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GRUPO DE ESTUDOS

BUDISMO BÁSICO

FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA DE XAQUIAMUNI BUDA

Professor Kogen Mizuno

PRIMEIRO SEMESTRE DE 2009


FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA DE XAQUIAMUNI BUDA1

Professor Kogen Mizuno

Os Três Tesouros

Fé nos Três Tesouros - Buda, Darma e Sanga – tem sido a


característica religiosa de todo o Budismo, Hinayana ou Mahayana, através dos
seus mais de dois mil e quinhentos anos de história. Alguns professores
ocidentais argumentam que, por não haver uma divindade, o Budismo de
Xaquiamuni Buda não é uma religião, mas um sistema de éticas, moralidade e
filosofia. Entretanto, tais professores desconsideram a natureza religiosa da fé
nos Três Tesouros.

Se Budismo não fosse mais que um sistema filosófico e ético, não teria
sobrevivido até nossos dias como a fé de bilhões de pessoas. Estudo profundo
e diligente da filosofia Budista pode fazer um Budologista (Budólogo) e não um
Budista. Hoje, como no tempo de Xaquiamuni Buda, ser Budista significa ter fé
religiosa nos Três Tesouros.

“Eu me refugio em Gautama, o Honrado do Mundo, no Darma (Lei


Verdadeira) e na Sanga (Ordem Monástica). Honrado do Mundo, deste dia em
diante até o final de minha vida, me reconheça como uma pessoa que crê e
que se refugiou nos Três Tesouros”.

1Extraído do livro “Basic Buddhist Concepts”, publicado pela Kosei Publishing Co. – Tokyo, 1°
Edição 1987.
Kogen Mizuno, Litt. D., especialista em filosofia indiana e reconhecido acadêmico Budista, foi
até recentemente reitor da Universidade Komozawa (Tokyo), onde ensinava Budismo.
Autoridade em textos Páli, publicou vários trabalhos sobre Budismo.

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Essa frase acima pode ser encontrada muitas vezes nas escrituras
primitivas Budistas e significa que, mesmo sem compreensão teórica, a pessoa
que se refugia com pura fé nos Três Tesouros é verdadeiramente Budista.

Não tenho intenção de me aprofundar nas várias interpretações dos Três


Tesouros desenvolvidas por eruditos.

Dogen Zenji, (1200 – 1253), monge Zen japonês, fundador da tradição


Soto Zen, falou por Budistas de todas as épocas quando disse: “Nós nos
refugiamos em Buda porque ele é o nosso grande mestre. Nós nos refugiamos
no Darma(Lei Verdadeira) , porque é como um bom remédio. Nós nos
refugiamos na Sanga (Ordem), porque é composta de excelentes amigos”.
Frases como essa aparecem freqüentemente nos textos de Budismo primitivo.

Buda merece ser reverenciado porque é o fundador da fé, a fonte dos


ensinamentos, e um ser humano superior. Ler os sutras e estudar os
ensinamentos aumenta a ciência de sua grandiosidade.

O Darma merece ser reverenciado porque são os ensinamentos


descobertos e transmitidos por Buda e porque o Darma cura a mente (Jap. shin
– mente-coração-espírito), assim como o remédio efetivo cura o corpo.
Xaquiamuni Buda, como um grande médico, sempre seleciona o melhor
remédio para a doença que está ocorrendo. Seu remédio é a verdade que é
universalmente aplicável a todas as pessoas em todos os tempos.

A Sanga é uma irmandade de praticantes com a mesma fé. Após o


Parinirvana de Xaquiamuni Buda, os monges e as monjas se tornaram os
responsáveis por transmitir os ensinamentos, mostrar o caminho da libertação
para todos os seres, proteger e preservar os Três Tesouros. Assim, o Darma
tem sobrevivido e sido divulgado através dos esforços da Sanga. Por esta
razão, monges e monjas Budistas têm sido considerados (as) como Tesouro
Nacional nos vários países em que vivem.

É dever da Sanga interpretar o Darma corretamente e permitir que


sirva como um bom remédio. Quando a Sanga é mantida e protegida o
Budismo floresce, caso contrário desapareceria. Assim sendo a Sanga

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precisa ser de excelente qualidade para manter a absoluta fé transmitida por
Buda e pelo Darma.

Os quatro indestrutíveis objetos de fé, nos quais verdadeiros


praticantes têm confiança inabalável, são os Três Tesouros (Buda, Darma e
Sanga) e os Cinco Preceitos (não matar, não roubar, não indulgir em atividades
sexuais errôneas, não mentir, não se intoxicar). A pessoa que profundamente
crê nos Três Tesouros segue corretamente esses Preceitos. O objetivo do
Budismo é que seus praticantes possam transformar o mundo num local de
paz e felicidade, livre de guerras, lutas, antagonismo, inveja, injustiça e
iniqüidade.

Budismo como Filosofia

Xaquiamuni Buda ensinava às pessoas leigas que simplesmente


mantivessem fé nos três Tesouros e seguissem os cinco preceitos
fundamentais. A devoção aos quatro objetos indestrutíveis de fé leva
diretamente e sem erros à iluminação, eliminando a possibilidade de ser
atraído por falsas crenças.

Em outras palavras, pessoas com fé podem fazer do Budismo uma


experiência pessoal, mesmo se não tiverem um completo conhecimento da
filosofia Budista. Entretanto, qualquer pessoa que queira compreender a
verdade essencial dos ensinamentos de Buda e completamente compreender
sua visão do mundo e da humanidade, precisa estudar filosofia Budista.
Principalmente o devem fazer os membros da Sanga, pessoas que precisam
ser especialmente treinados para orientar, responder perguntas e sanar
dúvidas.

Três ensinamentos são encontrados no Budismo primitivo como


explicações do Darma e dos ensinamentos fundamentais de Buda: a lei da
causalidade, conhecida como, a lei de Origem Dependente (pratitya-
samutpada), os selos do Darma (da Lei) e as Quatro Nobres Verdades (arya
satyas).

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A causalidade ocupa uma posição de importância central e é realmente
o núcleo de toda filosofia Budista. Origem Dependente e Budismo são
idênticos. Buda disse: “A pessoa que compreende o Darma compreende
Origem Dependente, e a pessoa que compreende Origem Dependente
compreende o Darma”.

Fundamental para a lei de origem dependente são os selos (ou marcas)


do Darma. Selo é usado no sentido de um nome que garante a validade de um
documento e serve como a marca de uma pessoa. Assim, os selos do Darma
são simultaneamente sua característica e sua prova. Qualquer teoria que se
conforme a essas características é verdadeira; qualquer que deixe de fazê-lo é
falsa.

Os três selos são: todas as coisas são impermanentes, nada tem um eu


fixo permanente e nirvana é tranqüilidade. Às vezes mais um: “toda existência
é sofrimento”, soma-se aos demais, formando, então, quatro selos do Darma.

As Quatro Nobres Verdades, uma espécie de lei de causalidade


simplificada, são talvez os mais conhecidos ensinamentos de Buda.

A existência é sofrimento. Há uma causa para esse sofrimento: apego e


ilusão. O sofrimento pode ser eliminado (Nirvana). A maneira de eliminar o
sofrimento é seguir o Caminho de Oito Aspectos (ashtabgika-marga): visão
correta, pensamento correto, fala correta, ação correta, meio de vida correto,
esforço correto, atenção correta e concentração correta.

Xaquiamuni Buda girou a Roda do Darma pela primeira vez no Parque


dos Cervos, próximo a Benares, ensinando aos cinco ascetas as Quatro
Nobres Verdades e o Caminho de Oito Aspectos.

Desde que a Lei de origem dependente, as Quatro Nobres Verdades e


os selos da Lei – os ensinamentos fundamentais do Budismo primitivo – são
essencialmente o mesmo, teoricamente seria possível cobrir todos ao explicar
apenas um deles. Mas, a fim de maior clareza, vou tratá-los separadamente,
embora de maneira relacionada.

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Antes de entrar em especificidades é essencial explicar o ponto de vista
geral a partir do qual o Buda Darma se desenvolveu. Não é teoria filosófica por
si mesma, mas teoria destinada a servir como base para a prática da fé
religiosa. Budismo chama a tudo que não é relacionado com a prática de
debate vazio (prapancha) e insiste que toda teoria deve ser aplicável à vida
humana, deve aliviar o sofrimento e conduzir os seres humanos na direção
ideal. Ao mesmo tempo, teoria não deve conflitar com fato científico ou justiça
moral, pois corre o risco de se tornar superstição ou doutrina maléfica.
Xaquiamuni Buda dizia freqüentemente que doutrina religiosa não deve ser
apenas verdadeira e correta, mas também deve ser aplicável.

Desde que o Budismo rejeita como perigosa toda exegese metafísica ou


ontológica, que não esteja relacionada com a experiência religiosa, sua filosofia
não se preocupa com o que existe e como isso existe. No próprio tempo de
Xaquiamuni Buda muitos filósofos e religiosos despendiam muito de seu tempo
e esforço tentando verificar se o mundo dos espíritos e deuses existe e, se
existindo está sujeito a limitações.

Buda, entretanto, percebeu que se realmente houver uma realidade


ontológica original, esta transcenderia tempo e espaço e, logo, estaria longe de
nossa experiência, pois não possuímos a capacidade intelectual de reconhecê-
la.

Buda dizia que os argumentos - sobre existência e não-existência - são


sem sentido e que qualquer conclusão teórica que se chegue em conexão com
tais tópicos são irrelevantes ao mundo da experiência humana e, portanto,
inúteis como chave para os problemas do sofrimento e vida humanos.

Rejeitando especulações inúteis, Xaquiamuni Buda (como todo


praticante Budista deve fazer) preocupava-se com a vida presente, suas
alegrias, tristezas, amores, ódios e escolhas infinitas. Em outras palavras, ao
contrário de se preocupar com a existência como um estudo abstrato, a
filosofia Budista lida com a natureza humana nesta vida e a maneira pela qual
os seres humanos respondem à própria vida.

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Isto não quer dizer que a filosofia Budista ignore considerações
ontológicas. Pelo contrário, reconhece existência fenomenal, ou bom senso, e
considera a definição e descrição de tal existência como seu próprio campo de
estudo.

A teoria dos cinco agregados (skandas), por exemplo, que explica


seres humanos como um composto de aspectos físicos e mentais e, ainda
mais, divide o conceito mental em sensação, percepção, disposições e
consciência, é um conceito Budista ontológico, mas permanece baseado na
vida como é vivida pelos seres humanos ao invés de vida como conceito
abstrato.

Os conceitos epistemológicos Budistas, assim como os doze campos


dos sentidos, tratam as maneiras pelas quais os sentidos e o intelecto se
relacionam com as ocorrências diárias. Todas essas doutrinas tentam
responder questões, não de existência pura, mas da natureza real do
fenômeno da experiência atual e da maneira pela qual os seres humanos
tratam e se relacionam com elas.

É, assim sendo, de primeira importância deixar claro que os três (ou


quatro) selos da Lei não tratam de se a existência existe por si mesma. Tratam
com as naturezas da existência atual e o optimum. A menos que isto seja
completamente compreendido, é possível interpretar mal os conceitos de
ausência de “eu” e “shunyata” como niilistas quando, de fato, foram criados
precisamente para refutar o niilismo.

Os selos do Darma

No primeiro selo do Darma, todas as coisas são impermanentes.


“Todas as coisas” significam todos os fenômenos físicos e mentais. Tudo está
em constante mudança e Xaquiamuni Buda fez essa afirmativa - da natureza
efêmera de todas as coisas - primeiramente como algo que as pessoas devam
experimentar na vida diária.

