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Crítica: Exit

Through the Gift


Shop
Documentário (?) de Banksy expõe a arte
(?) na atualidade


Exit Through the Gift Shop: A Banksy Film é um
dos mais fascinantes filmes sobre arte já realizados.
O documentário, dirigido pelo elusivo artista de
rua Banksy (aquele, da introdução polêmica dos
Simpsons), narra a surpreendente história,
supostamente real, de Thierry Guetta,
um videomaker francês vivendo em Los Angeles que é
convidado a registrar os expoentes da street artcom o
intuito de realizar um filme sobre eles. "A street art,
diferente de pinturas a óleo sobre tela ou outras obras
feitas para durar, tem vida curta. Precisávamos de
alguém que soubesse usar uma câmera para
documentá-la", comenta Banksy no vídeo.
EXIT THROUGH THE GIFT SHOP

Banksy
EXIT THROUGH THE GIFT SHOP
Porém, depois de acompanhar Banksy e outros artistas
ao longo de meses, Guetta, cujos filmes são
inassistíveis, decidiu tornar-se ele próprio um street
artist. De registrador ele passa a ser o registro.
Acompanhar o processo "criativo" de Guetta, que
assume a alcunha Mr. Brainwash, é uma mistura de
fascínio e ojeriza, um acidente automobilístico em
stêncil. O emergente artista enche um galpão com telas
e gravuras, monta suas próprias - e pífias - reinvenções
da Pop Art, cria reproduções "exclusivas" de sua obra
dirigindo um velocípede enquanto besunta tinta sobre
elas e espalha rios de spray por qualquer superfície
sem conceito ou direcionamento. O ex-
videomaker claramente não sabe o que está fazendo,
tanto que contrata outras pessoas, talentosos designers
e ilustradores, para realizar sua exposição sob sua
alucinada direção.
A segunda metade da produção acompanha os
preparativos para a grande exposição de Mr. Brainwash,
alardeada pela mídia depois que uma citação fora de
contexto do próprio Bansky é empregada na divulgação.
E o risível artista subitamente toma de assalto o mundo
das artes, gerando milhões...
Especula-se que a história toda seja uma grande farsa
criada por Banksy. É tudo perfeito demais, engraçado
demais. Guetta se acidenta, bate a cabeça em postes,
derruba um latão de tinta cor-de-rosa dentro de seu
carro... é um Buster Keaton das artes. A própria
natureza contestadora do trabalho de Banksy, que
critica de maneira bem-humorada a sociedade e o
governo, seria indício dessa peça que ele, agora como
cineasta, teria pregado no mundo das artes. O
personagem Mr. Brainwash seria a maior de todas as
obras do inglês, portanto, e Exit Through the Gift Shop,
seu Bruxa de Blair.
Mas independente da veracidade ou não do
documentário (?), o filme cumpre o que se propõe:
inicia, com um atônito sorriso, um debate sobre a arte
nos dias atuais.

AIA PELA LOJA DE


PRESENTES
ARTE DE RUA TAMBÉM MORRE POR
PABLO SÁNCHEZ BLASCO

Quem é Banksy? Qual é o nome real do artista de rua


mais valorizado do mundo? É uma oficina de
colaboradores ou um único sujeito criativo? Este é o
enigma que todos os espectadores espiaram em Exit
através da loja de presentes (2010), o primeiro filme do
artista britânico, que ele queria encontrar satisfeito
entre suas imagens. E foi conveniente esclarecê-lo em
breve.
Então, um Banksy sem voz ou rosto, apesar de roupas
jovens e grafitadas; isto é, o razoável Banksy para
aqueles espectadores, senta-se diante da câmera e
nos responde com uma pergunta: Quem é Thierry
Guetta? Acontece que este Banksy - este avatar ou
imagem corporativa do artista - não teria feito um filme
sobre seu trabalho. O documentário seria um filme
sobre um documentarista que tenta fazer um filme
sobre ele. Banksy adota a perspectiva de Guetta e
Guetta fala de Banksy como um terceiro
ausente. Nossas perguntas descobrem,
inesperadamente, um impedimento feliz, uma barreira
de incerteza que precede o original e que deve ser
resolvida primeiro. No entanto, acontece que somos
incapazes, que nos faltam os dados necessários para
isso. A história impõe sua realidade contingente,
virtual e autônoma: chame-a de mockumentary ou just
desconfiança. Mas o conceito de credibilidade foi
suspenso e os dilemas de autoria, cópia, reflexão,
repetição ou originalidade são erguidos, desde então,
nos conceitos estruturais do filme.
Quem é Thierry Guetta? É verdade o que é dito sobre
ele? É um personagem fictício, é real ou é o próprio
Banksy? Se nos ativermos ao filme como o único
elemento de atenção, é muito provável que Thierry
Guetta seja, de fato, quem ele diz ser. 1
Mas, por sua vez, é indiscutível que Guetta está agindo
como um personagem fictício que é interpretado por
nós. Dois dados relevantes são fornecidos em sua
apresentação. Como proprietário de uma loja de
roupas, Guetta aponta certos itens com uma nota
original e os chama de "design", para vendê-los, a um
preço mais alto. Em sua tarefa de operador amador, o
personagem sente a obsessão de registrar, de duplicar
a existência comum, numa mimesis direta do
natural.Guetta, ou seu personagem, é, portanto, um ser
sem talento que caricatural o trabalho artístico. É um
alter ego delirante, um substituto paródico de Banksy,
oposto e complementar ao mesmo tempo, já que
enquanto alguém esconde sua vida privada com
ciúmes, o outro nos ensina sem corar todos os
seus. No final do dia, formas iguais de ocultação para a
identidade de um artista: as mesmas formas de
direcionar o olhar do autor para o objeto e seu
significado.

Na primeira parte de Exit Through the Gift Shop ,


Banksy / Guetta nos conta o início da arte de rua como
um movimento impulsivo, jovem e criativo para
transformar a rua em "uma galeria de arte". Artistas
como Space Invader ou Monsieur André se apropriaram
do espaço público para integrar ícones e imagens
engenhosas onde havia apenas o funcionalismo
urbano. Com eles, a arte rompe os limites marcados
pelo contexto e, sobretudo, pela sua função
econômica, comunicativa ou autoral. É uma arte para a
arte que desativa a percepção cinzenta do cidadão
como destinatário / vítima de imagens. Efígies
ambíguas como a OBEY de Shepard Fairey - a
consagração global do fenômeno - alcançam do nada
um significado e uma importância baseados na
amplitude de sua difusão internacional. Publicidade
em massa sem qualquer produto. Trabalhe sem um
autor. Evento sem fala, destinado a provocar reflexões
sobre a maré de mensagens que estamos nos
rebelando todos os dias ao nosso redor. A quantidade e
a elaboração do hype , segundo o que Shepard Fairey
diz depois, foram então definidas como conceitos-
chave do objeto artístico.
Sempre próximo deles, Thierry Guetta assume o papel
de um observador impertinente que, apesar de tudo,
registra uma arte destinada a ser transitória em
relação ao tempo - atenção, por outro lado, à sua
semelhança com as gravações de Jonas Mekas. Guetta
registra os artistas de forma compulsiva, "de uma vida
para outra", sem outra finalidade que não seja o
próprio ato criativo, como um reflexo distorcido da
entusiasmada arte de rua dos anos noventa. Ele está
sempre no lugar certo - como nos dizem várias vezes -
para se apropriar das idéias dos outros e para ser uma
testemunha privilegiada de um momento de ebulição
criativa. É assim que o francês encontra o misterioso
artista Banksy, personagem que foca a segunda
metade do documentário. É agora o próximo passo no
desenvolvimento da arte de rua: a construção de um
discurso pessoal, que implica uma personalidade
criativa definida, que implica a criação de marca e
produção regular. Banksy introduz a street art na
galeria, constrói uma galeria em imitação da rua, com
técnicas de promoção e individualização muito
trabalhadas. Nada será o mesmo, desde então, para
esses criadores.

