demais, e principalmente, uma busca pelo "auto-reconhecimento"
enquanto gente que pode construir a sua libertação e a liberdade coletiva. Quando eu não me via
como gente, capaz, também não era possível de assim ser, e por isso, os demais não me
reconheceriam como tal.
A atuação no Movimento Social estava começando a mudar a minha condição, o meu ser
condicionado para o meu ser construtor. Eu estava começando a descobrir que era possível mudar
tanta coisa. Era a primeira fase, de paixão, de ver a luta de uma forma romântica. A mística me
cativava, a minha concepção de revolução era idealista e sonhadora. Mas isso me motivava a
seguir em frente. A minha maior motivação era a vingança, eu não aceitava as perdas da família, a
mudança de vida. E a vida está sujeita a essas mudanças. Eu estava começando a entender que eu
também poderia ser sujeito das mudanças, e fazê-las de modo diferente. Pra mim, a educação tinha
esse papel. A educação, como concepção que eu construíra antes do curso não é o oposto da que
tenho agora. Está recheada, mais bonita, apresentável.
Quero abrir um parêntese para registrar que, agora, ao cantar a parte da música colocada no
início do texto, algumas gotas de água nos olhos me dizem mais uma vez, que é preciso mudar, e
viver eternamente a mudança.
Apesar da abertura que eu estava começando a construir, da possibilidade de ser uma
militante, eu não estava disposta a abrir mão de certos vícios e valores que tinha. Eram construções
38
Memorial de Vida. Abril de 2002.
39
Idem.
65
desde criança, da família, da religião, da escola. E por falar em escola, eu não tive uma boa
experiência nesse sentido. A escola foi o espaço responsável pela poda da minha faceirice de
criança. Foi onde aprendi a obedecer e tirar boas notas para ter um boletim bonito e apresentá-lo
para a mãe e o pai.
O que então o Movimento como espaço educativo estava me proporcionando, me animava
para a vida. Mas eu não estava de todo mudada. E ao chegar num espaço novo, muitas concepções
em mim retrocederam. Era preciso me desconstruir. Essa desconstrução foi em parte pela chegada
no novo ambiente, com novas pessoas, outros desafios. Porém, houve também a desconstrução no
sentido do precisar, e essa foi dolorosa porque era aquilo que eu não queria. Eu estava de bem com
uma certa carga de visões, concepções e jeitos, e de certo modo, acomodada. Por isso,
desconstruir/ reinventar teve esses dois gostos. Um, de querer, e outro, de necessidade de
sobrevivência.
Logo no início do curso, talvez primeira e segunda etapas, eu estava num momento de
entender a mim mesma, o que eu era dentro do Movimento, o que era o Movimento e qual seu
papel na sociedade. Estava voltada para as minhas implicações, os meus problemas. "(...) Aprendi
a me olhar, me controlar, cuidar de mim"40. E isso me fez entrar em choque com o que eu era.
Os primeiros componentes curriculares, voltados à filosofia, à história, à educação,
colocavam em xeque as concepções de mundo construídas. A minha explicação sobre a vida e o
mundo começavam a ser questionadas. Tinha uma explicação religiosa fundamentada, que
estreitava a análise. O mundo fora criado por Deus, e precisaríamos da ajuda "Dele" para mudar.
Nesse sentido, a aula de História da Educação com o educador Miguel Arroyo, só me trouxe
questionamentos. E eu tinha que dar conta de responder. Fui construindo esse aprendizado, de
olhar sobre a ordem de coisas. Cada componente curricular trazia mais elementos, cito aqui a
leitura do livro O Papel do Indivíduo na História e o estudo com o educador Mauro Iasi, no qual
aprofundamos as concepções naturalista e marxista. As aulas possibilitaram que eu entrasse em
contato com possibilidades de explicação, que eu não conhecia.
O outro elemento igualmente fundamental para o contato com as novas concepções foi a
vivência na luta concreta. Aí, no enfrentamento, fui aprendendo que nada era tão natural e
impensado. Ou seja, as explicações estão na materialidade dos fatos, nos interesses de classes, de
forças sociais. Escrevi na minha Síntese de Aprendizados da segunda etapa: "Vejo que adquiri
muitos conhecimentos político-sócio-culturais, que ampliaram minha visão de mundo. O que me
levou a isso foram as disciplinas, os debates nos NB’s, nos grupos de estudo, nos seminários, nas
conversas de corredor, no TC,..."41 Esses estudos foram trabalhando concepções, e eu ia fazendo a
confrontação com a prática. Por isso houve também um fenômeno de começar a perceber os
limites na prática do Movimento, e estabelecer críticas sobre isso. Era uma fase de ver todos os
desvios possíveis, os equívocos, porém não conseguia propor avanços com fundamentos na
realidade. Avancei dessa fase de crítica, para a proposição, principalmente com o processo de
pesquisa, sobre o qual falo mais adiante.
Quanto ao IEJC e o método. No início tentei me adaptar. Lembro que na avaliação que
fizemos enquanto MAB no primeiro TC, eu fiz uma fala dizendo que nós teríamos que aprender
com o Instituto, olhar a caminhada que o MST tinha na área da Educação e enquanto Movimento.
Tinha aí nessa fala, dois elementos. Um era de afirmação, eu precisava falar coisa inteligente;
outro era também de preocupação, no sentido de não cair no criticar tudo.
Através da vivência, estudo sobre a formação humana e tentativa de compreensão, comecei
a refletir sobre o método do Instituto. Esse movimento não foi unicamente meu, mas foi de grande
parte da turma, embora com níveis diferentes. Muitos e muitas de nós começava então a criticar a
40
Agosto de 2002.
41
Idem.
66
proposta e fundamentar através das teorias estudadas. Foi um momento significativo para a turma,
do ponto de vista do jeito de fazer, aprendemos a argumentar, aprofundar. Porém, quanto ao
conteúdo, estava ‘furado’, porque na verdade não tinha tanto aprofundamento e argumento
concreto. Outro elemento que se coloca aqui, talvez não tenha acontecido tão profundamente em
mim, mas em outros companheiros e outras companheiras da turma isso foi forte, o fato de projetar
nas pessoas que estavam coordenando e cobravam a realização das tarefas, os limites individuais.
Quer dizer, a pessoa não consegue, então culpa alguém, materializa em alguém o fracasso. E esse é
um aprendizado do ponto de vista dos processos de formação humana.
O fato de não ter argumentação convincente forçou-nos compreender a realidade e perceber
nossos erros. Mais uma vez aprendi que quando as minhas explicações não davam conta, e eu
entrava em contato com outras, tinha a possibilidade de reinventar o que eu sabia. Mas isso não era
pacífico, eu sofria e demorava muito tempo pra compreender, construir o novo. Na maioria das
vezes, eu escutava o que as pessoas diziam (educadores, educadoras, companheiros, companheiras
da turma) e colocava uma barreira para não entrar em choque com o que eu pensava. Deixava de
dialogar com essas pessoas. Para refletir, escutar os novos conceitos, necessitava de ajuda de
alguém mais próximo que não me fizesse sentir ameaçada. Isso eu consigo perceber hoje, e
consigo entender também como um aprendizado que para ajudar na mudança de outra pessoa é
preciso seguir alguns desses caminhos. Colocar em xeque, ter alguém pra ajudar na "ruminação",
colocar tarefas concretas que ensinem a pessoa na prática.
Fui compreendendo melhor o espaço e o método do IEJC, principalmente quando fui
contribuir em espaços de formação dentro do Movimento e que necessitei administrar conflitos
muito parecidos com os que acontecem no Instituto, por exemplo, problemas nas relações afetivas,
ou indisciplina nos horários. Mais que um método em si, comecei a perceber que havia uma
necessidade concreta de organização e respeito às necessidades coletivas. É um jeito de educar as
pessoas a viverem diferente e compreender que a sociedade pode ser organizada de maneira
diferente.
Estabeleci também relações entre os aprendizados construídos no IEJC com os
aprendizados que se constrói em outras escolas dos Movimentos, e isso me fortaleceu algumas
convicções que aprendi no método de organização da escola, enquanto espaço de formação.
O acompanhamento foi um elemento que consegui ressignificar através do diálogo entre a
vivência no Instituto e minha prática. Quando estava no Instituto, ainda no início do curso, parecia
que o acompanhamento era algo negativo, alguém estava com a tarefa de fiscalizar os meus atos, e
isso incomodava, principalmente porque o ser humano não gosta que apontem seus limites. Na
atuação como Coletivo de Formação fui aprendendo a necessidade de compreender as pessoas com
quem estávamos trabalhando, para melhor ajudá-las na sua caminhada e então comecei a perceber
o significado do ato de acompanhar. Mais que fiscalizar, estar próximo, acompanhar é cuidar com
carinho de cada pessoa com quem trabalhamos. Aí então comecei a ter necessidade de entender
melhor a concepção e o método de acompanhamento do Instituto. Por isso construí muitos
aprendizados.
Cito aqui uma reflexão que fiz: É preciso ter clareza que quem acompanha já sabe e
precisa ajudar, e dirigir também, quando necessário. Quem acompanha tem acúmulo. E conflitos
sempre haverão porque quem é acompanhado muitas vezes não entende que precisa ser ajudado,
que tem limites42. Acompanhar seres humanos é entendê-los e colocá-los em contato com o novo,
possibilitar que vivam experiências concretas, colocá-los em choque com suas concepções e seus
limites, possibilitar que estando no seu limite consigam avançar qualitativamente na sua formação.
E nesse sentido aprendi que colocar alguém no seu limite é também colocá-lo entre seus interesses
42
Reflexão Escrita do dia 26 de agosto de 2005.
67
fato, a realidade. A tendência que temos é pensar que conhecemos um determinado espaço e o
povo com quem trabalhamos, e durante o processo de pesquisa fui percebendo o quanto sabemos
pouco e precisamos aprofundar, para fazer um trabalho organizativo melhor fundamentado. Nesse
sentido aprendi a estranhar aquilo que parecia normal, que era consenso. Outro aprendizado está
ligado ao método de pesquisa, no sentido dos aspectos que devem ser olhados pelos pedagogos,
pedagogas: a necessidade de perceber os sujeitos e as relações entre eles, como vivem, como se
relacionam, qual o movimento de formação que percorrem, qual sua historicidade, cultura, quais as
contradições da realidade; ou seja, é preciso olhar as pessoas em relação com sua realidade, no
movimento e nas suas contradições.
Aprendi, no processo de elaboração e sistematização da monografia. O esforço realizado
durante o período do Curso para escrever sobre o Movimento com delimitação prática e teórica
teve seu ponto culminante nessa etapa.43 Foi o momento de confrontar todas aquelas teorias que
estávamos estudando com uma realidade concreta onde eu atuava. Relacionar teoria e prática num
sentido de entrelaçamento, de fazer com que as realidades sistematizadas e já refletidas ajudassem
a entender a realidade que eu estava observando. Escrever olhando os vários aspectos, não
generalizar o pensamento, sistematizar dados, fazer o exercício de escrever para alguém que não
conhece a realidade sobre a qual escrevo, o que também está ligado ao estranhamento, ou seja,
aquilo que era dado, para outras pessoas poderia ser extraordinário, diferente.