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Claramente as operações da mente são fluídas, e mesmo objetos
aparentemente estáveis - como rochas e árvores - estão constantemente em
mudança. Desde as mínimas partículas físicas até os maiores corpos celestes,
nada deixa de se mover nem por um só instante. As teorias científicas
modernas sobre esta espécie de fluxo tornam mais fácil aceitar hoje, do que no
passado, a idéia de que todas as coisas são impermanentes.

Um dos propósitos de Xaquiamuni Buda, ao ensinar a lei da


impermanência universal, foi o de permitir aos seres humanos ver o mundo
como um complexo de fenômenos, ao invés de uma realidade original com
natureza permanente e inalterável.

Outro propósito era o de construir os fundamentos para o segundo selo


do Darma: nada tem um “eu” persistente (fixo).

As escrituras do Budismo primitivo geralmente dizem que os cindo


agregados – isto é, os elementos dos quais os seres são compostos – são as
fontes de sofrimento, porque são impermanentes e logo não possuem um eu
constante.

Mas seria errado presumir que tristeza é apenas conseqüência de


impermanência. Na verdade, impermanência tem implicações muito boas,
como a de libertar seres humanos do orgulho e apego às coisas deste mundo.
Também dá esperança para viver a vida, sem se desencorajar. E torna
possível total concentração de energia no presente, no aqui - agora..

Conotações pessimistas, ligadas às palavras como impermanência e


transitoriedade, levam pessoas a duelar no lado negativo desta doutrina e
pensar que impermanência significa apenas que o poderoso cai e que a saúde
dá lugar à doença.

Mas mudança não significa apenas mudança para o pior. Os humildes


são elevados e os doentes se curam. Pobreza não é menos permanente que a
riqueza, loucura não é menos passageira do que a sabedoria. Sofrimento pode
se tornar felicidade e um pecador pode se tornar um santo.

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Budismo ensina a impermanência a fim de transformar sofrimento em
alegria, miséria em felicidade, e o ser comum num sábio, e mostrar que todas
as coisas e todos os seres podem se modificar. Desta forma, oferece
esperança e coragem necessárias para o que possamos viver sem nos
desesperar.

Apesar da verdade de que nada é permanente, muitas pessoas


orgulhosamente vêem sua juventude, saúde, riqueza e posição como imutáveis
e esperam ter o prazer dessas bênçãos eternamente. Mas todas essas coisas
devem inevitavelmente se modificar.

O ensinamento de impermanência universal ajuda seres humanos a se


tornarem modestos sobre suas vantagens, humildes e a não se orgulharem,
nem se apegarem a nenhuma delas. Como tudo se transforma de momento a
momento, a vida é um acúmulo de ações momentâneas e acontecimentos.
Cada um desses momentos deve ser preenchido, não com hedonismo carpe
diem, mas com a total percepção do potencial completo do indivíduo.

“Nada tem um eu permanente!, significa que não há ser permanente e


essencial. Não existe nada que possa vir a existir sem se modificar e
eventualmente deixar de existir. Nada que exista por si mesmo, sem relação
aos outros seres. Tudo está constantemente sendo transformado. Todas as
coisas estão de alguma forma relacionadas com todas as outras coisas no
universo. Mais ainda, não há nenhuma realidade fixa por trás da geração,
mudança e destruição dos fenômenos.

Na época de Xaquiamuni Buda, alguns filósofos, na Índia, proclamavam


que os seres humanos e seu comportamento eram controlados pelo poder de
um deus ou por um destino imutável.

Mas, se tudo se movesse de acordo com o poder de um deus


onipotente, criador e regente da terra, não haveria livre arbítrio. Logo, seres
humanos seriam incapazes de mudar seu destino através de exercícios da
vontade ou esforço físico. Todas as tentativas de melhoria pessoal seriam
inúteis. Se seguirmos esta conclusão lógica, tal teoria não deixaria espaço para
educação - que tem como objetivo a melhora da sociedade - ou para religião -

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que se propõe a libertar seres do sofrimento. A humanidade não teria escolha,
só podendo aceitar o que quer que venha a surgir.

Os fatalistas do tempo de Xaquiamuni Buda ensinavam que, ao nascer,


cada indivíduo está destinado – tanto pelo carma, ou, como algumas escolas
insistiam, pelos efeitos dos quatro elementos água, fogo, terra e ar – a viver
com um grupo de circunstâncias que não podem ser alteradas.

Livre arbítrio não tem lugar em sistemas deterministas desta espécie:


logo, disciplina pessoal, educação e religião são sem sentido. De acordo com a
dialética materialista de Marx, uma forma moderna de predestinação, a
sociedade deve se desenvolver de acordo com certos determinantes
econômicos. Esta linha de pensamento remete à dialética de Hegel, que é
determinista em sua sugestão de que a sociedade e a vida humana devem
proceder de acordo com um curso fixado. Do ponto de vista Budista, a filosofia
de Hegel é objetada, pois assume a existência de um espírito mais alto e
absoluto. O princípio importante da dialética de Marx é tão inóspito a qualquer
esperança de melhora social, que ela tem sido pouca usada, se não
completamente repudiada, por muitos comunistas.

Vários ternos foram usados em diferentes épocas para indicar o sentido


do segundo selo do Darma: em sânscrito, nas escrituras do budismo primitivo,
é anatman (sem um eu). Nos textos Mahayana é shunyata (vazio, nada). Na
China os Zen Budistas chamam de wu (negativa) ou mu no Japão. Mas todos
esses termos significam a ausência de qualquer eu fixo ou natureza
permanente, e não uma completa, absoluta, não-existência.

O segundo selo do Darma expressa o principal objetivo dos


ensinamentos de Buda: a obtenção de um estado no qual a realização da
impermanência e da transitoriedade de todas as coisas liberta os seres
humanos de qualquer espécie de apego e permite que ajam de acordo com o
Darma, livres e sem obstáculos.

A lei Budista de origem dependente é a integração lógica dos dois


primeiros selos do Darma.

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Em termos simples, origem dependente significa que cada efeito tem
uma causa definida e cada causa, um efeito definido. Nada surge por acidente.
Ações não ocorrem por acaso. Apenas quando certas causas e condições
estão presentes pode ser obtido um resultado ou efeito particulares. Isto não
implica, de forma alguma, em uma primeira causa abarcando tudo como
vontade divina, ou um plano pré-ordenado para a vida. Causas e condições
variam numa infinidade de maneiras, para gerar infinitas espécies de
resultados. Mas, para qualquer grupo de causas fixas e condições, o resultado
também é fixo.

A lei de origem dependente analisa a vida e os trabalhos dos seres


humanos e da sociedade assim como são.

Na época de Xaquiamuni Buda outros filósofos eram muito menos


objetivos. Teorias de uma divindade onipotente, ensinamentos deterministas e
acidentalistas violavam a lei de causa e efeito e advogavam práticas religiosas
fúteis, se não mesmo perniciosas.

Por exemplo, as pessoas eram ensinadas que obteriam iluminação


através de jejum e ascetismos; que imitar atos de animais, como cães ou
elefantes, era o caminho de renascimento no paraíso; ou que tomar banho em
certos rios poderia limpar a alma e lavar os pecados.

Buda viu que essas doutrinas e práticas desafiavam a razão, pois não
se pode demonstrar que a mortificação do corpo seja a causa da iluminação,
que imitar animais seja a causa de renascimento em êxtase, ou que se lavar
num determinado rio seja a causa da purificação espiritual.

A correta visão do Budismo sobre o mundo e a humanidade é


inseparável da lei de origem dependente.

Simbolizando este relacionamento, os textos de Budismo primitivo


descrevem o aspirante que atingiu a compreensão correta e que chegou ao
primeiro estágio de iluminação, como tendo recebido o olho do Darma, claro e
imaculado.

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Freqüentemente, textos similares dizem que o olho do Darma consiste
em ser capaz de ver que todas as coisas nascidas de causas e condições
deixam de existir quando essas causas e condições são destruídas. Em
resumo, uma pessoa que tenha obtido esse estágio de compreensão percebe o
princípio de origem dependente, equacionado com o Darma imutável.

A Origem Dependente fundada nos princípios de impermanência e


ausência de um eu persistente é puramente neutra, sem envolver julgamento
de valores.

Na vida real, entretanto, tudo está sujeito a julgamentos de valores de


alguma espécie: coisas são prazerosas ou dolorosas, boas ou más, sagradas
ou profanas.

Os dois últimos selos da Darma – toda existência é sofrimento e


nirvana é tranqüilidade – suprem o alicerce fundamental para a lei de origem
dependente, de causa e efeito.

Todos nós temos conhecimento do sofrimento físico da doença ou


privação e do sofrimento espiritual da frustração ou medo da morte. Mas a vida
também tem prazeres inegáveis: riquezas, boa saúde, felicidade em satisfazer
desejos profundos e mais, para alguns, o bem-vindo alívio da morte.

Por dizer que toda existência é sofrimento, o Budismo tem sido criticado
como pessimista e tem sido estigmatizado como triste e sobrenatural por
alguns pensadores ocidentais. Tais críticos, entretanto, se equivocam quanto
ao verdadeiro significado de que toda existência é sofrimento e ignoram suas
conexões com o nirvana como tranqüilidade. O Budismo chama a atenção para
as opressões da vida, a fim de lançar o fundamento para a mensagem que há
uma saída. Qualquer pessoa que veja apenas a verdade do sofrimento e deixe
de ver a verdade da extinção do sofrimento perde o ponto completamente.

Quanto mais alto for o ideal de uma pessoa, maior será o seu
desapontamento com as imperfeições, insuficiências e durezas do mundo.
Comparada com as visões de perfeição, a vida é um vale de lágrimas. Mas a
consciência das imperfeições da vida leva seres humanos à espiritualidade
como um caminho para libertação e salvação. Se a vida não tivesse tristeza e

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ansiedade, e fosse apenas repleta de alegria e felicidade, não haveria
necessidade de religião ou fé. Reconhecer os sofrimentos da vida, os pontos
fracos individuais e a dor é ponto de partida para a espiritualidade. A afirmação
de que “toda existência é sofrimento” é o portal da fé Budista e a única visão
possível para o presente não-iluminado de um ser humano não-iluminado.

Não mais permanente do que qualquer outro aspecto do mundo, o


sofrimento pode ser convertido em felicidade.

Procurar pela causa da existência do sofrimento é o primeiro passo


necessário para atingir essa transformação. Apenas examinando as relações
causais que dão origem às tristezas é possível descobrir o caminho lógico de
eliminá-las. Foi precisamente isso que Xaquiamuni Buda fez.

A segunda das Quatro Nobres Verdades dá como causa do sofrimento


o apego. A terceira e a quarta das Nobres Verdades enunciam o caminho para
se eliminar o sofrimento, atestando um estado no qual o sofrimento é extinto,
e ensinando o Caminho de Oito Aspectos como o caminho para alcançar esse
estado.

Assim podemos perceber a inter-relação e a grande proximidade entre


os Selos do Darma, as Quatro Nobres Verdades e a Lei de Origem
Dependente.

Os princípios de impermanência universal e a ausência de um eu


constante formam a base da lei neutra de origem dependente, que não se
preocupa com valores humanos.

As doutrinas de sofrimento universal e nirvana são a fundação para a


aplicação prática da lei de origem dependente, na qual julgamento de valor
está implícito. Em outras palavras, a lei de origem dependente serve como a
estrutura de suporte para as Quatro Nobres Verdades.