Esta segunda parte do filme fornece a chave para


entender ou analisar o paradoxo proposto pelo
diretor. Enquanto Banksy, definitivamente, não é
Guetta, ele fala sobre o britânico com uma admiração
que só podemos tomar como irônico. "Foi mágico que
essa pessoa me deixou gravar" ou "Não só foi incrível,
foi gente boa, era humana", são alguns elogios que
Banksy, como diretor, aborda a si mesmo, como
intermediário, através do personagem. A unanimidade
suspeita sobre sua pessoa - anônima, icônica - se
transforma em uma paródia grotesca da fama
alcançada por seu nome. Em uma demonstração de
autocrítica sutil, Banksy revela os mecanismos que
levaram ao sucesso de seu primeiro show: não tinha
sido seu trabalho, mas uma "combinação mágica de
controvérsia, celebridades e um elefante pintado". Das
paredes de uma galeria, suas obras não se comunicam:
elas são eclipsadas por sua própria fama. De um dia
para o outro, a expiração da arte de rua tornou-se um
produto, objeto de especulação e acumulação pelas
classes altas. Sua mensagem subversiva foi
transformada em um fetiche de propriedade e prazer
para aqueles que, alguns anos antes, declararam que
era ilegal nas ruas. Em um novo paralelo grotesco,
nosso personagem então recolhe suas fitas -
anárquicas, criativas, naturais - e as reordena na forma
de um filme. O resultado será um trabalho
incompreensível, vazio e tão ausente de significado
quanto aquele conceito de street art baseado nas leis
do mercado capitalista: um monstro sem cabeça.
O último ato de saída através da loja de presentes é
composto pelas conseqüências diretas desse
fenômeno. Depois de descrever os primórdios do
movimento - um registro amador devido a um impulso
natural - e continuar com a conversão deles em um
produto - a montagem e a estréia de uma peça criada
de maneira aleatória -, esta terceira parte narra a
decadência e destruição de seus produtos. valores,
uma vez que seu valor específico é marcado pela fama
e pelo desempenho econômico. Thierry Guetta, com
instruções do próprio Banksy, para de gravar, afasta a
câmera e se torna o Sr. Brainwash, um artista
improvisado que simboliza a corrupção do
movimento. Usando algumas técnicas já exploradas
por Fairey ou Banksy - repetição, humor subversivo,
ícones pop, controvérsia, fenômeno viral - com o
sistema de produção capitalista - criação de uma
marca, trabalho em cadeia, contratação de
funcionários, produção em massa, espetacularização,
exploração de fama-, a exposição "Life is beautiful" do
Sr. Brainwash alcança um sucesso sem precedentes
com vendas de mais de um milhão de dólares. Suas
obras não dizem nada, são vazios discursivos, laço
parasita de outras obras: comercialidade estrita. E, no
entanto, sua vitória é indiscutível, iniciando assim a
derrota da street art com uma moral ácida: "A arte é
uma piada".

De fato, a arte mercantil, devido à inconsistência do


mercado de arte, é uma piada. Da mesma forma que o
francês Chris Marker e Alain Resnais concluíram, em
1953, suas estátuas magistrais também morrem ( Les
statues meurent aussi , 1953). Essa breve história da
arte africana analisou a evolução das figuras de um
significado ritual, sagrado para suas comunidades,
para uma moderna reprodução em cadeia para o
mercado externo. As obras de arte, quando
comercializadas, morrem; eles morrem quando perdem
sua função original, quando acessam a galeria. É a
consequência de uma superestrutura econômica que
transforma a originalidade e a diferença em um desejo
de propriedade suscetível ao consumo: um modelo de
atacado reprodutível. Não é uma ideia nova.

O IMPACTO DE UMA PROPOSTA COMO A EXIT NA LOJA


DE PRESENTES ESTÁ NA REPERCUSSÃO DE SUA REAL
IMPLEMENTAÇÃO, QUE CONCENTRA O ÚLTIMO TERÇO
DO FILME.

Em vez de rebelar sua identidade secreta, Banksy


constrói um artefato que expressa seu desprezo pela
concepção tradicional do artista. Seu sucesso é, como
prova, irracional. Se ele fosse Thierry Guetta, por
exemplo, e isso teria sido a confissão de sua
existência, essa notícia serviria apenas como um
obstáculo para a compreensão do significado de seu
trabalho.
Pelo contrário, o alter ego desse ladino francês
promove uma dialética corrosiva entre o fluxo do
movimento de arte de rua e sua cópia e manipulação
do exterior.Os dois primeiros atos são narrados no
passado e usam o personagem como um elo de sorte,
provavelmente real, mas sempre suspeito, ou um
espelho distorcido ou um recurso de automação de
gênero como uma entidade confiável. É na terceira
parte onde a narrativa chega ao presente e conclui a
hipótese apresentada: a promoção de um artista
artificial que destrói, através de seu sucesso, aqueles
remanescentes de identidade ou transcendência que
nos restaram do artista. Na verdade, o documentário
recorre a uma ruptura narrativa nesta última parte. Se
o personagem / documentalista deixa de registrar o
mundo para se tornar um artista, é agora o artista /
diretor que retoma sua tarefa em uma inversão de
papéis. Banksy seria, então, o responsável final pelo
documentário, seu estilo, sua estrutura. E,
consequentemente, é necessário afirmar que, como
peça cinematográfica, a saída pela loja de presentes é
uma proposta comedida. O trabalho nos leva às
entranhas da arte de rua mas sem florescer em uma
estética própria, audiovisual, que a identifica. Seu
método tem sido o de apropriar-se de uma fórmula
televisiva - aquela voz satírica de Rhys Ifans mas, em
última análise, também funcional - para questionar a
solidez da identidade criativa, personalizando os
arquétipos do gênero à vontade. Assim como os vídeos
de Thierry Guetta, o filme é para Banksy uma
ferramenta para registrar sua atividade, assim como
provar os pôsteres finais, informativos,
complementares, que a piada começou a se
desenrolar.
Banksy zomba do mercado de
artes e da crítica com ‘Exit
Trough The Gift Shop’
Documentário expõe o limite tênue entre qualidade e embuste e
celebra a arte de rua
Por Rodrigo Levino

access_time30 out 2010, 14h02

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Cartaz Banksy (VEJA.com/VEJA)

Banksy zomba do mercado, da crítica e expõe a busca


desenfreada pela novidade, onde os critérios se tornam
elásticos, tanto quanto o valor das peças.

‘De assalto’ é uma boa expressão para resumir o modo como o


britânico Banksy, 35, compõe/expõe o seu trabalho. Um dos mais
produtivos artistas contemporâneos, cuja identidade é
desconhecida, alçou a arte de rua ao patamar das concorridas
galerias de artes americanas e europeias com talento, provocação
política, senso de humor apurado e acima de tudo a capacidade de
usar a mídia ao seu favor.
Usando técnicas de stencil, pichação e grafite nas suas
intervenções, ele situa a própria arte de desconstrução
ideologizada de ícones pop nalgum ponto entre Andy Warhol e a
guerrilha. Uma paisagem fictícia no muro que separa Israel e a
Palestina e a estátua de um prisioneiro da base militar de
Guantánamo enforcado no meio de um parque da Disney são
alguns exemplos dos limites que ele já ultrapassou.
Protestando com uma mão e arrecadando milhares de dólares com
a venda de suas obras com a outra, Banksy se tornou um coringa
moderno. Nada escapa ao seu olhar crítico, da mesma forma que é
impossível se manter desatento ao trabalho que ele já realizou em
quase vinte países, em quatro continentes.