Compreendi pela pesquisa melhor o próprio Movimento enquanto organização, suas
concepções de trabalho, de luta, de táticas naquela determinada realidade onde pesquisei, e que
está ligada à realidade e concepção geral do Movimento. Aqui comecei então a avançar de uma
fase de críticas à organização para um momento de reflexão sobre o que era realmente o MAB, a
que se propunha, e como eu poderia, enquanto militante, contribuir. Ao mesmo tempo em que esse
avanço se dava internamente na minha compreensão, a minha atuação precisou ser moldada como
pesquisadora. Os momentos de pesquisar tiveram que ser compreendidos como momentos de não-
militância. O desafio se colocava em perceber os limites, mas que só poderiam ser apontados no
“final” da pesquisa.
E quanto ao conteúdo da pesquisa, aprendi que os educadores dirigentes se formam como
educadores quando estão assumindo essa missão, quando estão organizando os Atingidos por
Barragens, quando estão contribuindo na luta, quando estão assumindo uma identidade de classe
oprimida e lutadora.
No exercício de defesa da monografia construí outros aprendizados. Defender a
monografia necessitou de uma grande capacidade de síntese e de clareza política do que falar e
escrever. 44. Havia muitos elementos a serem socializados, porém, foi um exercício de, ao ter a
clareza do que era o trabalho, definir os elementos que não poderiam faltar, o que era central na
discussão.
Aprender a sistematizar e elaborar também foram uma construção além da pesquisa. Nos
vários componentes curriculares que estudamos, tivemos como tarefa construir sínteses sobre o
assunto, o que contribuía tanto com a assimilação do conteúdo, bem como com a capacidade de
elaborar sobre o mesmo. Olhando assim, era um elemento importante de avaliação dos
aprendizados dos educandos, das educandas.
Além da pesquisa e dos componentes curriculares, um elemento fundamental para meu
processo de sistematização foi o trabalho que fiz na sétima e oitava etapa na tarefa de sistematizar
a Memória da Turma. Mais que elaborar uma síntese minha, era necessário elaborar uma síntese
coletiva, da turma. Isso exigiu a habilidade de construir consensos, de não generalizar um ponto de
vista, e de contemplar as várias compreensões.
43
Síntese dos Aprendizados, sexta etapa, 2004.
44
Idem
69
O maior aprendizado que tive na construção da memória foi muito doloroso. Aprendi
colocar a “minha” produção para que as outras pessoas criticassem, escutar todas as críticas e
entendê-las como limites, não somente meus, mas do coletivo da turma. Esse foi um processo de
amadurecimento extraordinário, embora não esteja de todo tranqüilo, que eu já não me importe
mais com as críticas. A tendência é que as pessoas não admitam erros nas suas produções, desde
um material concreto, um texto ou o próprio filho. Por isso considero o significado desse avanço
para a minha caminhada enquanto educadora e pedagoga da luta.
Enquanto educadora também construí aprendizados em relação à concepção de educação,
aos objetivos e à relação educador e educando. Educação é processo de formação humana, de
pessoas, é movimentar as pessoas na busca de sua humanização. A educação traz consigo uma
ideologia, que historicamente foi utilizada para a manutenção da exploração e domesticação da
classe trabalhadora pela classe dominante. No Brasil a educação foi negada aos trabalhadores, e
principalmente aos camponeses. Porém, pode ser construída com base em outra ideologia, de
construção de pessoas capazes de construir também a história sua e contribuir na construção da
história da humanidade liberta. Precisamos, e já estamos, a construir referenciais de uma nova
educação, socialista, humanizadora. Está aí a necessidade e importância do Movimento Social
lutar e construir escolas e uma concepção de educação. No nosso caso específico de camponeses, o
desafio é continuar construindo a Educação do Campo como ferramenta de luta e espaço de
formação dos seres humanos que vivem e trabalham no campo.
Sobre a relação entre educadores e educandos, construímos coletivamente alguns
aprendizados que valem ser destacados. Educador e educando têm conhecimentos que produziram
durante suas vidas. Por isso trocam saberes. Isso não tira da responsabilidade do educador, da
educadora a intencionalidade do processo educativo. Deve ser uma relação de troca, entendendo a
responsabilidade maior que está sobre um dos sujeitos. É preciso conhecer os educandos, as
educandas com quem vamos trabalhar, sua história, cultura, saberes. São pessoas com história,
com traumas, com vontades, desejos45. Daí se tem a base para iniciar a construção dos novos
conhecimentos. Essa compreensão construímos nos componentes curriculares estudando Paulo
Freire, Miguel Arroyo, ..., mas na prática conseguimos vivenciar essas teses pedagógicas. Durante
os estágios tivemos a oportunidade de estabelecer as comparações e confrontar os conhecimentos
teóricos. Estar na sala de aula não foi só ter a preocupação de ensinar alguns códigos, mas de
ajudá-los (os educandos, as educandas) a entender, por exemplo, que era necessário entrar na
escola com seus calçados (nem que para isso fosse necessário limpar).(...) Além disso, tentei
entender um pouco a relação familiar que convivem para me aproximar mais facilmente de cada
um.46
O estágio também foi um espaço de aprender a ter seqüência nas atividades. Primeiro
estabelecer objetivos, a partir daí fazer o planejamento da atividade, desenvolver, após avaliar para
perceber os limites e voltar novamente. Estabelecer os novos objetivos e seguir.
Tive também muitos aprendizados técnicos que valem ser destacados: uso do computador,
bordado, organização de materiais, construção de materiais didáticos, conservação de alguns
alimentos, manuseio de máquina fotocopiadora,...
Antes de entrar no curso eu tinha uma tendência de escrever poesia, mas o curso me
possibilitou acreditar nesse potencial, que então eu consegui desenvolver. Ficam ainda muitos
desafios e a necessidade de me dedicar mais a essa tarefa.
Quanto ao próprio processo de construção da turma também construí alguns aprendizados.
E estou refletindo nessa oitava e última etapa que a inserção no Movimento Social, enquanto
espaço de ação concreta a partir do que entendemos nas reflexões, foi o determinante para avançar
45
Relatório do Estágio Acompanhado em Anos Iniciais II, sétima etapa, Tempo Comunidade, Julho de 2005.
46
Idem.
70
na compreensão do curso, ou seja, a ação prática é que consolidou os pedagogos militantes. Por
isso ficam muitos desafios para as Organizações e para os companheiros e as companheiras que até
esse momento não conseguiram consolidar sua inserção.
Em relação à atuação no Movimento Social, consegui compreender o quanto ele constrói as
pessoas. E isso está ligado também à minha experiência, de que falei no início do texto, do resgate
do auto-reconhecimento como gente, pessoa que sabe e pode ajudar.
A interlocução do curso com a atuação no Movimento me permitiu significativos
aprendizados do ponto de vista do conhecimento e da concepção de mundo e Sociedade, os quais
descrevo nos parágrafos seguintes.
Um dos aprendizados é que a sociedade está em constante movimento, e que esse
movimento está intimamente ligado à luta de classes que se estabelece entre a classe que domina e
a classe que é dominada. O sistema hegemônico atual de organização da produção na sociedade é
o modo de produção capitalista, que concentra capital e poder com a tendência de concentrar cada
vez mais. Esse modelo explora o ser humano e seu trabalho em detrimento do capital. A ideologia
dominante na sociedade é da classe dominante, hoje a burguesia, que utiliza os aparelhos
ideológicos (mídia, religião, escola) para propagandear e massificar suas idéias, sua cultura e seus
valores. Outro aparato é o Estado, que garante os privilégios da burguesia, dá migalhas para os
pobres não se revoltarem e garante a segurança (polícia, exército, etc), se necessário. A classe
trabalhadora não tem domínio de nenhum aparato, por isso precisa contar unicamente com seu
poder de organização.
Apesar desse cenário social, existem possibilidades concretas de transformar o atual modo
de produção e relações, através do entendimento do movimento histórico e da construção do novo.
Existem experiências concretas que comprovam essa possibilidade. Os trabalhadores estão criando
alternativas e é necessário fortalecê-las. É possível criar aos poucos a cultura de mudança.
Construir um novo jeito de viver, de pensar, de agir. Construir novos princípios, novos valores.
Construir um novo ser humano baseado na solidariedade e companheirismo em detrimento do
individualismo. É necessário criar os métodos, o caminho para se chegar à mudança. Existem
várias formas de construir. Os trabalhadores precisam se apropriar do método dialético de ler a
realidade na perspectiva de entender e transformar. Olhar o movimento da sociedade e a sua
totalidade.
E se tudo está em constante movimento o desafio se coloca em entender como as coisas
mudam, para pensar como podem mudar a nosso favor, da classe trabalhadora que busca a
libertação.
E assim como tudo muda, que a mudança não me seja estranha.
Bibliografia Consultada:
- Memorial de Vida escrito em 01/04/2002 em Veranópolis, compreendido como
vestibular para entrada no Curso de Pedagogia.
- Sínteses dos Aprendizados do Tempo Escola 2, 3, 4, 5, 6 e 7.
- Relatório do Estágio em Anos Iniciais II, realizado em Barracão/RS em julho de 2005.
- Diário de Práticas Pedagógicas do Estágio em Anos Iniciais II, realizado em
Barracão/RS em julho de 2005.
71
Memorial de Aprendizados de
Mari Luci Pegoraro
“...com o tempo você aprende que realmente pode suportar .... que realmente é forte e que
pode ir muito mais longe depois de pensar que não pode mais. E que realmente a vida tem valor e
que você tem valor diante da vida.” (WS)
Hoje, após terem se passado três anos e meio de curso, me vejo a refletir sobre os
aprendizados que construí ao longo do curso. Na memória estão registrados todos os momentos
que vivenciei, mas me cabe agora, destacar os mais marcantes, tendo como ponto de partida como
se deu o processo de escolha para minha vinda ao curso. A seguir destacarei os aprendizados a
partir da inserção no curso e no Movimento. Para finalizar vou trazer presente os desafios que
ficaram após o curso.
Em janeiro de 2002 a Direção Regional do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais,
atual Movimento de Mulheres Camponesas da Região de Santa Maria, indica o meu nome para
fazer parte deste curso pelo fato da região ter uma grande demanda de trabalho. Tendo em vista
que a presença jovem contribuiria no trabalho de base o Movimento resolveu apostar nas jovens.
Para fazer parte do curso era preciso estar inserida em um Movimento e como eu não era
militante do MMC e sim filha de uma trabalhadora rural que fazia parte do Movimento, eu teria
desta forma o desafio de conhecer o Movimento. Para que isso fosse possível a coordenadora
regional me convocou para participar do Encontrão massivo de jovens, que aconteceu em Santa
Maria, do 3o acampamento de mulheres – o acampamento Margarida Alves – que aconteceu em
Porto Alegre, e também me forneceu alguns materiais para que eu pudesse ler e conhecer mais
sobre o Movimento. Isso contribuiu para que eu pudesse saber algumas coisas, mas não era o
suficiente, pois o curso teria início já no mês de março.
