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se em suas versões perversas ou pervertidas. Vem de Pia tão o estabelecimento da


seqüência dos regimes políticos e de sua corrupção: a monarquia, regime inicial,
se transforma em aristocracia, esta em democracia, regime final; e o movimen-

C ~A\)\ I rIl~k ..J~~ -o.- L~ 6-~


tu de degradação se realiza na direção inversa, isto 6, a democracia, degeneran-
do em anarquia, faz surgir a oligarquia que, por sua vez, degenera em tirania. A

N'" - eM ~ -;-k"- '""" ~ política se realiza, portanto, num tempo cíclico no qual o movimerito de passa-
gem das formas legítimas é inverso ao da passagem das ilegítimas. E é também
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t> Ç) '. Ccc--- . I c:zo.0~ l~ - ~w-1.h+- platônica a idéia de que a política não é uma arte ou uma técnica, mas uma ciên-
cia e, como tal, pode ser ensinada. Essa ciência orienta e dirige a prática políti-
~_ 45q -:ri--) .
ca, isto é, as atividades e funções de governo que, sendo práticas,. são técnicas.
A herança platônica foi construída sobre o legado das idéias políticas tipi-

~IG1NÂ camente gregas, mas que a tradição mantivera dispersas. Coube a Platão reuni-

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Ias e sistematizá-Ias. Em primeiro lugar, a idéia de que a finalidade da política
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não é o exercício do poder, mas a realização da justiça para o bem comum da ci-
dade; em segundo, a idéia de que o homem livre (e somente o homem, estando

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excluídos aqui os escravos, os estrangeiros, os velhos, as crianças e as mulheres)
só é livre na pólis e participando da vida política, de sorte que a ética é um as-
pecto Oll lima dimensão essencial da política, já que o indivíduo é sempre o ci-
A POLÍTICA: O BSTADO IDEAL E O dadão. Por conseguinte, em terceiro, a idéia de que a verdadeira vida ética só é
GOVERNANTE-FILÓSOFO possível na pólis e que a moral individual e privada é inferior à ética pública.
Como conseqüência, em quarto lugar, a idéia de que o homem deve ser educa-
Com Piarão, inauguram-se, no pensamento ocidental, algumas idéias so- do e formado para ser antes de tudo e sobretudo um cidadão e que a política é
a verdadeira e suprema páideía, definidora da areté.
bre a política que, com variações em cada época, permanecem até nossos dias.
Resta, agora, examinarmos as idéias propriamente platônicas e já podemos
Assim, éplatônica a idéia de que os regimes políticos se distinguem pelo núme-
prever que, sendo um crítico do sofista, Platão não aceitará que a paideia políti-
ro e pela qualidade dos que governam ou dos que detêm o poder: a monarquia,
ca seja a retórica e a capacidade para vencer argumentos em público, e não acei-
em que o poder pertence a um só (mól1as) e a honra é a qualidade do governan-
tará que a política seja uma técnica de governo, mas a conceberá como ciência ..,;",
te; a aristocracia, em que o poder pertence a um pequeno grupo considerado
que deve orientar e dirigir a técnica governamental. Também podemos prever,
uma elite ou os melhores (áristoi) cuja qualidade é a areté agonística ou a exce-
pelo fracasso das viagens a Siracusa e pela injusta morte de Sócrates, que Platão
lência guerreira; e a democracia, em que o poder pertence ao povo (démos*) e
não será um grande admirador da democracia nem da tirania, considerando
cujos cidadãos possuem a liberdade como qualidade principal. Também é platô-
esta o resultado inevitável daquela.
nica a idéia de corrupção ou degradação dos regimes políticos ou de que cada De fato, só compreenderemos o sentido do empreendimento platônico se
forma política possui uma forma degradada ou perversa, um simulacro ou con- tivermos em mente o que se passa na Atenas do século IV a.C., perpassada pela
trafação: à corrupção ou degradação da monarquia corresponde a tirania; à da Guerra do Peloponeso, pelas lutas internas, por fases de tirania e de demagogia.
aristocracia, a oligarquia; à da democracia, a anarquia ou a ausência de coman- A situação da Cidade é descrita e criticada com cores fortes no Livro VIII da
do ou de governo. Os regimes políticos, quando mal conduzidos, transformam- .. República, em que Pia tão apresenta a democracia como anarquia.

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Vimos que na Oração flncbrc, pronunciada no início da Guerra do Pelopo- A CIDADE JUSTA
neso, Péricles elogiara a democracia ateniense, dizendo-a sem modelo e mode-
lo para toda a Hélade, Nesse elogio, ele enfatizara a liberdade, a igualdade polí- A questão proposta pela República é: o que é a justiça?
tica, a participação nos assuntos públicos, a moderação dos costumes e a correção O diálogo, que transcorre entre Sócrates, dois irmãos de Platão (Glauco e
da vida pública e da vida privada, e atribuíra os méritos de Atenas à qualidade Adimanto) e um comerciante, Polemarco, é interrompido pelo aparecimento de
de suas leis e ao respeito delas por todos os cidadãos. vários atcnicnscs, que passam pela casa de POl;emarco, e pela intervenção violcn-
No Livro VIII da República, como se tomasse o que dissera Périclcs, Platão ta do sofista Trasímaco. No início do diálogo, Polemarco diz que a justiça é dar
descreve uma Cidade em que a liberdade é licença para se fazer o que se quer, a a cada um o que Ihc é devido (pensamento típico do comerciante, que logo pen-
igualdade é promiscuidade e injustiça porque trata da mesma maneira o igual e sa em dívidas que devem ser pagas e mercadorias que devem ser entregues). Po-
o desigual. a participação é demagogia, a correção dos costumes é uma falsa lernarco exprime o senso comum. Trasímaco; p.:Óh!'~·,á;firJ1;I·a.quea justiça é o

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aparência que encobre todo tipo de corrupção e vício, a qualidade das leis não poder do mais forte, seja porque este tem J?1d'i6s"para clómfnar'ósmais fracos,
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se conserva porque elas são mudadas incessantemente segundo os interesses seja porque os mais fracos encontram formas astuciosas pa,Iia,;s~(f"zerem mais
dos poderosos e não há respeito algum por elas - os filhos desrespeitam os pais, fortes e dominar os fortes. Glauco afirma q4e a.justiça é praticada ~9mente por-
os maridos tratam as esposas como prostitutas e as esposas tratam os maridos que os homens temem os castigos se forem injustos e, a propóst~q,.:~arra o Mito
como amantes temporários, os alunos desrespeitam os mestres e estes os ensi- do Anel de Ciges. Durante uma tempestade, o pasto~ Çig~~;dçscobre, na caver-
nam a desrespeitá-los, os condenados não cumprem as penas, os inocentes são na em que se refugiara, um anel de ouro perdido e o apanha. Na companhia de
condenados enquanto os culpados são inocentados, os cidadãos se comportam outros pastores. dirige-se à corte, onde devem .prestar contas ao rei. No cami-
como estrangeiros e estes, C0l110 senhores da cidade - e a justiça é indulgência nho, por acaso, Giges gira o anel no dedo, tornando-se invisível. Ao perceber o,
para toda contravenção. Reina a anoll1ía (o desrespeito ao lIómo.I, à lei). Diante efeito do anel. ao chegar ao palácio, Giges sed~z a mulher do rei, usa a invisibi-
disso, compreende-se que os cidadãos se revoltem. zombem das leis não cscri- !idade para matá-lo, toma o poder e passa agovernar sem que ninguém saiba
tas e escritas. detestem os magistrados e as assembléias, recusem ser governa- que chegou ao poder de maneira fraudulentaeilegitírna. Seu governo é aceito
dos. Reina a anarcuia (a falta de comando): os cidadãos não querem o senhorio sem ser questionado, todos o tomando por um governante legítimo. Assim, con-
da lei nem dos homens. Nessas condições, reina a desordem moral. sobretudo clui Glauco, não é preciso ser justo, basta paréc~r justo,
entre QS jovens, que passam a desprezar a temperança e a prudência, a amar a Chegados a este ponto, em que prevalece a índetermínaçêo. isto é, a mul-
adulação e a insolência. O julgamento de Platão é claro e preciso: essas calami- tiplícidade dispersa de imagens e opiniões, os vários ínterlocutores, como de há-
dades não são um acidente do regime democrático, mas estão contidas na es- bito, procuram defender suas posições com um novo campo de indererrnina-
sência da democracia. A política platônica será, portanto, antídcrnocrática. ção: enumeram pessoas justas ou injustas, açõesjustas ou injustas, oficios justos
As exposições mais completas de PIatão sobre a política encontram-se na ou injustos, multiplicando sem fim as imagens eas opiniões sobre o justo e o in-
República. no Político e nas Leis. As que ficaram com maior perenidade no pen- justo. Sócrates intervém, praticando a ironia, criando dificuldades e contradições
samento ocidental são as da República, embora o perfil do governante, traçado para cada imagem e opinião apresentada, até que, perplexos, os interlocutores
no Político, tenha se mantido até. a grande ruptura representada por O príncipe, aceitam .• a sugestão socrática: começar não COm. casos .' de justiça e injustiça, . mas
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de Maquiavcl, no século XVI. procurando algo que se possa dizer que é justo e por que é justo. Delimitando
acampo da investigação, afastando "parentes" ~ "rivais" da justiça, a teoria da
justiça exposta na República desenvolve e prepara aquela que acabamos de ver
na psicologia e na ética: ajustiça ou virtude, no homem, é o governo dos apeti-

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tes e da cólera pela razão; essa mesma teoria, antes de ser aplicada ao indivíduo, conhecerem a idéia da justiça, qual há de ser a qualidade das leis e do governo?
é aplicada à Cidade, concebida como um conjunto hierarquizado de funções, A injustiça também é evidente, pois a hierarquia das funções está embaralhada
cada qual com sua dy~amis e sua arcté. e a areté dos magistrados não consegue realizar-se.
A p61is possui três classes sociais: a econômica (agricultores, comerciantes Se a justiça - díkc - e a virtude - areté - existem somente quando a razão
e artcsãos), a militar ou dos guerreiros e a legislativa ou dos magistrados. Na de- governa a concupiscência e a cólera, então a Cidade deve ser governada somen-
mocracia, todos os membros de todas as classes governam; na aristocracia, os te pelos magistrados. Mas, para isso, várias condições devem ser preenchidas e
guerreiros ocupam a posição de magistrados; na monarquia, em geral um guer- a primeira delas é que a Cidade se encarregue da educação de todas as crianças,
reiro ou um rico agricultor ou um rico comerciante acabam sendo o rei. Como mesmo quando algumas permanecerem com suas famílias. Essa educação deve
se observa, diz Pia tão, as funções das classes estão embaralhadas e não ê por ter como objetivo determinar as capacidades e os limites de atuação de cada
acaso que as cidades são injustas ou mal governadas. uma das classes sociais.
A classe econômica está encarregada da sobrevivência da Cidade, suprindo Assim, a classe econômica dos agricultores-comerciantes-artesãos deve ser
as necessidades básicas da vida. Como na alma, essa classe se caracteriza pela educada para ter como' função exclusiva a sobrevivência da Cidade e viver de
concupiscência, pela sede de riqueza e de pra4eres. Se ela governar (como acon- acordo com limites estabelecidos pelo magistrado, impedindo que a busca das
tece numa oligarquia, pu numa monarquia em que o rei vier dessa classe, ou na riquezas, luxos e prazeres perverta a Cidade. Para isso, deverá ser educada para
democracia, em que essa classe participa do governo com mais poder do que as a frugalidade e a temperança, que se tornam, portanto, virtudes cívicas. Como
outras porque é mais numerosa e conta com mais votos), a Cidade estará volta- essa classe é muito apegada aos bens materiais, convém que ela os tenha, pois
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da para a acumulação de riquezas, para uma vida de luxos e prazeres e para lu- do contrário lutará para consegui-Ias e trará desordem à Cidade. O magistrado
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tas econômicas sem fim, aumentando o número de miseráveis e reduzindo o deve fixar por lei que a classe econômica tenha o direito à propriedade privada
número de abastados,' A injustiça é evidente, pois a finalidade da Cidade está (com limites) e a constituir uma família. Em lugar de tentar inutilmente .extir-
confundida com a má atualização da dyl1amis da classe econômica. par o egoísmo e os apetites dessa classe, o governante deve apenas rnoderá-los
A classe militar o~ dos guerreiros, menos numerosa do que a primeira, está por meio das leis e usá-los para o bem da Cidade.
encarregada da proteção da Cidade. Porém, essa classe se caracteriza pela cóle- Por seu turno, a classe militar ou dos guerreiros terá como função exclusi-
ra e pela temeridade, pelo gosto dos combates, pela invenção de perigos para ter va a proteção da Cidade contra perigos internos e externos. Essa classe' será for-
o prazer de lutar e buscar fama e glória. Se ela govel'l1ar (como acontece em oli- mada a partir de um exame de seleção, feito após um período em que a mesma
garquias, aristocracias.jern monarquias em qu~ o rei é eleito entre os soldados, educação foi dada a todas as crianças da Cidade. Nessa seleção, as menos dota-
ou numa democracia, em que essa classe participadas assembléias, e sobretudo das irão ser membros da classe econômica, enquanto as mais dotadas receberão
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na tirania, cuja origem é sempre militar), lançará a cidade em guerras intermi- a educação dos guardiães. Numa grande inovação, PIa tão afirma que a educa-
náveis, tanto externas quanto internas. A injustiça é evidente, pois a finalidade ção inicial será dada igualmente aos meninos e às meninas, e que as críanças dos
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da Cidade está confundida com a má atualização da dynamís dos guerreiros. dois sexos passarão pela seleção, de sorte que poderá haver mulheres na classe
A classe dos magistrados, de todas a menos numerosa, está encarregada de militar. O argumento platônico é claro: um Estado que não usa as aptidões das
dar as leis e de fazê-Ias .cumprir pela Cidade. Porém, essa classe, que se caracte- suas mulheres é um Estado pela metade, incompleto. Aos guardiães é dada a
riza pelo uso da razão, pode estar dominada pejas outras duas classes, mais nu" educação tradicional dos guerreiros gregos: ginástica para o corpo, música (poe-
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merosas do que ela e dispondo de instrumentos para controlar os magistrados. sia, harmonia) para o espírito, dança e artes marciais. Os guardiães devem con-
A classe econômica Os controla pela corrupção; a classe militar os controla pelo siderar que sua casa é a Cidade, por isso não terão casa própria, nenhuma pro-
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medo. Além disso, se 1s magistrados não possuírem a ciência da política e não priedade privada, nem família: homens e mulheres viverão em comunidade,

