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A Existencia e Suas Patologias - Final PDF
A Existencia e Suas Patologias - Final PDF
a) A afirmação do indivíduo
Hipermodernidade é o nome que se dá a uma nova organização da sociedade ocidental
contemporânea, em que o lugar do indivíduo na sociedade é um dos eixos estruturantes.
Evidentemente, que a afirmação do indivíduo como ponto nodal na organização da
sociedade vem acontecendo desde a implantação da modernidade no século XVIII, mas,
atualmente, uma demanda de autorrealização jamais vista exacerba o princípio individualista.
Com isso, difundem-se os “valores do hedonismo no campo social ao insistir na vivência de
sentimentos de prazer, de bem-estar ou de conforto” (CHARLES, 2009, p. 136). Trata-se,
portanto, de gozar a vida com o máximo de “curtição”. Viver o momento presente se
caracteriza por um conflito de posturas, uma vez que assistimos a um “descompasso entre o
hedonismo individualista, apresentado como ideal de vida, e a moral cristã feita de renúncia,
abnegação, jejuns e privações” (CHARLES, 2009, p. 136). Desse modo, os valores hedonistas
(prazer, gozo da vida, busca do bem-estar e do conforto) passam a ser as diretrizes de cada
um.
Contudo, a grande conquista do homem, hoje, baseando-se nesse princípio do
individualismo, é que cada um deve assumir a sua vida. Se no início da modernidade
tínhamos a afirmação do princípio individualista como centro organizador da vida humana,
atualmente a exacerbação desse princípio nos possibilita afirmar que estamos numa nova fase
que começou nos anos 1960 com a segunda revolução do indivíduo e que, agora, no início do
século XXI, é denominada de “hiperindividualista”.
Dessa forma, estamos vivendo uma cultura hedonista e psicológica que “incita à
satisfação imediata de necessidades, estimula a urgência do prazer” (LIPOVETSKY, 2004, p.
85), cria uma mentalidade de desenvolver livremente todas as potencialidades, isto é, o
indivíduo deve ser mais livre e sem renunciar ao que a sociedade oferece em termos de
conforto e lazer. “Vida sem fim e sem sentido”.
b) A valorização do mercado
Outra base da hipermodernidade é a mudança no eixo econômico. É evidente que
continuamos no mesmo modelo econômico, ou seja, estruturado em uma economia de lucro
contrária à economia de sobrevivência que predominou até a Idade Média. O que se acelerou
nessas últimas décadas foi a luta para que o Estado não interviesse no mercado. É o mercado
que dita as normas e as regras econômicas.
Esse princípio estruturante da hipermodernidade sofreu um abalo com a crise
econômica que se instaurou no mercado no ano de 2008. Se o mercado queria ser cada vez
mais independente do Estado com o neoliberalismo dos anos 1980, a situação gerada pela
crise hoje merece uma reflexão mais cuidadosa sobre a dialética entre o mercado e o Estado.
Esse ponto da sociedade contemporânea vai demandar uma nova articulação entre esses dois
polos, e o mercado terá de se adequar a algumas normas do Estado, deixando de ser absoluto
em si mesmo. A autorreferência do mercado talvez tenha de ser marcada por algumas
coordenadas tradicionais.
c) A eficácia técnica
O terceiro pilar da atual sociedade ocidental é a valorização da ciência e da técnica,
que cada vez mais se entendem complementares. Se no início da modernidade a ciência
puxava a tecnologia, hoje é a tecnologia que é o motor do desenvolvimento científico. A
tecnologia chegou a um grau de expansão e domínio que a vida para ser vivida depende cada
vez mais do desenvolvimento tecnológico. A evolução dos computadores com a internet, a
cada dia mais veloz, acelera de tal forma nossa vida que qualquer acontecimento já é passado
no momento seguinte. Por sua vez, a internet também possibilita fazer contato com pessoas no
momento em que se desejar e em qualquer parte do mundo.
Além da evolução da internet, temos os telefones celulares cada vez com mais
tecnologia, possibilitando aos seus usuários atividades das mais variadas, como tirar
fotografia, realizar filmagens, enviar mensagens, assistir à televisão, etc. Os aparelhos de
vídeo domésticos também nos possibilitam fazer uma programação pessoal e assistir só ao
que nos interessa e na melhor hora. Todas essas evoluções tecnológicas acabam sendo
práticas e mais individualizadas. Estamos em contato com o mundo inteiro, com uma
comunidade (por exemplo, o Orkut), mas, ao mesmo tempo, isolados na frente do
computador, deixando de lado o contato face a face para privilegiar o contato virtual.