Tendo em vista que o Movimento de Mulheres havia selecionado um público jovem e que
quase não se conheciam, reuniu todas as educandas no dia 13 de março de 2002, na secretaria do
Movimento em Passo Fundo com a finalidade de se conhecerem e saberem um pouco de como
seria o curso.
No dia 15 de março pegamos o ônibus na rodoviária em Passo Fundo para ir até
Veranópolis, estávamos em 11 jovens/mulheres, todas ansiosas, pois ninguém conhecia o local
para onde estávamos indo, o ITERRA.
Chegamos no ITERRA no meio da tarde, esperamos um pouco na portaria até que o
pessoal veio nos buscar para fazer o alojamento. Como o ambiente era estranho queríamos ficar
todas no mesmo quarto, mas isto não foi possível, pois, o mapa dos alojamentos já havia sido
organizado. A partir desse momento passei a fazer parte de um quarto com 10 companheiras,
destas, eu e mais duas do MMC e as demais da PJR, MST e MPA. Para mim isto não foi novidade
pelo fato de eu já ter morado fora de casa com outras gurias formando uma coletividade de 7
pessoas que tinham bem claro as normas, os valores e os princípios que norteavam a convivência e
a permanência na casa. A diferença é que aqui a coletividade era bem maior, 150 pessoas
aproximadamente.
O local era estranho, a organicidade era totalmente diferente, as pessoas eu também não
conhecia.
Ocorreu o ato de abertura do curso, e eu não conseguia assimilar tudo o que estava
acontecendo, aquilo tudo era novo. Fomos inseridos na organicidade do Instituto e passamos a
fazer parte da coletividade do IEJC. Na primeira semana foi um pouco difícil me acostumar com
os horários e os tempos, mas logo isso já não me incomodava mais, pois eu já havia me adaptado
ao novo ambiente. O mais difícil estava por vir.
72
Era preciso compreender o que era de fato um Movimento Social, a razão de sua existência,
sua importância e organização. Era preciso compreender o que é uma coletividade e o porque viver
em coletivo baseado em normas, princípios e valores de uma organização. Era preciso
compreender o que de fato nos tornava semelhantes, companheiros e companheiras.
Pode parecer muito tempo, mas eu levei aproximadamente duas etapas para entender tudo o
que estava acontecendo e tudo o que eu estava vivenciando. Isto não quer dizer que eu não tenha
compreendido os conteúdos que foram trabalhados nos componentes curriculares, pois me refiro
mais à questão política em si.
O curso me fez refletir sobre as relações de classe que permeiam nossas relações com a
sociedade, me fez compreender que vivo numa sociedade capitalista onde os camponeses são
desvalorizados, são explorados em seu trabalho em função do capital e da burguesia. Todos os
debates que foram realizados sobre a nossa identidade de povo camponês me fizeram reafirmar a
minha identidade de camponesa, reafirmar o gosto de continuar vivendo no campo, cultivando a
terra e produzindo para a subsistência juntamente com a minha família.
O curso também me ajudou a compreender que o único modo de mudar as relações de
dominação impostas pelo sistema capitalista é a luta e a compreensão de que estamos sendo
explorados e que para sair dessa condição e preciso lutar contra o sistema capitalista e se juntar à
classe trabalhadora que está organizada em Movimentos e que lutam por um novo projeto de
sociedade.
Além de compreender melhor as relações de classe passei a compreender também as
relações de gênero, relações estas que estão intimamente ligadas, pois as relações de gênero são
criadas e mantidas pela sociedade.
É importante salientar que quando vim para o curso eu não fazia nem idéia do que queria
dizer a palavra gênero, sabia que era o eixo das lutas do Movimento de Mulheres, mas não
compreendia o porquê lutar por novas relações de gênero. A inserção no Movimento me fez
perceber que a luta por novas relações de gênero é uma luta justa e verdadeira, é uma necessidade
real pois as relações de gênero perpassam pelas nossas vivências cotidianas, ou seja, permeiam as
relações de todo e qualquer sujeito. O que se diferencia é que alguns sabem que estão vivendo
rodeados por relações dominantes e buscam compreender e mudar estas relações, mas há outros
que convivem com as relações de dominação e não sabem.
Aí está a razão de existir do MMC, a situação concreta, considerando a questão gênero, a
submissão da mulher. A partir do momento que comecei a fazer trabalho de base pude perceber
como é importante trabalhar com as mulheres trazendo presente a importância da mulher na
história da sociedade, pois assim elas podem perceber como foram desvalorizadas até hoje e como
foram peças fundamentais na história da sociedade, por exemplo, na descoberta da agricultura e
que até então não eram reconhecidas pelas contribuições que trouxeram para a humanidade.
Fazer trabalho de base e ser militante do MMC são duas atividades muito importantes pelas
quais eu adquiri o gosto em fazê-las. São coisas que me movem, talvez pelo fato de eu ter feito
muitas descobertas, de ter conseguido ampliar a visão de mundo que eu tinha, passando a perceber
o que está por trás de tudo o que acontece, os fatos, as ações, as relações, analisando de forma
crítica, percebendo que nem tudo que se apresenta está dado e é estático, mas que é mutável e pode
ser transformado.
Mencionei anteriormente que o curso possibilitou que eu ampliasse minha visão de mundo,
dentro dela está também a mudança na compreensão de que o nosso curso não foi voltado somente
para a escola, mas também para a nossa formação como militantes, como educadores e
educadoras, do povo. Até então eu tinha uma visão muito reduzida do que seria o curso no geral,
achando que teríamos uma formação somente para atuarmos em sala de aula, não percebendo que
a educação vai além da sala de aula, e vai além da escola.
73
Os estudos e debates que realizamos sobre a educação e sobre a escola, sobre a Pedagogia
do Movimento me fizeram compreender que nós educadores e educadoras temos a grande missão
de lutar pela garantia do acesso à educação a todos, precisamos lutar por uma educação pública de
qualidade que respeite a diversidade do povo, do camponês. Também temos o desafio de
continuarmos na luta e cada vez mais envolvidos na militância contribuindo com os
conhecimentos que construímos e adquirimos ao longo do curso.
Durante este curso fomos desafiados também a assumir o papel de pesquisadores e
construtores de obras, e é claro que isso não foi muito fácil. Pesquisar e elaborar teses em cima do
que se pesquisou exige o exercício do estranhamento, da construção de idéias, da busca de teorias
para compreender o que se está analisando. O processo de pesquisa e a elaboração da monografia
foram muito importantes para o meu crescimento como militante e como pessoa porque me
desafiaram a ler, a conhecer uma comunidade que eu achava que conhecia e na realidade não
conhecia. E a sistematizar pois sempre tive dificuldade de colocar no papel tudo o que penso e
elaboro.
O exercício de pesquisar me fez buscar conhecimentos para compreender as relações de
gênero, de classe e de raça, pois, pesquisei mulheres negras. A partir daí comecei a refletir sobre as
diferenças que existem entre as próprias mulheres e que se não forem observadas com uma
intencionalidade não são percebidas. Comecei a pensar como o MMC poderia avançar ainda mais
na ampliação do trabalho de base com as mulheres e como eu poderia estar contribuindo.
A vivência de todos os tempos educativos durante o curso e em especial das aulas e
estágios reafirmou meu gosto pelo trabalho com as crianças e desde o Tempo Comunidade
passado comecei a dar aula na escola da comunidade onde pesquisei e assim estou conhecendo
ainda mais a realidade da comunidade a partir da convivência com as crianças que trazem
diariamente as vivências da família e da comunidade. Isto me incentiva a continuar pesquisando a
história do povo negro para qualificar o trabalho com as crianças, pois, as crianças da escola são de
origem negra e trazem presente a questão do preconceito entre eles mesmos por não se
reconhecerem como negros. Para trabalhar com as crianças este tema é preciso ter um certo jeito e
muito conhecimento para trazer elementos da história, mas em nível de fácil entendimento para as
crianças, para que elas possam compreender que não é feio ser negro, mas que no entanto o povo
negro teve sua história marcada pela discriminação, dominação e exclusão. Será um grande desafio
trabalhar na perspectiva do resgate da auto-estima e da valorização do negro na sociedade, como
seres de direitos.
É importante trazer presente que com a realização dos estágios durante o curso fomos
desenvolvendo a capacidade de perceber que nos diferentes locais em que atuamos as realidades
sempre serão diferentes e sempre vão exigir de nós a capacidade de trabalharmos de forma
diferenciada, utilizando diferentes metodologias, recursos e jeitos. Mas acredito que o que tenha
ficado mais forte é a questão da observação da realidade onde os educandos estão inseridos, pois
isto fará o diferencial no desenvolvimento das atividades, tornando-as mais coerentes e de
interesse para eles.
Não poderia deixar de trazer presente que durante o curso o processo de crítica e autocrítica
me fez refletir sobre as minhas qualidades, sobre os meus avanços, sobre os meus limites e
também sobre os desafios, por mais que o curso esteja encerrando a nossa formação não encerrou,
como dizia Paulo Freire “somos seres inconclusos” que estamos num processo permanente de
formação.
Partindo do pressuposto de que somos seres inconclusos trago presente alguns desafios que
ficaram para o período após o curso: - dar continuidade ao estudo sobre a história do povo negro;
- qualificar a atuação no MMC, no trabalho de base e na coordenação de processos; - avançar na
compreensão da Educação do Campo, fomentando o debate no Movimento e na escola onde vou
atuar; - cultivar os princípios e valores do povo camponês.
74
Memorial de Aprendizados de
Marilene Cupsinski
Foi na busca de mais conhecimentos, para melhor contribuir com a classe trabalhadora e
para minha formação humana, que voltei a estudar. Busquei no memorial de vida, escrito no início
do curso em 2002, dizer o que eu esperava do curso de Pedagogia. Neste consta que esperava
suprir com as necessidades, para que eu pudesse cada vez mais ser capaz de ajudar na construção
de uma sociedade mais igualitária.
No momento em que algo chega ao fim se faz necessário um balanço do que vivenciamos e
aprendemos, para que possamos fazer uma leitura do processo.
Recordar a experiência que tivemos, neste período do curso, descrevendo o que
aprendemos é uma tarefa um tanto difícil, pois demonstrar isso com palavras é um processo
limitado.
Busco no dia-a-dia do passado e do presente, relacionar o que aprendo e o que ensino, na
perspectiva da qualificação de minha prática.
Neste sentido, vou desenvolver neste texto alguns pontos que foram essenciais em minha
formação enquanto pedagoga militante e como ser humano.
Termos chegado ao final deste curso é termos vencido mais uma etapa de nossas vidas.
Não estamos prontos, mas podemos dizer com toda a convicção que estamos melhor preparados
para atuar nas diferentes áreas de nossos Movimentos Sociais.