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seus bens 'serão comuns, o sexo será livre (não havendo casamento) e as crian- aptos iniciarão o estudo principal, para o qual foram preparados durante trinta
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ças deverão ser consideradas filhas da comunidade inteira, de modo que qual- anos: a dialética. Aos trinta e cinco anos, serão submetidos ia uma nova prova;
quer adulto deve tratar toda criança como seu filho, e cada criança tratar quaisquer se aprovados, iniciam os estudos da ética, da física e da política. Passarão conti-
adultos C(,>l110 seus pais. Em outras palavras, Plalão elimina a causa que dá ori- nuamente por exercícios e provas que fortaleçam o intelecto e a moral, já ocupa-
gem à aristocracia de sangue e hereditária, impedindo que os guardiães consti- rão alguns postos de alta administração até que, aos' cinqüenta anos, passam
tuam linhagens e que estas rivalizem. A educação dos guardiãcs é propriamcn- pelo exame final, Se aprovados, tornam-se magistrados e diirigentes polítlcos.
te urna educação cívica, pois eles só existem como pessoas públicas para o bem ;,Os aprovados, portanto, são filósofos.
público. Desta maneira, a razão (o magistrado) impõe aos guerreiros as virtu- Os diligentes políticos, conhecedores das idéias, portadores da ciência po-
des que lhcs são próprias: a coragem e a honradez. Os guerreiros devem ser se- lítica e da mais alta racionalidade, formam a pequena elite intJlect'ual que gover-
melhantes a um cão de guarda: carinhosos para os seus, terríveis para o inimigo. na a Cidade segundo ajustiça. A razão domina a coragem que domina a concupis-
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Finalmente, a classe dos magistrados deve ser a classe dos govcrnantes pro- cência. A Cidade justa é, pois, aquela onde o filósofo governa, o militar defende
priamente ditos. Sua função é promover e manter a justiça, tanto pela qualida- e os que estão ligados às atividades econômicas 'provêem a sociedade. O Estado
de das leis como pelo controle que exercem sobre as outras duas classes. Por justo possui quatro virtudes cívicas, três delas 'que correspondern a cada uma
esse motivo, a seleção dos magistrados e sua educação é a mais importante ea das classes - temperança, coragem e prudêncÍéi'~ e a quarta; mais importante
mais rigorosa, se comparada à das duas outras classes. Acompanhemos a educa- e da qual dependem as outras três: a justiça (harmonia e 'hierarquia das funções).
ção dos magistrados, pois ela inclui, até uma certa etapa, a dos agricultores-comer- A razão governa a Cidade, que por isso é virtuosa e perfeita, isto é, excelente.
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cíanres-arrcsãos. prossegue com a dosguardiães e segue sozinha para a forma- Podemos compreender, então, por que a.Ci'dade injusta é uma degenera-
ção do polirico propriamente dito. ção da Cidade justa: na rimocracia (thymós; ímpeto de cólera e coragem), os mi-
Até a idade de sete anos, todas as crianças, de todas as classes e de ambos litares usurpam o poder que cabia aos filósofos; na plutdcracia'(ploutos: riqueza,
os sexos, recebem a mesma educação: ginástica, dança, jogos para aprendizado fortuna, bens materiais), a classe econômica usurpa o poder. Tanto atimocracia
dos rudimentos da matemática e da leitura.poesia épica para conhecimento dos como a plutocracia são formas de oligarquia (uma é militar, a outra, econômica),
heróis (mas Pia tão expulsa Homero e Hesiodo de sua Cidade porque descrevem nas quais os que não estão preparados para governar tomam o poder e gover-
os deuses e heróis com vícios que não servem à educação do cidadão). Aos sete nam para satisfazer aos seus interesses e não aos da Cidade. Provocando a revol-
anos, as crianças passam por uma seleção: as menos dotadas ficam com famílias ta popular, esses governos fazem surgir a democracia que é, afinal, uma anar-
da classe econômica. enquanto as mais dotadas prosseguirão. Agora, são alfabe- quia, pois nela ninguém está preparado para conduzir o' Estado. Essa anarquia
tizadas, iniciam os estudos das artes marciais e o treino militar (com novos co- acaba levando a massa dos cidadãos a pedir socorro a um homem poderoso, que
nhecimentos matemáticos. necessários à arte da guerra), que irão ate os vinte conhece o manejo das armas e das palavras, e que', tomando o poder, institui a
anos, quando os rapazes e as moças passarão por novos exames e nova seleção. tirania, anunciando o fim da Cidade.
~ A exposição da teoria política possui um alcance filosófico sem preceden-
Os menos dotados ficarão na classe dos guardiães, enquanto os mais dotados ,
iniciarão os estudos para a administração do Estado. Estudam, agora, as mate- ) tes. De fato. se articularmos o Mito da Caverna 'e a teoria do ~onhecimento à
máticas: aritmética. geometria, estereometria, astronomia e música, isto é, acús- '::. psicologia e à ética, veremos que a realização do conhectmenro perfeito e da vi-
tica e harmonia. É o aprendizado das ciências dianoéticas, puramente intelectuais,' da virtuosa surge como causa e efeito da perfeição da pÓ,liS. É clara a relação en-
de formação do raciocínio discursivo e do pensamento hipotético-dedutivo. Aos': tre os graus do conhecimento e as etapas da formação dos membros da Cidade,
trinta anos, uma nova seleção é feita. Os que se mostrarem menos aptos ocupa- assim como é claro o perfeito isornorfismo entre a alma individual e a estrutu-
rão funções subalternas da administração pública e de comando militar; os mais ,:1: ra da Cidade e, portanto, entre a virtude individual e a virtude da própria Cidade.

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A CIÊNCIA DO POLÍ'I1ICO dores das leis fundadoras da pólis; além disso, suas ordens nem sempre se dirigem
à Cidade como um todo, mas a partes dela, enquanto o político. se possuir real-
No Político o caminho percorrido por Platão é diferente. Na República, o ob- mente a ciência diretiva, dirige-se à Cidade inteira edirige a Cidade por inteiro.
jeto da investigação era! a busca do Estado perfeito. Nu }>v/llit:v, será a do guvcl'llan- Uma ciência diretiva perfeita é aquela que, além de referir-se à totalidade
te perfeito, que saberáigovernar em qualquer Cidade, tenha ela o regime políti- dos seres que serão governados por ela, também encontra em si mesma a ori-
co que tiver. Por isso'i1a República, o paradigma era oferecido pela matemática, gem das normas, regras e leis, não se subordinando a nenhuma outra. É auto-
enquanto no Político será dado pela medicina, pois o governante deverá curar as dirctiva ou aurodirigente, diz o Estrangeiro. Normas, regras, ordens e leis cria-
doenças da cidade (co~1flitos e desordem). O diálogo examinará todas as ima- doras não criam qualquer coisa: criam a vida coletiva, criam os viventes que irão
gens e .o~i~iões q~e '" gregos possuíam so~re o poJític~ e, pratica~~.o ~ diaíresis viver juntos, produzem a alma da pólis ou a própria pólis como um ser vivo, pois
ou a divisão da dialéti a descendente, Platao mostrara que a política e um co- dotada de alma (as leis, normas e regras). O que são seres vivos que vivem jun-
nhecimento teórico e I ão uma simples prática para conduzir os homens. tos? Rebanhos. Quem é o dirigente do rebanho? O pastor. Quem é, pois, opoli-
A abertura do Po~tico é uma retomada do Softsta: o Estrangeiro indaga ao tico? Pastor do rebanho humano.
jovem Sócrates se, ren80 definido o sofista, não desejaria, agora, definir o polí- "Cometemos um grave erro", declara o Estrangeiro ao espantado jovem
tico. Essa abertura possu! três significados simultâneos: um significado literário, Sócrates. De fato, um pastor é diferente, por natureza, do rebanho, e o político
pois, invocando um o~tro diálogo, Pia tão cria no leitor o sentimento de que as é de mesma natureza que o rebanho conduzido por ele, uma vez que ele e o re-
conversas entre o Estrhngeiro e o jovem Sócrates foram longas e diversificadas, banho são humanos. Assim sendo, o título de Pastor de Homens só cabe ao
ao mesmo tempo quelsugere a conti~uidade "da própria obra platônica em sua deus e não ao homem. A observação platônica reafirma o que as tragédias dra-
maturidade; L1mSignificado político, uma vez que o sofista, historicamente, foi matizavam: a origem da pólis e de suas leis é humana e não divina. Assim, o diá-
uma figura decisiva di paideía democrática de Atenas e, portanto, inseparável logo cometeu "um erro" para que pudesse, a seguir, demonstrar a humanidade
das discussões sobre 'jPolítica; e LI.
m significado teórico-di aiético, pois a defini- " da política.
ção do sofista como i itador do sábio sugere que o campo no qual se deve pro- Examinemos, porém, a figura do Pastor de Homens. Sendo um deus, tem
curar a definição do p ·lítico há de ser o da sabedoria ou da ciência, oferecendo, o poder absoluto para governar e o faz segundo o Bem e a Virtude, cujas idéias
assim. o mote para a pbrgunta que inicia o novo diálogo: o político pode ser co- conhece. Os humanos não possuem esse conhecimento, não podem prever
locado entre os sábios~ Pergunta pertinente ainda noutro nível, pois os célebres tudo nem regular tudo e, por isso, não podem ter o governo absoluto. Se o po-
Sete Sábios da Grécia, venerados pela tradição helênica, eram todos políticos. lítico pretendesse o governo absoluto deixaria de ser político, mas nem por isso
A pergunta inicia~ abre um campo indeterminado: qual sabedoria é a polí- tornar-se-ia um deus: simplesmente, tornar-se-ia tirano e governaria no simula-
tica? Prática ou teórica? Ciência das mãos ou do intelecto? Ora, diz o Estrangei- . cro, pois, no lugar do Bem e da Virtude, sua ação colocaria a força.
1'0, é evidente que o g~vernante não realiza trabalhos manuais e, portanto, sua Para um grego, o que Platão afirma é evidente e não precisa de comentá-
ciência deve ser teórica. Qual teoria, porém? A inteligência teórica ou contem- rio nem interpretação. Por quê? Porque a palavra tyrannikós* significa: aquele
plativa pode ser criticaj-« julga coisas e ações - ou diretiva - orienta, coorde- . que possui qualidades excepcionais - físicas, psíquicas, militares, oratórias -
na e dirige coisas e ações. É evidente, prossegue o Estrangeiro, que a política é que o colocam acima de todos os outros. Por ser superior, mais e maior do que
uma ciência diretiva 01 dirigente. Mas, se assim é, o político possui "parentes" os outros, é que o tirano tem na própria vontade a única fonte para seu poder.
(por exemplo, os magi~trados e sacerdotes) e possui "rivais" (por exemplo, arau-:: Não possuindo termo de comparação com outros humanos e não podendo
tos, adivinhos, sofistas,! capitães). O que os distingue do político? O fato de que " guiar-se pelo que dizem e fazem os que lhe são inferiores, só encontra em si
transmitem ordens e farem cumprir ordens, mas não as produzem, não são cria- mesmo a origem das regras, leis e ordens. Porém, sendo um homem e não um