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Pontos de vista sobre a humanidade e destino

Inevitavelmente, a filosofia do Budismo, direta ou indiretamente, sofreu


influência de outras escolas de pensamento prevalentes na Índia da época de
Buda.

Nada pode ocorrer sem relacionar-se com a situação histórica, mas


grandes professores como Buda podem elevar-se acima da situação e criar
uma nova situação.

Xaquiamuni Buda examinou profundamente todas as doutrinas


filosóficas e religiosas de seu tempo. Adotando o que considerou ter valor e
descartando o que achou sem valor, estabeleceu a filosofia Budista. Esta
filosofia de Buda é diferente de todas as outras pelo ensinamento de origem
dependente, ensinamento que o próprio Buda descreveu como sem
precedentes e como uma verdade absoluta aplicável universalmente.

O capítulo seguinte tratará disso em detalhe. Para nosso propósito de


discurso geral é suficiente dizer que o conceito central no qual está baseado é
que todo fenômeno é produzido por causação, não sendo espontâneo nem
fortuito.

Esta doutrina se diferencia de todas as outras contemporâneas a ela,


quanto a este objetivo. As outras filosofias da Índia antiga tentavam examinar a
questão de uma existência fundamental e original, enquanto Buda insistia que
tais coisas estão num nível acima da compreensão e experiência humanas.

Uma religião de bom senso, o Budismo se concentra primeiramente, não


em abstrações além do conhecimento humano, mas com o mundo da
experiência atual e em possibilitar que seres humanos vivam bem neste
mundo. Para esse fim, Buda apresentou os ensinamentos dos Selos do Darma,
Origem Dependente e as Quatro Nobres Verdades.

Havia contemporâneos de Xaquiamuni Buda que se opunham


veementemente à idéia de Origem Dependente e causação cármica. Várias
escolas de pensamento interpretavam o destino e o papel da humanidade no
mundo e em sociedade de maneiras diferentes. Para alguns, tudo era

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determinado pela vontade divina. O Bramanismo ortodoxo acreditava que as
divindades criadoras, Brama e Maheshvara, controlam tudo no universo,
incluindo ações e comportamentos humanos. Para obter bênçãos dos deuses
era essencial rezar, fazer sacrifícios e outros atos para propiciar as bênçãos.
Os que seguiam essa forma de pensar matavam outras criaturas a fim de
providenciar os sacrifícios que lhes dariam as bênçãos divinas. Mas, talvez a
maior riqueza da crença em uma divindade com poder onipotente seja o efeito
que tem sobre os esforços humanos de disciplina pessoal e desenvolvimento.
Se tudo está nas mãos dos deuses, tais esforços não levam a nada.

Havia ainda muitos outros pontos de vista em referência à humanidade e


destino na época de Buda. Alguns ensinavam um fatalismo absoluto, dizendo
que tudo é inexoravelmente determinado pelo carma de existências anteriores
e que não podem ser modificados nem minimamente. Esse ponto de vista tem
um efeito tão debilitante no esforço humano quanto a crença numa vontade
divina onipotente.

Outra filosofia majoritária naquela época era a crença na classe social


inata. De acordo com essa doutrina, seres humanos nascem em uma das seis
classes que inexoravelmente determinam sempre a posição social,
circunstâncias, tempo de vida, capacidades intelectuais, força física, e assim
por diante.

Ainda outro ensinamento era a doutrina dos elementos constituintes, ou


seja, a maneira pela qual os quatro elementos se combinaram durante o
nascimento. De certa forma similar às crenças modernas de que o tipo de
sangue ou a herança genética determinam tudo na vida, essa filosofia deixa de
levar em consideração causas e condições além dos quatro elementos, sendo
assim outra forma de fatalismo.

Nenhuma dessas filosofias deixa espaço para desenvolvimento próprio a


fim de alterar seu próprio destino. Nesses sistemas educação, disciplina
pessoal e treinamento espiritual com o objetivo de se aperfeiçoar são sem
sentido e sem valor. É grande o contraste com o Budismo, que, enquanto
adota a idéia de relações causais e carma da filosofia Indiana em geral,

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também mostra a possibilidade de alterar o destino e a personalidade ao
adicionar bom ou mal carma durante a vida.

Ainda assim, todos esses sistemas posicionam causação de uma forma


ou de outra. Alguns que filosofavam sobre a situação humana nos dias de
Buda, rejeitavam toda causa, direta ou indireta, e insistiam que tudo ocorre
espontaneamente ou por acidente. A época de Xaquiamuni Buda era de
conflitos e confusão. Geralmente o bom sofria e o mal florescia, sendo difícil
para algumas pessoas crer em sua determinação causal ou vontade divina.
Nessas circunstâncias, é compreensível que as pessoas deixassem de ver
causa em tudo e conseqüentemente expusessem uma filosofia hedonista.

Todas as doutrinas esboçadas até agora caem bem dentro dos limites
de religião e pensamento Indu ortodoxo.

Entretanto, durante os dias do Xaquiamuni Buda, muitos religiosos não–


ortodoxos procuravam a verdade à sua maneira. Xaquiamuni Buda era um
deles. Muitos de seus contemporâneos e contemporâneos próximos são
referidos nos textos Budistas como os seis professores heterodoxos (não-
Budistas). As filosofias desses homens, embora diferentes em muitos aspectos,
parcialmente se parecem mais com as visões ortodoxas, mas geralmente se
diferenciam fortemente da orientação Budista de moral prática, de pés na terra.

Puruna-Kassapa, um desses seis homens, simplesmente recusava a


idéia de causação. No Sutra Pali dos Frutos da Vida de Um Recluso
(Samannaphala – sutta), está escrito que ele declarou que os méritos de uma
pessoa não aumentam nem diminuem, não importando qual a quantidade de
suas fraquezas, incluindo a mutilação e assassinato de multidões, ou a
quantidade de boas ações, incluindo dar esmolas e sacrifícios, que a pessoa
possa ter feito.

Makkhali-Gosala, outro dos seis professores heterodoxos, fora


originalmente um Jainista que mais tarde desenvolveu sua própria filosofia.
Makkhali-Gosala negava todas as causas, original, próxima e remota, e insistia
que a classe na qual as criaturas nascem determinam sua boa ou má sorte,
que nem letargia ou trabalho de suas partes poderia alterar.

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O materialista Ajita-Kesakambali também repudiava causa e efeito,
insistindo que seres humanos são constituídos apenas de terra, água, fogo e ar
e desaparecem completamente com a morte, nada deixando para afetar o
Karma. Segundo ele, desde que os elementos que compunham uma vida
revertem ao seu estado original com a morte, é sem sentido falar de bom ou
mal karma de atos compassionados ou maus. Interessante que o materialismo,
exemplificando pelos ensinamentos de Carvaka, ou da escola Lokayata,
continuam a influenciar o pensamento Indu muito depois da Ajita-Kesakambali.
Enquanto rejeitam religião e moralidade, entretanto, os materialistas hindus
usualmente se envolvem em práticas ascéticas de disciplina pessoal, talvez
criticando os religiosos hipócritas que viram à sua volta.

O atomista Pakudha-kacchayana posicionava sete categorias


permanentes e imutáveis (água, terra, fogo, ar, bem-estar, dor e a alma) que
não são nem surgidos, nem formados. Ele insistia que desde que essas
categorias não violem nem firam, de forma alguma, umas as outras, não existe
nenhum ator, nem nada para se agir sobre. Não há assassino nem assassinar:
ninguém ouve nem ninguém causa o ouvir; nenhum saber ou causas do saber.
Quando um ser humano fere outro com uma espada, ele não fere o outro; a
espada apenas passa através dos elementos do corpo da vítima.

Esses filósofos rejeitavam a idéia de carma.

O cético Sanjaya-Belatthiputta não aceitava, nem rejeitava a idéia de


carma, porque ele acreditava que não se poderia ter um conhecimento
absoluto sobre coisa alguma. Ele achava que um assunto não poderia ser
interpretado de muitas formas diferentes. Considerava as várias doutrinas
sobre a humanidade e destino, propostas pelos professores da sua época,
totalmente subjetivas. Sanjaya-Belatthiputta acreditava mais sábio não discutir
sobre qual interpretação de bem ou mal era correta e seguir o curso de uma
ação prática e séria. Embora possa estar bem direcionado sob o ponto de vista
teórico e acadêmico, este ceticismo deixa de lado uma verdadeira análise do
assunto. Céticos, que duvidam de tudo, são geralmente reduzidos à posição
embaraçosa de duvidar de seus próprios ensinamentos.

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Do ponto de vista Budista, esta filosofia é sofisticada (Dois dos principais
discípulos de Buda, Shariputra e Maudgalyayana foram seguidores de Sanjaya-
Belatthiputta durante certo tempo, mas ficaram insatisfeitos com seus
ensinamentos e se tornaram discípulos ao ouvir Xaquiamuni Buda. O tio de
Shariputra, conhecido como “o ascético itinerante de longas unhas” se tornou
Budista após ter considerado as contradições das doutrinas céticas que até
então seguia.)

O último dos seis professores heterodoxos era Mahavira, o fundador do


Jainismo. Provavelmente por aceitar e adotar as doutrina de causação e
retribuição cármica comum dessa época, o Jainismo cresceu vigorosamente –
seguido apenas pelo Budismo – e existe até hoje, com mais de dois milhões de
seguidores na Índia atual. Do ponto de vista Budista, os Jainistas são fatalistas
na teoria, embora não sejam tanto na prática. Sua seriedade faz com que
recebam a confiança e o respeito de muitas pessoas, mesmo quem não
compartilha de seus pontos de vista.

Causação

O pensamento Budista rejeita todas essas visões filosóficas e muitas


outras superstições sobre disciplina e destino, comuns naquela época. Estas
eram consideradas interpretações errôneas da verdadeira relação entre causa
e efeito. Corrigi-las é um de seus objetivos.

Dois fatores distinguem a lei de origem dependente, ensinamento


Budista de causalidade, das filosofias Hindus contemporâneas.

Primeiro, a doutrina Budista se concentra no mundo de experiência atual


e não faz nenhuma tentativa em lidar com absolutos universais, que estão além
da influência e cognição humanas.

Segundo, os ensinamentos de Buda pregam que a dada condição,


requisitada por uma causa, surge seu inevitável efeito. Rejeita a idéia de um
destino humano fortuito e rejeita a idéia de que a vida seja completamente
governada por uma simples causa fixa.

18
Apesar das correspondências entre a lei de origem dependente e a
ciência moderna, o Budismo não trata da ciência e da razão, mas da causa do
sofrimento na vida humana e da maneira de eliminá-lo, tornando possível
atingir um estado ideal.

Nos pensamentos de Budismo primitivo, os princípios por trás da teoria


são colocados de várias formas concretas. Uma das mais conhecidas é a
corrente de Doze Elos da Origem Dependente. Adicionando-se a esta doutrina,
ocorrem tais fórmulas descritivas: “se isto existe, aquilo existe; se isto entra em
existência, aquilo entra em existência; se isto não é, aquilo não é; se isto deixar
de ser, aquilo deixa de ser”; ou “tudo que vem a ser precisa deixar de ser”.

E, naturalmente, as Quatro Nobres Verdades, as quais, embora


orientadas para treinamento e disciplina pessoal, tomam a forma de explicação
causal. Todas estas expressões da teoria são fundamentais e padronizadas e
não tratam de fenômeno particular.