Um dos aspectos fundamentais, que começa abrir horizontes para uma nova formação, foi
pra mim o estudo do Papel do Indivíduo na História, realizado no início do curso. Através deste
livro começamos a nos dar conta que todos têm um papel fundamental na sociedade em que
vivem. Sendo assim, também nos dávamos conta da importância que temos em nossos
Movimentos Sociais e na construção de uma sociedade diferente. Falar em mudança de sociedade
parece se tratar de algo muito distante. Mas, uma das coisas que aprendi durante o curso, é que é
através das pequenas ações, atitudes e mudanças que devemos partir para chegar ao maior.
Uma das atividades que percorreu durante todo o curso, e que foi o que mais me ajudou a
entender os sujeitos, foi a pesquisa e produção do trabalho monográfico. Esta nos trouxe muitas
angústias e ao mesmo tempo aprendizados que irão percorrer toda minha vida.
Ser desafiada a ler, pesquisar e produzir uma obra propiciou uma busca constante. Para
mim, o maior significado da realização do trabalho de pesquisa, foi o de aprender a olhar para o
ser humano como o centro de tudo. E, a partir deste olhar aprender a conhecer e entender desde
suas raízes culturais até o meio em que vive. Saber porque determinada pessoa atua ou age de tal
forma, compreendendo as relações que são estabelecidas no meio em que vive, é extraordinário
para a qualificação de pedagogos militantes.
Este desenvolvimento constante permitiu e permite, olharmos para os sujeitos com quem
atuamos, como pessoas capazes. Principalmente nos permite refletir antes e depois de cada ação
que vou desenvolver. Isso quer dizer que é preciso entender as pessoas para desenvolver uma
prática que contribua para o avanço de uma pessoa ou de um grupo. Em outras palavras, é ver as
plantas produzirem bons frutos.
75
Durante o curso foram realizados vários estágios, em diferentes realidades com diferentes
sujeitos envolvidos. Tivemos a oportunidade de realizar práticas pedagógicas em acampamentos,
assentamentos, bairros de cidade e em comunidades de pequenos agricultores, com crianças,
jovens e adultos. Nesta diversidade de experiências, consegui aprofundar minha prática de
docência. Ter experiência nesta área contribuiu para um maior avanço. Mas posso afirmar que as
práticas desenvolvidas durante o curso de Pedagogia me deram uma outra visão do trabalho
pedagógico, seja com crianças, jovens ou adultos. Permitiram-me refletir sobre minha prática e
construir uma nova forma de trabalho, mais coerente com os princípios de educação do MST,
ligada a uma dimensão maior que é a Educação do Campo.
Entender o campo como um lugar específico, de direitos a uma educação de qualidade que
envolva todos os sujeitos que nele vivem, é compreender o campo como um lugar de
desenvolvimento. Para tanto, se faz necessário construir uma educação que valorize a diversidade
cultural, trabalhe o campo como um lugar de grandes possibilidades, e se volte para várias
dimensões educativas existentes nele.
Outro estudo que permitiu um maior aprofundamento foi em relação às matrizes
pedagógicas que formam as pessoas cotidianamente. Entender o próprio Movimento Social
implica em passar da luta pelo ter para a luta pelo ser. Entender que as pessoas entram para a luta
por uma necessidade de sobrevivência e através dela vão se descobrindo como sujeitos de direitos.
Durante o curso vivemos uma experiência em regime de alternância, com parte do curso
feito em Tempo Escola (TE) e parte em Tempo Comunidade (TC). Aparentemente isso poderia
não ter muita influência. Porém, os dois espaços de convivência, estudo, reflexão e ação se
interligam, com suas especificidades, de forma a proporcionar espaços que permitem um elo de
coerência entre ambos.
O TE permitiu um maior aprofundamento de teorias relacionadas com a realidade concreta
em que vivemos e atuamos. As educadoras e os educadores que trabalharam conosco trouxeram
elementos significativos, possibilitando reflexões sobre as ações desenvolvidas e ações sobre as
reflexões estabelecidas. Foi um processo contínuo de formação nos possibilitando muitas análises.
Nesta interlocução entre TE e TC, construí a capacidade de direção, de lidar com o povo.
Não como algo acabado, mas como um caminho possível de sempre avançar nos limites e desafios
que vão surgindo na caminhada.
O curso foi também e principalmente um espaço de afirmação e fortalecimento de minha
identidade de camponesa, de MST, de educadora e de lutadora. O curso mediou a produção e
afirmação de valores da classe trabalhadora. Isso foi sendo construído nos conflitos, os quais
permitiam uma reflexão sobre a ação, seja na convivência do dia-a-dia na coletividade do IEJC ou
do MST onde atuo com mais intensidade. Foi no embate das contradições que aprendi olhar para
além de mim. Aprendi a olhar para as pessoas, cada uma com seu jeito de ser respeitando as
diferenças.
Acredito que só serei uma boa educadora/militante se for capaz de entender o outro, se
aprender a lidar com as diversas situações para assim poder contribuir na formação das pessoas.
Já nos dizia José Martí: “Conhecer é resolver”. E foi adquirindo conhecimentos que fomos
ao longo da caminhada nos qualificando para a atuação de pedagogos nas áreas e espaços em que
atuamos.
Posso afirmar que saio deste curso preparada para enfrentar vários desafios, tanto para
contribuir na direção do MST como na construção de uma educação diferente. Acredito conseguir
olhar com mais intencionalidade para as coisas, desenvolvendo ações de forma pedagógica.
Durante todo o curso fomos desafiados a agir e refletir e isso nos qualificou como
pedagogos. Fomos desafiados a nos apropriar dos conhecimentos historicamente produzidos e a
produzir nossas próprias obras. Se o curso não tivesse proporcionado a dimensão da produção
76
individual e coletiva, com certeza, nossa formação teria sido limitada como sujeitos construtores
de nossa própria história. Pois, ouvir aulas, por exemplo, é adquirir conhecimentos. Mas, ouvir,
analisar e produzir intensifica nossa capacidade de leitura do mundo.
Na conclusão deste curso nos fica o desafio de darmos continuidade à nossa formação, para
que possamos, a cada dia, nos qualificar como seres humanos e como educadores. A continuidade
dos estudos e a inserção nos Movimentos Sociais são o que continuará nos enraizando, permitindo
ação e reflexão permanente do processo.
Somos pedagogas, pedagogos, lutadoras, lutadores privilegiados de uma formação a que
poucos têm acesso. Por isso nosso desafio é produzir bons frutos continuadores, hoje e sempre, da
luta da classe trabalhadora.
Nossos Movimentos crescem significativamente a cada dia, se ampliam os espaços de luta
e resistência. E nós, somos algumas sementes que podem e devem contribuir na qualificação da
caminhada. Não como alguém que faz milagres, mas como alguém que está junto com o povo e
vai semeando pedagogicamente o germe da mudança.
Concluo, reafirmando que não estou formada e sim melhor preparada para continuar a luta
pela igualdade social. Mas, continuar junto com a base, porque sozinha nada mudarei.
Memorial de Aprendizados de
Maciel Cover
A seguir descreverei a memória dos aprendizados que tive no curso de pedagogia da terra.
Farei um resgate desde a primeira etapa até os dias atuais.Tentarei observar desde os aprendizados
até os elementos que me ajudaram a construir estes aprendizados.
Vim para o curso de pedagogia, pois queria fazer uma faculdade. Eu tinha militância na
PJR e no PT na organização de base. Tinha claro de que a sociedade só mudaria se as pessoas se
engajassem em sua transformação. Eu havia me disposto a colaborar com a militância de maneira
mais intensiva após concluir o ensino médio. Eu tinha o interesse em estudar, para colaborar com
mais qualidade no processo. Então aceitei a proposta de estudar pedagogia pela PJR na
UERGS/ITERRA. Não entrei no curso por que eu gostava de crianças, ou por que achava que a
pedagogia resolveria os problemas de formação nas organizações de esquerda. Minha estratégia
era estudar, e parcialmente era viável estudar pedagogia, pois isso me daria mais tempo, e a
possibilidade de estudar algo na linha das ciências humanas quando concluísse a pedagogia.
Como nos aponta Engels, o movimento nunca acontece da maneira como se tinha
programado. Ainda bem. Hoje percebo que tive um crescimento considerável comparando com
minha entrada no curso.
A conjuntura mudou várias vezes. Fui me inserindo nas demandas da PJR e alargando
minha visão de mundo. Na medida em que eu ia me inserindo, aprendia novas lições.Tive vários
aprendizados, que transpassam desde a visão de mundo até a operacionalização de uma frigideira.
Os aprendizados foram ocorrendo com o passar do tempo. Entendo que aprender seja, saber fazer
77
47
Concepção dialética da história: sinônimo de materialismo histórico e dialético; marxismo; filosofia da práxis.
78
Trabalho
Neste sentido o primeiro aprendizado é que o trabalho educa. Nas primeiras etapas eu
trabalhava só porque achava bom para a saúde e por que seria um jeito de diminuir os custos aqui
no ITERRA. Num segundo momento eu me esforçava o menos possível para ter mais energias
para estudar. Depois fui compreendendo que o trabalho é a oportunidade de nos realizarmos
enquanto transformadores e aprendizes da realidade. O trabalho nos identifica enquanto classe
trabalhadora. Além disso, aprendi a fazer muitos trabalhos que nunca eu tinha feito antes. Tive que
limpar as ruas de Veranópolis, pintar calçadas, vender pastel na rua, limpar banheiros, cuidar e
educar crianças, trocar fraldas de bebês, fazer pães, biscoitos, rapaduras, pastéis, pudins, cozer
arroz, descascar batatas... Esses foram aprendizados valorosos, pois me ajudaram a entender de
que tudo que nos cerca é construído pelo trabalho humano. Por mais que eu ache difícil e nojento
limpar banheiro, tenho que entender que alguém tem que fazer isso, e que fazer isso não machuca
ninguém, pelo contrário, ajuda a construir um mundo melhor. Agora cada vez que preciso ocupar
um banheiro eu lembro de que alguém terá que limpá-lo. Compreender que o trabalho é
educativo é um dever de todo o militante de esquerda. No IEJC isso não é um tema apenas no
debate teórico. É sim, uma prática cotidiana.
Outro elemento a ser destacado é de que no IEJC somos sujeitos na construção do processo
do trabalho e das metas de produção. As relações de trabalho educam, incentivam a sermos
organizados e ágeis, para dar conta daquilo que nós mesmos nos programamos a fazer.
As práticas docentes
Fazer estágios foi importante para minha formação. Antes de fazer os estágios eu nunca
tinha lecionado. Não morro de amores em trabalhar com EJA ou Anos Iniciais, mas tenho que
dizer que o curso me capacitou para ser também um educador de sala de aula e de escola. Os
79
estágios foram importantes, pois fizeram eu perceber que a escola pode ser um espaço de luta e de
construção de conhecimento socialmente útil.