Se antes se tinha um único telefone e um único aparelho de televisão em uma família,
hoje, em uma casa, cada um dos seus membros possui o seu aparelho de TV, no quarto, e o
seu celular e “notebook” pessoais. Muitas vezes, no mesmo aparelho celular, já se tem dois
números (dois chips diferentes).
1.2 O centramento no Eu
A segunda questão importante da sociedade atual se expressa por meio do fenômeno
que denominaremos de “centramento no Eu”, que tem como característica principal forçar ao
extremo o desenvolvimento livre das potencialidades.
Podemos observar esse fenômeno por intermédio de dois movimentos. O primeiro
caracteriza-se pela divulgação do consumo; o segundo, pela emancipação da moda. Todas as
duas lógicas vividas na sua espontaneidade são no fundo uma afirmação do princípio
individualista. Tudo se organiza e se estrutura em função do Eu.
O excesso é a marca registrada da sociedade de consumo, visto que, como nos diz
Lipovetsky:
[...] ela existe sob o signo do excesso, da profusão de mercadorias, pois agora esse se
exacerbou com os hipermercados, e shopping centers, cada vez mais gigantescos,
que oferecem uma pletora de produtos, marcas e serviços. Cada domínio apresenta
sua virtude excrescente, desmensurada, ‘sem limites’ (LIPOVETSKY, 2004, p. 75).
3 As patologias da contemporaneidade
Essa nova configuração da sociedade contemporânea está impondo ao homem outra
organização de vida, que trará resultados diferentes dos até então vividos. A vida humana,
antes centrada no futuro e por isso mesmo baseada nas utopias de progresso e na
transformação social, cede lugar a uma vida centrada “na presença e na pontualidade do
tempo, no aqui e agora, em que as instâncias do passado e do futuro se silenciaram
relativamente” (BIRMAN, 2001, p. 246). Assim, o engajamento do presente passa a
predominar, dando ênfase às curtições do prazer, ao “carpen die”. A cultura do narcisismo
impõe ao homem moderno uma centralização cada vez maior no Eu, deixando, em segundo
plano, o outro, e com isso a alteridade passa a perder importância e a sofrer esvaziamento.
A vida contemporânea organizada a partir do hedonismo provoca alguns paradoxos.
Desse modo, “ao mesmo tempo que ela estimula os prazeres (o hedonismo, o consumo, a
festa), ela produz comportamentos angustiados e patológicos” (CHARLES, 2009, p. 29). A
tirania do prazer pode, num primeiro momento, trazer a sensação de bem-estar, mas, no
momento futuro, provoca angústias e comportamento inadequado e frustrações, visto que, ao
centrar a vida no presente, o futuro esvanece e tende a perder a importância na organização da
existência. “O paradoxo está ligado ao fato de que o aumento do entretenimento se faz
acompanhar de uma dificuldade cada vez mais real de se viver, de que a prosperidade material
surge unida a uma pobreza relacional” (CHARLES, 2009, p. 29).
O autocentramento empobrece a vida relacional do homem hipermoderno, e os dramas
contemporâneos não estão ligados à sexualidade, como pensou Freud no início do século XX,
mas à comunicação, à relação que o Eu estabelece com o outro. O início do século XXI
anuncia-se como uma época de novos conflitos, de conflitos decorrentes do esvaziamento da
alteridade e da intersubjetividade. Daí que uma das grandes dificuldades da
contemporaneidade é a fragilidade dos laços afetivos.
Ora, se de um lado o homem atual, ao viver nessa sociedade paradoxal, explicita o
esvaziamento da alteridade, por outro a exigência de se autocentrar cada vez mais exige uma
“performance” que levará ao extremo a exaltação do Eu, de um Eu que não se estrutura a
partir da comunicação com o outro, mas em desempenhar papéis que sejam glorificados pela
sociedade. O que define a psicopatologia contemporânea “é o destaque conferido a quadros
clínicos fundados sempre no fracasso da participação do sujeito na cultura do narcisismo”
(BIRMAN, 2001, p. 164). Esse dilema do desempenho do Eu e consequentemente do
esvaziamento da intersubjetividade está na base do sofrimento humano do homem no início
do século XXI. Os sintomas neuróticos cederam lugar às desordens narcísicas.1
É, a partir desse clima, que poderemos entender os sintomas e consequentemente o
sentido do adoecer na atualidade. O adoecer vem como resultado de o homem hoje ser mais
legislador do que o homem antigo, isto é, é ele que dá rumo a sua existência, mas também
sofre mais com as pressões de como a sociedade se organiza. Isso gera um homem mais
frágil, que não mais cultua o amor, a amizade, o afeto gratuito, mas que só pensa em desfrutar
da vida por meio de “festas” e “badalações”, propiciando um sentimento de vulnerabilidade.