Na história do Budismo, duas opiniões principais sobre a natureza das


relações de causa e efeito evoluíram. Budismo sectário primeiramente deu
mais atenção às relações entre causa e efeito: as relações de causa-efeito no
espaço e no tempo, natureza direta e indireta, ação simultânea e paralela,
dependência, positividade e negatividade, e assim por diante.

A essência sutil dessas análises e categorizações, entretanto, é a de


que todo fenômeno está intimamente relacionado a todos os outros através de
causa e efeito. Em termos usados por acadêmicos do Budismo Chinês, mais
tarde, como Hua-yen (Guirlanda de Flores), “Um é o todo, o todo é um”.

A doutrina de origem dependente encontrada no Budismo Theravada e


Budismo sectário e nos ensinamentos das escolas posteriores do Budismo da
Ásia Ocidental, enfatizam uma relação seqüencial de tempo com relação aos
efeitos cármicos. De acordo com este ponto de vista, a causa necessariamente
precede o efeito.

19
A segunda interpretação é encontrada nos ensinamentos dos sutras da
Perfeição da Sabedoria. O Budismo Madhyamika, da Índia, e sua encarnação
chinesa, o San-lun (Três Tratados), e a escola T’ien-t’ai (Tendai), cujas
doutrinas são derivadas do Sutra de Lótus.

Essa interpretação insiste que todas as causas e efeitos existem


simultaneamente e suas influências estão conectadas umas as outras, em
relações espaciais, ao contrário de seqüências temporais. Embora as duas
interpretações pareçam separadas e exclusivas, de fato cada uma inclui
elementos da outra, desde que origem dependente descreve todas as coisas
tanto no espaço como no tempo.

Várias interpretações da doutrina de origem dependente são possíveis.


Por exemplo, origem dependente pode ser entendida como um princípio eterno
ou como uma explicação dos fenômenos e eventos da vida atual.

Xaquiamuni Buda declarou que origem dependente é uma verdade


eterna, quer budas apareçam ou não na terra para proclamá-las. Mais ainda
ele lidava com a origem dependente na vida diária, no emergir, modificar e
desaparecer dos fenômenos.

Uma distinção semelhante entre interpretações abstratas e teóricas e a


interpretação da realidade prática atual, pode ser feita em relação das Quatro
Nobres Verdades com os vários elementos da fé e da filosofia Budista.

Origem dependente pode ser analisada em termos de efeitos internos,


psicológicos e externos, objetivos. Mas em todas suas interpretações, origem
dependente é ou geral e neutra ou orientada em valores.

Origem dependente neutra é a da espécie expressa em fórmulas como


“Se isto existe, aquilo existe; se isso se torna, aquilo se torna; se isto não
existe, aquilo não existe, e se isto deixa de existir, aquilo deixa de existir.”

Contrastando com a doutrina de origem dependente neutra, que apenas


explica como as coisas entram e saem de existência, os ensinamentos de
origem dependente de orientação em valores ensinam aos seres humanos
como fazer algo sobre a situação objetiva explicada pela origem dependente

20
neutra. Os valores pelos quais este tipo de origem dependente é aplicável são
os valores budistas de bem e de mal, pureza e impureza, iluminação e delusão.
E não os limitados valores racionais de verdadeiro ou falso.

Origem dependente orientada em valores inclui os ensinamentos de que


ignorância, o primeiro elo da corrente de doze elos, leva finalmente ao
nascimento, velhice, morte e renascimento, isto é, a prisão dentro do ciclo de
transmigração. Também inclui o ensinamento de que escapar desse ciclo e
obter um estado ideal é possível. Primeiramente a ignorância deve ser
eliminada e então todos os outros elos da corrente são eliminados.

Não importa como seja interpretada ou aplicada, a lei de origem


dependente tem mantido a essência de todo Budismo desde os ensinamentos
primitivos através da Theravada, do sistemas sectários de Abhidharma até os
ensinamentos Mahayana desenvolvidos na Índia, China e Japão.

No grande discurso de Similaridade das Pegadas do Elefante


(Mahahatthi-padopama-sutta) um texto Pali, Xaquiamuni Buda diz: “A pessoa
que compreende origem dependente, compreende o Darma. A pessoa que
compreende o Darma, compreende a origem dependente”.

O (a) praticante que compreendeu o fundamento da lei de origem


dependente, “todas as coisas que entram em existência devem deixar de
existir”, é considerado(a) como tendo alcançado o primeiro estágio do caminho
do sábio. A esta pessoa dizemos que obteve o Olho do Darma, a habilidade de
ver a verdade da origem dependente.

Talvez a mais sofisticada expressão da lei de origem dependente, seja a


Corrente de Doze Elos da Origem Dependente, para a qual trataremos no
próximo capitulo.

A corrente de Doze Elos da Origem Dependente

Através da história Budista, desde a época dos ensinamentos primitivos


através do sectarismo e do Budismo Mahayana na Índia, China e Japão, a
Corrente de Doze Elos da Origem Dependente tem sido o sistema mais usado

21
para se explicar o principio Budista de causação. Nos primeiros sutras o
número de elos varia. Às vezes a série é de mais de Doze Elos, em outros
casos dez, nove, oito, sete, ou mesmo dois ou três elos (...). A ênfase principal
é no sofrimento deste mundo e nas razões pelas quais ocorre (...).

Ignorância, o primeiro elo, significa falta de conhecimento correto dos


princípios Budistas e das verdades do mundo e da existência humana.
Ignorância é a causa fundamental dos erros e das tristezas que surgem a
partir deles.

Ação, o segundo elo, é a conduta errônea causada pela ignorância. No


Budismo este termo “ação” significa “ações presentes” e “ações acumuladas do
passado”. A soma de ações do passado é de suma importância. Não apenas
as resultantes de ignorância, mas também experiências gerais, tanto boas
como más, físicas ou espirituais, são um força latente, constantemente
exercendo influência no pensamento e na conduta. Uma pessoa é o total de
tudo o que já fez no passado, e “ação” na Corrente de Doze Elos, significa o
total de experiências errôneas anteriores, causadas pela ignorância dentro do
ciclo de transmigração.

Consciência, o terceiro elo, significa “percepção como um todo”, que se baseia


em experiências passadas, ou que as incorpora. A consciência humana é, de
certa forma, como um filtro turvado por preconceitos derivados de experiências
anteriores, preconceitos tais que torna impossível a compreensão e os
julgamentos objetivos. A consciência é tanto a faculdade de perceber-se no
que está acontecendo de momento a momento no presente, como a soma de
todas as consciências experimentais desde o nascimento. Não é fixa ou
imutável. A cada nova experiência a consciência com a qual a pessoa nasceu é
alterada. O Budismo, conquanto reconheça carma e personalidade, recusa a
idéia de um “eu” permanente em todas as coisas; logo, a consciência não
poderia jamais ser comparada ao espírito ou à alma.

Nome (função mental) e forma (existência material), nesta corrente se referem


especificamente a fenômenos mentais ou materiais, objeto da mente e dos
nossos cinco sentidos físicos. As formas, os sons, os odores, os sabores e o
tato – realidades materiais - são objetos da mente.

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Contato é a função dos órgãos dos sentidos, os seis campos dos sentidos e as
seis consciências, estimulando o “estar ciente de”. Aqui estão inclusas as
condições “claridade” e “proximidade” do objeto que está sendo percebido, e a
direção da atenção em relação a ele. “Contato” envolve um amálgama dos três
elos precedentes da corrente.

Sensação significa prazer ou dor (ou não-prazer e não-dor) resultantes do


reconhecimento de um objeto, influenciados por experiências anteriores.

Desejo (em sânscrito “trisha”, significando desejo ou sede), é um impulso


instintivo, baseado na ignorância. Não tem razão ou lógica, como alguém
querendo beber água quando está com sede. Subdivide-se em três categorias:
desejo físico, sensual, que inclui amor sexual; desejo de existência – querer
viver sem sofrimentos – e desejo por não –existência (aniquilação).

Apego seria a ação do desejo de tentar alcançar o que é desejável e


descartar-se do indesejável.

Tornar-se é o ser potencial que se acumula devido ao desejo e inclui


elementos da constituição humana tais como a capacidade intelectual,
temperamento, aptidões e psique.

Nascimento é a realização da existência potencial. Refere-se a momentos


futuros de nossas vidas, que são governados pela experiência total de nossas
vidas presentes.

Velhice e Morte são conseqüências inevitáveis do nascimento. Se vistas


erroneamente, podem ser causa de sofrimento e desespero.

Esta corrente de Doze Elos da Origem Dependente dá uma explicação


concreta das relações cármicas que causariam sofrimento a partir da
ignorância. Entretanto, em nossa vida atual, sofrimento é o resultado de mais
que influências cármicas individuais. Pensamentos e ações (carma de
pensamento, palavra e ação) não são os únicos fatores de felicidade ou
tristeza. Aprendizado, acúmulo de conhecimento, memória, tem parte
importante na formação do caráter e exercem influência no destino. Nenhum
ser humano tem completo controle sobre as causas de felicidade ou

23
infelicidade. Freqüentemente estas ocorrem parcial ou completamente em
função de acontecimento naturais ou condições sociais.

A filosofia do Budismo de Hua-yen faz uma distinção clara entre origem


dependente, num plano puramente individual, e origem dependente num plano
mais abrangente, no qual tudo está intimamente conectado com tudo o mais,
tanto no espaço como no tempo. O Sutra da Guirlanda de Flores, principal
escritura da escola Hua-yen, tem a imagem de uma vela cercada de espelhos.
A luz é refletida em todas as direções. Nenhuma parte pode ser descrita
completamente sem descrever o todo; nem o todo pode ser descrito sem se
referir às partes. Entretanto, cada parte tem sua existência identificável.

A Corrente dos Doze Elos de Origem Dependente é chamada de


“origem dependente de determinação cármica”. Mas, este sistema não fixa o
destino irrevogavelmente e nem explica tudo o que as pessoas fazem. A vida é
influenciada por todas as espécies de leis naturais e científicas: físicas,
matemáticas, químicas, fisiológicas, psicológicas, econômicas, políticas,
jurídicas, éticas e estéticas. Todos esses padrões e princípios constantemente
se misturam e interagem uns com os outros, e também com o carma, numa
complexa mistura do que é objetivo e do que é subjetivo, fenômeno que
constitui a vida. Esta Corrente de Doze Elos é uma explicação metafórica. As
relações causais de origem dependente são infinitas.

Devido a essa infinita teia de inter-relações causais, a menor ação


influencia tudo através do espaço e do tempo. Não apenas o seu próprio futuro,
mas toda a sociedade.

O ponto de vista fundamental, baseado na lei de origem dependente, é


que a sociedade é um macro-cosmos composto de indivíduos inter-
relacionados, todos com responsabilidades comuns pelo bem comum.
Egoísmo, que não leva em consideração as necessidades do resto do mundo,
contradiz este princípio de interdependência universal. Ninguém pode ser
completamente feliz a menos que a sociedade em que vive seja feliz e
próspera. O caminho para conseguir felicidade pessoal, ao mesmo tempo em
que se ajuda a sociedade a mover-se na direção correta, é esquecer-se de si

24
mesmo e considerar o bem de todo o corpo social, Não é fácil, mas manter
este objetivo em mente e mover-se nessa direção é o que importa.

As Quatro Nobres Verdades

A razão principal de todas as religiões é curar a doença do espírito e


criar uma condição psicológica integrada, completa. Mas, muitas pessoas não
reconhecem a diferença entre saúde espiritual e doença espiritual. Os
ensinamentos das Quatro Nobres Verdades e do Caminho que se Divide em
Oito são os alicerces de um sistema altamente racional, que não apenas
corrige distúrbios espirituais, mas também promove saúde espiritual e encoraja
seu constante desenvolvimento e progresso.