Com o documentário Exit Trough The Gift Shop (algo como Saia
Pela Loja de Souvenirs), Banksy dá um passo adiante ao manter a
aura em torno de sua misteriosa identidade, zombar de artistas
contemporâneos, do tênue limite entre o que é arte e o que é
embuste, e demonstrar sem cerimônia o quão manipulável são a
crítica e o mercado. É, como de costume, uma jogada de mestre.
A história de Exit começa com o videomaker francês Thierry
Guetta que, radicado em Los Angeles, é viciado em filmar
absolutamente tudo que se passa ao seu redor. Por intermédio de
um primo, Guetta se infiltra no mundo dos artistas de rua e filmá-
los enquanto trabalham passa a ser a sua grande obsessão.
Por um golpe desses que alguns creditam ao destino, mas com
Banksy nunca se sabe tratar-se da verdade, em viagem de trabalho
ao Estados Unidos ele precisou de ajuda logística e foi
apresentado a Guetta, conhecedor dos melhores muros, becos e
ruelas para serem grafitados. Deu-se a amizade e a idéia não
muito lapidada de fazer um documentário sobre o britânico.

É pelas mãos de Banksy, um exímio manipulador, que o jogo vira.


Guetta deixa de ser o diretor e se torna personagem. Estimulado,
dedica-se a copiar a arte que vem acompanhando há aos nas ruas
de Los Angeles. Do dia para a noite, hipotecando a própria casa e
tomando empréstimos, Guetta abre um estúdio, contrata
assistentes – uma crítica velada do britânico a artistas como
Damien Hirst, que cercado de cupinchas sequer põem a mão na
massa – e começa a pôr de pé uma megaexposição
completamente desordenada, sem rumo nem identidade.
A sandice toma uma proporção assustadora quando dois e-mails,
um do próprio Banksy e outro de Shepard Fairey, que ficou
conhecido pelo retrato estilizado que foi mote da campanha de
Barack Obama à presidência dos Estados Unidos, em 2008,
chancelam o trabalho de Guetta.
Urge encerrar o relato a essa altura. Operando sua sagacidade na
falta de limites, Banksy zomba do mercado, da crítica, de Guetta,
agora conhecido pelo codinome de Mr. Brainwash (Sr. Lavagem
Cerebral) e expõe a busca desenfreada pela novidade, onde os
critérios se tornam elásticos, tanto quanto o valor das peças.

Exit é um sopro cínico no castelo de cartas do mundo das artes.


Tudo vem abaixo e, como não poderia deixar de ser, é mais um
instrumento usado por Banksy para valorizar o próprio trabalho,
confundindo verdades e armações. Coisa de gênio, por mérito e
muito por estar cercado de idiotas, os quais ele aponta um a um.
Exit Through the Gift Shop
Exit Through the Gift Shop - 2010. Dirigido por Banksy. Música Original de Roni
Size. Produzido por Holly Cushing, Jaimie D'Cruz e James Gay-Rees. Paranoid
Pictures / USA | UK.

Exit Through the Gift Shop estreou em 2010 no Festival


de Sundance, o maior do cinema independente americano, desde
então ele tem causado controvérsias entre críticos, cinéfilos e
apreciadores da street art, tema sobre o qual ele discorre. Em 2011
ele foi, por ironia do destino, indicado ao Oscar de Melhor
Documentário, prêmio que perdeu para Trabalho Interno, a
indicação recebida foi irônica porque uma das maiores polêmicas
em torno dele se deve ao fato de que não se sabe ao certo se ele
pode ou não ser considerado um documentário - abordarei isso
mais adiante. Antes mesmo de sua estreia ele já estava causando
frisson, afinal o realizador por trás dele era ninguém menos que
Banksy, o grafiteiro inglês que tem sacudido os circuítos
internacionais de arte com suas obras politizadas e sarcásticas, que
estão espalhadas por diversas partes do mundo.

Não se sabe ao certo qual a verdadeira identidade de Banksy, nem


se ele seria de fato uma única pessoa, ou um grupo agindo sob
um pseudônimo e boa parte do alarde que se tem feito em torna da
obra dele é motivado pelas contradições entre a postura anárquica
que ele adota e aquilo no que sua produção tem se transformado;
de um contraventor ele passou a um renomado artista, cujas obras
são vendidas a preços milionários em algumas das galerias mais
importantes do mundo. De alguma forma tais contradições se
refletem no filme dirigido por ele, talvez mais que isso até, há a
possibilidade de que o filme seja tão somente sobre elas... Ao
analisarmos Exit Through the Gift Shop perceberemos que ele
funciona como uma profunda reflexão sobre o consumo e a criação
artística no mundo contemporâneo.

A sequência de abertura do filme é simplesmente maravilhosa, ao


som da canção Tonight The Streets Are Ours de Richard Hawley,
ela mostra diversos grafiteiros em ação na noite, o resultado de
suas intervenções no ambiente urbano e a repressão policial à elas.
Neste primeiro momento entramos em contato com aquilo que seria
a essência da street art: contestação e contravenção. Em seu
decorrer o suposto documentário mostra como estes elementos são
absolvidos pela indústria cultural se tornando desta forma
inofensivos e rentáveis. A agitação artística vinda das ruas, que
chega a ser apontada em determinado momento como o "maior
movimento contra-cultural desde o punk", vai pouco a pouco sendo
superficializada e incorporada pela cultura pop, que cria a partir de
então mitos e ídolos em torno dela. O próprio Banksy seria
transformado em um mito e em seguida em um ídolo, contudo, para
a decepção de alguns, a personalidade focada pelo filme não é ele,
mas um francês radicado em Los Angeles chamado Thierry Guetta.

Após a introdução, Banksy aparece (com o rosto oculto, lógico) para


apresentar o assunto que seu documentário abordará: A trajetória
do francês aficionado pela street art. Guetta tinha se
tornado obcecado por registrar com uma câmera cada momento de
sua vida, tal compulsão começara depois que sofreu um grande
trauma, que lhe trouxe a compreensão do quanto as sensações que
vivemos são efêmeras. Ele entra em contato com a arte de rua pela
primeira vez quando viaja à França para passar uma temporada
com um primo, o respeitado grafiteiro Space Invader. Num
rompante que beira à insanidade ele se torna tão obcecado pela
contra-cultura quanto pelas suas filmagens do cotidiano e não
demora muito e ele mescla as suas duas paixões, á princípio ele
começa a sair junto com o primo para filmar suas incursões pela
noite e logo em seguida ele passa a acompanhar também outros
grafiteiros, ele convence a todos que está produzindo um
documentário...
Os caminhos de Thierry Guetta e Banksy acabam se cruzando e
surge uma relação de amizade e respeito mútuo entre eles, o
francês passa a acompanhar o grafiteiro e este aposta suas fichas
no documentário que ele estava produzindo. Ao descobrir que toda
a proposta do novo companheiro não passava de uma grande farsa,
Banksy decide tomar as rédias da produção do filme e colocá-lo
para escanteio. Para afastá-lo da ideia de continuar trabalhando no
documentário, Banksy o convence a começar a produzir sua própria
arte. Mesmo sem ter talento, Guetta, em mais um rompante de
insanidade, adota o codinome de Mr Brainwash, vende tudo o que
tem e investe em um trabalho megalomaníaco que tinha tudo para
dar errado, mas que incrivelmente não dá. Da noite para o dia ele
se torna o mais novo ídolo forjado pela indústria cultural. Sua obra
não tem qualquer essência e não passa de uma remontagem de
formulas bem sucedidas já usadas por artistas renomados
como Andy Wharol, ele se torna então o maior símbolo de algo que
sequer existe...