,1()
deus. desconhece o Bem e a Virtude. Como estas não são o guia de sua venta- mas perguntas a respeito das leis. Assim sendo, a mera existência de leis escritas

dc nem dão conteúdo a ela. resta-lhe apenas um caminho para impó-Ia: a força. não define o político, mas oferece, no máximo, uma de suJs funções. Ao defini-

Dessa maneira. a definição do político como Pastor dos Homens dcsernbo- 10 como legislador, encontramos um predicado do político, mas não sua essência.
. C<1 no seu contrário absoluto. isto é, no seu simulacro, de modo que, em lugar Esse predlcado, nllás, em lugar de nas ajudar <1 ~vanç~r na definição, pode
ser um obstáculo a ela. De fato, se o político for um legisl!ador e fixar de uma
de oferecer a definição do ser do político. ela nos' deu o seu não-ser. Eis por que
vez por todas as leis (o código escrito), com o passar do tempo acabaria tornan-
o Estrangeiro diz a Sócrates que ambos cometeram um grande erro.
" do-se injusto. De fato, sabemos que, sendo humano, não pode prever nem regu-
A passagem pela figura do tirano, se serviu para afastar a imagem do Pas-
, lar tudo. Sabemos também que o mundo em: que vivemos Fstá sujeito ao devir
tor de Homens. serviu ainda para uma outra coisa. Se o tirano é aquele que,
e nele os humanos, as cidades, a vida e as ações mudam senjl cessar. Fixar as leis
usando a força, faz de sua vontade lei, fica claro que a lei é o substituto que os
'de uma vez por todas significa imobilizá-Ias num mundo m~vel e forçar sua re-
humanos encontraram para suprir a ausência do conhecimento perfeito do Bem
petição rotineira para situações nas quais não poderão aplicar-se, de tal modo
e da Virtude. Ou seja, embora o tirano não seja o político, sua figura indica que,
que aplicá-Ias será uma injustiça. O que a experiênciatem mostrado? Que dian-
para os humanos, governar é instituir a lei como substituto do Bem e da Verda-
te de situações novas que exigem respostas novas, ágeis, ráJidas, inteligentes, a
de (como cópia dessas idéias) e que, na tirania, não há propriamente lei, mas a
lei não pode ser respeitada, e alguns, para o bem da Cidade, agem contra a le-
forca nU;J da vontade pessoal como substituto da lei (cópia da cópia, simulacro
gislação, como o médico que receita um remédio intolerável ao paciente ou o
do Bem e da Verdade). Graças à figura do tirano, o Estrangeiro proporá uma
capitão de um navio que força os passageiros a. aceitar uma Inova rota para evi-
nova definição do político: é o legislador: Ora, o tirano não governa sem leis.
. tar forte tempestade. Visto que o resultado costuma ~er satisfatório, a Cidade
Como distingui-Ia do legislador político? Em primeiro lugar, pela fonte de lei: habituar-se-à à ação excepcional contra, fora ~'7acima de sulas leis, o que susci-
no tirano, ela se origina da vontade; no político, do intelecto. Em segundo, pela ta o aparecimento dos tiranos. Não basta, po~tanto, que o ~olítico seja legisla-
atitude dos governados: a lei tirânica é obedecida por medo; a lei política, por- dor.Com isso, Pia tão, sem o dizer diretamente, coloca em dúvida que os Sete
. . I
que livremente aceita. Sábios teriam sido sábios por terem sido legisladores. Ainda urna vez, como fia
Será a lei o melhor caminho para definir o político? Definido como legis- referência ao tirano, vemos o filósofo - numa discussão ap~rentemente muito
lador, essa definição suscita novas indagações. Quem pode fazer as leis? Quais abstrata - interpretando a história e o presente de sua sOcierade.
os critérios para diferenciar a lei boa da má? Como explicar situações em que a O diálogo parece haver chegado a um impasse. As duai grandes imagens
legalidade produz injustiça (lembremos da morte de Sócrates) e a ilegalidade que os gregos possuíam do político -:- o pastor!~, o legislador í revelaram-se in-
poderia salvar a cidade (lembremos dos amigos Harmódio e Aristogitão assassi- capazes de oferecer a definição procurada. Visto que estamo'i numa aula de fi-
nando o governante tirânico)? Dada a diferença entre os homens, como encon- losofia, em que o Estrangeiro está ensinando ao jovem Sócra,es como procurar
trar leis que sejam igualmente boas e justas para todos? Dizer que a "democra- aquilo que não sabe, um recurso pedagógico é proposto. Pana ensinar crianças
cia é o império da lei" garante sua justiça e bondade? a ler, diz o Estrangeiro, os pedagogos, em lugar de ensinar-Ihes as letras isola-
Para responder a essas novas perguntas, o Estrangeiro propõe () exame das das, cnsinam-lhcs palavras-chave em que podem localízar e i~entificar as letras
legislações existentes, isto é, das Constituições ou politcíai (ver politcia*) existen- e, depois, compor e ler palavras novas. Essas palavras-chave s1'+ paradigmns, Isto
tes de fato. O que as distingue? Dois critérios: o do número dc governantcs (um, é, exemplos que enfatizam a estrutura ou a forma das palavlr' oferecem uma
alguns, todos) e o das qualidades dos governantes (honra, na monarquia; exce- totalidade organizada que facilita a compreensão, pois, afinal. ninguém fala, lê
lência moral. na aristocracia; liberdade, na dcmocracia). Ora, observam o Es- e escreve letras, mas palavras. Procuremos, então, um paradigma para o políti-
trangeiro e o jovem Sócrates, esse exame em nada nos ajuda, pois em cada um co, sugere o Estrangeiro, visto que os do pastore do legislador não nos ajuda-
desses regimes políticos escutamos os cidadãos colocando exatamente as rnes- ram a encontrar sua essência.

'l:!.
o paradigma sugdrido é a arte da tecelagem. Que é a tecelagem? A arte de o mais magnífico e excelente de todos os tecidos. Abrange, em cada Cidade, todo
lidar com fios para produztr uma trama ou um tecido. Essa arte possui uma arte o povo, escravos ou homens livres, estreita-os na sua trama, governa e dirige, asse-
auxiliar: a de cardar, qUf separa e desembaraça os fios para que sejam postos nas gurando à Cidade, sem falta c sem desfalecimento, toda a felicidade de que pode
mãos do tecelão. Este f'ealiza duas uçõcs: torce os nos pam obter II urdidura e desfrutar,
enlaça os fios para obter a trama ou o tecido. Tecer, portanto, é urdir e tramar,
torcer e enlaçar. A tecelagem é a arte dos laços. Para um grego, a escolha do paradigma da tecelagem é imediatamente
Que faz o político? Encontra na Cidade várias artes e ciências: a jurídica, a compreensível, e quem lesse o Político entenderia logo o que Platão quis dizer
militar, a pedagógica, J econômica, a retórica. São para ele o que a arte de ~ar- ao escolhê-Ia. Para nós, quase vinte e cinco séculos depois de Pia tão, a escolha
dar é para a de tecer, o~ seja, auxiliares preliminares de sua ação: O político as . desse paradigma parece casual, sem muito sentido, talvez mera astúcia literária.
apanha e com elas faz ~ urdidura da Cidade: separadas, ele as reúne, torcendo Vejamos por que Pia tão o escolheu e por que os gregos podiam compreendê-Ia
cada uma delas para que sirvam à trama a ser tecida. De que é feita uma Cida- sem problemas.
de? De pessoas cujos cJracteres ou temperamentos são diferentes (sangüíneos, Na mitologia grega, a deusa Atena (padroeira de Atenas) é filha de Zeus e
coléricos, fleumáticos e\melancólicos, como diz a medicina). A urdidura consis- de Métis, Quando Métis estava grávida de Arena, foi-lhe dito que teria uma fi-
tirá em educar cada um desses caractcres para que adquiram a virtude que lhes lha e, a seguir, um-filho que roubaria o poder de Zeus. Este, para evitar a perda
é própria: aos sangülnéos, a virtude da prontidão; aos coléricos, a virtude da do poder, decidiu livrar-se de Métis, devorando-a. No interior de Zeus, Métis ini-
I '
energia ou coragem; a4>sfleumáticos, a virtude da moderação; aos rnelancóli- ciou o trabalho de parto. Desesperado com a dor que invadia sua cabeça (pois
I
cos, a virtude do conhecimento. :Graças às artes e ciências auxiliares, o político ..... ali estava Métis), Zeus pediu ao ferreiro dos deuses, Hefesto, que lhe arrebentas-
educa os cidadãos, urdi~do os fios da Cidade (torce a natureza de cada um para se a cabeça para acabar com a dor. Ao abrir-se a cabeça de Zeus, dela saltou, ar-
que alcance a virtude qJe lhe é própria). Educados ou urdidos os cidadãos, o po- .. mada, a guerreira Palas Atena. Por ter nascido da violência, tornou-se patrona
lítico tecerá o tecido da ICidadc, enlaçando os fios, isto é, criando laços de amor, .. da guerra, mas por haver saído da cabeça de seu pai, tornou-se a deusa da razão
amizade, matrimônio, ~ompanheirismo, solidariedade entre os caractcres 0pos-.: e da sabedoria, patrana das artes, das ciências e da filosofia. Sendo filha de Mé-
tos. Unirá moderados ]cnérgicos, velozes c intelectuais, impedindo laços entre .; tis, herdou de sua mãe a astúcia, o golpe de vista, o senso da oportunidade, a
os de mesmo caráter (P1oistais laços não só enfraquecem o caráter pela repeti- , arte da simulação e sobretudo a arte dos laços, sendo patrona dos tecelãos e das
ção contínua dos mesmos traços como ainda os leva a formar partidos, facções bordadeiras. Assim, duas deusas possuem a tecelagem como um de seus emble-
e seitas e a lutar entre si~.Aos cidadãos assim enlaçados, o político Ihes atribui a mas: Métis e Arena. Ao escolher o paradigma da tecelagem, Pia tão mantém a
função de fazer e aplicar as leis, distribuindo, segundo seus caracteres, as magis-: patrona de Atenas, mas altera profundamente o sentido rnítico dessa patronagem.
tratu ras, os cargos e furlções públicos. O político é um artesão que fia e tece as .., De fato, vimos, no Capítulo 3, quando nos referimos às técnicas, que Mé-
almas para que realizen~ sua arcté e a da Cidade. ' tis é a deusa da inteligência prática e patrona dos médicos, capitães, caçadores.
. Se o' político é um krlesão, não deveria ser considerado um técnico? Mas a· .. sofistas e políticos. Por seu turno, sua filha, Arena, é a deusa da inteligência teóri-
política não foi definida' C0l110 Ciência? Qual é, pois, a ciência do político e que; ca, da sabedoria cspcculativa, patrana dos sábios e filósofos.
define sua essência? A ciência dos caractcrcs humanos, de suas concordâncias e .. Ao escolher o paradigma da tecelagem para definir o político, PIatão reali-
dis~ordân.ci.as, do q~~ é ~om ~u ~~cel.ente para cada um deles e do que os ~~e- : za duas operações. Primeiro, faz-se compreender por seus contemporâneos,
judica e VICIa.O político pOSSUIa ciencia das almas humanas. De posse dessa cien- ' pois conserva o político sob uma arte da Métis protegida por Atena; segundo,
cia, pratica uma técnica] a dos laços humanos. Com essa ciência, diz o Estran- . destrói a imagem que seus contemporâneos possuíam do político, pois não o
gciro, ele realiza define pela arte de tecer e sim pela ciência dos laços, isto é, transfere-o da asrú-