Baseado na compreensão do princípio de causa e efeito, o Budismo


acuradamente identifica ações mentais e conseqüências com os efeitos de
causas, e aplica este princípio à criação de uma condição espiritual ideal. Este,
o sentido básico das Quatro Nobres Verdades.

A doutrina de causa e efeito é puramente teórica, enquanto as Quatro


Nobres Verdades e o Caminho que se Divide em Oito são maneiras práticas.

A primeira Nobre Verdade é que nascimento é sofrimento, velhice é


sofrimento, doença é sofrimento, morte é sofrimento, estar unido a quem se
detesta ou ao que se detesta é sofrimento, separar-se do ser amado ou do que
se gosta é sofrimento, deixar de obter o desejado é sofrimento.

A segunda é que existe uma causa para o sofrimento, representada pelos


desejos.

A terceira é a de que é possível acabar com os sofrimentos; todas as


obstruções, incluindo a ignorância, podem ser eliminadas.

Nirvana é esse estado, onde todas as obstruções foram eliminadas e pode-se


viver com liberdade seguindo o ideal Budista. O termo “Nirvana” significa
literalmente “apagar”, “extinguir”. Assim, como o vento apaga a chama,
disciplina pessoal e prática religiosa podem extinguir a chama das obstruções

25
que causam sofrimento. Nirvana não é um conceito para ser pensado e
compreendido intelectualmente, mas a verdadeira realização do estado ideal
em cada pensamento e ação, consumados na perfeita libertação de todos os
obstáculos e impedimentos, sem esforço físico ou mental, e na ação
espontânea e natural da perfeição.

Conceitos Básicos Budistas - Aprendizado Triplo

Kai jô e

Preceitos (kai)

Os sermões de Xaquiamuni Buda, apresentados nas escrituras do


Budismo primitivo, concentravam-se em sistemas práticos de fé e ações
destinadas a ajudar os seres humanos a obter o estado ideal de iluminação. Há
vários sistemas de diversos níveis de complexidade e sofisticação, mas ao
invés de tentar explicar cada um deles, irei entrar em alguns detalhes do
sistema chamado “aprendizado triplo” – preceitos, meditação e sabedoria – e
suas relações com o Caminho Óctuplo.

O aprendizado triplo, assim como o Caminho Óctuplo, pode ser


abordado de duas maneiras: gradual e simultânea. A abordagem gradual
insiste em que é necessário ao praticante primeiro dominar a fundo os
preceitos, em seguida a meditação e, finalmente, a prática da sabedoria.

A abordagem simultânea sustenta que os três aspectos não podem ser


separados, que cada um contém os outros dois. Logo, os três devem ser
praticados meticulosa e simultaneamente.

Provavelmente, a verdade deverá estar numa combinação das duas


abordagens. Mas, aqui, por conveniência, discutirei o aprendizado triplo de
maneira tradicional.

No Patimokkha, código de preceitos em relação ao comportamento do


Vinaya em Pali, há muitas espécies de preceitos que formam a base da prática

26
religiosa. Os mais fundamentais são os cinco preceitos para budistas leigos:
não matar, não roubar, não incorrer em atividades sexuais impróprias, não
mentir e não se intoxicar. Estabelecidos positivamente, esses preceitos nos
aconselham a amar e proteger as criaturas vivas, ser generosos, viver de
acordo com a moral sexual, sempre dizer a verdade e ter uma vida livre de
dissipações.

Há vários grupos de preceitos. Um deles compreende 250 preceitos para


monges e 348 para monjas. Em outro grupo são dez para noviças e noviços.
Em outro, seis para noviças casadas. Além dos cinco preceitos para leigos
mencionados acima, tanto leigos como leigas budistas deveriam seguir outros
oito preceitos, em quatro ou seis dias específicos de cada mês. Esses
preceitos se relacionam com não matar, não roubar, evitar qualquer atividade
sexual, não mentir, não tomar intoxicantes, evitar o uso de perfumes, dançar e
ou ir ao teatro, sentar ou dormir em móveis altos ornamentados e comer depois
do meio-dia.

O Vinaya requer que leigos budistas sigam regras diferentes, de acordo


com o sexo e o estado civil. Há méritos em se manter diferentes grupos de
preceitos. O Vinaya também inclui injunções para se viver corretamente e livre
do mal, tanto em ações como em palavras, assim como evitar freqüentar
lugares que conduzam ao erro e à depravação.

Os preceitos são um treinamento tanto espiritual como físico, uma rotina


feita para criar as bases da concentração durante a meditação. Corpo e mente
devem estar condicionados a fim de se atingir a concentração da meditação
(“dyana” em sânscrito, “ch’an” em chinês e “zen” em japonês). Comer muito,
viciar-se em bebidas, não dormir o suficiente e trabalhar em excesso deixam o
corpo em más condições e a concentração da meditação tornar-se impossível.
Os preceitos têm em comum o objetivo de levar o praticante a viver
corretamente e criar hábitos que tornem a vida equilibrada e saudável.

A parte mental dos preceitos é destinada a livrar a mente de


perturbações e conflitos. A noção de se haver violado os preceitos causa
perturbações mentais, peso na consciência e vergonha ou medo de crítica ou
punição. Outros fatores podem produzir esses sentimentos, tais como

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problemas sociais, financeiros e domésticos. A disciplina mental dos preceitos
tem como objetivo eliminar essas preocupações e criar a base mental de
concentração para a meditação.

Preceitos (Kai) no Budismo Mahayana

Observar os preceitos é o segundo Paramita (Seis Paramitas ou


Perfeições) do Budismo Mahayana. (...) Movendo-se em direção à
espiritualidade ideal, com os três puros preceitos: não fazer o mal, fazer o bem
e trabalhar pelo benefício de todos os seres.

No Budismo Mahayana da China e do Japão os Três Tesouros são


integrados aos Preceitos. [Dogen Zenji define dezesseis preceitos, incluindo o
Refúgio nos Três Tesouros, os Três Preceitos de Ouro, e os Dez Graves
Preceitos]. No Budismo primitivo, os Três Tesouros estavam conectados aos
preceitos não como preceitos em si, mas como um dos quatro objetos
indestrutíveis de fé.

Mesmo sendo vistos como objetos de fé na Índia, na China e Japão


nota-se a identificação histórica da fé com os preceitos. A prática educacional
budista de equacionar disciplina e fé para aqueles que se encontram nos
primeiros níveis de desenvolvimento, assim como para leigas e leigos, noviças
e noviços, explica em parte a prática sino-japonesa. Sem grande sabedoria,
tais pessoas precisam ter fé nas palavras de líderes experientes e considerar
uma obrigação moral confiar implicitamente no significado religioso de Buda, na
verdade dos ensinamentos do Darma, no significado ético e social da Sanga e
na importância ética e moral dos Preceitos.

Dessa forma, entre outras, a unidade dos ensinamentos budistas pode


ser verificada. Fé no Darma significa fé em todos os aspectos, como
ensinamentos da verdade, ensinamentos de libertação e ensinamentos éticos.
Em outras palavras, fé no Darma é equivalente à fé no Kai Jô E - aprendizado
triplo: sabedoria (E) manifestada como o verdadeiro Darma, meditação (Jô)
manifestada como libertação obtida através da meditação budista, ou

28
invocação do nome de Buda, e preceitos (Kai) manifestados como
ensinamentos éticos.

Em alguns casos, fé e preceitos não são igualados, mas, mesmo assim,


intimamente relacionados, sendo fé um pré-requisito para preceitos. Como
mencionei anteriormente, numa classificação do Caminho Óctuplo, o primeiro
aspecto, ponto de vista correto, também pode ser interpretado como fé correta.
Os passos seguintes – pensamento correto, fala correta, ação correta e meio
de vida correto – constituem preceitos a serem praticados depois de haver
surgido a fé. Uma relação similar é encontrada no Budismo primitivo com as
cinco regras para leigas e leigos e noviças e noviços: ter fé, seguir os preceitos,
ouvir os ensinamentos, ser generoso e praticar continuamente a sabedoria.
Novamente, aqui, a fé precede os preceitos.

Embora requerer fé antes de disciplina seja uma psicologia educacional


saudável, devemos nos lembrar que a disciplina pode ocorrer de várias formas,
desde o nível mais baixo e fundamental até o mais alto e sofisticado. Por
exemplo, de acordo com o Budismo sectário do Tratado de Abidarma, os
preceitos estão agrupados em três categorias, de acordo com o nível de
desenvolvimento do indivíduo. Na primeira categoria estão os preceitos pela
liberação através da conduta de se evitar todo o mal, dirigidos aos leigos e
leigas. Na segunda, os preceitos para a prevenção do mal através da
meditação, para aqueles e aquelas que meditam enquanto se mantém no nível
da forma. E na terceira, os preceitos para pessoas nas quais o mal é
impossível, designados para os (as) sábios(as) que já se libertaram de todas as
ilusões.

Geralmente, os leigos seguem a primeira categoria de preceitos, tanto


por terem sido assim instruídos, como em conseqüência de sua própria força
de vontade; esperam prêmios, como o renascimento num nível celestial ou,
pelo menos, boa sorte e felicidade neste mundo, como resultado de sua
obediência. Assim, os preceitos das pessoas comuns, duelando no nível dos
desejos, são preceitos incompletos, cujo objetivo é a felicidade neste mundo,
ou no seguinte.

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Há muito pouco em relação à segunda categoria de preceitos, aqueles a
serem observados pelos que meditam, já que não há oportunidade de quebrar
os preceitos enquanto se medita. Também, sábios que já se livraram de todas
as ilusões não necessitam de coerção para obedecer aos preceitos, desde que
se tornou impossível para eles desobedecê-los. Para os sábios, obediência é
automática e habitual. Sua fé é completa e estão firmemente estabelecidos no
correto ponto de vista budista do mundo e da humanidade.

Toda pessoa budista é encorajada a seguir os preceitos dos sábios, já


que o estado de sabedoria suprema é o objetivo essencial. Realmente, uma
vez que os preceitos tenham sido perfeitamente assimilados, meditação e
sabedoria deixam de ser necessárias. Na verdade, a doutrina fundamental da
escola chinesa de Budismo, baseada no Vinaya, dizia que observar os
preceitos era suficiente para se obter libertação, iluminação.

Uma passagem do Sutra Mahayana da Rede Brahma (Brahmajala-sutra)


estabelece que os seres que mantém os preceitos budistas atingem estado de
iluminação idêntico àquele dos budas. Aqui, “preceitos” se referem aos quatro
indestrutíveis objetos de fé e inclui, em alguma medida, meditação e sabedoria,
que são as duas outras formas de aprendizado. Em outras palavras, como é
verdade em muitos ensinamentos budistas sobre meditação e sabedoria, a
doutrina encontrada no sutra Mahayana engloba o espírito do ensinamento
primitivo, ou sua forma embrionária na escritura primitiva.

Conceitos básicos de meditação (Jô)

Para podermos discutir corretamente meditação budista devemos fazer


uma breve revisão em uma pequena parte da cosmologia budista.

O budismo ensina que pessoas comuns experimentam três estágios


mentais ou espirituais, conhecidos como os três níveis de existência: o mundo
do desejo (kama-dhatu), o mundo da forma (rupa-dhatu) e o mundo da não
forma (arupya-dhatu).