Além de perceber o papel da escola, com os estágios exercitei o ato de lecionar, ou seja, de
conduzir uma aula do início até o fim. Ali tive que planejar, replanejar, exercitar o “domínio de
classe”, perceber o ritmo dos educandos, entender as relações entre os educandos.
O fato de lecionar me ajudou a qualificar meu trabalho na PJR, pois agora tenho mais
facilidade de organizar uma fala, de ser mais sintético, de entender o ritmo dos jovens. De perceber
com mais elementos onde os jovens estão do ponto de vista do conhecimento, para melhor intervir
na construção do saber.
Fazer pesquisa
Em fazer a pesquisa aprendi muitas técnicas: como fazer um diário de campo, entrevistar
um sujeito, categorizar dados, fazer relação com a teoria, estranhar a realidade, duvidar do óbvio.
Porém o mais significativo foi o fato de ir a fundo numa realidade, exercitar uma interpretação
para formular métodos de intervenção nessa realidade. Nesse caminho, descobri muitos dados
sobre a PJR e sobre a formação humana. Creio que eu poderia ter avançado mais e aprendido mais;
me limitei a fazer a monografia e parar por aí. É claro que consegui realizar alguma intervenção
prática, que é um elemento central da concepção de pesquisa que adotamos.
Por ter que observar para fazer a pesquisa, criei o hábito de observar a realidade em outros
campos. Assim, onde vou, tenho sempre um caderno, onde anoto o que vejo e tento entender o que
aparentemente está a alcance dos meus olhos. Isso tem me ajudado a compreender melhor a
realidade.
Então diante de alguns conflitos que apareceram, soubemos torná-los claros, buscar suas
raízes e politizá-los, assim politizando a coletividade e a nós também. Não dá para deixar os
conflitos para depois. Os conflitos têm um tempo para amadurar. Faz-se necessário ter a
sensibilidade de entender bem os conflitos para politizá-los.
Dessa maneira, em minha vida particular também tenho procurado encarar os conflitos que
tenho comigo no meu jeito de pensar e agir. Tento articular meus desejos com os princípios e com
as possibilidades da conjuntura.
Acompanhamento
Um grande aprendizado foi o de realizar nosso auto-acompanhamento. A relação que eu
tive com o acompanhamento no curso foi diversa. Num primeiro momento eu até concordava
teoricamente, mas na prática achava estranho ter alguém me “vigiando”. Este sentimento era tão
grande na turma que por um tempo eu não concordava nem teoricamente com o acompanhamento.
Na etapa 7 tivemos o desafio de nos acompanhar a nós mesmos. Ali compreendi a importância que
81
Refletir e registrar
No curso, desde a primeira etapa, fomos orientados a realizar a reflexão escrita. Incorporei
essa técnica também durante o Tempo Comunidade. Isso ajuda a organizar meu pensamento, bem
como ajuda a aprimorar a escrita. Hoje isso é um hábito. Todos os dias, antes de dormir, eu
registro e reflito meu dia, e em seguida eu planejo o dia seguinte. A partir da etapa 6 eu comecei a
me colocar metas diárias e semanais, mas realizei este trabalho de metas a partir da etapa 7. Um
dia tem 24 horas e são nessas 24 horas é que estaremos realizando atividades para ajudar a
transformar a sociedade. Se eu deixar o mundo me organizar, nunca serei sujeito, pois as forças
que o mundo tem são maiores que as minhas. Mas se eu me planejar, me organizar, conseguirei
incidir com mais qualidade neste mundo. Além do que, em processos educativos, sem organização
se torna impossível avançar e fazer os outros avançarem.
82
Oficinas
Aqui tive aprendizados diversos que devem ser destacados. As oficinas são locais onde se
aprende mais rápido, pois já se sai fazendo. Assim foi nas oficinas de xadrez, violão, ortografia,
bordado, falar em público, lembranças pra formatura, informática, digitação...
Parecem coisas simples, mas eu tinha medo de ver um teclado de computador, pois eu não
dominava aquele amontoado de teclas. Da mesma maneira quando eu via uma agulha para bordar,
que além de a técnica ser exigente, foi necessário desconstruir todo o preconceito machista de que
bordar é coisa de mulher.
As oficinas são um exemplo síntese do que é aprender. Se não se exercitar não se aprende.
O grande segredo do curso foi este, o de ensinar desde a concepção até a execução prática, pois é
esta a instância que muda a realidade.
Parte 4
Perfil de formação
O perfil foi discutido em torno de três dimensões que foram consideradas básicas:
formação profissional (o ser pedagogo propriamente dito), formação ou qualificação da militância
84
formadoras nesta direção como, por exemplo, a de participar da condução do processo pedagógico
do IEJC.
Junto com este limite anterior também a percepção de uma certa fragilidade no debate
político: aprender a disputar idéias em uma discussão coletiva aberta, com argumentação
inteligente e rapidez de raciocínio. Isto não ficou como marca da turma; ficou mais a marca de
uma postura reflexiva diante das situações, ainda que isso, em si virtuoso, às vezes dê uma
impressão de imobilismo, o que desgosta a maioria.
Um debate que ficou inconcluso: o curso preparou ou não para atuação na escola?
Diferentemente, talvez, de estudantes de outros cursos de Pedagogia, que necessariamente
vinculam pedagogia com escola e docência, a Turma José Martí demorou (enquanto Turma) para
prestar atenção maior à pedagogia escolar e sempre resistiu à idéia de que estava sendo preparada
também para a docência em escolas, seja de crianças, seja de jovens e adultos. Os estágios
trouxeram a consciência da necessidade de certos conhecimentos e certas habilidades didáticas
específicas para esta atuação; para muitas pessoas ficou a sensação de que não aprenderam o
necessário e de que não estão saindo preparadas para esta tarefa, que contraditoriamente tem
aparecido como uma alternativa de atuação depois de concluído o curso.
Mas na discussão apareceu o contraponto, ligado à própria perspectiva indicada nas
reflexões anteriores: o que é mesmo estar preparado para atuar na escola? existe um processo
pedagógico específico que acontece na sala de aula, e que tem a ver com didáticas, com ensino,
com determinadas aprendizagens; mas o processo pedagógico escolar é muito maior do que a sala
de aula e talvez foi para este mais amplo que o curso tenha preparado com mais ênfase; aliás, este
pensar que escola pode ser mais do que escola e que faz parte de processos formadores bem mais
amplos é muito rico para a formação de um pedagogo e fundamental para um pedagogo de
movimentos sociais. Por outro lado, para as pessoas da Turma José Martí que já foram ou são
professores, a sensação foi de avanço e de mais segurança na própria atuação docente... Afinal,
ficou claro que a turma defende a ênfase na formação do pedagogo coordenador de processos
pedagógicos, mesmo na escola, e não apenas como docente; mas não ficou claro qual o equilíbrio
proposto entre a capacitação própria para uma atuação e outra.
Foi na última etapa, que a turma foi provocada pela coordenação do curso e assumiu o
desafio de elaborar uma avaliação sobre cada uma das estratégias levantadas. Este texto é uma
tentativa de elaboração sobre como cada uma destas estratégias foram percebidas e vivenciadas e,
em que medida contribuíram para com a formação da Turma José Martí. O método de elaboração
deste texto foi coletivo, com a constituição de grupos de quatro educandos e educandas que
buscaram escrever o ponto de vista expressado pela turma nos debates da etapa anterior,
complementando-o com percepções posteriores. O texto foi apreciado pelo conjunto da turma e
depois reescrito incorporando as revisões indicadas. Passamos a descrever como se desenvolveram
e, em que medida foram formativas as onze estratégias pedagógicas que, na avaliação da turma,
foram as que mais contribuíram para nossa formação.
Durante o curso a turma esteve inserida na organicidade do IEJC. Para muitos de nós,
mesmo que a escola estivesse organizada de forma parecida com as nossas organizações, o
primeiro impacto foi de estranhamento. A vivência no IEJC representou uma grande mudança de
rotina, para todos nós. A grande maioria passou do convívio de um ambiente familiar, para uma
coletividade formada por múltiplos indivíduos. A individualidade, de cada um estava agora sujeita
a decisões, organizações e a um convívio coletivo. Este fato provocou nas pessoas e na turma,
muitos conflitos e tensões, que a partir de seus debates e reflexões, contribuíram muito na nossa
construção. O processo exigiu que tivéssemos uma vivência coletiva, fazendo aflorar alguns
desvios como o individualismo e a não aceitação da organicidade, que nos impunha maior esforço
físico e mental. No decorrer do período fomos entrando no ritmo dos tempos educativos e
entendendo, e em alguns casos, até nos acostumando com o processo estabelecido. Isso nos levou
a compreender e, aos poucos, fomos nos sentindo mais sujeitos desse processo formativo.
Uma das estratégias, na vivência no IEJC, são os tempos educativos, os quais têm uma
intencionalidade política e pedagógica, que foi proporcionando a superação dos nossos limites. A
dinâmica dos tempos nos colocou em movimento, vivenciando tensões, fazendo aflorar
contradições na vivência coletiva. Essas tensões nos levaram a questionar alguns elementos do
método pedagógico do Instituto que resultaram em mudanças. Essa vivência nos propiciou a
reflexão e a mudança de postura.
Outro elemento a ser destacado é a direção coletiva do processo, enquanto divisão de
responsabilidades e compromisso ao coordenar e ser coordenado. Pudemos exercitar a nossa
capacidade de coordenar processos educativos, desde vários espaços de dentro do IEJC: estudo,
trabalho, discussão política. Por muitas vezes, houve rejeição de nossa parte em aceitar esse
método de direção, porém, tivemos significativos avanços, na medida em que fomos vivenciando-
o na prática e compreendendo a sua importância na organização coletiva.
A disciplina individual e coletiva também fez parte do processo de vivência e formação no
Instituto, através do cumprimento das decisões coletivas e dos próprios horários estabelecidos. O
método de verificação da freqüência se dava através dos Núcleos de Base e possibilitava o controle
da participação nas atividades. Esse processo para nós foi importante e avançamos; porém, ficou
ainda o desafio de nos qualificarmos mais nos espaços onde atuaremos.
Outro elemento importante na organicidade do IEJC, que se mostrou forte na nossa
construção foi o trabalho. É nítido o avanço que a turma teve em relação ao trabalho desenvolvido
no Instituto. Quando afirmamos o avanço da turma, afirmamos também que o trabalho assumiu um
papel de sobrevivência para a turma. Deixamos de ver o trabalho como um “fardo”, uma tarefa a
ser cumprida, e passamos a entendê-lo como algo essencial para a nossa formação enquanto seres
humanos. Houve um avanço significativo no que diz respeito à divisão do trabalho. Esta discussão
permeou todo o curso e provocou diferentes debates e reflexões. No início, o significado do
87
trabalho era algo confuso para nós e, principalmente, a divisão entre trabalho manual e intelectual,
a importância de cada tipo de trabalho e os motivos que levavam as pessoas da turma a assumirem
sempre, as mesmas tarefas enquanto trabalho manual ou intelectual.