A grande questão envolta nesta história é: Thierry Guetta é de fato


real, ou só um personagem criado por Banksy, ou ainda, quem sabe
seja ele o próprio Banksy? O filme deixa durante seu
desenvolvimento diversos indícios que são capazes de alimentar a
teoria de que Exit Through the Gift Shop se trata na verdade de
um pseudo-documentário. Guetta, por exemplo, nos parece caricato
demais para ser real e suas atitudes são em diversos momentos
absurdas demais de tão improváveis que são. Nas cenas que
mostram trechos das filmagens que ele fez de sua família, nas
quais aparecem a esposa e os filhos dele, tem-se a impressão de
que são imagens previamente preparadas para parecem naturais,
mas que não conseguem sê-lo. Em outros momentos, a própria
reflexão proposta pelo filme nos induz a questionar sua
veracidade... Afinal, estaríamos nós nos comportando em relação
ao filme, tal como os fãs de Guetta diante de suas pseudo obras de
arte? Pois é, é algo a se pensar...

Se este for de fato um pseudo-documentário, ele será sem dúvida a


maior e mais brilhante de todas as obras de Banky, mas
independente disso, os questionamentos levantados por ele em
relação a produção artística são totalmente pertinentes, o fenômeno
que vemos acontecer na vida de Thierry Guetta é o mesmo que já
estamos cansados de testemunhar no cinema, na música, na
literatura e em tantas outras formas de expressão, que têm sido
reduzidas à meros produtos, fabricados em escala industrial para
satisfazer a um público ávido por entretenimento empobrecido de
significações e de efeito passageiro.

Em uma das últimas cenas do filme Guetta diz: "Espere até o fim da
vida e verão se eu sou uma lebre ou uma tartaruga"; esta citação
pode parecer desconexa, mas talvez ela tenha muito a dizer sobre
Banksy e seu filme... Exit Through the Gift Shop é uma obra de
difícil conceituação, daquelas que parecem escapar de qualquer
rótulo pre-existente, isto potencializa ainda mais sua condição de
obra de arte e sua capacidade de nos provocar as mais diversas
reações... é um filme indispensável para qualquer um que se propor
a pensar a produção artística como fato social. Ultra recomendado!

Baudelaire e a teoria da
arte moderna
Posted onMarço 16, 2015 by Carlos Lourenço Bobone
Em 1860 os burgueses de Paris estavam empanturrados de
literatura moderna, de filosofia moderna e de política
moderna. Os poetas e os oradores tinham-nos convencido,
à custa de muita e repetida eloquência, da superioridade
intelectual e moral daquele que aceita sem pestanejar
todas as formas de viver, pensar ou governar rotuladas
com o nome de modernas. À sombra deste conceito tinha-
se criado um sistema de pronto-a-pensar suficientemente
cómodo, nas suas vastas ramificações, para conferir aos
consumidores a faculdade de formarem opiniões sobre
matérias que nunca tinham estudado, fossem elas do foro
da ciência, dos costumes, das leis ou da moral.

Se havia um domínio do espírito que não se mostrava


particularmente sensível ao tema da modernidade era a
pintura, e esse lapso causava escândalo. Os pintores
exercitavam-se copiando modelos antigos, escolhiam temas
históricos para as grandes composições pictóricas e
abrilhantavam os seus retratos vestindo as personagens
retratadas com trajes de tempos passados.
Não era isso o que a idade do progresso esperava deles.

Tal como a filosofia, a literatura e a política se conjuravam


para varrer do mundo intelectual o prestígio de tudo o que
cheirasse a antigo, também se esperava que a arte viesse
dar o seu contributo para escorraçar dos salões civilizados
os mais pequenos vestígios dos séculos passados. O
ambiente cultural pedia uma teoria da arte moderna, antes
mesmo do nascimento desta. Uma teoria que exigisse a
ruptura com os modelos antigos e afirmasse a pujante
personalidade do mundo moderno, em contraste com as
moribundas formas de vida herdadas de gerações
anteriores.

Foi em Baudelaire, poeta e crítico de arte, que a nova teoria


estética encontrou o seu profeta, o seu paladino, capaz de
proclamar aos pintores, em inspirada prosa, o dever de
serem modernos. Não era o advogado ideal das ideias
modernas, pois nem se deixava impressionar com a
vertigem das inovações técnicas nem acreditava no
movimento ascensional do progresso, esse poeta para
quem “a verdadeira civilização não está no gás, nem no
vapor, nem nas mesas volantes, está na diminuição dos
vestígios do pecado original”. Foi ele, porém, o defensor
que os caprichos da providência destinaram a pleitear pelos
novos destinos da pintura. Arauto antes do tempo, não
pôde prever os caminhos que a arte moderna viria a tomar.
Nem anteviu os seus mergulhos na busca da forma pura
nem as suas experiências no vasto domínio da abstracção.

O pintor moderno, ou melhor, o “pintor da vida moderna” é,


segundo Baudelaire, aquele que escolhe para temas das
suas obras as cenas e os costumes característicos do seu
tempo. A função do pintor moderno é sobretudo a de
retratista, e a sua missão consiste em dar a conhecer aos
vindouros a feição peculiar da época em que viveu.

Porquê esta obrigação? É aqui que se encontra a tese


essencial de Baudelaire. Segundo ele cada época tem um
carácter particular, um espírito e uma sensibilidade que se
infundem profundamente em todas as formas de vida, não
apenas nos trajes e nos utensílios do dia a dia, mas até nos
gestos, no porte das pessoas e nas feições de cada um.
Cada época tem o seu porte, o seu gesto, o seu sorriso.

Para construir a sua teoria da modernidade, Baudelaire dá-


lhe um forte cunho metafísico. Visitando uma colecção de
gravuras, depara com as exuberantes modas do tempo da
revolução e do consulado, e onde as pessoas irreflectidas
encontram motivo para rir dos trajes absurdos daquela
época, o poeta das “Flores do Mal” encontra o encanto de
um documento histórico, que diz muito sobre a moral e o
sentido estético daquela época. Reflectindo sobre o poder
evocativo daquelas imagens, conclui que “a ideia que o
homem tem do belo imprime-se em toda a sua postura,
amolda ou apruma o seu vestuário, arredonda ou alinha o
seu gesto, e com o tempo chega a penetrar subtilmente os
traços da sua fisionomia”. E se nesta descrição já se
encontra uma grande vontade de conferir a omnipotência
transformadora ao “espírito do tempo”, o corolário que ele
retira de tais pressupostos é verdadeiramente um acto de
fé no poder do espírito sobre a matéria: “o homem acaba
por se assemelhar àquilo que gostaria de ser”.

Embalado na miragem das transformações que o tempo


opera nos modos, nos gestos e nos olhares, Baudelaire
chega mais longe, e numa autêntica profissão de fé
evolucionista, estende ao mundo animal os preceitos que
consolidara para a adaptação dos homens ao seu tempo.
Mesmo quando pintam cavalos e cães, os pintores devem
inspirar-se em modelos vivos, e não em imagens que
encontram nos mestres antigos. Também os animais
exprimem o espírito do seu tempo? Fica a pairar no texto a
sombra dessa hipótese, sugerindo-nos que um cão do
século XVI apresenta feições diferentes das de um cão do
século XIX, o que nos dá uma poderosa imagem da força
transformadora do tempo.