No nível dos desejos os sentidos comandam. No nível da forma não há


apegos sensuais, mas a forma existe. Este nível pode ser atingido através da

30
prática de “dhyana”, Zen, meditação budista. O nível da não-forma, sem
nenhuma forma física, é uma condição de profunda calma e puro espírito. Este
nível também pode ser obtido através de “dhyana”, num nível mais adiantado
do que a do mundo da forma.

Originalmente, esses mundos não eram cosmológicos, mas fenômenos


psicológicos. Eram explicações dadas aos praticantes sobre os estágios de
meditação e progresso em direção à iluminação. A meditação indicada pelo
termo sânscrito “dhyana” traz bem-estar àqueles que a praticam. É um estado
que os seres mortais comuns, dominados pelos cinco sentidos, só podem
atingir após longo treinamento e domínio das disciplinas físicas e mentais dos
preceitos Mahayana.

O estado de meditação concentrada do aprendizado triplo – e a correta


meditação do Caminho que se divide em Oito – é geralmente explicado nos
quatro estágios de “dhyana”.

As descrições desses quatro estados são praticamente as mesmas,


tanto no que restou das escrituras primitivas em Páli, como em sânscrito ou
chinês.

O Pasadika-sutra, em Páli, define assim: no primeiro estágio de


“dhyana” o meditador fica livre de todo desejo e todo mal, mas continua a
investigar e refletir enquanto experimenta alegria (sensação emocional) e
benção (sensação física), tornando-se livre dos cinco obstáculos (ganância,
raiva, adormecimento, descontentamento e/ou arrependimento e dúvida).

No segundo estado de “dhyana” quem medita abandona investigação ou


reflexão, mas sente o prazer da concentração e experimenta a alegria e
benção do estágio anterior.

No terceiro estado de “dhyana”, transcende-se benção e sofrimento,


alegria e tristeza são abandonadas, e se experimenta pura lembrança do que é
real.

Desde que essas descrições curtas e formais não podem dar uma clara
explicação dos estados de “dhyana”, devemos nos aprofundar em detalhes
maiores.

31
No primeiro estágio o indivíduo está livre de todos os desejos sensuais,
cujos poderes sedutores perturbam a mente e tornam impossível a meditação.
O indivíduo também fica livre de todo o mal. Isto significa que a pessoa
mantém os preceitos, tanto os comandos que libertam ao suprimir o mal, como
as outras várias injunções que discutiremos mais tarde; assim, não faz o mal e
se afasta da ilusão. O meditador ainda está ligado às atividades mentais de
investigação (pensamentos de nível geral) e reflexão (pensamentos de nível
particular). Tais atividades mentais, que correspondem ao pensamento correto
do Caminho Óctuplo, ocorrem num nível superficial da mente e são as fontes
de falar e do agir.

Entretanto, o primeiro estágio não é a concentração total da perfeita


meditação budista. O meditador se mantém capaz de falar e está consciente
dos sons do mundo externo. Embora não esteja mais seduzido ou apegado aos
cinco órgãos dos sentidos, eles continuam operando. O meditador ainda está
consciente da matéria física que é objeto da percepção dos sentidos,
diferenciando forma, som, odor, sabor e sensações táteis. Assim sendo, este
“dhyana” é considerado como sendo do mundo da forma. A maior evidência de
que esta não é a completa meditação se deve à persistência de superficiais
operações mentais, como investigação e reflexão.

A alegria de se libertar dos cinco obstáculos significa que a pessoa


nesse estágio de meditação está livre dos apegos sensuais do mundo dos
desejos. Obviamente concentração não é possível se a pessoa está
adormecida ou entorpecida. A libertação deste obstáculo é essencial para a
concentração, assim como a libertação de descontentamento, arrependimento
ou instabilidade mental. Finalmente, concentração é impossível se a mente
ainda questiona a existência do bem e do mal, a relação cármica e suas
recompensas e a verdade das relações de causa e efeito.

Embora se diga que nesse estado a pessoa obtém a liberação dos cinco
obstáculos, isto não é correto. A liberação total dos cinco obstáculos só pode
ser atingida num nível muito mais alto de sabedoria budista.

No primeiro estágio de “dhyana” os obstáculos são temporariamente


eliminados. Este estado geral pode ser obtido através de sistemas e práticas
diferentes das do Budismo. Entretanto, a pessoa que obtém o primeiro estágio
32
de “dhyana” experimenta a felicidade espiritual e a bem-aventurança física da
liberdade dos cinco obstáculos, mesmo que de forma passageira. Livre de
tristezas, o meditador conhece satisfação e paz. Em suma, o primeiro estágio
possui as cinco características de investigação, reflexão, alegria, bem-
aventurança e concentração.

A diferença entre o primeiro e o segundo estados de “dhyana” se baseia


na investigação e reflexão. As escrituras de Budismo primitivo distinguem três
tipos de meditação, conforme a ocorrência de investigação ou reflexão: o
primeiro tipo apresenta investigação e reflexão; o segundo, apenas reflexão e o
terceiro, ausência de ambas.

O primeiro estado de “dhyana”, que discutimos anteriormente,


corresponde ao primeiro tipo de meditação identificada nas escrituras
primitivas. Nos outros três estados de “dhyana”, não há investigação nem
reflexão, pertencendo assim ao terceiro tipo do modelo primitivo. O que então é
o segundo tipo de meditação, sem investigação, mas com reflexão. Embora
não incluído nos quatro estados de “dhyana” deve existir, já que é mencionado
nos textos do Budismo primitivo. Sem dúvida, um estágio intermediário entre o
primeiro e o segundo níveis de “dhyana”.

Após atingir o primeiro nível de “dhyana” o meditador avança para o


segundo, no qual investigação e reflexão cessam e onde as operações de
pensamento que levam à fala e ação não mais ocorrem. Livre de toda atividade
mental superficial e da intrusão dos cinco sentidos, a mente, finalmente pura, é
capaz de se concentrar com total lucidez e tranqüilidade. Este estado se
caracteriza por alegria, bem-aventurança e concentração.

O terceiro nível de “dhyana” é atingido depois de se haver dominado o


segundo. Deixando para trás alegria e tristeza a pessoa vive numa atitude
tranqüila de desapego (isto é, sem resposta emocional), na qual correta
atenção e correta sabedoria permanecem. A mais profunda racionalidade, que
transcende pensamento superficial e especulação, é iluminada e preservada;
mente e corpo experimentam tranqüila satisfação e bem-estar. Sábios
iluminados chamam a isso “habitar em tranqüilidade” (ou permanecer em
tranqüilidade), como resultado de desapego e da lembrança do que é real. As

33
duas características desse estado são: bem-aventurança e concentração. Após
completar o terceiro nível o(a) meditador(a) entra para o seguinte.

No quarto nível a bem-aventurança física e a liberdade do terceiro


estado são abandonadas, e não existem alegrias ou tristezas físicas ou
mentais. A mente fica emocionalmente neutra e a sabedoria e atenção do
terceiro estado se tornam perfeitamente puras. Em outras palavras, livre de
todos os obstáculos sensuais e emocionais, a mente vê tranqüila e claramente
a natureza real de todas as coisas. Concentração e paz mental são totalmente
alcançadas e a mente fica tão pura como um espelho brilhante e sem
manchas, ou como águas calmas. Tanto “parar a mente” (samatha) como
“realização ou compreensão elevada” (vipassana) são completadas, e o estado
ideal meditativo de equanimidade é atingido.

O quarto “dhyana” é considerado o zênite da experiência meditativa


budista. Xaquiamuni Buda o realizou quando de sua iluminação e, novamente,
ao morrer. De acordo com a tradição do Sul, aqueles que atingem o quarto
“dhyana” obtém grande sabedoria e poderes sobrenaturais.

Outro “Dhyana”

Completar os quatro “dhyana” no mundo da forma requer longa


preparação e várias práticas de concentração mental. O “dhyana” deste
período preparatório é chamado “dhyana” do mundo dos desejos. Sem entrar
no preciso processo psicológico desse “dhyana” podemos notar que após
praticá-lo energicamente, várias e várias vezes, o primeiro “dhyana” do mundo
da forma pode ser obtido por um breve instante. Entretanto não pode ser
mantido, logo se perde. Depois que esses breves momentos do primeiro
“dhyana” do mundo da forma são atingidos sucessivas vezes vai se tornando
mais fácil alcançá-lo, e a experiência se mantém por tempo mais longo.
Finalmente, o meditador pode entrar e sair livremente do primeiro “dhyana” do
mundo da forma.

34
Meditação (Jo)

O meditador que gradualmente muda do primeiro para o segundo


“dhyana” da forma entra neste através do próprio “dhyana” do mundo do desejo
(da mesma maneira, a primeira entrada no terceiro e quarto “dhyana” do
mundo da forma são obtidas através do “dhyana” do mundo do desejo). O
meditador não passa diretamente do primeiro “dhyana” do mundo da forma
para o segundo, mas volta para o mundo do desejo e pratica um “dhyana”
preliminar desse nível.

No Tratado dos Arquivos do Abidarma esses “dhyana” preliminares são


chamados de “ainda não chegados” (anteriores ao primeiro “dhyana” do mundo
da forma) ou “dhyana” de aproximação. O “dhyana” preparatório é similar em
conteúdo à meditação para a qual prepara o caminho. Por exemplo, o
“dhyana” preparatório para o primeiro “dhyana” do mundo da forma é marcado
por alegria e benção, o do terceiro por benção e o do quarto por desapego.

Para obter uma tranqüilidade ainda mais avançada que aquela do


“dhyana” do mundo da forma é necessário entrar nos correspondentes estados
no mundo da não-forma. Nesses estados, os meditadores não estão mais
conscientes de sua própria respiração, de seu corpo físico e das entidades
externas. Finalmente, chegam a uma condição de total impassibilidade e
liberdade de todas as idéias e pensamentos. Foram distinguidos quatro níveis
desse estado, cujas definições detalhadas foram compiladas em Páli, no
Mijhima-nikaya (discurso médio).

No “dhyana” do mundo da forma o desejo sensorial é transcendido, mas


a forma física se mantém. Entretanto, no primeiro “dhyana” do mundo da não-
forma - o “dhyana” da infinidade do espaço - a própria idéia de espaço é
superada. Todos os pensamentos de forma e idéias de entidades são
transcendidos; nenhum pensamento surge, de modo que a qualidade infinita do
espaço é compreendida. Concentração é conseguida através da meditação na
infinidade do espaço. Em resumo, entrar no mundo da não-forma através da
concentração meditativa significa atingir um estado no qual não há idéias de
forma material, de bom ou de mal, surgidas na mente.

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No “dhyana” de infinidade de consciência o meditador supera a
infinidade do espaço e se concentra na infinidade da consciência. Transcende
o conceito de espaço ilimitado ao meditar no ilimitado da consciência e entra
num estado mental impassível e concentrado.

No “dhyana” do vazio o meditador progride nesse estado mental


impassível ao transcender o conceito de consciência e permitir à mente voltar-
se em direção ao nada.

No “dhyana” em que não há percepção nem não-percepção o meditador


transcende até mesmo o conceito de vazio. A própria idéia do vazio é
abandonada e a mente atinge o estado sutil em que não há percepção nem
não-percepção. Esta não é a condição do morto, no qual nenhuma operação
mental ocorre, mas uma condição na qual é impossível determinar se alguma
operação mental está ocorrendo.