314 ~g
cia prática de Métis para os braços especulativos de Arena, a sábia. Faz do polí- PI",o). Afírrn ava a unidade d. virtude, ainda ~~e desi~.da ~omvários nomes;
tico, filósofo. Realizando um percurso diverso do que percorrera na República, e mantinha a declaração socrática da identidade entre razão I e vida virtuosa, o
Pia tão apresenta o que lhe faltava para a construção da Cidade justa ou perfei- vício sendo, portanto, i~~r~ncia do v~r~adeirq B~m., • I.
ta: a essência do agcntc político, Recusando a multiplicidade cmpmca das coisas ~enslv~ls tanto quanto a
pluralidade das essências inteligíveis, Buclides recusa també1 a díalética como
fJ.:p:~<>.~edimento par~ alcançar a verdade, uma vez que o, dialé~ico opera com os
os soeRÁ TICOS MENORES i: ,""C0ritrári~~ e, po~tanto, com ~ ,emb~te en:re o ,~~~e o .não-sef' embate "" um
'~' p~rme01dlano nao pode admitir, pOIS o nao-sernao existe. Nj
mesma linha, re-
Canta uma lenda que Sócrates teria sonhado com um majestoso cisne que cusa a dialética atenuada daqueles que consideram o conhec,mento uma com-
o seguia bicando-lhe o calcanhar. Ao despertar, disseram-lhe que estava à sua paração entre os diferentes para chegar ao que lhes é comum, essa comunidade
, I
procura um jovem, Ao vê-lo, Sócrarcs teria dito: "Eis ° mcu cisne". O jovem era sendo, então, a definição unitária e verdadeira de uma multiplicidade dada. Ora,
Platão. diz Euclides, ou os termos em comparação já são idênticos à~ coisas compara-
Essa fábula costuma sernarrada para distinguir Pia tão de outros discípulos das, não havendo necessidade da comparação porque já se conhecem as próprias
de Sócrates que passaram à história com o nome de "socráricos menores". coisas, ou os termos e as coisas são completamente diferentes\e a comparação é
Mescla dos ensinarnentos de Sócrates e dos procedimentos retóricos dos impossível. " , " i ' ,
sofistas, as posições dos socráticos menores encaminham-se decididamente para Os sucessores de Euclides, empregando l?rocedtmentos fa retórica sofístí-
uma orientação moral da filosofia, pondo em dúvida a possibilidade de ,enfren- ca, desenvolveram argumentos no estilo de Zenão de Elêia, is~o é, combateram
rar racionalmente as questões cspcculàtivas que, na mesma época, ocuparam Pla- a pluralidade e o devir por meio da redução ao absurdo.do m~ltiplo edo movi-
tão e Aristóteles. Agruparam-se em três escolas: a megárica, a cínica e a cirenaica. mento. Desses argumentos, três são os mais conhecidos porque serão incessan-
temente discutidos por tod~ a filosofia posterioraté nossos diaf' O primeiro, de-
senvolvido por Eubúlídes sob várias formas, é conhecido co10 o "argumento
OS MEGÁRICOS do mentiroso" e o "sorites do monte de areia"; o segundo, ap~esentado por Bs-
tilpão, refere-se à impossibilidade da predicação quando. o pre~cado é diferente
Euclides de Megara. possivelmente seguidor dos eleatas e, mais tarde, dis- do sujeito; e o terceiro, talvez o mais célebre de todos, foi deseryvolvido por Dio-
cípulo de Sócrarcs, cuja morte presenciou, abriu sua casa aos que desejavam doro Crono contra a idéia do possível, e conhecido como kynron, o vitorioso,
continuar as discussões filosóficas. nela dando abrigo ao jovem Pia tão. É consi- o tríunfador, o imbatível ou, como passou a ser-designado pelf tradição, o 00-
derado o fundador da Escola Megárica, de que são representantes Eubúlides de rninador, , , l
Milcto, Estilpâo e Diodoro Crono. O vínculo de Euclides com osc\eatas deu aos ' ri "argumento do mentiroso" é assim reproduzido por tícero: "Se dizes
megáricos sua principal característica, qual seja, a tentativa para unir o ensina- que mentiste, e de fato mentiste, dizes a verdade porque mei,tiste, ou, então,
mento de Sócrates e o de Parmênides, identificando, com o nome de Deus, Sa- mentiste porque dizes o, falso e, neste caso, dizes a verdade ao dízeres que men-
bedoria ou Intelecto, o Bem (a virtude socrática) c o Uno (parrncnldiano). tístc''. Em suma, tu invalidas o principio lógico .da contradição pois ao mesmo
Euclidcs negava realidade a tudo que fosse contrário ao Bem e à sua unida- tempo mentes e não mentes. Trata-se de um pa~adoxo do tipo que, mais tarde,
de. portanto, recusava não só o. que aparecia à experiência sensorial. isto é, o será chamado de indecidível e para o qual a lógica de nossos dtas buscará solu-
, sensível. o movimento ou devi r e a multiplicidade corporal. mas também a plu- ção distinguindo entre a afirmação causadora do paradoxo, isto é, a afirmação
ralidadc das idéias ou essências inteligíveis (pluralidadc que será proposta por ilimitada de "digo que menti", válida para todas as asserções passadas feitas por

316
' . .:.;

to à distinção entr
COmo às condições
{ teoria e prática ou entre as disposições da alma racional)
istóricas da filosofia aristotélica, elaborada e escrita-quan-
gínação, memória, inteligência) está em perfeita saúde e em perfeitas condições
para realizar sua função, ao mesmo tempo que o objeto experimentado tam-
do a pólis (como co~unidade cívica independente) não mais existe e o poder im:~; bém se encontra no estado de sua maior perfeição. Aspiramos ao prazer porque
perial de Alexandreromina o mundo'll! c.Iesejamos viver, e a vida é uma atividade que recebe do prazer um suplemen-

",'
to, um "algo a mais" que aumenta a atividade e o desejo de viver. Por isso, sem
Essa vida [pura rente intelectual ou díanoética] é muito elevada para a simple,: atividade não há prazer é sem prazer a atividade diminui, tendendo mesmo a
condição hurnan e s6 poderá ser vivida enquanto houver algo divino em nós [..J desaparecer.
:. 'í.~

Se o intelecto é. a go divino em comparação com o humano, a vida de acordo com É esse laço entre o prazer e a vida, entre ele e a atividade, entre ele e a per-
.'!"t";.

o intelecto é igu lmente divina em comparação com a vida humana. Não se-deve.' feição do órgão e do objeto de satisfação que permite a Aristóteles afirmar que
pois, escutar os uc aconselham os humanos, por serem humanos, a limitar s~~ o prazer é lnscparável da virtude, que esta é uma forma de prazer superior por
pensamento às J:isas humanas, c por serem mortais, às coisas mortais, mas, 1?-.... ser capaz de prolongá-lo, tornando-o um ato menos fugaz ..O laço que une vir-
medida do possí cl, o humano deve imortalizar-se c viver dc acordo com sua pa~:-, tude e prazer explica, enfim, por que as virtudes intelectuais são superiores às
tc mais nobre, p (quc mesmo que esta parte seja pequena por seu volume, por s~~ morais, pois nelas o prazer é mais intenso, mais vivo, mais longo e duradouro,
força e valor ultrapassa todo o resto. ' '·'!r

Ocupar-se com as coisas divinas, vimos, é a definição aristotélica da filas TRANSIÇÃO DA ÉTICA PARA A POLÍTICA:
na primeira e, assim o mais virtuoso e o mais feliz dos humanos é o filósofo, JUSTIÇA E AMIZADE
A afirmação da superioridade das virtudes intelectuais sobre as éticas p)
deria levar-nos a su or que Aristóteles teria retornado ao platonismo, isto é,l, O filósofo concretiza as virtudes intelectuais; o prudente, as virtudes éticas.
idéia de que a alma acional deve dominar e comandar a sensitiva e a apetitiv.~ Não é possível ser filósofo sem ser prudente, mas é possível ser prudente sem
Não é, porém, ocas . Em primeiro lugar, porque a racionalidade das virtud~,: ser filósofo, A razão dessa diferença encontra-sé na concepção hierarquizáda
éticas encontra-se n asmesmas e não num comando externo - a prudênci., que Aristóteles possui sobre o mundo e o homem, isto é, no fato de que um

1
embora dianoética, é uma virtude eminentemente prática. Em segundo, porqu
Aristótelcs coloca to as as virtudes, práticas e dianoéticas, sob um princípio q~~,
não é platônico: o pt·6zer. ::~'
grau superior pressupõe a presença dos graus inferiores, mas estes não podem
incluir o grau superior, A sabedoria teorética, superior à sabedoria prática, a in-
clui; a sabedoria prática, inferior à tcorética, não a inclui e pode existir sem esta
O prazer, diz AlistóteléS, é como a visão: um ato completo em si mesm. última. A prudência, escreve Aristóteles no sexto livro da Ética a Nicômaco, "tem
Surge e desaparece s m geração e sem corrupção, sem apresentar nenhuma d a ver com as coisas humanas e com aquelas que se referem à deliberação, pois a
forn~as do movit~ento (klncsis),pois rea~za-se no illst~nt~, não é algo i~compl~ . obra do prudente é a boa deliberação".
to e inacabado, nao tende. para nada scnao para de propno. O prazer nao é tra A obra do prudente é a moderação, isto é, encontrar a medida c a regra
sição da potência ao 1to, da djnamis à enérgeia, mas é enérgeia ou ato em si m ..' correta (orthos lógos) para a escolha virtuosa. Sendo da ordem da ação, sua obra
mo e por si mesmo. tão é um devir, não possui um começo e um término, .' exige o conhecimento do universal e do particular e "de preferência, o que se re-
é um instante pleno e completo que acontece e desaparece. Para cada um fere ao singular". Para isto, depende da ciência arquitetônica, isto é, daquela ao
nossos sentidos há u prazer que lhe é próprio, assim como há um prazerpr, qual os seus fins (éticos) estão subordinados, portanto, depende da política. Em-
prio em cada uma dJ nossas atividades (falar, fabricar, pensar), alcançando s . bora as essências da prudência e da política sejam diferentes, "são uma só e mes-
plenitude ou perfeição quando o órgão que o experimenta (sentidos, fala, ím ma disposição", qual seja, a disposição legislativa ou normatíva, O vínculo en-
i
458
L.
,
I

tre a ética e a política é constituído não só pela subordinação dos bens índivídu, dispensável à vida. teríamos que admitir que é condição e não ~OnSeqÜência da
-Ó:

ao bem comum. mas também pela identidade da disposição do prudentee: vida virtuosa. Na verdade. não há ambigüidade na definição Pfrque,' de fato.ra
político. isto é. daquele que modera ou legisla. oferecendo a medida e a reg amizade é uma virtude, é condição da vida virtuosa .e é cons,qüência da vida
correta. O político perfeito ou excelente é o prudente. virtuosa. "Sem amigos, a vida não vale a pena ser..vivida", escr~ve Arist6teIes ..
Ora, há uma virtude ética que diz respeito diretamente à lei: a justiça: ':;l '. O que é a amizade? É benevolência mútua. cada um deseiando o bem do
justo é o que é conforme à lei e respeita a eqüidade; o injusto é o que viola a,1, outro; benevolência que não pode permanecer ignorada. mas eve ser conheci-
e a falta à eqüidade". lemos no Livro v da Ética a Nicômaco. As leis se refereIn:;.~i: ,pa e reconhecida pelas partes env~lvidas na relação; e tem COl11Ocondição e fi-
bem da comunidade política e são justas as ações que tendem a produzir ..<;,Ja' nalidade a virtude, jamais a utilidade .ou a obrigação, Só pod,exiStir,entre os
.''li
conservar a felicidade dessa comunidade. Assim entendida. a justiça é a virru.1·· iguais e semelhantes por caráter. isto é, somente entre os vírtuosos. ;1,
completa ou inteira. pois quem a possui é capaz de usá-Ia para si e para OS'9~ '. :' i;.