Na apropriação da visão do trabalho como matriz formadora um dos debates era se todo o
trabalho é formador. As dúvidas eram fortes, diante de alguns trabalhos realizados enquanto
prestação de serviço que se davam dentro de relações de exploração e destruição do meio
ambiente. Havia também o forte cansaço ao final da jornada, que nos levava a questionar se estava
sendo educativo aquele processo. Ao final concluímos que se tratavam de duas questões: todo
trabalho, enquanto tal, é formativo, porém, as relações de trabalho podem humanizar ou
desumanizar as pessoas envolvidas.
Importante na nossa inserção, e que representou momentos de alegria e diversão para a
turma, foram as vivências culturais que assumiram um cunho educativo. Esses momentos foram
vivenciados no tempo cultura do Instituto, no qual são feitas jornadas socialistas, filmes e noites
culturais, que fizeram com que fôssemos, além da própria turma, nos construindo enquanto
coletivo do Instituto. Um limite, que a turma apresentou, foi que demoramos para entender o papel
educativo das noites culturais e deixamos de participar em muitas delas. Outro limite foi a
integração com as outras turmas, que não acontecia conforme a intencionalidade, com a nossa
turma ficando sempre muito fechada em si mesmo.
A vivência perpassou também, pela relação que estabelecemos com outras turmas que
estudavam no Instituto no mesmo período. Foram momentos importantes de troca de experiências,
de locais e culturas diferentes. Entretanto, um limite que se apresentava era o de construirmos um
processo de formação mais coletivo enquanto Escola/IEJC, pois, muitas vezes, restringíamo-nos às
relações dentro da própria turma.
O método fez com que vivêssemos várias contradições e tensões, que foi preciso serem
mediadas por seminários de entregas teóricas.
chegarmos a contribuir na sua construção. Avaliamos que o mesmo apontava o caminho a ser
percorrido e era preciso nos desafiar a construir os passos, organizando os desafios dentro de cada
etapa. O PROMET permitia à turma conduzir sua caminhada e ter presente o conjunto da mesma,
projetando os desafios que tínhamos pela frente. A experiência que vivemos nos ajudou a entender
a necessidade de pensar a intencionalidade de cada momento e espaço de formação. È um
aprendizado que levamos do curso e que nos faz sentir a necessidade de ter o “PROMET” em
outros processos de formação que somos desafiados a conduzir e também nos espaços de atuação
dentro das organizações.
O Sistema de Alternância
Acompanhamento
48
Extraído do texto “Acompanhamento”. Cadernos do ITERRA n. 09 – Método Pedagógico, 2004, pág.
104 e 107.
90
Gestão
Olhando para a nossa trajetória, uma das coisas que aparecia, era nosso limite em assumir
o processo de gestão, que no Instituto assume a forma de democracia ascendente-descendente.
Três posturas demonstravam nossas limitações: - se esquivar de coordenar, não assumindo a
gestão e demonstrando uma visão limitada; - tínhamos uma visão separada entre o processo de
gestão e educação/formação, revelando que em nossa concepção de educação não tinha ainda
incorporada essa dimensão e a importância do aprender fazendo; - os que assumiam o processo de
coordenação demonstravam traços de uma postura bastante autoritária, gerando fortes conflitos.
Ao vivenciarmos as situações da gestão, tínhamos várias reações frente a essa estratégia
pedagógica, com recusa às posturas autoritárias que expunham as contradições existentes acerca da
concepção do que é coordenar e ser coordenado. Muitas vezes também relutávamos a nos deixar
coordenar. Estabelecíamos cobranças e reflexões entre nós, ainda que superficiais, sobre a postura
de não querer assumir a gestão. Com o tempo, conseguimos fazer um debate mais aprofundado
sobre a necessidade de assumirmos a gestão com mais responsabilidade.
Entendemos que o limite expresso na recusa de assumir a responsabilidade de coordenar e
vivenciar a gestão, que quer dizer: “assumir o comando” se dava pela nossa falta de experiência,
influenciada pela cultura de dominação do povo brasileiro. Refletia, também, algumas
experiências vividas dentro dos Movimentos Sociais, em que, muitas vezes, essa tarefa não é
partilhada de forma a envolver a todos. Por outro lado, tínhamos medo de deixar transparecer o
que éramos, nos expondo diante do coletivo. Por fim, assumir tarefas significava ter que dedicar
tempo e abrir mão de cuidar de questões individuais.
O principal nesta questão está em como concebíamos as relações de poder na escola e
dentro da turma. Era um ponto de tensões e conflitos, que se revelavam maiores em relação à
gestão e ao acompanhamento. A vivência destes conflitos e tensões proporcionou o
amadurecimento do entendimento quanto à gestão. Isso se refletiu em algo positivo para a inserção
nos Movimentos Sociais e Pastoral, ajudando a acelerá-la, ao mesmo tempo em que, qualificou
nossa atuação e nos possibilitou fazer o contraponto entre as experiências vivenciadas no IEJC e
nos Movimentos.
No exercício de construção do perfil de pedagogo/educador influenciamos o processo de
gestão do IEJC, trazendo para o debate características das ações pedagógicas, nos preocupando
com as questões da educação e da formação humana. Destacamos elementos percebidos dessa
influência dentro da coletividade:
* A mudança do método de condução dos Encontros Gerais mensais da coletividade, quando da
Reprodução da Gestão. Os questionamentos feitos pela turma sobre como estávamos participando,
em que medida estávamos sendo sujeitos daqueles processos, se pouco entendíamos sobre as
questões que teríamos que decidir, como, por exemplo, a prestação de contas e os orçamentos do
mês seguinte, contribuíram para deflagrar a busca de uma metodologia que facilitasse a
compreensão e, por conseguinte, a participação da coletividade nos debates.
* Outro fato marcante na turma foi a discussão de gênero, com relação à escolha da coordenação
de cada Núcleo de Base. Quando chegamos na escola era, necessariamente, uma mulher e um
homem. Essa discussão aflorou na turma porque éramos mais mulheres do que homens e, ao
reconhecermos que a tarefa de coordenar é formativa, avaliamos que o critério distorcia a
intencionalidade, pois, os companheiros se repetiam na coordenação a cada etapa, o que os levaria
a uma formação mais aprofundada em relação às companheiras, que assumiam menos vezes essa
tarefa. Discutiu-se a importância da participação das mulheres na condução do processo e, por
várias etapas, a coordenação foi composta por mais mulheres do que homens.
* Consideramos importante, também, para a formação da turma, em relação à Gestão, o
amadurecimento da compreensão do Regimento Interno do IEJC. No início das etapas, pelo fato
91
de não termos participado da construção do regimento, pois o mesmo já existia, vivemos tensões
por entendê-lo como “imposição”, e por não reconhecermos sua historicidade. Os questionamentos
nos provocaram a buscar entender sua historicidade e a partir de então passamos a influenciar
propondo mudanças.
* A gestão dos postos de trabalho foi também bastante formativa, principalmente, quando éramos
desafiados a assumir a coordenação das unidades, pela rotatividade das turmas.
* A própria estratégia de sermos desafiados a agarrar o processo de gestão, tendo que assumir
mesmo sem ter experiência, e não entendendo o seu sentido, nos provocou para a reflexão e nos
fez avançar nessa compreensão.
Estágios
Durante o curso realizamos cinco estágios. Destes, dois foram com Educação de Jovens e
Adultos, EJA, sendo que o primeiro foi realizado num acampamento do MST, no Paraná, com a
metodologia de Oficina de Capacitação Pedagógica, OCAP49, e o segundo foi no Tempo
Comunidade, onde cada um se auto-organizou, em combinação com seu Movimento/Pastoral.
Em Anos Iniciais do Ensino Fundamental, com crianças, tivemos três estágios: o primeiro
foi nas escolas do município de Pontão, RS; o segundo foi nas escolas de Veranópolis, RS e o
terceiro foi durante o Tempo Comunidade e, novamente, nos auto-organizamos, em conjunto com
o Movimento/Pastoral, priorizando as escolas do campo.
Nossos desafios foram muitos, incluindo a construção de uma concepção do que era
estágio e nossa aproximação a uma sala de aula, experiência totalmente nova para muitos da
turma. Consideramos que uma das questões, que foi fundamental para alcançarmos os objetivos,
foi o espaço onde aconteceram as práticas pedagógicas, pois proporcionaram o conhecimento das
diferentes realidades onde acontece a educação, desde as crianças, os jovens e os adultos.
Contribuíram, também, a possibilidade de convivermos diretamente com as famílias e as
comunidades onde realizávamos nossas práticas pedagógicas.
Os estágios foram organizados de forma que conseguimos exercitar o planejamento
individual e coletivo, bem como, a prática em sala de aula. O fato de ser ora individual, ora
coletivo proporcionou o novo, a reflexão, o exercício de planejar em dupla, de refletir em grupo e
individualmente. Já as avaliações foram feitas, na maioria das vezes, de forma coletiva, o que
possibilitou que nós educandos/as contribuíssemos com a nossa prática e com a prática dos colegas
e recebêssemos a avaliação e contribuição de educadores e educadoras responsáveis pelo
acompanhamento.
O acompanhamento foi organizado com pessoas que tinham a capacidade de nos auxiliar
no planejamento e na avaliação das ações concretas na sala de aula, além de nos ajudarem em
questões mais profundas, para além do debate de conteúdos. Exemplo disso foram as orientações
diante de situações de educandos e educandas com necessidades especiais e outras questões
referentes à vida destes sujeitos com quem trabalhamos. A forma como foram organizados os
estágios nos ajudou a refletir sobre as diferentes maneiras e possibilidades de acompanhar um
processo de formação/educação. Isso porque os métodos e metodologias de acompanhamento
foram mudando conforme a necessidade/clareza de que era necessário mudar. Ainda, nos ajudou a
perceber, que o acompanhamento em equipe é importante, tanto em função das várias cabeças
49
Segundo texto de Roseli S. Caldart, na Revista de Educação n° 02, da FUNDEP, 1995: “Uma OCAP caracteriza-se
por uma metodologia centrada na relação prática-teoria-prática e na lógica da capacitação. (...)No âmbito da
pedagogia, a oficina indica um tipo de curso ou de momento educativo formalizado que se centra na atividade prática
dos participantes. Pode até haver espaços para estudos teóricos, mas estes acontecem para instrumentalizar a prática
pretendida.”
92
pensarem estratégias e leituras do processo, como pela necessidade de dialogar sobre o processo
pedagógico, podendo construí-lo. Assim, nos desafia, pois são várias idéias que acabam sendo
canalizadas para um determinado método de trabalho que vamos aos poucos compreendendo.
A preparação que antecedia o estágio foi sempre um momento importante na solidificação
desta estratégia. Eram organizadas oficinas em preparação a essa prática, recebíamos informações
sobre os educandos/turma que iríamos atuar, sobre a escola e sobre o local.