Os quatro estágios de “dhyana” nos mundos da forma e não-formas, oito


ao todo, podem ser obtidas por pessoas comuns e leigos crentes de outras
religiões que não o Budismo, que gradualmente avançam e se refinam do nível
mais baixo aos níveis mais altos.

Mas no nono estágio - o “dhyana” além da percepção e sentimentos -


apenas “arhats” e sábios budistas que atingiram o estado anterior de “arhat”
podem penetrar. O nono estágio pertence ao “dhyana” do mais alto nível do
mundo da não-forma. Nesse nono “dhyana” apenas uma sutil subconsciência
permanece.

Meditação antes do Budismo

A maioria das religiões inclui um elemento meditativo na forma de


preces. Mas a profunda, silenciosa meditação religiosa expressa pela palavra
“dhyana” é especialmente destacada nas religiões da Índia.

Esta espécie de meditação praticada por budistas não é uma


peculiaridade do desenvolvimento budista, mas um costume generalizado nas

36
religiões pré-budistas da Índia, desde o período védico (1.550-800 AC), ou
mesmo antes, na época pré-histórica.

A figura de uma deusa escavada em Mohenjo Daro (um grande centro


da civilização do Vale Hindu) parece envolvida em meditação, embora se
discuta o que a estatueta representa. Desde a civilização do Vale Hindu (cerca
de 2.300-1.750 AC), que parece ter influenciado a cultura indiana
subseqüentes, a meditação parece datar dessa cultura antiga e, assim, ter
mais de quatro ou cinco mil anos de idade.

No calor do clima indiano, pessoas que dispunham de tempo para o


lazer e não estavam pressionadas pelo ganha-pão provavelmente achavam
prazer e benefícios em sentar-se às sombras das florestas e meditar nos vários
problemas da vida humana.

Parece certo que virtualmente todo pensamento e filosofia da Índia se


desenvolveram na prática da meditação silenciosa. Embora não revele nada
que possa ser definitivamente identificado como a prática de meditação, o
período védico fala de “tapas” ou calor.

O calor do sol aquecendo ovos e fazendo com que se abrissem era


considerado um exemplo do poder dos “tapas”, e isto proporcionava uma
analogia para os esforços do deus criador ao fazer o mundo. Sua energia era
também considerada “tapas”. Práticas ascéticas, como agüentar o calor do
verão, também eram consideradas “tapas”. Um exemplo impressionante era a
chamada prática dos cinco “tapas”, na qual o asceta sentava-se sob o sol
ardente cercado de quatro fogueiras. Por extensão, outras árduas práticas
ascéticas pré-budistas também eram conhecidas por “tapas”.

Provavelmente já nos tempos védicos, e certamente desde o tempo dos


Upanixades (textos religiosos compostos entre os anos 700 e 450 AC), “tapas”
também eram usados para descrever o aquecer do espírito ou da mente
durante a concentração – em outras palavras, meditação.

É neste sentido (e não de austeridades físicas) que o Budismo usa a


palavra. Ao contrário, no Jainismo, “tapas” tem o sentido de austeridade tanto
física (jejuns) como espirituais (treinamentos que incluem meditação).

37
Uma descrição formal de meditação pode ser traçada até a época dos
Upanixades, quando era conhecida pelo termo “yoga”. Mais tarde, em época
anterior ao Budismo, o termo “dhyana” foi usado para descrever o mesmo tipo
de meditação. A prática da meditação sentada provavelmente surgiu em
conexão com o desenvolvimento da filosofia dos quatro estágios da vida,
formulada por volta do final do período dos Brahmanas (textos litúrgicos
compostos entre 900 e 700 AC, provavelmente) e dos primeiros Upanixades.

O pensamento hindu dividia a vida humana em quatro períodos, cada


um com diferentes obrigações, objetivos e responsabilidades: a vida do
estudante, a vida do dono da casa, a vida do eremita da floresta e a vida do
asceta errante. Estudar era a primeira obrigação de um jovem. Durante sua
vida como dono da casa deveria aceitar as responsabilidades da vida em
família e educar as crianças para torná-las seus herdeiros. Quando seus filhos
entrassem em idade de tomarem para si a responsabilidade, deveria retirar-se
para uma floresta e tornar-se um eremita, vivendo de grãos e frutas, meditando
e se concentrando na sagrada sílaba OM.

Provavelmente a meditação sentada formalizada se desenvolveu desses


hábitos meditativos. Os textos místicos chamados de “Aranyakas” (tratados da
floresta), os últimos dos Brahmanas que foram compostos, eram
provavelmente recitados por eremitas vivendo nas florestas. Os Upanixades,
fase final dos “Aranyakas”, também podem ser considerados um produto da
prática de meditação adotada pelos eremitas que viviam nas matas.

A reconstrução de práticas meditativas antecedendo o Budismo sugere


que no período dos Upanixades, dois ou três séculos antes do Budismo, os
Brâmanes ortodoxos praticavam meditação silenciosa como parte da disciplina
pessoal chamada “yoga”.

Quando os heterodoxos ascetas errantes chamados “shramana”


apareceram, meditação, junto com austeridades ascéticas, criam parte de seus
hábitos físicos e espirituais. A menção freqüente de “Yoga” nos últimos
Upanixades (compilados pouco antes do surgimento do Budismo),
considerados influenciados por pensamento não ortodoxo, indica a
preponderância da meditação nesse período. O Budismo adotou a prática de
meditação dessa tradição hindu generalizada.
38
Xaquiamuni e Meditação

De acordo com os sutras do Budismo primitivo, Xaquiamuni participava


com seu pai e com os ministros do reino de uma cerimônia agrícola da tribo
Xaquia quando ainda era um jovem príncipe. Para seu horror, viu pequenos
pássaros matarem e comerem pequenos insetos. Mais tarde, os pássaros se
tornaram vítimas de aves de rapina. O príncipe começou a refletir na deplorável
condição dos seres que precisam matar e comer uns aos outros para
sobreviver, e sua reflexão foi se tornando uma profunda meditação. Ele obteve
o primeiro “dhyana” do mundo da forma e passou para o segundo, atingindo o
mais alto nível, que foi marcado por um milagre: seu corpo começou a emitir
uma luz brilhante que eliminava as sombras geralmente causadas pelas
árvores e outros objetos. Seu pai e os ministros ficaram surpresos. Se isso é
um fato histórico, mostra que Xaquiamuni não apenas era naturalmente
inclinado para a meditação mas também, possuidor de grande talento, pois
alcançara os estágios avançados sem instruções e quando ainda menino.

Depois que Xaquiamuni abandonou a vida secular pela procura religiosa


estudou sob dois dos mais famosos mentores das técnicas meditativas da
parte noroeste da Índia, no reino de Magadha.

Um deles, Alara-Kalama, acreditava que a meditação do vazio é o


estágio mais elevado. O outro mestre, Uddaka-Ramaputta, acreditava que o
estado no qual nem percepção nem não-percepção persistem constitui
Nirvana. Ambos tinham um grande número de discípulos entusiastas.

Xaquiamuni primeiramente estudou com Alara-Kalama e, devido às suas


já avançadas habilidades meditativas logo obteve o mesmo nível de seu
mestre. Ainda assim, suas dúvidas continuavam. Não encontrava solução para
o problema da condição humana e não foi capaz de obter completa
tranqüilidade. Alara-Kalama pediu a Xaquiamuni que o ajudasse ensinando,
mas Xaquiamuni o abandonou e foi estudar com Uddaka-Ramaputta. Logo, ali
também atingiu o mesmo estado de concentração meditativa de seu professor.
Uddaka-Ramaputta, que se ofereceu a dar seu lugar a Xaquiamuni como
professor, também foi abandonado por ele. Nem mesmo os mais altos estados

39
meditativos, a meditação do vazio e o estado onde nem percepção nem não
percepção persistem, eram a suprema iluminação que ele buscava.

Nessa época, as sessenta e duas escolas heterodoxas de pensamento


que prevaleciam na Índia postulavam cinco maneiras de obter nirvana neste
mundo, através de vários estágios de meditação. Mas Xaquiamuni já
experimentara as formas mais elevadas e não encontrara ali respostas aos
problemas da existência humana.

Ele abandonou meditação por práticas ascéticas, que ele esperava,


iriam ajudá-lo em seu objetivo. Após seis anos de ascetismo nas florestas sem
as respostas esperadas, ele também abandonou essa prática – embora quase
morresse antes de fazê-lo. Finalmente, após sentar em meditação sob a
árvore “bo” obteve suprema iluminação e se tornou o Buda.

Dizem que Xaquiamuni se iluminou quando no quarto “dhyana” do


mundo da forma, estágio de meditação marcado por equanimidade, pura
atenção e sabedoria, no qual nem alegria nem sofrimento, benção ou tristeza
são experimentadas. Ele se manteve por uma semana nesse estado, depois da
iluminação. De acordo com sutras primitivos, durante os quarenta e cinco anos
da sua subseqüente missão de ensinar ele meditava todos os dias, às vezes se
mantendo em “dhyana” por uma semana, duas, um mês ou mesmo dois ou três
meses. Seus discípulos também meditavam diariamente. Dizem que Buda
morreu no estado de quarto “dhyana” do mundo da forma.

No tempo de Xaquiamuni Buda, boa parte de cada dia de um monge era


tomada por meditação. Cada vinte e quatro horas eram divididas em seis
períodos de quatro horas cada. O primeiro dos três períodos da noite era para
meditação sentada, com períodos andando para aliviar a fadiga. No segundo
período da noite os monges dormiam e no terceiro eles acordavam para
meditar sentados. O primeiro período do dia era usado para higiene pessoal e
afazeres monásticos, seguidos de meditação.

Numa hora apropriada, os monges saiam para mendigar comida nas


redondezas. Na segunda parte do dia, após voltarem da mendicância, comiam
e isso deveria ser feito até antes do meio-dia. Depois da refeição podiam

40
deitar-se à sombra das árvores ou sentar em meditação esperando a digestão
se completar.

Ao entardecer meditavam, ouviam os discursos de Buda ou sentavam e


discutiam entre si os ensinamentos. O hábito do Ch’an chinês e dos monges
Zen do Japão de conduzir quatro sessões de meditação sentada (uma no
primeiro período da noite, uma no último período da noite, uma de manhã e
outra entre três e cinco da tarde) vem dos hábitos diários do Budismo primitivo.

Xaquiamuni Buda dizia que os monges deveriam usar seu tempo de


duas formas: discutindo a lei e em silêncio sagrado. Este último significava
meditação, que era um ato tão perfeitamente comum, não apenas para
budistas mas para a maioria dos hindus dessa época, que nenhum texto
antigo explica como “dhyana” sentada e andando eram conduzidas. Todos
sabiam, assim não havia necessidade de explicações. A falta de instruções não
diminui de forma alguma a grande importância que o Budismo colocava em
meditação. Nas escrituras Mahayana, por exemplo, o Buda consistentemente
dizia que ensinava somente após emergir de um estado de profunda
meditação.

Já vimos que a meditação budista veio do sistema de yoga de disciplina


pessoal largamente aceita na Índia do tempo de Xaquiamuni Buda.

Alguns estudiosos ocidentais dizem que o Budismo não tem elementos


que o distingam originalmente, sendo um amálgama de elementos tirados da
filosofia Samkhya hindu, representada pela teoria da prática de Yoda explicada
nos Upanixades. Esses estudiosos dizem que Alara-Kalama e Uddaka-
Ramaputta eram filósofos Samkhya. Sem dúvida, o Budismo incorporou
influências de Samkhya e Yoga dos Upanixades, e a idéia dos quatro estágios
de “dhyana” nos mundos da forma e não-forma é encontrada nos
ensinamentos anteriores ao Budismo. Mas isto não significa que a meditação
budista seja apenas uma combinação de práticas tradicionais emprestadas de
religiões não budistas.