A amizade perfeita é aquela entre 9S virtuosos que, ~ão sçmel~antes na virtude.


i, ..

tros. No entanto (como no caso da relação entre prudência e política). justiç~~(:


virtude são idênticas como disposição. mas suas essências são diferentes. Em" .. pois tais amigos deseja~-se reciprocamente o 1;>~~J!~,qu,~~o, Hã~ bons
s~l' 1;><:>~
por si mesmos.Porém, os que desejam obem ,a seu,~ami~os por amor ~ eles são
tras palavras. Aristóteles recusa a identidade (platônica) de essência entrevir
de e justiça; :.\'. ~s ,amigos porexce,~ê~~~~.'[....]. su~ ~~izader~~~is'~e,,~pq~~~o'~+em b~~~ c) a ~i;
Prudência e justiça nos encaminham. portanto. da ética para a política, IT:l,~'.
. tude é uma dispo~,~~~?J es,~~~:l.C,a~~up. ~;b,9Fr .~~.~~a1l;~~r,~f.',.~~,
.I:I}~do.
~b~~;
luto c para seu amigo. pois os bons são. ao mesmo tempo"absolura.mente,bons em
além disso. preparam a compreensão da mais alta virtude ética, que será,t"t~i'
'si mesmos e úteis uns aos outrosj.c], São agradáveísunsaos ~~í;~s:;p~~~~~ c~d~
bém, noutra forma, a mais alta virtude política: a amizade entre os iguais ~..•
um encontra praz~r nas ações que exprimem seu..c~rá~ere nasqr~ são de mesma
melhantes, a philía*.
natureza que ele [...]. Toda amizade, com efeito. tem como fonti o bem ou o pra-
O lugar ocupado pela amizade na exposição aristotélica é muito sugesti'!::
,
.
zer. seja em sentido absoluto. seja par'a aquele que 'ama. Isto é;er ~~zã~da ~em~-
situa-se nos Livros VIIl e IX da Ética a Nicômaco, após a análise de um vício (ar.
lhança. ' ' I

ta de domínio sobre si mesmo, a akrasiacn: incontinência) e antes da análise ..


prazer ou da fruição (hedoné). Por que este lugar? Porque akrasia e phiUa diz~
0, maus, de. Aristóteles, não sentem omel)oipr"fr ~à ~o~pa~~",
respeito ao prazer. mas de modo contrário (como se observa no quadro das) , dos outros e não se unem para se fazerem reciprocar,nente o bejm. '. ".' I ".

tudes morais. na p.,453). A primeira busca obter seu próprio prazer; a se~~ A amizade pressupõe que cada amigo deseje a mesma cois com sua alma
dar prazer. a outrem. Quando, na busca imoderada do próprio prazer, prom~' . inteira: fazer desinteressadamente o bem ao ~migo, desejar-lhe] tg~vida, des~~
prazer a outrem para, na realidade, fazê-I o dar-me prazer, a akrasia simula jar viver em sua companhi~,' compartilhar as~e~ma.s idéias,'opyúões'e' gostos~
'11:

·
philía. Essa simulação na verdade é uma dissimulação, um simulacro da ver" compartilhar alegrias e tristezas -.,. deseja ao outro o que' des~ja :para si pr6prio.
deira amizade. É por este risco da dissimulação de um vício numa virtude;g~ A amizade só existe entre os prudentes e os justos;'sendo'pdr ísso'condição
Aristóteles expõe, numa seqüência contínua, a incontinência, primeiro, e a aD;') e conseqüência da vida justa.' que é a 'vida na' comunidadepOlí 1
a. Compreen-

1
... ".i,
zade, a seguir. i:):) ... demos.' então. porquephílke akrasíasãocontrárías/pois esta' tímausa a co-
A definição da amizade é curiosa. AristóteIes a define como "umacert~:~ munidade política para servir ao seu próprio interesse e prazer, odendo arrui- .. '
tude, ou não existe sem virtude; além disso, é o que há de mais necessáriop~~ . ná-la (como o fez Alcibíades/Iançando apólis na terrível gúerracontraSiracusa)
viver". A definição é curiosa porque não sabemos exatamente se a amiza~~i~ e trai-Ia (como o fez Alcibíades, abandonando a derro~adaAtena, por sua iními-
uma virtude ou algo que pressupõe a existência de virtudes. sendo. então. u~t ga, Esparta). A akrasía é o vício próprio dos tiranos', daqueles que não amam:
. I
conseqüência da vida virtuosa. Porém. visto que o fil6sofo afirma que ela é;~~ ninguém c por ninguém são amados.. '. "",,';t·, ;"1" 'I'· .. ' ,<t'

460
Mas Aristóteles pbSSUi ainda um outro motivo, mais profundo, para f~~ o Ocidente. Suas idéia~ políticas, até hoje, só foram abandonadas por alguns fi-
da amizade uma Virtute e a mais alta virtude ética. De fato, a ética visa educ~.' lósofos no correr de vinte e quatro séculos, e só foram criticadas em profundí-
o .
o desejo e nos ensinar o valor da autonomia. O prudente é aquele que não d~; da de em três ocasiões: no século XVI, por Maquiavel; no século XVII, por Hobbes
pende das coisas e dos utros para agir, mas que encontra dentro de si os mei c Espinosa; e no século XIX, por Marx e, mesmo assim, cada um deles reconhe-
da ação sobre as coisas, sobre os outros e com os outros. O ideal daautonomi" ceuaspectos da teoria arístoeélíca que se conservam intactos e verdadeiros. Em
é o ideal da autarqUia'fto é, da independência e auto-suficiência. Ora, diZ,Ari!.,' nossos dias, a maioria dos pensadores políticos cristãos ainda é aristotélica e, sob
tóteles, somente o Pri eiro Motor Imóvel é autárquico, somente o deus é ple vários aspectos, a sociologia conserva as idéias aristotélicas, sobretudo a socío-
na e totalmente auto-s ficiente e independente e por isso somente ele é plen~ logia nascida com Emile Durkheim. "
mente feliz ou bem-av nturado. Os homens não podem ter essa plenitude,' m Dentre as teses aristotélicas que permaneceram na tradição do pensamen-
podem desejá-Ia (e a desejam) e podem imitá-Ia, isto é, emulá-Ia e Simulá-I. to político, destacam-se três que serão, exatamente, objeto das críticas dos pen-
Como os homens im~'t m a autarquia divina? Pela amizade. Com efeito, junto sadores que mencionamos acima e que foram a causa das críticas que esses pensa-
os amigos formam u a unidade mais completa e mais perfeita do que os in:, dores receberam de suas sociedades, impregnadas de.arístotelísmo político:
víduos isolados e, pel~ ajuda recíproca e desinteressada, fazem com que caq • o Estado justo ou perfeito é uma comunidade uma e indívísa;: '"
um seja mais independente do que se estivesse só. A amizade é nossa parten. • a finalídade do Estado é o bem comum; .: li" .:

divino, a maneira com a ação humana imita a autarquia divina e faz a pólis i • os governantes (seja um só, sejam alguns ou todos os cidadãos) devem ser
tar a autarquia do kós os. .! virtuosos porque são espelhos para os governados, que os imitam; seus vícios,
por isso, corrompem os governados e destroem o Bstado.. ',:1.:'

Falar na permanência das idéias políticas aristotélicas não significa, porém,


A POLiTICA dizer que a totalidade dessas foi conservada tal como Aristóteles as pensara nem
,
'1
que os conteúdos específicos que ele propusera na Grécia Clássica foram man-
Pelo que acabamí de ver sobre a amizade e o ideal da autarquia, já P,Od, tidos, e sim que alguns dos princípios que ele definiu como principios da vida e
mos antecipar o papel a política para Aristóteles., '\1 da prática políticas foram mantidos no Ocidente, exceto naqueles pensadores
Na abertura da É ica a Nicômaco, como vimos, Aristóteles, ao pros~~""()I que, embora reconhecendo os méritos do filósofo, romperam com a tradição
examinando a diferençk entre as ciências produtivas e as práticas,' conclui ,Ql1' aristotélica e que, como vimos, foram poucos. ."
além de as práticas serérn superiores às produtivas, a política é superior ~. tiS' Que princípios são estes? :'
A política, diz o mósofd, orienta a ética, pois o homem s6 é verdadeiramente, .,1 ..!

tárquico na pólis, e oriénta também as ciências produtivas ou as artes, PO~,~i: 1) O homem, animal naturalmente político ', '" i ..•. ,

mente a Cidade diz o que deve ser produzido para o bem de cada um e,~~~~ ,,' O homem é um animal político (zóon poliktikon) por natureza, ou seja, é
dos. A política é, aSSim~aqUe1a ciência prática cujo fim é "o bempropriam~ .. da 'natureza humana buscar a vida em comunidade, e, portanto, a política não é
humano" e esse fim é ' bem comum. Por isso a política é a ciência práqç . por. convenção (nómos);imaspor natureza (phjsei) ...., , ,:., ,;,;; . ',. r'.;., sÓ,

quitetôníca, isto é, aqu Ia que estrutura as ações e as produções humanas. I':' No Livro I da Politica, lemos: '., ";Ii,"
Se Aristóteles deixou sua marca no pensamento ocidental por causa 4~~,!;I 1 '

gíca, da metafisica e delsua teoria do conhecimento, esc, até o século XVII, É manifesto, a partir disso, que a Cidade faz parte das coisas naturais e que o ho-
física e psicologia, e até h século XVIII, sua biologia foram mantidas em seus as mem é por natureza um animal político, e que aquele que está fora da Cidade [...]
tos fundamentais, é cot sua teoria política que ele marca mais profundam,;;, ou é um ser degradado ou um ser sobre-humano.

462
Como observa o helenísta Prancis Wolff, dizer que a pólis é natural e que C> 3) A comunidade política
, I
homem é naturalmente político não significa dizer que a Cidade é a primeir ; A comunidade política é o fim a que tendem a comunidade familiar e a co·
comunidade humana na ordem do tempo. .: .h munidade de aldeia (diríamos. a comunidade social) e. por ser o fim (télos) das
outras comunidades, é anterior a elas do ponto de vista lógico ~ onrológíco, em-
pois a natureza de um ser não é necessariamente aquilo que aparece nele em pó: bora Ihes seja posterior do ponto de vista Cronológico. Em oUfras palavras. um
meiro lugar. É assim que os homens falam naturalmente. sem falar desde o nasci fim é sempre anterior às ações para chegar a ele;' Sendo a cornunídade política
mcnto, mas nascem com a capacidade de falar inscrita neles e realizarão sua essên 'J:i/():{im das outras comunidades. ela é lógica e ontologícamente anterior a elas,
da ao falar [.»], O homem é pois naturalmente político. o que significa que há e, . "" como o todoé anterior às partes, ' "I

sua natureza uma tendência a viver em cidades. e que ao realizar essa tendência' Prancis Wolff salienta os três aspectos principais da àefini~ão aristotélica da
homem tende para seu próprio bem (P. Wolff 1999. p. 84). comunidade política: é um certo tipo de comunidade,' é conStijuída em vista de