A segunda questão que merece uma reflexão é: quais os principais sintomas da
atualidade? Evidentemente que não é nosso objetivo, neste artigo, enumerar uma lista
exaustiva, mas apontar as mais frequentes, que exprimiriam a vivência do dilema atual do ser
humano. A fragilidade se manifesta na depressão, na ansiedade e nas diversas formas de
fobia, com o nome genérico de “síndrome do pânico”. É evidente que esses sintomas são a
ponta do iceberg.
Longe de querer esboçar um quadro completo das patologias contemporâneas,
podemos dizer que o cenário descrito acima nos leva a constatar que as principais formas de
adoecimento são: o estresse, a exaustão (“Burn out”), a depressão e o vazio. A toxicomania,
através do uso sistemático de medicamentos, vista por alguns clínicos como uma das
patologias, pode ser um meio que o homem moderno usa para abafar sua angústia ou sua
depressão. Também o uso de drogas não psicofarmacológicas é uma forma que o sujeito tem
para fugir de suas responsabilidades e também ocultar sua angústia.
O estresse é a maneira de adoecimento com a qual teremos de conviver nos próximos
anos, já que o ritmo e as exigências da sociedade hipermoderna colocam o homem diante da
necessidade de responder às questões e às práticas da vida com maior rapidez e eficiência,
provocando, assim, uma aceleração do seu cotidiano. A questão, hoje, é que não conseguimos
mais viver sem estresse. O que devemos aprender é como administrá-lo. Não se pode viver
sem estresse numa sociedade exigente demais. Assim, isso pode ser entendido como uma
reação somatopsíquica resultante de um esforço desgastante do organismo diante das
exigências sociais e pessoais.
1
Sobre o papel do terapeuta diante desse novo quadro, confira um artigo que escrevi há algum tempo, mas que
talvez ainda tenha pequena pertinência. GIOVANETTI, José Paulo. “Os desafios do terapeuta existencial hoje”,
in: CAMON (Org.), A prática da psicoterapia. São Paulo: Editora Pioneira, 1999. p. 163-180.
autonômico e a glândula pituitária são acionados; as glândulas supra-renais entram
em estafante produção de adrenalina e corticosteróides – principalmente cortisona –
os quais lançados na corrente sanguínea seguidamente podem comprometer a
totalidade do equilíbrio orgânico. Tais hiperfunções glandulares podem conduzir a
uma queda do sistema imunológico, expondo suas vítimas a alergias e infecções;
afinal, desregulados o timo e as glândulas linfáticas, dá-se sensível diminuição de
glóbulos brancos no sangue e a saúde física fica vulnerável. 2
2
Explicações sobre o que é estresse do livro de LIPP, Marília e outros, Como enfrentar o stress. Campinas/São
Paulo, Editora da Unicamp/Ícone, 2. ed., 1987, p. 20-22, citada por MORAIS, Regis. Stress existencial e sentido
da vida. São Paulo, Edições Loyola, 1997. p. 22.
importante lembrar que certa dose de ambição é benéfica na vida. A questão está no sentido
de que “a ambição pode se tornar uma prisão interna da qual é difícil escapar. Ambição tem a
ver com avidez. Estar ávido por honra, reconhecimento, reputação e popularidade. Quem se
deixa conduzir pela ambição perde contato consigo mesmo” (GRÜN, 2007, p. 22).
Uma segunda fonte de esgotamento é continuamente “querer provar algo a si mesmo,
pois estaríamos, nesse caso, girando em torno de nó mesmos, de nossa reputação, de nosso
sucesso de reconhecimento” (GRÜN, 2007, p. 23). O exemplo mais claro é que devemos
provar ao outro que somos a melhor opção para ele, já que, como somos um bom terapeuta, o
outro fez a melhor escolha quando procurou os nossos serviços. Quando damos uma
conferência, temos de satisfazer a todos. Correr sempre atrás do melhor desempenho para que
se possa sentir valorizado esgota um ser humano. Procurar satisfazer a todas as pessoas do
nosso relacionamento e ser amado por todos nos leva ao esgotamento, uma vez que se está
exigindo algo para além do nosso limite. A carência afetiva é um dos motores interiores que
mais nos escraviza, uma vez que sempre estamos a fazer algo além de nossa capacidade a fim
de ganhar a atenção do outro.