41
Meditação Budista

Embora externamente se pareçam, as espécies de meditação


comumente praticadas na Índia antiga diferem da meditação budista em
conteúdo. Se assim não fosse, Xaquiamuni Buda não teria rejeitado os
objetivos da meditação ensinada por Alara-Kalama e Uddaka-Ramaputta. Ele
as rejeitou porque falharam em levar ao estado ideal que ele concebera.

Na filosofia Samkhya, nas seitas heterodoxas e também no Budismo,


meditação é um meio de concentrar a mente e entrar num estado livre de
pensamentos. Mas as formas não-budistas de meditação são inferiores, pois
lhes falta a sabedoria distinta da interpretação budista do mundo e da
humanidade. Mesmo dentro do Budismo vários usos de meditação são
reconhecidos.

O Ch’an chinês classifica cinco tipos de meditação em ordem crescente,


de acordo com os níveis de sabedoria: meditação não-budista, meditação
praticada para saúde física e mental, meditação Hinayana, meditação
Mahayana e suprema meditação ou meditação de Budas.

O Tratado dos Arquivos do Abhidarma também categoriza meditação e


reconhece suas variedades de conteúdo em três espécies de meditação: a
primeira, ainda presa às ilusões, é dirigida a algum benefício mundano como
lucro, honra e respeito. A meditação não budista é desta espécie. A segunda é
meditação temporariamente livre de obstruções mentais e apegos. A terceira é
a meditação do sábio, que eliminou todas as obstruções. A iluminação baseada
no ponto de vista budista do mundo e da humanidade sempre pertence a essa
categoria final.

Sejam quais forem as diferenças entre os níveis de sabedoria que cada


tipo contém, toda meditação visa a concentração.

O Budismo reconhece vários métodos de preparação para o meditador


obter os quatro estágios de “dhyana” do mundo da forma. O método melhor é
aquele que torna a concentração mais fácil para o praticante. O Tratado dos
Arquivos do Abhidarma ensina cinco métodos para acalmar a mente e ver a
verdade e o Budismo Hinayana, baseado nas escrituras Páli, ensina quarenta.

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O primeiro dos métodos ensinados no Abhidarma é considerar o
desprezo por todas as coisas. Este é considerado um bom método para
aqueles que têm caráter voluptuoso, sensual. Tais pessoas devem meditar na
inevitável decomposição do corpo humano. O meditador pode acalmar apetites
físicos compreendendo que a pessoa mais atraente, mais desejada
sexualmente, irá ter seus ossos transformados em pó. Quando isto é realizado,
a concentração se torna possível.

O segundo método é sentir piedade por todos os seres. São destinados


a pessoas coléricas, irascíveis, a fim de que desenvolvam compaixão não
apenas por pessoas próximas e queridas, mas também por estranhos e
pessoas que detestam. Quando o meditador chega a este ponto é capaz de se
manter calmo e se concentrar.

O terceiro método é o ensinamento da lei de origem dependente. A


corrente de doze elos da origem interdependente é ensinada para pessoas
ignorantes a fim de ajudá-las a compreender como o mundo e os seres
operam. A compreensão liberta-as dos apegos e ilusões, tornando-as capazes
de se concentrar.

O quarto método é a correta diferenciação. Ensina que todos os serem


são compostos dos cinco agregados e que os corpos físicos são feitos de trinta
e dois componentes (desde cabelos, pele, carne até órgãos e secreções), que
por sua vez são feitos dos quatro elementos: terra, água, fogo e ar.

O objetivo deste método é revelar às pessoas que se apegam


tenazmente à idéia de que possuem um eu permanente que nada no mundo é
permanente, desde que todas as coisas são elementos agregados sujeitos à
inevitável dissolução. A meditação nessa verdade permite a essas pessoas
obter estado mental de calma, libertar-se dos apegos ao eu e se concentrar.

O último método é contar inalações e exalações da respiração.


Gradualmente, livra a mente de pensamentos extras e traz calma e
concentração àqueles que são inconstantes e dispersivos. Ou ainda, relembrar
Buda e suas virtudes substitui a contagem das respirações. Relembrar Buda e
suas virtudes é uma prática apropriada a todas as pessoas de todas as

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personalidades e tendências. Purifica a mente e o corpo, remove todas as
obstruções mentais e promove concentração.

Os textos budistas em Páli dão quarenta (às vezes trinta e oito) matérias
nas quais meditar em preparação para os quatro estágios de “dhyana” no
mundo da forma. Essas matérias incluem tanto objetos físicos como conceitos
abstratos. Mesmo que o meditador comece por se concentrar em um objeto
físico à sua frente, assim que seus poderes de concentração aumentam pode
dispensar tal objeto e meditar na imagem mental do objeto. Aqui também,
meditadores devem selecionar o objeto melhor adaptado a sua personalidade e
necessidades espirituais.

Concluindo, vamos olhar para o critério pelo qual o nível de meditação é


avaliado. Duas escalas podem ser aplicadas: o nível de concentração e a
profundidade da sabedoria da meditação. Com base na primeira escala, a
pessoa começa com a mente completamente inquieta. Praticando uma
meditação preliminar adequada obtém um nível um pouco mais tranqüilo dentro
do mundo dos desejos e consegue, então, a entrada no primeiro “dhyana” do
mundo da forma. A concentração aumenta através dos três “dhyanas”
seguintes e dos quatro “dhyanas” do mundo da não-forma. Finalmente, alcança
o máximo no nono e último estágio.

Quando avaliamos meditação com base na sabedoria, verificamos que


esta nem sempre resulta da mais profunda concentração. Mesmo um
meditador que tenha obtido o mais alto nível de concentração no mundo da
não-forma pode não ultrapassar o nível de sabedoria sem progredir na
concentração no mundo do desejo. Obviamente, a meditação mais avançada é
aquela na qual ambos os níveis de concentração e sabedoria budista são
alcançados.

Sabedoria (E)

Para que preceitos e meditação sejam práticas específicas de Budismo


é necessário que incluam sabedoria budista. Na verdade, os preceitos são
divididos em três categorias, conforme sua associação com meditação e
sabedoria.

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Quando os preceitos são simplesmente regras a serem seguidas por
pessoas comuns no mundo dos desejos são chamados “preceitos separados
da libertação”.

Os preceitos de quem pratica “dhyana” no mundo da forma são


chamados “preceitos incluindo meditação”.

Os preceitos dos sábios, que já obtiveram completa sabedoria superior,


são os “preceitos incluindo o Caminho”.

Em outras palavras, os mesmos preceitos, ou regras de comportamento,


pertencem a um nível diferente dependendo do nível espiritual da pessoa que
os observa. Assim, os passos no Caminho Óctuplo que correspondem aos
preceitos – fala correta, ação correta e meio de vida correto – são preceitos
separados da libertação quando praticados por um sábio.

O mesmo é verdadeiro em relação à meditação que se divide em três


tipos conforme a condição de sabedoria do praticante: falta-lhe sabedoria e
continua impedido pelas obstruções; obteve sabedoria imperfeita; ou, manifesta
a perfeita sabedoria do sábio.

Desde que perfeita sabedoria é inerente tanto aos mais altos níveis de
preceitos como de meditação não há necessidade de ensiná-la como uma
prática separada ou um tipo de ensinamento separado. Quando o praticante
atinge o estado de sábio iluminado todas as suas práticas de preceitos,
meditação e sabedoria estão perfeitas, completas. Nesse estágio, o
ensinamento triplo está unido e inclui um quarto elemento: fé.

Do ponto de vista da fé, a pessoa iluminada em perfeita fé nos quatro


objetos indestrutíveis, obteve o Olho do Darma através da meditação e
sabedoria. Por crer perfeitamente nos quatro indestrutíveis objetos de fé obteve
absoluta fé nos preceitos.

A indissolúvel, inevitável relação entre fé, preceitos, meditação e


sabedoria significa que o praticante inicia e prossegue sua prática a partir de
qualquer um dos quatro aspectos, escolhendo o que melhor se adapta ao seu
caráter e circunstâncias (se é leigo, leiga ou monge, monja, ou qual seja sua
ocupação). Praticantes que continuam sua prática de acordo com um caminho

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escolhido, sem dúvida alguma chegam à iluminação completa. Assim ensinam
todas as escolas budistas chinesas e japonesas.

As seitas da Terra Pura, por exemplo, enfatizam fé, particularmente fé


manifestada na invocação do nome de Amitabha Buda. A pessoa firmemente
estabelecida na fé, inevitavelmente se tornará sábia, incapaz de cair num
renascimento mau e terá a certeza de obter iluminação perfeita. Devido a isto,
a Terra Pura ensina a possibilidade de se tornar um sábio nesta vida, embora o
ensinamento mais comum seja o de que chamando por Amitabha a pessoa
renascerá no Paraíso do Oeste, quando se iluminará.

Os ensinamentos da escola T’ien-t’ai (Tendai, em japonês) dizem que a


pessoa que está solidamente estabelecida na fé será purificada em todos os
seis sentidos, será capaz de seguir perfeitamente os preceitos e obterá os
primeiros estágios que levam à iluminação.

O monge japonês Nichiren (1222-1282), fundador da seita que leva seu


nome, advogava fé total, absoluta, no Sutra da Flor de Lótus da Lei
Maravilhosa e acreditava que entoar a fórmula “Namu Myohorengekyo”
estabelece os preceitos indelevelmente na pessoa e leva à iluminação.

Tanto no pensamento Tendai como para Nichiren (que surgiu da escola


Tendai) fé e preceito estão fundidos.

O Zen (Ch’na em chinês) enfatiza meditação como caminho de


iluminação da mente e elucidação do significado da vida e da morte – em
resumo, como meio da verdadeira sabedoria. Meditação sentada, ou zazen,
separada de sabedoria não a difere de outras formas de meditação praticadas
por crentes de outras religiões não-budistas. A meditação Zen,
independentemente de qual postura se tome, tenciona iluminar a mente para a
visão correta do mundo e da humanidade.

Qual era a relação entre meditação e sabedoria no Budismo primitivo e


sectário? Primeiro, no estado de iluminação, o sábio obtém a inabalável fé na
verdadeira compreensão budista do mundo e da humanidade, o que é
equivalente à perfeita sabedoria. Ainda assim, a iluminação do sábio não se
restringe a passar pelos quatro “dhyana” do mundo da forma e os quatro do

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mundo da não-forma. Esta iluminação pode ser obtida por uma pessoa com
pouca experiência em meditação e ainda vivendo no mundo dos desejos.

Geralmente a iluminação obtida por um leigo através da fé e dos


preceitos pertence ao mundo dos desejos, pois ainda não houve evolução
através das meditações que levam o praticante a níveis mais elevados.

Ainda assim, deixar de obter esses níveis de meditação não exclui


iluminação. Idealmente, por certo, meditação e sabedoria progridem ligadas,
ambas se dirigindo para o estágio mais elevado.

Sabedoria sem meditação suficiente é chamada de “sabedoria seca”,


pois faltam-lhe as águas nutritivas da meditação, sendo incompleta. Aqueles
identificados como Budas e “arhats” (“arhats” devem ter obtido libertação) são
os que alcançaram os mais altos estados tanto de meditação como de
sabedoria. O ideal mais alto do Budismo, “shunyata” sem obstruções, só pode
ser obtido nesse estágio.

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