o homem é um animal político ou naturalmente político porque é ums


~:~~t:sb::r:~~entre todas as COmUnid~d~S, é à :~~s S~be~~, i~ ou ~u"tárqUica

carentee imperfeito que necessita de coisas (para desejar) e de outros (para' A pólis é um tipo de comunidade: sua causa material são o lares, linhagens
reunir). buscando a comunidade como o lugar em que. com os seus semelh : e vilarejos; sua causa formal é sua constituição o1.:l'se~~reg~e ,~oliteí4);'suacau-
teso alcance completude. Se fosse sem carências. seria um deus e não precisara sa, final é o viver be,m ou a vida justa entre 'aque1esq,u, e".,por,itS, soestão li,'gadOS
da vida comunitária; se fosse uma besta selvagem sequer sentiria a falta de o' pela amizade ou pela afeição, isto é.por laços 'que permítemdístí guír entre um
tros. Por não ser um deus nem uma besta feroz, o homem é um animal poli , "nós" (os amigos) e um "eles" (os inímígos)," " "";';;::)1",,:;:;,,'<'(-1 ,,~ '<:)r' ," t"
co. Além disso. como explica Aristóteles, "a natureza nada faz em vão" e se de] A pó/is é constituída em vista de um certo bem: pois tod comunidade se
ao homem a linguagem não foi apenas para comunicar sentimentos de prazer.i define pela finalidade que agrupa ou reúne seu,s' membros' e ~\ma ~~alidade,
dor (como a maioria dos animais). mas para exprimir em comum a percepçãj para os humanos e para a ação humana, é sempre um bem. '" '
do bom e do mau, do útil e do nocivo. do justo e do injusto, ou seja, para exp A pólis é a mais soberana ou a mais autárquica das cOmUni;adeS e inclui as
mir em comum a percepção dos valores. 'outras: a cidade é qualitativamente mais alta (é a maissob'era~a quantitativa- e
mente mais extensa (inclui todas as outras), e por isso sua fínalíd de é o bem hu-
2) As comunidades cronologicamente anteriores ti Cidade manó~upremo, a vida feliz.' ,','" ' <:' ' ", ,,
As duas formas comunitárias cronologicamente anteriores à comunida4~ , A comunidade polítíca.jsto é, a pólis (aCida4e;',0 Estado)\'distingue-se da
política são. em primeiro lugar. a família ou o lar (oikos). isto é. a comunidade 40" família ou lar e do vílarejo (ou da vida social) pelo tipo de.p~dt~ ~ude autori.
rnéstica, constituída pela relação conjugal ou pelo poder marital do homem S dade próprío a cada uma .dessas comunidades. E~te 'ponto é Uta das maiores
bre a mulher, pela relação entre senhor e escravo ou pelo poder desp6tico do. s~
.. "
cq~trib~ições de Arístóteles ao pensamento p~lítiéó.' pois f~i ~l~ " p~eir~a de-
nhor sobre o escravo. e pela relação parental ou o poder paterno do paísO,? monstrar que a política não é a simples contínuídade, da família ,',da reunião de
seus filhos. E. em segundo. a aldeia ou o vila rejo. organizado em lares ou.f famílias. ainda que na fanw.aexistaIA ernbríonaríamente 0\.1 çxp, fotência as três
lias e linhagens. preenchendo duas funções. a da administração da justiça (o principais for~a de regimes ou constituições políticas, De fato, , poder do ma-
bitragern) e das cerimônias religiosas (ou organização dos cultos comuns).!~ rido sobre a mulher é o poder de umser livre sobreoutro ser fvre que é seu
Essas comunidades são as primeiras a despertar os laços de afeição e prj!p,ª,! igual (é o poder que existirá na pólis aristocrática e na pólis constitucional ou po~
ram seus membros para a philía propriamente dita, que só se realiza na Cida' pular), o do pai sobre os filhos, ode um ser livre sobre outros ~ue, embora li.
vres por natureza, são seus desiguais (é o poder qUe',e.xi~tirá na p\ólis monárquí-

464
,

ca ou na realeza), e !pOder do senhor sobre o escravo, o de um ser livre sobn 5) Os cidadãos


outro, não livre e in eiramente desigual- é o poder desp6tico (é aquele exi Para Arist6teles, como para todos os gregos da época clássica, a vida ética
tente. na tirania). No entanto, o poder político não se confunde com o dornéstí, (o bem-viver) s6 se realiza plenamente na Cidade, pois a comunidade política tor-
co: o poder marital o paterno são permanentes e pressupõem alguma desí na possívcts as virtudes índlvíduals e coletivas, as virtudes morais e intelectuais.
gualdade, o dos cidadãos é transit6rio e todos são iguais; o poder despótico. A Cidade cabe, portanto, a educação dos cidadãos. 1 •

privado e definido a~nas pela vontade pessoal e pelos interesses do senhorf Embora a Cidade seja natural, 'isso não significa que a natureza a produza
po~ític~ é,público, de Inído po~ leis e exercido e~tre o,s i~ais (o deSp~tiSmo.~O.i espontaneamente. Assim como a phjsis dá ao indivíduo O desejo, isto é, a incli-
a tirarua e o governo de um SO, que trata as coisaspúblicas como coisas pnv nação natural para o bem - mas a ética precisa intervir como ação voluntária'
das, governa para at nder aos seus pr6prios interesses, e a política desapare . e deliberada para que essa finalidade seja alcançada por meio das virtudes -, as-
, ,

sob a akrasía do tyra~nikós). ' sim também o Estado (oupôlts) nasce'da ação deliberada e voluntária dos ho-
mens, e por isso a política não é uma ciência teorética e sim uma' ciência práti-
4) As constituiçõe e os regimes políticos ca, em' que a ação tem a si mesma como seu fim. Assim como ninguém nasce
As Cidades ou stados se distinguem pelo tipo de Constituição (politeía virtuoso, mas se torna virtuoso, assim também ninguém nasce cidadão, mas se'
isto é, pelo tipo de a toridade e de governo, ou, como lemos no Livro l1I da •.{JI. torna cidadão pela educação, que atualiza a inclinação potencial e natural dos
lítica, é "uma certa ar em das diversas magistraturas, especialmente a que é supri homens à vida comunitária' ou social.
ma entre todas [...] o governo da cidade". Assim, como explica Sérgio Cardos. Quem são os cidadãos? Os homens adultos livres nascidos no território da
em "Notas sobre a tradição do 'governo misto'", a politda deve ser cornpreendíd Cidade (ou do Estado ). Estão' excluídos da cidadania: as mulheres, as crianças,
os muito idosos, os estrangeiros e os escravos. Isso não significa que não possuam
,'o' !. ,.' : '. .,
como a organizafO das magistraturas ou poderes exercidos pelos cldadãos.xe direitos, e sim que não possuem direitos políticos; excetuando o caso dos escra-
slderando-se, por' m, .especialmente os pod.eres sobe~anos, visto que é [...) pel,?;"
vos, que não possuem díreíto algum ~ dependem inteiramente dos favores do
ráter do governo oltteuma) que se determina a qualidade, ou a natureza, da cO'J s~nhor. . ',' .' ". . ,
tituiçâo de uma ci ade (S. Cardoso, "Notas", in N. Bignotto, org., 2000, pp. 33-4
. , ':.,'~OlL; Ser cidadão não é votar para ter representantes, Ser cidadão, é participar di- .
. ..".: ..: '

'(I" retamente do governq (das magistraturas, das Assembléias, dos tribunais) e vo-
Por esse motivof a pergunta inicial deve ser: "quem governa?". OU},~j., ~. " ; (." . " '.. : 1'. : • ,. ;,' : '. .. , : ,'. .

tar diretamente nos assuntos públicos


i.~
postos em discussão para deliberação.
quais cidadãos ocupar o poder soberano? Temos, assim, a distinção fundarp.e~. • • , " :.', ',., I I ',"i 11 J r I' ! j ". ' .. ": ' , . . • I . ' '.

Portanto, ser cidadão é ter poder ! legislativo, judiciário e deliberativo. Um Esta-


tal: o governo de um ró, baseado na honra e na glória do governante, é a~~.~l,~ • ".;., .,' , .I, ",.. ;
, . ':.'
').1', ," C,O I 1

do (ou pólis) assume suaforma ou constituição pela organização das rnagistra-


za; o governo de al~ns, baseado na virtude ética dos governantes, éa ari~tp . I., .. ', ; .. , _, ! " .,

turas e pela da magistratura principal a que todas outras estão subordinadas e


cracia; o governo de tfdos, baseado na liberdade e na igualdade de todos peran
a lei, é o regime constitucional ou popular. Cada Constituição (forma do"rê com à qual todas elasest~o articuladas, ·o~ seja, a magistratura principal é o go-
verno da Cidade. , ,;.IJ;'.if· q;I;' !.'
me) está de acordo c~m. a constituição (caráter-temperamento) de seus m~i I
bros e corresponde a modo como eles esperam alcançar o fim da vida polític . Arístóteles defende uma .tese.queperduraráno Ocidente até o século xvm:
que é a vida justa e o em comum. ;"·)IM '. a do escravo por natureza.A naturezafaz alguns homens fisicamente robustos,
O Estado ou poli da, como tudo o que existe no mundo sublunar, está sub predispostos para o trabalho braçal e,com pequena capacidadeintdectual e mo-
1 .: t,:
metido ao perecimen~o e â corrupção e por isso cada regime político possuísu ral. e faz outros menos robustos.cnaís aptos para os. estudos, para o comando,
. . ',':11
forma contrária ou c rrompida: a tirania (para a realeza), a oligarquia (par~1r' para a vida política. Os primeiros 'são,escravos por natureza e os segundos, livres
aristoc~acia) e a dem cracia (para o regime constitucional ou popular) .. '11 :.11:,: por natureza. No entanto, Arístóteles é obrigado.a reconhecer que há escravos

466
. II
por conquista. Embora afirme que tal escravatura é injusta, não escreve nad,
ela, pois, como veremos, o conceito-chave da política aristottlica (como na pla-
que possa contribuir para aboli-Ia, permanecendo, assim, um grego com os prç;
tônica) é o de justiça e .esta dependerá do exame da forma d~ aquisição e distri-
. conceitos e ideologias de sua época e sociedade.
buição da riqueza na pólis. ,. .: 'I " ,.' '..
O que é um escravo? A resposta de Aristóteles é surpreendente: é um in"
Em segundo, estabelecer a diferença entre o despótes e ~ cidadão (o priva-
trumento dotado de voz (ou de palavra, lógos). Se nos lembrarmos da classifíc do e o público) e garantir, com isto, a verdadeira liberdade do. (idadão ouliberda-
ção das funções da alma, entenderemos a definição aristotélica: o escravo é u '\ <. de política, isto é, estar.livre das preocupações econômicas, ~os negócios e do
humano cuja alma não vai além da imaginação, sendo incapaz do uso plenoj;,. trabalho. Pois, em sentido pleno, ser um cidadão, para Aristól eles, não é nascer
razão. Por isso, por natureza, o escravo deve ser dirigido e comandado, na Cidade nem poder processar e ser processado em conformí de.c~~ a l<!in~
Apesar da clareza conceitual na definição do escravo, ao lermos os livros .." descender de outros cidadãos, e sim participar do governo.P r ísso.ina realeza,
Política, percebemos que Aristótcles, afinal, não se sente muito à vontadeqog SOmente um é cidadão e os outros são súditos; na aristocraci ,somente alguns
relação à escravatura, tanto assim que estabelece uma série de condições pari são cidadãos; e, no regime constitucional, todo~ sã~ cidadãos ,. " '. ' . ',' .
. " ~ li!!

aceitá-Ia:' A diferença entre os regimes é estabelecida por dois cri ério~:' pelo núrne-
r '., ,

.,
a) nem sempre a distinção entre homem livre natural e escravo natu~~, ro de cidadãos, isto é, pelo número dos que exercem a autorí ade e o poder po-
clara e por isso nem todo filho de um escravo natural será escravo natural; .. '/i lítico, e pelaexcelência específica (areté) que é ~alori?:ada nos governantcs, Um
b) a escravatura por conquista não é natural, não é justa e, se mantida, ,pel
,1
só e a honra como areté nos dão a realeza; 'um' s6 e o vício con rário à honra (vi-
'

menos uma regra os gregos devem respeitar. qual seja, nenhum . grego escrav lan.i.a) nos dão a tirania. Alguns e as virtudes éti~~..s no..s dão a a stocr'a.da; alguns '

t
.,.,!\
za outro grego; .., e o privilégio conferido à riqueza com seusvícios (prodigalid de e avareza) nos
c) os interesses do senhor e do escravo são os mesmos - o primeiro gara
"(,',
dão a oligarquia. Todos e a Igualdade nos dão o
regíme.consn cíonal ou popu-
te a vida do segundo. o segundo garante o sustento e a riqueza do senhor 1!~\'i't
~' lar; todos e o privilégio conferido à pobreza com seus vícíos grosseria,' inveja,
por isso o senhor não deve tratar o escravo como simples coisa ou animal.m malevolência) nos dão a democracia. A tíranía éio;governo' d 'interesse de um
deve reconhecer que possui lima alma (ainda que só seja atualizada até à imas só e não é política senão no nome; a oligarquia é o.governod srícosaa demo.,.'
. . . ~ ,~

nação) e argumentar com ele (pois ambos são dotados de. discurso ou palavn 4 cracía, o governo dos pobres. Um .regíme, é .normal, .correto .ou.bom e justo .
.