O terceiro sintoma do adoecimento contemporâneo é a depressão. É necessário
distinguir a depressão como forma existencial de adoecimento da variação do humor, que
coloca a pessoa “para baixo”; em que o termo “deprimido” é o mais adequado. Estar
deprimido é estar triste, estar com “baixo astral”. A variação do afeto não impede que a
pessoa continue com as tarefas cotidianas. A depressão é uma doença na qual o indivíduo se
sente sem ânimo, em que tudo o que ele faz se torna difícil, pesado e cansativo. Quando
estamos em depressão, sentimo-nos paralisados, perdemos o “tônus vital”, a busca do prazer;
encontramo-nos sem perspectiva e nos isolamos cada vez mais da vida social.
Essas quatro características é que possibilitam dizer que uma pessoa está em profunda
depressão, e não só passando por uma variação afetiva. A variação afetiva é diferente da perda
do prazer pela vida. A depressão constitui um “grito do esgotamento” a que a pessoa chegou
em razão das exigências absurdas da vida. A sobrecarga de desempenho e o desrespeito para
com o que lhe é mais original e próprio no ato de viver levam a uma violência interna que
acaba no esgotamento, o qual se manifesta na depressão.
Muitas vezes, escutamos alguém dizer que está “cansado de viver”. O termo correto
seria “esgotamento de viver”, uma vez que o cansaço é recuperado com um bom descanso, ao
passo que o esgotamento, como não foi construído em cima do prazer e da sua potencialidade,
coloca-nos “para baixo” e nos suga a alegria de viver.
O outro sintoma patológico da atualidade é o vazio existencial.3 Um tema que vem
sendo apontado há mais tempo, principalmente por Viktor Franckl, nos seus escritos dos anos
1950 e 1960. Hoje, com o tipo de sociedade cada vez mais centrada no Eu e com o
esvaziamento da alteridade e das relações interpessoais já assinaladas anteriormente, o vazio
aparece como uma patologia que espelha a confrontação do sujeito com o real e consigo
mesmo, mostrando a falta de perspectiva de vida. Fim, fracasso, derrota, mal-estar são
conceitos que se usam para exprimir a falta de perspectiva diante da existência.
A sociedade atual nos coloca tantas tarefas que nos esquecemos de olhar para dentro
de nós mesmos e de nos perguntar o que é o mais importante na vida. Como o sentido
expressa-se na direção que se imprime ao viver algo, assim, colocar sentido nas coisas, em
algo externo a nós, é falsear o problema. Essa atitude de colocar o sentido nas coisas, por
exemplo, no ato de consumir objetos prazerosos, é a proposta da sociedade hipermoderna. É
necessário, porém, desvelar a orientação que sustém os atos concretos. A perda de sentido
manifesta a deficiência entre a ideia de direção, que sustenta o ato, e a realização do próprio
ato. A ausência de rumo que dê significado ao ato é a perda do sentido.
Em nenhum momento, nesta parte final do trabalho, pretendíamos esgotar as formas
patológicas do homem atual. Sabemos que nos limitamos a apontar algumas, que muitas
vezes não são nem as mais significativas na visão de outros terapeutas. Todavia, nossa
intenção é que cada um na sua clínica esteja aberto a refletir sobre os males que atingem o ser
humano hoje.
Bibliografia
GIOVANETTI, José Paulo. Os desafios do terapeuta existencial hoje, in: Camon (org.) A
prática da psicoterapia. São Paulo: Editora Pioneira, 1999.
3
Remeto o leitor a outro artigo que publiquei, intitulado “Pós-modernidade e vazio existencial”, no qual destaco
os componentes antropológico e social do vazio, in: JOSGRILBERG, Rui e outros (Orgs.), Existência e Saúde.
São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2002. p. 94-100.
LIPOVETSKY, Gilles. Les Temps Hypermodernes. Paris: Bernard Grasset, 2004.
___________. L’empire de l’éphèmere. La mode et son destin dans les sociétés modernes.
Paris: Editions Gallimard, 1987.
___________. L’ére du vide. Essais sur l’indiviualisme contemporain. Paris, Gallimard, 1983.
MORAIS, Regis. Stress existencial e sentido de vida. São Paulo: Edições Loyola, 1997.
ROJAS, Enrique. O homem moderno. A luta contra o vazio. São Paulo, Editora Mandarim,
1996.