Apesar desta concepção grandiosa das transformações do


mundo físico e social, Baudelaire não é um verdadeiro
devoto da modernidade, porque lhe falta a convicção de
que os novos tempos sejam superiores aos antigos. Embora
critique aqueles amantes de arte que vão ao museu do
Louvre e só procuram as telas dos velhos mestres, Ticiano
ou Rafael, descurando tudo o resto, tal como critica os
leitores que se contentam com a leitura de Racine e
Bossuet, não deixa de reconhecer que estes vão directos ao
melhor que a arte produziu. Mas censura-os porque
entende que a arte não se faz só de obras-primas, e que a
literatura não se compõe apenas dos seus momentos mais
altos. Em toda a obra de arte há uma parte que pertence ao
mundo da beleza eterna, aos padrões estéticos imortais, e
outra que se prende ao mundo transitório das impressões
momentâneas, daquilo que passa e muda constantemente.
Estas duas partes convivem dentro da obra de arte como a
alma e o corpo. A parte transitória é a que constitui a
modernidade de uma obra. Todas as épocas têm a sua
modernidade, e embora esta constitua a parcela menos
duradoura da obra de arte, é aí que se encontra a sua
autenticidade. Baudelaire repete o seu mote: cada época
tem o seu porte, o seu gesto, o seu sorriso. Por isso, os
pintores que se obstinam em pintar cenas de outros tempos
produzem obras incompletas, em que apenas está
trabalhado o lado eterno da arte, faltando-lhe o carácter
genuíno que é dado pela feição própria da geração a que
pertence o pintor. Quando uma geração de artistas, em vez
de captar as figuras da sua época, se perde na
reconstituição de cenas ou trajes de outros tempos, deixa
cair no esquecimento a fisionomia própria de um período,
perdendo-se para a posteridade o acesso àquilo que
constituiu a imagem essencial daquele tempo.

O apreciador de pintura deveria pois, daqui para a frente,


procurar nas telas a autenticidade em lugar do génio, e o
espírito do tempo em lugar dos cânones artísticos imortais.

Um leitor de Platão pode estranhar que, sendo a arte um


conjunto formado pelo elemento eterno e pelo transitório,
se queira dar a primazia ao que é provisório e degradável.
Mas um conhecedor da tradição aristotélico-tomista
reconhecerá alguma legitimidade à metáfora da alma e do
corpo e à ideia de que a alma só ganha vida quando se
encontra com o seu invólucro mortal.
Como tantas vezes acontece aos profetas da mudança,
Baudelaire não foi particularmente sensível aos “sinais dos
tempos”. Nos salões frequentados pela burguesia bem-
pensante repetia-se esta previsão: a fotografia há de
substituir a pintura. Tão propalada fora já a profecia, que
esta ficou incluída no “Dicionário dos Lugares-Comuns” de
Flaubert. Mas Baudelaire era dos poucos que ainda previam
a futura subsistência da pintura, com um destacado lugar
para a sua função retratista. Quis conceber um mundo
moderno à imagem das suas concepções estéticas, e
transferir para o domínio da arte os preceitos morais do
mundo político-filosófico, sobretudo a obrigação de viver de
acordo com os “novos tempos”, mesmo que estes não
fossem particularmente brilhantes.

O esforço de Baudelaire para construir uma teoria da arte


moderna fica marcado por uma eloquente e imaginativa
justificação estética daquilo que já se tornara o preceito
corrente noutros domínios do espírito. Tal como se dava por
adquirido o dever intelectual e moral de adesão aos tempos
modernos, propunha-se agora uma justificação estética
desse dever.

Os artistas das gerações posteriores agradeceram a


Baudelaire o seu patrocínio, mas não acolheram os seus
ditames sobre o que deveria ser a arte moderna. A função
retratista da pintura viria a ser, em grande parte, absorvida
pela arte fotográfica, e os pintores do século seguinte
seguiram por caminhos de extrema variedade pictórica,
afastando-se cada vez mais da missão de captar o porte,
gesto e o sorriso da sua época. Se houve uma mensagem
que transitou para as várias escolas de arte moderna foi a
da suprema obrigação de o artista exprimir, seja de que
forma for, o espírito dos tempos modernos.
Charles Baudelaire: o
esgrimista da modernidade

Maria João CantinhoFollow

Sep 6, 2017

Charles Baudelaire (1821–1867), por Etenne Carjat, em 1863.

De que serve falar de progresso a um


mundo que se afunda numa rigidez de
morte? A experiência de um mundo que
estava a entrar nesse estado de rigidez
encontrou-a Baudelaire fixada por Poe
com uma força incomparável. Isto
transformou Poe numa referência
insubstituível para ele; aquele descrevia o
mundo no qual a escrita e a vida de
Baudelaire encontravam a sua razão de
ser. Veja-se também a cabeça de Medusa
em Nietzsche.
Walter Benjamin, A Modernidade, ed.
Assírio e Alvim, Lisboa, 2006, p. 179.

C omemoram-se os 150 anos da morte daquele que foi o

maior poeta da modernidade ou que, pelo menos, a


inaugurou, em todas as circunstâncias paradoxais que lhe
serviram de berço. Se foi Rimbaud que disse “Il faut être
absolumment moderne”, numa proposta lançada à sua mãe,
a propósito da sua obra Une Saison en enfer, ser moderno
corresponde, no entanto, ao gesto poético de Baudelaire,
esse génio maldito que ousou desalinhar o sossego da poesia
lírica, da estética e da crítica do seu século. Uma decisão que
se ancora, sobretudo, no seu primeiro estudo das relações
entre a arte e a cultura moderna, de 1863. Fala-se aqui de
um ensaio que foi publicado em três números do diário Le
Figaro, sob o título elucidativo O Pintor da Vida
Moderna. É aí que o termo “modernité” é usado pela
primeira vez, numa intensa ligação com a experiência da
vida urbana. Nesse texto incontornável, Baudelaire define
um conjunto de reflexões que norteiam toda a sua
experiência, enquanto crítico e enquanto poeta. E a
modernidade, tema que se deve ter afigurado a Baudelaire
mais como uma intuição preciosa e emergente do que como
certeza, ganha corpo e formas peculiares. Para ele, a
modernidade é uma experiência estética e indissociável das
grandes metrópoles, pulsa na sua vida frenética, como
também o havia compreendido Edgar Allan Poe, na sua
obra O Homem das Multidões.

O “homem das multidões”, o artista ou o poeta, o verdadeiro


criador, é um tipo muito próximo do dandy ou do
ocioso flâneur, embora não possa ser confundido com eles.
O poeta é o novo porta-voz, se assim pudermos chamar-lhe,
da experiência citadina, arrastada pela vertigem do efémero
e do novo, mas também consciente da morte das formas
anteriores da experiência. Neste sentido, o poeta moderno — 
como no caso de Baudelaire — não lamenta a decadência das
formas antigas, a morte da aura e da familiaridade, mas
emerge como o novo herói, que descobre uma beleza
emergente (a beleza do efémero e do novo).

Passage Choiseul em Paris, em 1829

A experiência poética de Baudelaire transforma, pela


primeira vez, Paris em objecto de poesia lírica. Porém, esta
Paris de Baudelaire já não é (só) a cidade onde se exalta uma
burguesia abastada e a sua experiência, mas uma cidade que
é atravessada pelas suas figuras decadentes: a prostituta, o
jogador, o trapeiro, o mendigo, entre outras figuras que
exprimem a degradação moral, encarnando a figura do mal,
do inferno da experiência citadina e do tedium vitae, le mal
du siècle.

Expressão máxima e paradoxal dessa decadência é o estado


de “spleen”, o véu que protege o poeta do choque da
experiência e o faz sobreviver à dessacralização da vida
citadina e do ideal (romântico). E é precisamente neste
campo que a tutela de Walter Benjamin ilumina a obra de
Charles Baudelaire, que compreendeu admiravelmente as
formas de que se revestiu a poesia alegórica de Baudelaire e
do seu pensamento “heróico”. Heróico num sentido
nietzschiano, de recusa da ilusão, melhor dizendo, de recusa
das ilusões românticas, de aceitação, também, daquilo que é
a condição do humano, l’ennui e a perda de Deus. É nessa
visão catastrófica “em permanência” que o spleen de
Baudelaire se ergue como barreira contra o pessimismo. O
termo de heroísmo aplicado a Baudelaire não diz senão
respeito a uma conquista ou uma “armadura”, como o
afirma Benjamin[1].