em vez de simplesmente dar-lhe ordens; quando o governoé exercido para obern detodos.é anqrmal,incorreto,-mau e
d) deve ser dada a todo escravo a esperança de emancipação. O que (-f injusto quando é exercido em proveito próprio., Com isso .te os o prirteípio, da
ro para os escravos por conquista, mas é surpreendente, no caso do escravo 1; constituição política, isto ê., aquilo que de~~~miÚa porque há regimes em que
, "'. \ ,.

rural, pois. se o escravo é por natureza, como poderia mudar de natureza ~..~. um só governa e outros em que al~ns ou todos gover~al1l' sse príncípío é a
. . .1,

nar-se livre? Aristóteles nunca respondeu a essa questão. :., <: Virtude política, isto é, a capacidade e. disposição par,a comand r para o bem de
todos, ou seja, para assegurar o cumprimento dâfi~alidade da Cidade, a autar-
quia coletiva ou felicidade do bem-viver comum. .', . \ .' .
6) As duas modalidades da justiça: partilha e participação . • . .. I

Antes de estudar as Constituições políticas, Arísróteles, como díssemos.]


ruda o lar, o oikos, e o conjunto de lares que formam o vilarejo ou a aldeia! Bs
. ,j ..•.~~

estudo, porque se refere ao oikos, é a oikonomia", isto é, a economia ou estu


das formas e relações de propriedade. do trabalho e da produção da rique., ..'
de sua circulação e é feito com dois intuitos principais.
Em primeiro lugar. visa estabelecer n).R....
uma relação natural entre o
-.
como a economia está organizada e o melhor tipo de Constituição política Pil

468
I
I '
Independenteme1te de sua Constituição, toda Cidade existe para cumprírá (as riquezas) e os que são indivisíveis, só podendo ser participados. Ajustiça ~~
s,eu fim e esse cumpri ento será mais ou menos perfeito em decorrência do tributiva se refere ao partílhável, maso poder (kráto~) é indivisível e, portanto,
tipo de Constituição. finalidade da política sendo o bem comum e a vida jus- . pactlcípável. Isso significa que ninguém, enquanto individuoou grupo, pode
ta, o valor essencial da olítica, .aquele valor (axía*) que serve para medir todos!; reivindicar a partilha do poder - seja como querem os defensores da oligarquia,
os demais' valores (axía ) da Cidade, é a justiça (díke). Que é a justiça? A igualda-' que afirmam que o poder deve ser distribuído-segundo a riqueza (ou o ínteres-
,

se privado),
,

I
de entre os iguais e a d sigualdade entre os desiguais. A justiça politica consiste seja como querem os defensores da democracia, que afirmam ,que
em duas ações principa s: igualar os desiguais, ou seja, criar os iguais; e deter~~ o poder deve ser distribuído segundo a liberdade decada.um, pois, novamente,
nar que o tratamento esigual dos desiguais é,justo. Essas duas ações são reali:I, falam em nome do indivíduo e não da Cidade como comunidade una e indivi-
zadas por duas formas a justiça: a justiça principal ou fundante, que é a justiça sa. O poder não sendo partilhável e sim participável, deve haver uma justiça que
distributiva; e a justiça ecundária ou fundada, que é ajustiça cornutativa. "1:,', realize o participáveJ e é a justiça política propriamente dita.· ..,. ,
A justiça distributi a se refere ao modo como a Cidade faz a partilha do:~'. Quando o governo pertence a um, a alguns oua todos, não .está distribuído
bens entre os cidadãos: riquezas, honrarias (cargos), fama, glória. Essa Justiça, " entre os cidadãos, pois, neste caso, teríamos cidadãos desiguais, alguns com
• '.-'J
'o"

porque deve criar os i ais e tornar justo o tratamento desigual dos desigua~~( mais e outros corri menos poder. O poder éindivisível e partícípável e todos os
opera geometricament .e não aritmeticamente. Ou seja, por exemplo, se a .ç!~' cidadãos (isto é, todos os governantes -:- um só, alguns, todos) possuem o mes-
dade tiver dez tonelada de trigo para distribuir aos cidadãos durante uma ~e.Ú mo poder. Isso significa que, na realeza, ums6 é cidadão e os demais sãosúdí-
ra ou uma epidemia, s ela dividir o trigo aritmeticamente em porções íguaís, tos (transferiram o poder ao rei); ,na aristocracia, alguns são cidadãos eos de-
dará a todos a mesma uantldade de trigo, sem considerar, por exemplo, oIF~; mais formam a plebe (sem poder e sem cidadania); no regime constitucional ou
manha de uma família, se alguém possui outros alimentos, se alguém tem di: popular todos são cidadãos. À divisão se estabelece entre cidadãos e não-cida-
nhciro para comprar ai mentes em outra Cidade., Neste caso, a Cidade será ~~" dãos, a justiça política referindo-se apenas aos primeiros. Dos não-cidadãos cui-
{('h

justa, porque estará da do tratamento igual aos desiguais. Para ser justa, deve dam a justiça dístributívae a comutativa, garantíndo-lhes direitos individuais e .
dar a cada um segundo suas necessidades, dividir proporcionalmente o trig?I;~ . privados, 'uma vez que não. possuem participação no poder ou direitos políticos.
igualar os desiguais, da do-lhes tratamento desigual. E assim deve ser com to~, A Cidade justa, portanto-é aquela que preenche quatro condições: 1) quem go-
dos os bens que distrib ir, sejam eles riquezas, cargos, fama ou glória. Em ca~~ verna, o faz para todose em vista do bem de todos; 2) todos os cidadãos (um
caso, a necessidade, o érito, o retorno para o bem da Cidade do que ela distq~i só, alguns, a massaj.possuem o mesmo poder; 3) a justíça.dístributíva é pratica-
!,.I',

buiu devem ser as reg r s da distribuição. A justiça distributiva deve Irnpedír'o, da baseada nos bens da economia e dos valores morais e intelectuais da cidade;
crescimento das desigua dades (econômicas, sociais, intelectuais, de opinião etc:>: 4) a justiça comutativa é exercida como o remédio legal e legítimo para corrigir
, ", ',1

pois são estas as causas (ia corrupção de uma Cidade, isto é, as causas das sedi- injustiças.
ções e revoltas que dest10em a Cidade e lhe dão uma Constituição pior do q~~
a que possuía. Ajustiça fundante é aquela que define a regra. da proporci0I1:~~- .7) A corrupção dos regimes e a Cidade justa ou peifeita i

dade entre os cidadãos, lriando os iguais pelo tratamento desigual dos desigual Como já dissemos, ~oucas vezesArístóreles.foícontestado, sobretudo de-
A justiça comutati+ corrige erros da justiça distributiva e sobretudo co'rt pois que foi transformado em' "filósofo oficial" da Igreja .Católica Romana, que
ge erros e delitos nas relações entre os cidadãos (furto, roubo, rapina, violêrici' julgava heresia ir contra as idéias d'O'Filósofo. Já vimos algumas dessas idéias:
fisica como ferimento e ~ssassinato, estupro, adultério, injúria, calúnia etc.), f' a da comunidade política como natural, finalidade supremados seres humanos,
. . '. ". . ,~
..
aplicação das regras do 1ireito ou das leis definidas pela justiça distributiva:":f:1. realização do bem comum edavida justa~ as idéias de justiça, as formas de re-
Existem dois tipos fe bens: os que podem ser partilhados ou distribuído~, gimes ou Constituições e seus critérios.' Quatro outras idéias políticas, contesta- >

470
das por poucos. são legadas por Aristóteles: 1) a teoria das causas da corrupção , Da ana'li se d a corrupçao- d os regimes,
.' ....1
surge ateona anfote 'li ca. d o regune
.
dos regimes políticos e dos remédios para corrigi-Ia ou impedi-Ia; 2) a teoría'do justo pu perfeito, isto é, aquele que. por realizar da melhor aneira a finalida-
regime justo; 3) a teoria do regime misto; e 4) a teoria das virtudes políticas ou de da vida política, está menos sujeito às revoltas, às facções' à demagogia e às
.' ..... (.
cívicas. alianças entre oligarcas e democratas. Para que a Cidade j sta seja realmente
Cada forma política tem uma causa própria para sua corrupção. A realeza' possível. ela precisa levar em consideração trê~ aspect,os mil eriais que assegu-
degenera em tirania porque o rei começa a acumular riquezas e poderes. a ter. rem sua autarquía perante outras Cidades, pois' ela nasce .P, ra dar ;autarquia ~
um exército próprio. acreditando que pode tudo quanto queira. A população, se seus cidadãos e só pode fazê-lo se ela própria for autárquica.:
revolta e. como está habituada a ser governada por um só. acredita que basta. . a) a população (ou a demografia): não pode ser muito umerosa, pois se
,

substituir o rei por um outro. Esse outro. porém. é escolhido por ser tyrannik6s, i
houver excesso populacíonal, a ,Cidade não produzirá os bens necessários a to-
isto é. aquele que é superior a todos os outros no manejo das armas. no coman-j dos os seus membros (alimentos, habitações, véstuários, instfmentos suficien-

~irt~~os;
do de homens e no uso persuasivo de argumentos. Ao escolher um homem su- , tes) e dependerá de outras Cidades ou de um grupo poderoso que a dominará,
perior a todos os outros para substituir o rei. a população cria a tirania. pois este:, ~~a~0' suprimentos daCidadeconformea?, 1~eress: e nãoao,.
escolhido desejará exercer por si mesmo e segundo seus poderes pessoais o po- .c

b) o territóriq: deve ser su~cientemente vasto para às~egutar trabalho, habi-


der político. O remédio contra a corrupção da realeza em tirania deve ser en-
tação, lazer para tod~s, mas não tão ~asto.,~ue:.~~s'~oss~:ap'r~~ri~~~se de
contrado nas exigências legais e legítimas feitas ao rei: não permitir que acumu-,'
parte dele para acumular riquezas e fechá-lo com. fqFqflcflÇQ~Se exércitos parti-,
le riquezas, não permitir que forme um exército particular, obrigá-lo a ser leal
culares. Deve ter fácilac~sso ao mar por'causal?" ~imé~ci?'~1~à;~o'fupni~aç~9:
às leis e a ser íntegro na aplicação da justiça distributiva e cornutativa.
mas deve ser naturalmente propício à proteção e à fortíficação, para não ficar
A aristocracia degenera em oligarquia quando os aristocratas se tornam
demagogos para obter para si os favores populares e quando formam facções rio,
sob°c~:~~:l;;:~~~ Cidadedeveco~m~'~s':~~::t •.:'::
vais que se combatem, enfraquecendo o poder. As honras começam a ser dadas
para que todas as funções essenciais possam ser preenchidas ,;a ~elhor manei-, .
somente para alguns (honras são os cargos). as desigualdades e rivalidades cres-
ra por eles próprios. A Cidade precisa ter agricultores, artesã s, guerreiros. co-
cem e um grupo rico e poderoso toma o poder. passando à oligarquia. Os remé-
merciantes, um grupo abastado que possadedicar-se integra mente à polítíca
dios aqui são semelhantes aos anteriores, acrescidos de mais dois: os governantes
sacerdotes, magistrados, juizes. prc
devem zelar para manter relações de confiança e solidariedade coma população
res das artes e dos oficios e de educação liberal (as ciências).
e mostrar grande capacidade administrativa. Levadas em consideração essas condições rnateríais, trata-se, agora, de defi-
O regime constitucional .ou popular degenera em democracia porque os.
nir O mais importante, ou seja. a qualidadeda Çonstituição:,PJ critica aristotéli-,
dirigentes se transformam em demagogos, querendo os favores populares e per-: cada oligarquia. da democracia e, da tirania já nos deixoa sabe~ que a Constitui- ,
mitindo que os ricos se aliem contra o governo; os ricos, por sua vez. distribuem ção não pode aceitar como critério o interesse individual ou ~rupal. nem deve
riquezas e promessas ao povo para obter seus favores e se aliam aos pobres (a conceber o poder. como um bem partilhável segundo tal interesse. Por outro
quem fazem favores) para que estes, cujo número é maior do que o restante,' lado, as considerações materiais deixam perceber que a:realezJ só éadequada a
derrubem os governantes. Por isso, diz Aristóteles, a democracia é o governç . '.:' va.stost~r~t6rios, a impérios e não a cida~es ..Restam' p~r~n~. o'las. cO. ns.tituiçõ.."
dos pobres conduzidos pelos ricos. Os remédios aqui são os mesmos dos do~ anstocrancas e populares. \' , . '," , .: c:! ':1 , . : ,i :;\ : ,o", ":'tl" .: 1.:(,\" ,

casos anteriores. acrescidos de mais dois: os cidadãos não podem permitir que ,',., .Bm Aristótdes e a política, Prancis Wolff, examina o percursr aristotêlíco pa-
desigualdade econômica tome conta da Cidade, provocando a revolta dos' p? ra a formulação da Cidade.justa, começando por lembrar que a:palavra "demo-
bres, e não podem permitir a aliança entre. pobres e ricos contra O governo.l~i~ cracia". na Grécia clássica, possui um sentido pejorativo que l~e é dado não só