Outro fator que consideramos importante a ser destacado é que esses estágios foram
organizados intercaladamente entre práticas em EJA e práticas em Anos Iniciais com crianças, o
que proporcionou que cada um de nós se identificasse com as fases que tem maior afinidade para o
trabalho em sala de aula.
Analisando os estágios vemos que colocaram para a turma a necessidade de compreender a
escola como um espaço político em disputa. A organização dos estágios proporcionou que
compreendêssemos que estávamos realizando um curso de Pedagogia e que deveríamos saber que
ser pedagogo vai além da sala de aula. Mas que para compreender o papel da educação temos de
compreender também a sala de aula.
Conseguimos enquanto educadores e educadoras entender um pouco mais sobre o papel da
educação/escola, à medida que fomos colocados diante da realidade concreta, para desenvolver
atividades concretas. Os vários espaços (comunidades, acampamentos, bairros), auxiliaram na
compreensão de que a formação dos sujeitos acontece nos diferentes espaços e o desafio é,
sabendo diferenciar os espaços educativos, olhando para as diferentes maneiras de formação dos
sujeitos, ter intencionalidade pedagógica a ponto de desconstruir as velhas práticas e, com os
educandos e educandas construir as novas.
Os momentos de prática educativa nos proporcionaram uma desconstrução, como
indivíduos educandos e também como educadores. Mas ao mesmo tempo em que éramos
desconstruídos, nos construíamos com uma nova prática, com um novo olhar para a educação e
para a nossa formação. Percebemos que essas práticas nos ajudaram a construir nossas concepções
de educação, quando conseguimos fazer a articulação com as demais dimensões trabalhadas
durante o curso (Ex. a Pesquisa sobre os sujeitos do campo, a compreensão de conceitos da
educação).
A possibilidade de planejar, replanejar e avaliar, dentro de realidade que não conhecíamos
cumpriu papel essencial. Em alguns momentos, nos trouxe insegurança por não conhecermos os
sujeitos nem a realidade e, também, por estarmos fazendo uma atividade nova. A insegurança
trazida por esse “novo” dava-se por nos reconhecermos limitados e tínhamos receio de partilhar o
planejamento com o acompanhamento. Esse foi um dos fatores que ocasionou distanciamento
entre os coletivos de educadores e educandos.
Sabemos que avançamos, enquanto educadores, no momento em que nos deixamos
acompanhar e fomos quebrando as barreiras, superando limites pessoais e descobrindo que a
ruptura entre o velho e o novo dói, e só acontece quando nos abrimos a ele. Na atividade de
educador é preciso se desconstruir e se reconstruir permanentemente.
Estudo
Pesquisa
A turma teve seu princípio quando nos Movimentos Sociais e Pastoral fomos indicados
para fazer o Curso de Pedagogia da Terra. Cada Organização teve alguns critérios para escolher as
pessoas, geralmente levando em conta a inserção nas tarefas e/ou ter alguma relação com a
organização e com a educação, tendo assim a perspectiva de nos qualificar para uma atuação já
iniciada ou prevista.
Na constituição da turma havia perfis diferentes. Alguns com um bom entendimento da
luta, e outros para quem tudo era muito novo. Além disso, éramos de vários Movimentos com
inserção diferenciada.
Nossa identidade se consolida na diversidade dos Movimentos Sociais e Pastoral, que
compuseram a turma. No início, parecia ter um distanciamento, ocasionando até disputas. No
decorrer do processo isso foi se transformando em aproximação e aprendizado, nos demos conta
que lutamos e buscamos o mesmo projeto de sociedade.
No entanto, toda nossa construção foi gestada no conflito, articulado tanto ao conhecer-se,
quanto na abertura de conhecer o outro. Assim, construindo-se conjuntamente, como sujeitos
coletivos dessa história.
À medida que foi se aprofundando o debate sobre a educação no interior de nossas
organizações e aumentando nossa inserção, foi se assinalando com mais nitidez nossa identidade
coletiva, uma vez que, conseguíamos refletir mais sobre nossa prática, articulada com a teoria.
96
Ressalta-se que essa construção se deu pelos indivíduos que ao mesmo tempo, que tiveram
que abrir mão de algumas vontades individuais, para ter condições de construir um coletivo maior,
também se construíram como individualidade. Nisso, percebe-se que ocorreu sempre uma tensão
em relação ao considerar o que era individual e o que era coletivo, ou o que era mais importante
tendo em vista o momento em que vivíamos.
Essa construção foi fundamentada em três pilares que se entrelaçavam: - o conhecimento de nossas
organizações, entendendo o seu processo organizativo, refletindo, e dessa forma, auxiliando na
construção, como alguém que é parte. Destaca-se também que o processo de inserção se deu por
dois momentos que se articularam: um deles foi opção pessoal, ou seja, opção de vida; o outro se
deu pela abertura da própria organização para essa inserção; - a intencionalidade pedagógica do
curso e do IEJC; - o método de funcionamento/organicidade do IEJC (autogestão, vivência
coletiva, alternância...), fazendo com que no decorrer do curso, passássemos a nos sentir parte do
processo e fazendo a ligação entre a teoria estudada e a prática.
Na coletividade da turma outro processo vivenciado foi a construção de obras coletivas,
fazendo com que cada vez mais nos enxergássemos como coletivo, como Turma José Martí,
percebendo, também nossos limites. Essas obras fizeram com que nos reconhecêssemos nelas e
nos inseríssemos no processo de construção da coletividade.
Tivemos como experiência fazer a mística do II Encontro Estadual da Educação do Campo,
no Rio Grande do Sul, a partir de uma proposta elaborada anteriormente por outro grupo.
Posteriormente, fizemos a mística de abertura da II CNEC. Esta construímos desde as idéias, os
passos e nos envolvemos em toda a elaboração, o que fez com que nos víssemos na obra.
No entanto nem todas as obras foram uma construção sem conflitos. Exemplo disso foi a
construção dos nossos símbolos: nome da turma, desenho da turma, música e roupa da formatura..
A música, principalmente, nos incomodava o ritmo, o que deixava um certo descontentamento em
relação à nossa obra. Porém, isso foi superado principalmente, na sétima etapa, quando num
seminário sobre musicalidade fizemos o esforço de entendê-la melhor.
Tivemos momentos de reflexão sobre a construção da coletividade e da nossa identidade
enquanto turma. Fomos levados a nos questionar se realmente era necessário termos uma
identidade de turma.50 Chegamos à compreensão de que, enquanto seres humanos, nos agrupamos
a partir dos objetivos que temos em comum e que não há uma única identidade. O que existe são
identidades e que uma prevalece sobre as demais.
Fomos construindo a turma e o curso com muitas tensões, muitos debates contraditórios. A
valorização do indivíduo, acima do coletivo, fez com que em certos momentos, não nos
submetêssemos às discussões coletivas de condução do processo do Instituto, e então
questionávamos o método. Claro, que nesse processo, há contribuições também, talvez no âmbito
de estrutura de tempos, horários, acompanhamento e algumas definições, que foram sendo
amadurecidas e rediscutidas no decorrer de nossa caminhada. Permanece como desafio, sermos
autocríticos e, ao mesmo tempo, críticos, no sentido de olhar mais para nossos desvios como o
individualismo, o personalismo e acomodação, que fizeram com que encobríssemos certos
comportamentos, não os trazendo à tona, porque mexeria com todos, caindo máscaras,
desnudando-nos. Fazer vir à tona contribuiria para que tivéssemos uma formação mais coerente
com nossos objetivos e princípios. Isso se presenciava na discussão nos NB’s, nos estágios, na
vivência dos tempos educativos do IEJC, no auto-acompanhamento. Reconhecer limites remete a
esforço tanto de tempo como de repensar a própria prática.
50
Este debate foi feito num seminário, no início da quarta etapa, a propósito da análise da terceira etapa, com a
presença do educador Paulo Cerioli, que contribuiu fazendo-nos perceber a fase de construção em que nos
encontrávamos.
97
Construímos bastante, nos orgulhamos desta construção, mas poderíamos ter tido maior
empenho e, hoje, sermos ainda mais capacitados.
Memória
51
Entendemos como luta todas as atividades que visam acumular forças para o embate de classes, e neste caso,
acumular forças em favor da classe trabalhadora, incluídas aquelas necessárias para dar sustentação e alargar a
abrangência das ações, como, por exemplo, as coordenações, as atividades de formação/educação, o acompanhamento.
98
alterações, num seminário que tinha como objetivos principais rememorar o processo vivido e
fazer o engate para a continuidade.
Começando este processo, ao final da etapa 1, o texto da preparatória foi apreciado. De
início a turma não compreendia o sentido da tarefa, mas um debate ajudou a envolver as pessoas:
que fatos devemos registrar? Todos, inclusive os dos bastidores? Só os ocorridos dentro do IEJC
ou fora da escola também? Apesar desses questionamentos ainda não tínhamos despertado para
perceber o processo pedagógico como objeto da memória.
Os limites do momento inicial foram o pouco envolvimento da turma como um todo e a
fragmentação dos fatos. A percepção baseava-se no cronograma das atividades.
Nas etapas seguintes a turma foi se apropriando do significado de construir a memória, que
até então, resumia-se num texto. Contribuíram para a turma avançar na compreensão da memória,
as perguntas e focos que direcionavam o debate nos seminários de início de cada etapa, a propósito
do texto da anterior.
Nas discussões surgiu a idéia de registrar/arquivar outros tipos de registros, como fotos e
outros documentos. Não repetir o que já constava em outros documentos. Priorizar fatos e
acontecimentos do cotidiano. A partir da etapa 2 também passamos a fazer a síntese individual de
aprendizados de cada etapa.
A partir da etapa 4 foi criado um posto de trabalho na unidade sistematização do IEJC, que
passou a ter a tarefa de garantir o registro e elaboração do texto de memória da turma. Para isso,
deveria contar com o apoio de uma equipe, a de secretários e secretárias dos NB’s ou outras
pessoas indicadas. Resultou na qualificação de registros e elaboração do texto, a partir das
sugestões e críticas do conjunto da turma, porém, nem sempre, a equipe designada conseguiu
contribuir.
Com a regularidade do posto de trabalho, tornou-se uma tarefa sistemática, que passou a
produzir texto semanal, para registro e apreciação da coordenação da turma, com a
intencionalidade de que contribuísse para a melhor condução do processo. A partir da etapa 6
começamos a matutar a idéia de fazer uma sistematização final da Memória/História da turma. No
início da etapa 7 decidimos assumir o desafio, clareamos os objetivos e designamos responsáveis,
sendo uma equipe de apoio e um novo posto de trabalho específico. Após muita elaboração, leitura
e análise tivemos, finalmente, a conclusão da nossa memória.
Avaliamos que a estratégia de construir a memória da turma contribuiu na nossa formação
em diversos aspectos. Passou de uma atividade que, de início, tinha sentido mais de rememorar os
fatos, sem reflexão, onde ríamos de nós mesmos e registrávamos qualquer fato, tendo um formato
cronológico, para um processo que colocou em movimento nossas habilidades e reflexões sobre o
processo vivido. Contribuiu na nossa capacitação na escrita, na compreensão do que é sistematizar
um processo, que envolve registro, análise, interpretação.