Foi Walter Benjamin quem compreendeu, no Livro das


Passagens, as derradeiras apresentações desse mundo em
queda, em catástrofe, em que a experiência nos aparece
dessacralizada, e se tem acesso a uma visão desencantada,
em que se percebe a ruptura da experiência autêntica[2], das
correspondências originárias e da aura, e a emergência da
experiência do choque. Não é só a vida que é atingida pela
dessacralização, pela perda das relações familiares, pelo
sentimento de pertença e de correspondência do homem
relativamente a tudo (v. poema “Correspondances”), mas
também da própria arte, “mortalmente atingida” pela era da
reprodução técnica, que destrói a unicidade e a aura do
objecto estético e dá início à era da cultura de massas.

A modernidade não diz apenas respeito a uma condição


temporal, mas concentra em si a mais brutal das rupturas na
própria visão sobre a arte. Não é por acaso que a crítica de
Baudelaire à fotografia (os “adoradores de Daguerre”, como
lhes chama, que não sabem senão reproduzir a realidade e
mimetizá-la) e ao seu aparecimento se fazem de forma tão
violenta, em O Pintor da Vida Moderna, especificamente no
texto «Salon de 1859».

A ideia da repetição e da usura mecânica são-lhe


insuportáveis, incompatíveis com a Arte e com a sua
concepção como Ideal. E essas fissuras, que Baudelaire
aceita como inevitáveis na experiência, são inaceitáveis para
ele, pois defende, ainda e paradoxalmente essa concepção da
Arte, mesmo se pressente a despedida da sua época.
Também a sua obra poética vive numa tensão permanente
entre as formas canónicas da poesia (utilizando o verso
alexandrino e o modelo clássico da tradição poética nas suas
estrofes) e uma nova linguagem que emerge da
desconstrução da experiência e da sua perda de sentido, no
mundo moderno e fragmentado, da experiência do choque.

Politicamente, Baudelaire perfilhou, desde muito jovem e


contra o seu padrasto, ideias de um socialismo utópico e
libertário, tendo lutado ao lado dos insurrectos, nas
barricadas de Paris de 1848. Um socialismo revolucionário
que cresceu contra o Antigo Regime e encontrou a sua
máxima expressão nas situações conturbadas que se viviam
em Paris. Daí a sua paixão revolucionária por Blanquis, que
Benjamin frisa amiúde, comparando o abismo de Baudelaire
com o de Blanquis:
Em Blanquis, o espaço cósmico tornou-se
abismo. O abismo de Baudelaire é sem
estrelas. Ele não deve ser definido como
espaço cósmico. Mas é ainda menos o
abismo exótico da teologia. É um abismo
secularizado: o abismo do saber e das
significações […][3].

Este é o universo baudelaireano por excelência, esvaziado de


ilusões, pois heróico é aquele que procura despertar das
fantasmagorias de uma sociedade que vive imersa num
sonho colectivo e prisioneira do fetiche da mercadoria. O
spleen de Baudelaire é o véu poético que protege e ameniza
o choque do poeta com esse “abismo”, com o
desencantamento social e político que contamina tudo, até
atingir a camada existencial mais profunda, uma vez
suspensas as crenças num mundo organizado e estável,
orgulhoso das suas familiaridades, isto é, ainda crente na
possibilidade da narração enquanto modo de transmissão da
tradição.

Baudelaire vai muito longe na compreensão desta


“modernidade” que irrompe sob todas as formas,
violentamente, pondo à vista as feridas de uma época em
que todos os valores se encontram decadentes e arruinados.
Nietszche tinha-o compreendido de forma genial e
Baudelaire segue-lhe as pisadas. A sua visão poética
constitui-se como um olhar crepuscular sobre as ruínas da
sua época que quer “salvar”, ao mesmo tempo, através de
uma poética que consubstancia em si um olhar alegórico.
Eis-nos chegados ao mais obscuro dos desígnios de
Baudelaire.

A raiva da poesia de Baudelaire, essa raiva que toca e


petrifica tudo aquilo em que toca, não é senão um gesto
alegórico e salvador, que pretende destruir o que já se
apresenta morto e arruinado, para o salvar pela escrita. O
poema é o resultado desse gesto. É um olhar de despedida,
irreversível, mas que não lamenta, petrifica apenas, para que
a eternidade o salve numa outra ordem que é a das
significações, do saber: em suma, da escrita. Esse é por
excelência o olhar da Medusa, aquele que Baudelaire lançou
sobre a sua época e a modernidade. Implacável e sem
ilusões, mas ainda assim de uma beleza excruciante, pois
nela foi capaz de ver nascer uma nova luz, uma beleza que os
olhos da sua época ainda não eram capazes de vislumbrar.
A MODERNIDADE EM BAUDELAIRE
1- A modernidade na composição poética

A importância de Baudelaire na tradição literária do ocidente consiste


basicamente na instauração da Modernidade (haja vista o fato de que fora ele
quem forjou o vocábulo Mordenité) na estrutura lírica de composição poética.
Esta modernidade se vai caracterizar pela dialética de razão e paixão no nível
da estrutura e do sentido da construção poemática. Isto significa dizer que se
vai harmonizar em sua obra o máximo de vigor passional com o máximo de
rigor racinal. Como já foi dito, essa harmonização se dá no nível estrutural (no
que se diz respeito a forma que delineia o sentido ) e no nível semântico (no
que diz respeito ao sentido delineado pela forma); agora, a importância dessa
harmonização de duas potências consideradas estanques por toda a tradição do
pensamento ocidental (razão e paixão) é que a vida em si mesma não promove
a separação dos contrários pois que tudo o que se manifesta , não apenas no
fazer humano, mas na vida cósmica em geral, se dá a partir dessa tensão
harmônica de essências opostas.
Por exemplo, não se dá o surgimento de todas as cores sem o entrelaçamento
de luz e trevas, não nasce uma nova árvore sem a morte da semente e assim
por diante.
Quando Baudelaire aplica essa harmonização de contrários no fazer poético, ele
está aproximando a arte literária da vida , mostrando que a ficção não é algo
estanque da realidade circundante.

2- A modernidade como representação dos conflitos nas grandes


cidades

A realidade que cercava Baudelaire era a de mudanças na estrutura da


sociedade ocidental nos séculos XIX e XX com o evidenciamento da vida urbana
e com a instauração de uma nova ordem burguesa e capitalista, que acabaram
por chocar o sujeito urbano desse tempo já que essa nova ordem era
constituída sem um centro fixo ou um organizador comum.

A Paris, do Segundo Império no século XIX, em que o poeta viveu, também


como as outras grandes cidades ,sofreu essas transformações por meio do
surgimento de uma vida urbana, da construção de grandes avenidas,
mercados ,teatros etc, fazendo com que a convivência das pessoas se
transferisse de suas casas para as ruas cada vez mais movimentadas da cidade
e com que diversas classes sociais, como desde um aristocrata a um réles da
sociedade se defrontassem num mesmo local.

A construção dessa metrópoli-labirinto além de expor os contrastes sociais,


também contrastava o indivíduo com a multidão. Pois ao chegar na rua o sujeito
urbano perdia sua individualidade e passaria a ser simplesmente mais um na
multidão.

Neste momento, também presenciamos uma modernização no comércio que


traz para o parisinense uma inovação: as galerias e suas vitrines ilumindas que
ao mesmo tempo que expunham a mercadoria, fascinavam aquele que vagava
pelas ruas.

O que traz à cena o flâuner, muito retratado nas obras de Baudelaire; um


errante que se entrega a compulsão de sujeito urbano, que passeia
prazerosamente sem destino pelas galerias e pelas ruas da metrópoli-labirinto
mas, que ao mesmo tempo não perde sua natureza inumana.