472
a virtude da justiça tivessem o comando? A resposta de Aristóteles é dupla: em
pelos oligarcas e arist~cratas, mas pelo próprio significado da palavra, uma vez
primeiro lugar, diz ele, se uma dessas' qualidades devesse valer mais que as ou-
'~1ue,nessa época, dém s não significa "o povo", e sim o populacho pobre facil-
tras, uma parte da Cidade se sentiria injustiçada; em segundo, todas essas quali-
mente seduzido pelos demagogos. Assim, diz o helenista, Aristótclcs critica e
dades são necessárias à Cidade e a única maneira de essa multiplicidade agir co- .
combate a democraci" mas não o regime popular. Para compreendermos, por-
mo uma unidade para o bem comum é assegurar a soberania ao povo, uma vez
tanto. a formulação ar\stotélica. precisamos levar em conta a questão política tal
que todas essas qualidades encontram-se no povo tomado coletivamente.
como é colocada pelo \filósofo, qual seja,
A unidade da multiplicidade - cerne do pensamento aristotélico, como vi-
mos no início deste capítulo - é alcançada politicamente somente no regime
que tipo de rcgim éo mais capaz de tomar as melhores decisões para a Cidade?

somente 1
Esse .rC!~ime será j sro r ... 1 não porque nele o poder é justamente
porque vi a ao interesse geral, mas porque seu modo de governo o tor-
na mais capaz de atançar esse bem. E a resposta de Arístótclcs a esta questão é
repartido, nem
popular. Uma vez que neste todos são cidadãos, as virtudes políticas devem ser
adquiridas por todos, cabendo à Cidade, por meio da educação polltica ou cívi-
ca, atualizar essa disposição nos cidadãos. É bem verdade que haverá multiplici-
dade - aos guerreiros cabe a coragem, aos membros das classes econômicas, a
também sem arnbi "idades: é o regime popular, isto é, aquele no qual as delibera-
temperança, aos aristocratas abastados, a liberalidade e a magnifícêncía, aos juí-
ções são eferuadas oletivamente pelo conjunto do povo (F. WoHT, 1999, p. 122).
zes, a agudeza de espírito, aos sacerdotes, o respeito próprio, aos professores, as
virtudes intelectuais -, mas haverá também unidade, isto é, virtudes propria-
Assim, ao respon cr à pergunta sobre qual é a extensão do poder ou da so- mente políticas: prudência, justiça, clemência e liberalidade. No topo delas, a
rnnin popular, Ar1st tcles afirma que o povo deve ter a soberania judiciária e amizade.
dcllbcrauvn. Duns ob] ções podem ser erguidas à sua tese: a da "recnocracia" e
11 dn ndstOCl'lIcia. A pri leira, de estilo platônico, exigiria que o soberano fosse o 8) O regime misto
competente, aquele que tem o saber e pode decidir; a segunda exprime o temor A tradição tendeu a interpretar o regime misto aristotélico aproximando-o
de lJlIe a mediocriebdou a ausência de IlI'cté popular comprometa o valor do de Plarão. Como conseqüência, nessa tradição, Arist6teles teria afirmado que o
regime. À primeira o [eçâo, Arístóteles responde que a política é arte e que melhor Estado é um regime que combina o que há de melhor na realeza, na
numa arte o julgamenfo cabe ao usuário (causa final da ação) e não ao produ- aristocracia e no regime popular. Da aristocracia, o regime perfeito receberia o
tor (mera causa eficie~te), portanto, os usuários da Cidade, isto é, os cidadãos critério das virtudes ou excelências dos governantes; do regime popularrecebe-
são os que podem julg~r o que é melhor para ela e por isso devem ter o poder ria o critério da liberdade e da igualdade. Da aristocracia, receberia o grupo que
judiciário e. deliberativl. Uma assembléia popular, explica Aristótc1es, traz con- pode dedicar-se integralmente aos assuntos políticos; do regime popular, rece-
sigo uma pluralidade dd opiniões e de pontos de vista que, comparados à opinião . beria o conhecimento que todos os cidadãos têm sobre estes assuntos, podendo
e ao ponto de vista de hm só ou de alguns, permitem uma percepção mais am- vigiar, controlar e fiscalizar o governo. B da realeza receberia o critério da uni-
pla e uma compreenSão~1mais vasta dos problemas sobre os quais cabe deliberação dade e indivisibilidade do poder, assim como o exercício da prudência.
ou julgamento. A polít ca pede experiência e prudência e não ciência. A segun- Essa formulação, porém, não é aristotélica. Para compreendermos o regime
da objeção, responde ue o argumento aristocrata confunde o valor do corpo misto proposto por Aristóteles, precisamos compreender como foi que Aristó-
político e o de cada in ivíduo, isto é, um corpo político possui uma excelência reles chegou à idéia do regime justo perfeito, que acabamos de ver. Como obser-
va Sérgio Cardoso, a idéia de regime misto é elaborada por Aristórclcs a partir
c~letiva que nã~ é def~t1i~a pela e~cc1êt1cia de cad~ um ~o.s indi~íduos. ~e~ta., p~-
do exame de dois regimes corruptos ou desviados, isto é, a oligarquia e a demo-
rem, uma terceira _ob)efao, tambeh'9:~rt~ff ~~>~Isto;r~tlco:nao se faria injustí-
cracia, ou seja. do regime dos ricos para os ricos e do regime dos pobres para os
ça aos melhores nao lhbs dalido~ t1b.thnanto e;por ..direito, os cargos de coman-
pobres.
do? Não seria justo quela riqu~~:, a nobreza, a liber~a~de, a virtude guerreira ou
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Ora, é justamente esta dedução da natureza específica das constituições dcsvian- 9) A cristianização da política aristotélica
tcs que nos põe na direção do que há de mai~ original no trabalho de investigação Entre Platão e Aristótelcs as diferenças são claras. Em pr meiro lugar, o go-
de Aristótclcs: seu esforço no sentido de devolver a esses regimes alguma signifi- vcrnantc arisrorélico jamais será o filósofo, mas o prudente, ma vez que a po-
l.'ç.io "política". I ... ).\0 especificar suas dcrcrminaçõcs próprias a partir da indicnçâo lítica é prâxi.l humana e não "ciência divina". Em segundo, a pólis existe para o
da base econômico-social que os sustenta, o filósofo poderá também considerar o :!(; bem dos cidadãos e não o contrário, motivo pelo qual Aristó icles delimita com
modo especifico pelo qual entendem estabelecer um espaço comum, ou ainda, a precisão a esfera pública de atuação do Estado, impedindo-o e regular e dirigir
maneira pela qual ricos e pobres entendem legitimar suas pretensões políticas. [...] a esfera privada. Em terceiro, a pólis não é governada pela razão teorética, mas
oligarquia e dCl110cradanão apareccm para o filósofo apenas como espaço da ir- pela sabedoria prática de seus cidadãos e pelos laços de amizade que souber criar
raciona lidade das paixões e da injustiça, mas surgem determinadas por alguma as- entre eles. Apesar dessas diferenças, e apesar da diferença hist1rica e cultural en-
piraçâo de universalidade, ordem c legitimidade [...] (S. Cardoso, "Notas", in N. tre a Grécia clássica e o cristianismo, o pensamento político c1stão, fundindo as
Bignotto, org.. 2000, p. 36). concepções gregas e romanas, mesclou as idéias de PIa tão e 1ristóteles e as co-
locou em consonância com o princípio bíblico-teológico (se ndo o qual "todo
o regime misto é uma mistura de oligar<]uia e democracia na qual se pro- poder vem do Alto" e é um favor divino, uma graça concedida aos governantes),
cura realizar o justo meio entre os dois grupos opostos que dividem a Cidade, produzindo um paradigma político dotado das seguintes cara terísticas:
ou seja, tomando-se a pólis realmente existente, com suas condições materiais e • o poder cabe a um só e a monarquia é o regime políti o perfeito (como
sociais, e com suas divisões, trata-se de encontrar uma ordenação capaz de rea- diz a Bíblia, "um só rebanho e um só pastor") e, num regime misto ou justo, o
lizar o bem comum da Cidade. A poliLcía se define, então, como regime de to- mOmlr~<ldeve ser eleito pela comunidade de seus pares;
dos os homens livres (ricos e pobres), que buscam verdadeiramente UI1l bem co- • o govcrnantc, dotado de intelecto e vontade, deve ser c9ucado para o po-
mum, promovendo a intcgração e comunicação das duas partes fundamentais. der e essa educação consiste em incutir-lhe as virtudes políticas preconizadas
Sn\) essa perspectiva, a idéia de regime misto, resposta concreta a urna realida- .. por pl(lliio c Arisrórclcs:
de concreta, modifica a finalidade da política. De fato, no exame do regime justo • a qualidade do regime (justo ou injusto; bom ou mau) Idepende das vir-
ou perfeito, a finalidade da política não é a virtude de cada um de seus cidadãos, tudes ou vícios do governante e não das instituições políticas, 01 governante, isto
mas "a própria efetívação da pólís como comunidade ativa de todos os cida- é, O príncipe, é um espelho de virtudes ou de vícios no qual Si refletem-as vir-
dãos", da qual decorrerá a virtude de seus membros. Para isso, o regime misto tudes ou vícios dos órgãos de governo; . I
se ordena de tal maneira que os interesses das duas partes contrárias (ricos e po- • a sociedade (o corpo político) será justa ou injusta, boa lU má dependen-
bres) se submetam aos interesses de todos, semnegar a particularidade e rivali- do das virtudes ou vícios do governante porque, sendo o prín~ipe um espelho,
dade dos interesses respectivos, mas definindo um justo meio pelo qual possam
os governados imitam suas qualidades P.ositivas o.u negativas, fPClhando-as;
ser limitados e moderá-los em nome do interesse de todos. Por isso o regime • o regime corrupto é aquele no qual há conflitos entre cçõcs, a hierar-
misto é aquele em que o governo cabe às leis. Ou é "o governo da lei", isto é, não quia não é respeitada e as virtudes não são imitadas.
é governo da ciência, nem o governo do Bem, nem o dos melhores, nem o da
Como se. observa, entre as idéias. ·a.ristotélicas e Platônica1 e as cristãs me-
virtude, mas a nHldcra~'ã() entre as partes nntagónicas da Cidade pOI' meio da lei. dievais hú enorme distância. . . ,W'H. . h.-
Dessa maneira, no quadro que apresentamos na p. 469, o regime constitu-
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cional ou popular é o regime misto e é ele que Aristóteles chama propriamente
de jJolilcía. para distingui-Ia daqueles em que o govcrnantcnão é um "misto",
mas uma classe social ou um indivíduo determinados. PASTA
i.
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