Propiciou a compreensão de que a memória contribui para a inserção no processo.
Vivemos a experiência de que, antes do estudo da memória, ao início de cada etapa nos sentíamos
como se ainda estivéssemos fora da escola, lá na comunidade, e ao estudar a memória anterior era
como se mergulhássemos no interior da turma, da própria escola, naquilo que estava proposto para
a etapa.
Através do estudo da memória conseguíamos perceber os fatos, avaliar seus significados e
discuti-los, tirando lições. Constatávamos que, na hora que os fatos aconteciam, não conseguíamos
avaliá-los, porque “doía”, fugíamos do debate. Ao retomar a memória os fatos voltavam e aí, pelo
distanciamento de uma etapa para a outra, conseguíamos analisar o porquê, as repercussões e os
desafios que apontavam para avançarmos na nossa formação.
99
A memória nos despertou para a importância de considerar os fatos recentes (da semana),
na projeção da semana seguinte, dentro do processo da turma contribuindo para com o
acompanhamento e auto-acompanhamento.
Ao nos darmos conta de todo o nosso processo de formação, nos capacitamos a
estruturar/montar outros projetos de formação, à medida que conseguimos ter uma leitura da
complexidade de aspectos que o processo envolve, provocados, tanto pelas estratégias pedagógicas
e suas repercussões, na formação dos sujeitos, quanto destes para com o processo.
Nos damos conta que a memória ajuda a identificar os fatos e acontecimentos ligados ao
processo pedagógico, com reflexos na nossa prática como educadores. Materializamos estes
aprendizados ao fazer a memória das aulas, nas nossas práticas pedagógicas durante os estágios.
100
De modo geral foram detectadas quatro diferentes fases, mais ou menos identificadas com
as etapas do curso. Ficou entendido que não se trata de um processo linear, ou seja, as fases não
começaram nem terminaram junto com as etapas, porém, era no decorrer de cada etapa que as
manifestações de cada fase apareciam com força. Por implicarem diversos aspectos que não
avançavam e nem eram superados todos ao mesmo tempo, muitas questões permaneciam, ainda
que o conjunto da turma já se encontrasse envolta em novos desafios e vivências, que
caracterizavam um salto de qualidade no processo vivido. Quando buscamos descrever cada fase,
alguns elementos se destacaram:
Foi o período compreendido entre as etapas 1 e 2, com alguns elementos que se estenderam
até a etapa 3. Caracteriza-se como a fase do choque inicial, do susto, do estranhamento, da
surpresa. O que mais nos marcou neste período foi a vivência no IEJC. O desafio era nos conhecer,
nos encontrar e entender minimamente o que acontecia. Fase de experimentar a vivência no
coletivo, os tempos educativos, o trabalho, as normas e regras da Escola. Nossa linguagem era a
dos “chavões”. A repercussão de alguns choques vividos nesta fase vai até o final do curso, pois
algumas coisas nos provocaram, mexendo forte conosco, como, por exemplo, repor nos domingos
o tempo perdido ou desperdiçado durante a semana, ao nos atrasarmos no início dos tempos
educativos. Mesmo com metodologias diferentes, esta situação foi uma constante. Quando
estudamos o papel dos Núcleos de Base passamos à discussão de acompanhar mais as pessoas do
NB, inclusive em relação à reposição dos tempos.
Para alguns, era o sair de casa pela primeira vez, o ficar longe da família, o que levou a
muitos conflitos pessoais. Vivíamos centrados no “eu”. Não compreendíamos o curso, nos
perguntávamos o que era aquilo tudo? Onde estávamos? Em meio a outros que tinham outras
experiências.
101
Naquele período achávamos tudo bonito nos Movimentos Sociais, idealizávamos. Era um
primeiro momento de inserção. Estávamos nos conhecendo e rompendo o cordão umbilical. Era
também o primeiro contato com o curso e com os demais Movimentos Sociais e Pastoral.
Na seqüência da caminhada deu-se o início do debate da nossa identidade. Através dos
estudos que íamos realizando e da vivência, passamos a compreender alguns elementos e, ao
mesmo tempo, começamos a fazer críticas e a visualizar outras possibilidades. Começamos ter
contato com as diferentes teorias e com as matrizes formadoras do ser humano. Podemos citar,
como exemplo, o quanto foi forte o estudo da obra de Plekanov, “O Papel do Indivíduo na
História”, fazendo-nos perceber que somos seres condicionados, mas as condições são social e
historicamente construídas, e, portanto, podemos ajudar a criá-las.
A compreensão foi de que esta fase deu-se nas etapas 3 e 4, englobando elementos da etapa
5 com algumas questões perpassando até a etapa 6. Fase das críticas, do questionar tudo, de achar
que tudo estava errado, não aceitar. Fase dos maiores conflitos, das tensões e da rebeldia.
Demonstrávamos resistência aos horários da escola, dizíamos que não se pareciam com os
vivenciados nos Movimentos, na vida dos camponeses.
E tínhamos resistência ao trabalho, principalmente aquele da “prestação de serviço”, onde
eram contratados alguns trabalhos com fortes relações de exploração, e que entendíamos que nos
desumanizava. Eram trabalhos pesados, ficávamos muito cansados e não conseguíamos produzir
mais nada, não aproveitávamos o tempo leitura. Questionávamos se o trabalho desta forma era
educativo? Quem fazia o trabalho interno não tinha tanto esta situação, o fazia bem feito e tinha o
respaldo dos coordenadores de setores.
Uma característica desta fase era um perceber o limite do outro. Achar que o outro era o
culpado das coisas erradas. Passamos a nos compreender sujeitos e queríamos exercer este papel,
porém, não nos sentíamos parte do processo, da escola, da coletividade. Fazíamos toda a critica ao
método. Passamos a vivenciar um embate entre o que aprendíamos na escola e o que era feito nos
Movimentos. Este foi um período de muitas tensões.
Depois passamos da resistência à busca de compreender e a nos desafiar. Procurávamos
compreender as concepções, abrirmo-nos para o conhecimento. A pesquisa nos levava a observar,
a alargar nosso olhar. Foi o tempo em que começamos a compreender mais a fundo nossas
Organizações e perceber os limites que se tinha, coletivamente.Fatores fortes desta fase foram o
desafio de construção individual do projeto de pesquisa que nos fazia ter que assumir, nos
posicionar, dizer o que íamos fazer de fato. Os horários estabelecidos no IEJC e a vivência do
processo da escola também nos provocaram a tomar posição.
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Contribuíram para fazermos a passagem desta para outra fase: o aprofundamento do estudo
das matrizes pedagógicas da formação humana e do trabalho como matriz formadora; os
seminários com “entrega teórica” sobre o método pedagógico do Instituto que nos ajudavam a ver
nossos limites, a tentar fazer análise; e nossa famosa plenária do “desabafo” onde falamos sobre
nossos sentimentos.
Os elementos ligados a observar o sujeito/a formação, conhecer o método de trabalho de
base, o método pedagógico da escola e das organizações, leitura da realidade, a questão da
intencionalidade, o compreender a pessoa humana, a teoria marxista, o trabalho como formativo,
foram questões que perpassaram todo o curso, e que nos fizeram ir avançando. Porém, não foi de
uma hora para outra, foi um processo.
A pesquisa, mesmo sendo um trabalho que cada um tinha que produzir individualmente,
nosso esforço era coletivo, nos Grupos de Pesquisa e na turma como um todo. Alguns procuravam
se ajudar na produção. O apoio e a torcida do coletivo na hora das defesas nas bancas foram
exemplos marcantes.
Percebe-se que o processo não acaba porque acaba o curso. Se fôssemos continuar em mais
uma etapa 9, novas fases se abririam e questões se colocariam, pois aqui estamos apenas fechando
um ciclo que foi programado enquanto tal.
No final do curso, na etapa 8, foi que a turma teve uma passagem importante, que foi ter
começado a juntar na ação, a teoria e a prática, de forma coletiva. Parece que tínhamos um
bloqueio de produzir rápida e coletivamente e demoramos para dar este salto. Uma novidade da
turma, dentro do IEJC, é fazer a reflexão do curso a partir dos desafios individuais, como a
pesquisa, por exemplo, e os estágios.
Um elemento que contribuiu para o crescimento da turma foi o dar-se conta que deveríamos
contribuir com a direção dos nossos Movimentos e era necessário estar preparado para tal. O
Tempo Comunidade e nossa inserção nos Movimentos nos faziam refletir e compreender mais
profundamente as questões estudadas no Tempo Escola.
O método coloca-nos no limite de “fazer” ou “fazer”, no sentido de que não sobreviveríamos
no curso se não fizéssemos as tarefas. Esta era a relação colocada quanto à pesquisa, os estágios, o
abrir-se para a vivência do processo formativo e do IEJC. Esta é a principal estratégia pedagógica
que foi colocada em movimento neste processo.
Algumas situações foram de grande impacto no processo, como a escolha do nome da turma
que nos colocou em “cheque”, pois nos obrigou a dizer o que queríamos e também forçou a
construção de relações, a administrar conflitos, logo ao início do curso. A mesma análise pode ser
feita sobre a construção da nossa canção, que foi produzida numa fase ruim da turma, em um
período de “desencantamento” de uns com os outros, e por isso não gostamos da obra que
produzimos a partir daquele “clima”. Não nos acertávamos com a melodia e o ritmo. Ficamos,
assim, com problema com nossa música até quase ao final do curso, quando viemos a descobrir
que era uma boa música, e tinha identidade conosco.
Analisando todo o processo, a partir da experiência que vivenciamos, vemos que os elementos
a seguir não podem ficar de fora de um processo de formação, em se tratando de garantir a
passagem/avanço de uma fase para outra:
- Pesquisa: no sentido de olhar para os sujeitos, as relações, aprender a lidar com as teorias.
- Estágio: pelo dar-se conta das escolas, para fazer o debate sobre o ser pedagogo, sobre as
relações pedagógicas.
- Inserção nos Movimentos: porque permite um estudo contextualizado, materializado na
realidade, na prática.
- Coletividade: pelos aspectos de horários e tempos, a vivência das relações, o acompanhamento.
- Aprofundamento teórico: necessário para compreender as concepções e para aprender a fazer
das teorias ferramentas.
- Produção de obras: porque são a materialização dos aprendizados.
- Memória: porque nos ajuda a olhar para nós mesmos, refletir, dar-se conta do processo que
está sendo vivido.
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Anexos
4 Cilone Zang
7 Denise Queiroz
9 Edson Risso
11 Fabiane Purper
12 Gibrail Cordeiro
13 Inajara Bogo
17 Liciane Andrioli
18 Maciel Cover
22 Mariane de Potter
23 Marilene Cupsinski
24 Marilene Hammel
26 Maristela Danelli
33 Rosane Barcé
40 Soniamara Maranho
42 Tatiana Peretti
43 Valdemir Gonçalves
44 Vanessa Reichenbach