Em meio a essa experiência nova, onde o sujeito poderia se defrontar com a


multidão e com a velocidade das mudanças na sociedade moderna, Baudelaire
viu-se obrigado a refletir e a trabalhar essas transformações que trouxeram à
tona esses contrastes sociais outrora camuflados e a expor essa dualidade
presente na arte e na vida, dedicando a esse tema -modernidade, vários de
seus textos poéticos e ensaios.

3- A definição de modernidade para Baudelaire

Segundo o filósofo Walter Benjamim, Baudelaire é o primeiro poeta a trabalhar


em sua obra a crise e os constrastes da modernidade capitalista e industrial.

Em seu ensaio "Le peintre de la vie moderna" que foi dedicado ao pintor
Constantin Guys por quem Baudelaire não esconde admiração e não poupa
elogios à sua arte, vemos a demonstração mais clara do conceito de
modernidade em Baudelaire quando ele afirma que o artista, ou melhor, como
ele recoloca, o homem do mundo, ou seja aquele que não está submetido à
uma área específica, mas que se interessa e aprecia assuntos do mundo inteiro
(assim ele define Guys); retira da moda atual e de seu momento histórico o que
tem de poético, portanto, retira do transitório o que tem de eterno para
alcançar a essência do belo.
"A modernidade é o transitório,o efêmero,o contigente, é a metade da arte,
sendo a outra metade o eterno e o imutável"

4- Conclusão

Baudelaire não foi entendido por sua época sendo pouco lido e tendo alguns de
seu poemas proibidos.

Talvez, porque tenha provocado na sociedade um certo horror por representar


com muita maestria o choque que a modernidade capitalista e industrial causou
em seu tempo.
Uniu o clássico com o moderno, denunciou por meio de uma dualidade sempre
presente em seus poemas (pois para ele a modernidade está ligada à noção de
conflitos) os contrastes sociais de sua cidade, aproximando a arte da vida,
promovendo importantes reflexões que ecoam até os dias de hoje.

Bibliografia:
BAUDELAIRE, Charles. "O pintor da vida moderna". In: Obras Completas

O homem da multidão (Edgar Allan Poe)


Escrito por lucacreido em maio 6th, 2017 em Textos (Des)necessários

Edgar Allan Poe me fascina e inspira pela brevidade, unidade e intensidade


de sua obra. Seus contos são criados para um efeito e, como soldados,
todos os detalhes marcham em direção ao espanto. E como tive pesadelos
com seus vários espantos na adolescência, quando meu pai me obrigava a
lê-lo.

Mas Poe é muito mais do que sustos. Muito mais… Poe é um visionário em
meio a uma excêntrica e desequilibrada crença no progresso, que retiraria a
magia do mundo em prol da razão. Não se engane! Em meio ao século
XIX, em plena revolução industrial, isso era um grande feito. A razão
instrumental transformara todos em parte de uma engrenagem: éramos
apenas uma peça da máquina, que ditava a velocidade de trabalho, nosso
rendimento e nosso fim. Não havia tempo para pensar ou ser. O progresso
econômico não deixara espaço para o progresso da vida humana: a pressa
de produzir deixara em segundo plano a vontade de viver.

“O Homem da multidão” é um dos seus contos visionários. Nele, é


apresentado um narrador que observa o homem moderno em plena
Londres. Anulada pela aglomeração, a humanidade vaga pela cidade,
marcada pela indiferença brutal com o outro e pelo automatismo em seu
agir. Mas nem todos conseguem se encaixar neste padrão. O narrador
percebe o mal-estar de um senhor estranho, que se angustia com a ausência
das pessoas. A todo o momento, o “velho” vai até os lugares mais cheios,
em ruas, praças e até recintos boêmios. Se o local começa a se esvaziar,
corre para outro. Não pode estar só. Não aguenta estar só. Todavia, busca a
multidão, sem com ela se envolver.

Que homem estranho. Um homem como tantos outros de Poe: “Há no


homem, diz ele (POE), uma força misteriosa, que a filosofia moderna é
incapaz de perceber; e, no entanto, sem essa força inominada, sem essa
tendência primordial, várias ações humanas permanecerão inexplicadas,
inexplicáveis.” (Charles Baudelaire, Outras anotações sobre Edgar Poe)
Não contarei mais detalhes, nem minhas conclusões. Nada que eu disser
sobre esse conto será suficiente para descrevê-lo. Mas não se trata apenas
de minha incapacidade: nada mais direi, pois não quero estragar sua luta,
caro leitor, para entender os detalhes da obra. Melhor que você os encontre
sozinho. Em Poe, assim como nos bons escritores, eles nunca são em vão.
Tudo é importante demais para ser deixado para trás. Tudo está
direcionado.

Boa leitura.

O HOMEM DA MULTIDÃO (ficha)

Gênero: Conto

Extensão: média (dá para ler em uma sentada)

Dificuldade de leitura: baixa

Dificuldade para compreensão: média

Importância da obra: oxi!!!


Para entender mais: “Homem da multidão e o flâneur no conto ‘O homem
da multidão’ de Edgar Allan Poe”, autor Sérgio Roberto Massagli
(UNESP). Disponível em
http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol12/TRvol12f.pdf

O HOMEM DA MULTIDÃO

Poe, Edgar Allan

Tradução: Dorothée de Bruchard

Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul. — LA BRUYERE

Foi muito bem dito, a respeito de um certo livro alemão, que “er lasst sich
nicht lesen” — ele não se deixa ler. Há certos segredos que não se deixam
contar. Homens morrem toda noite em suas camas, torcendo as mãos de
fantasmagóricos confessores e fitando-os lamentosamente nos olhos —
morrem com desespero no coração e convulsões na garganta, por causa do
horror de mistérios que não aceitam ser revelados. Infelizmente, a
consciência humana às vezes carrega tão pesado fardo de pavor que só no
túmulo consegue desembaraçar-se dele. E assim a essência de todo crime
permanece irrevelada.
“A une passante” de Baudelaire - uma possível análise
A uma passante
A rua ia gritando e eu ensurdecia.
Alta, magra, de luto, dor tão majestosa,
Passou uma mulher que, com mãos sumptuosas,
Erguia e agitava a orla do vestido;
Nobre e ágil, com pernas iguais a uma estátua.
Crispado com um excêntrico, eu bebia, então,
Nos seus olhos, céu plúmbeo onde nasce o tufão,
A doçura que encanta e o prazer que mata.
Um raio… e depois noite! – Efémera beldade
Cujo olhar me fez renascer tão de súbito,
Só te verei de novo na eternidade?
Noutro lugar, bem longe! é tarde! talvez nunca!
Porque não sabes onde vou, nem eu onde ias,
Tu que eu teria amado, tu que bem sabias!

No final do século VIII e início do século XIX, a Europa é cenário de


grandes mudanças. A atividade produtiva sofre uma grande modificação, o
processo manual de produção, no qual o trabalhador poderia controlar a
produção desde a criação da matéria prima até o produto final, é substituído
pelas maquinarias.
O homem passa a dirigir máquinas, a produzir em grandes volumes e
trabalha para um patrão, que é quem obtém os maiores lucros. O homem
moderno trabalha sob uma imensa quantidade de carga horária; sem olhar o
fruto do seu trabalho.
O trabalhador, que representa a maior parte da população, é um simples
operário/automata sem direito a pensar ou sugerir. Deve limitar-se a
produzir. Esse cenário é muito bem retratado no filme “Tempos modernos”,
dirigido e protagonizado por Charles Chaplin.
É nesse contexto que aparecem novos sentimentos, sensações e maneiras de
ver a vida. A perda de valores e do sentido da vida, o niilismo e a paixão
são temas recorrentes, promovido principalmente ante essa nova realidade.
Em seu poema “A uma passante”, Baudeleire se expressa sobre a
modernidade e propõe uma nova forma de amor que é o amor fugaz. Esse
novo momento em que o homem se vê obrigado a adaptar-se e a conviver
com o incômodo da multidão, consequência da concentração da população
nas zonas urbanas causada pelo êxodo rural.
Na frase “Efémera beldade cujo olhar me fez renascer tão de súbito, só te
verei de novo na eternidade?” Baudeleire expressa assim que a
modernidade é bela, mas ao mesmo tempo incerta, efêmera e fugaz[1].

RESENHA: “O PINTOR DA VIDA


MODERNA”, BAUDELAIRE
Publicado em Maio 29, 2016 by Thais dos Reis

Charles Baudelaire foi um poeta francês, considerado um dos


percursores do Simbolismo e reconhecido como o fundador da
tradição moderna em poesia. Nasceu em 1821 em Paris e
faleceu em agosto de 1867. Uma de suas obras mais conhecidas
é “Flores do Mal”, onde ele começa o seu projeto simbólico. O
livro “O pintor da vida moderna”, iniciado em 1863, foi escrito
em três fases: a primeira para o Le Figaro (publicada em 26 de
novembro) e a segunda publicada em 29 do mesmo mês. Mais
tarde essas partes foram reunidas em uma coletânea num livro
editado em 1868 sob o título de L’Art Romantique.

Através de um ensaio crítico, Baudelaire analisa a figura do


pintor na vida moderna e suas relações com diversos setores,
fatos e figuras que estão ligados à arte. Já no capítulo inicial o
autor apresenta uma postura crítica em relação àqueles que
supervalorizam as obras de arte clássicas e menosprezam os
artistas menores. Como exemplo, cita as pessoas (a quem
chama de amadores) que vão ao Museu do Louvre e se colocam
radiantes diante de um quadro de Ticiano Vecellio e depois se
dizem conhecedoras do museu. Ou mesmo aqueles que leram
Rancine e Bossuet e acreditam que dominam a história da
literatura.

Aprofundando suas reflexões, o autor ressalta a importância da


moda e de sua contextualização para compreendermos o
passado e o presente. Em suas palavras: “o passado é
interessante não só pela beleza que dele souberam extrair os
artistas para os quais ele era o presente, mas igualmente como
passado, por seu valor histórico”. Os trajes antigos que hoje nos
provoca riso carregam consigo valores de moral e estética de
uma determinada época.

Ainda nessa questão, o autor afirma que o homem imprime o


que acredita ser belo em seu vestuário, o homem deseja se
assemelhar àquilo que gostaria de ser: “o passado, conservando
o sabor do fantasma, recuperará a luz e o movimento da vida e
se tornará presente”. A teoria racional e histórica do belo se
opõe à teoria do belo único e absoluto e mostra-nos que o belo
possui uma dupla dimensão: ele possui elemento eterno e
invariável ao mesmo tempo em que possui um elemento relativo
e circunstancial

O Artista x O Homem do Mundo

(Quem foi C. G. ?)
Durante toda a reflexão sobre a diferença entre um artista e um
homem do mundo, Baudelaire utiliza como exemplo um amigo e
o cita no livro como “C.G.” Trata-se de Constatin Guys, um pintor
e desenhista autodidata que viveu entre 1805 e 1892, que
trabalhou como repórter e foi profundo conhecedor do mundo da
moda. Para Baudelaire, C.G. é o típico “homem do mundo” e não
apenas um “artista” (num sentido restrito). O homem do mundo
é aquele que se interessa pelo mundo inteiro, que quer saber,
entender e conhecer. O artista vive no mundo moral e político, o
homem do mundo é um cidadão espiritual do universo.

Para o autor, o homem do mundo e a criança possuem muitas


semelhanças. Os pequenos enxergam tudo como novidade e
estão sempre inspiradas. Enquanto o adulto foi dominado pela
razão, a criança é dominada pela sensibilidade. Portanto, o
“homem do mundo” é também um “homem criança”, aquele que
é dominado a cada minuto pelo gênio da infância e para qual
nenhum aspecto da vida é embotado… ele ama a multidão, pois
a multidão é um espelho imenso de possibilidades, um
caleidoscópio dotado de consciência.

Uma das grandes buscas do “homem do mundo” é


a modernidade. A modernidade caracteriza-se pelo transitório,
efêmero, contingente. “ A modernidade é a metade da arte e a
outra metade é o eterno e o imutável”. Neste sentido, o artista
que procura reproduzir uma fórmula (com aqueles que pintam
personagens com inspirados em expressões já consagradas)
tendem a produzir algo falso, ambíguo e obscuro.

A memória possui um papel fundamental na criação e na


originalidade. Para o autor, “todo os bons e verdadeiros
desenhistas desenham a partir da imagem inscrita no próprio
cérebro e não a partir da natureza”. A memória e a imaginação
estão interligadas, e permitem que o desenhista se torne mais
anárquico e imparcial.

O Dândi x A mulher

Tanto o Dândi e a Mulher foram figuras (ou objetos) de arte


atemporal que serviram de inspiração para os artistas da
modernidade. Os dois podem ser encarados como elementos de
representação que perduram no tempo e que mesclam dois
conceitos importantes trabalhados no texto: moda e beleza.
O dândi é aquele que cultua as próprias paixões e a sí mesmo,
mas para fazê-lo precisa de dinheiro. Não porque o dinheiro é
indispensável, mas é algo que o permite alcançar o símbolo da
superioridade aristocrática de seu espírito. Sua imagem nos
remete ao típico rico ocioso, um homem entediado e que sofre
por ser homem. Ele nunca pode ser vulgar. Conforme explica
Baudelaire:

“ O dandismo aparece sobretudo nas épocas de transição em


que a democracia não se tornou ainda todo-poderosa, em que a
aristocracia está apenas parcialmente claudicante e
vilipendiada. Na confusão dessas épocas, alguns homens sem
vínculos de classe, desiludidos, desocupados, mas todos ricos
em força interior, podem conceber o projeto de fundar uma nova
espécie de aristocracia, tanto mais difícil de destruir pois que
baseada nas faculdades mais preciosas, mais indestrutíveis, e
nos dons celestes que nem o trabalho nem o dinheiro podem
conferir” (BAUDELAIRE, p. 872, 1996)

Como modelo artístico, a mulher é quase uma divindade.


Encarada como símbolo da beleza natural e por vezes pura, ela
transmite luz e um convite a felicidade. O seu porte, seus
movimentos, seu tecido… todos esses aspectos nos remetem à
harmonia. Porém, ao mesmo tempo, as mulheres podem parecer
mágicas ou até sobrenaturais, especialmente quando está
diante da necessidade de ser adorada.

Neste caso, assim como o citado acima, a indumentária (e os


adereços) é fundamental para indicar a época em que o
personagem viveu. Diante disso, Baudelaire também realiza uma
reflexão acerca da maquiagem. Afinal este “artifício” possui
como objetivo e por resultado fazer desaparecer da tez todas as
manchas que a natureza semeou.

O autor defende a ideia de que as pinturas para o rosto não


devem ser usadas de uma forma vulgar, no sentido de imitar
uma beleza artificial. A maquiagem não pode ser encarada como
um artifício para dissimular um aspecto, “pode exibir-se não
como afetação, mas como espécie de candura”.

REFERÊNCIAS
BAUDELAIRE, C. Sobre a modernidade: o pintor da vida
moderna. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996

MANTOLVANI, R., Resenha: “O pintor da vida moderna, de


Baudelaire”. Disponível em: http://escrita-das-
mulheres.blogspot.com.br/2007/02/resenha-o-pintor-da-vida-
moderna-de.html [Acesso: 21 de maio de 2016]

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