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A atualidade da teoria social freudiana: Massa, Poder e Violência

Resumo
O artigo apresenta um panorama da teoria do social em Freud através dos textos
Totem e Tabu, Psicologia das Massas e Analise do ego, O Futuro de uma Ilusão e Mal
estar na Civilização e a ressitua na contemporaneidade, através da releitura de Jacques
Lacan. As teorizações freudianas são articuladas ao conceito de supereu e pulsão de
morte, a partir do qual Lacan forjou o conceito de gozo. Discute-se fato de nessa
teoria ele ter situado o mal-estar dentro de uma sociedade monogâmica e de capitalismo
industrial, quando a socialização do indivíduo se dava dentro do núcleo familiar e onde
a figura do pai representava o princípio de realidade em relação a sociedade
contemporânea em que a queda do pai como Outro Ideal e como centro da família foi
substituída por um novo pai : o Um da exceção, o pai tirano do mito totêmico, o pai
gozador: O Mercado Esse novo Deus obscuro é o Mercado e seu servo o discurso
tecnico-cientifico, enquanto o retorno do gozo que escapou da castração se configura no
novo poder: a opinião publica e provoca o mal estar na sociedade atual.

Unitermos
teoria social , cultura, mal estar, supereu, sociedade ultraliberal, opinião publica

A cultura e o social em Freud

É com o mito de Totem e Tabu que Freud iniciou uma teorização que articula o
individual e o coletivo, o sujeito e o social e onde a origem do sujeito se enlaça a
violência do assassinato do Pai, detentor do mítico gozo que faz surgir a fraternidade
(1913, 170-189 ). Suas teses sobre o social decorrem das proibições da cultura ao
incesto, à sexualidade polimorfa e perversa e das restrições à própria sexualidade genital
(Freud, 1930, p.121-128); mas também, da necessidade da cultura, para que se torne
possível e se desenvolva (ibidem, p. 146-148), de redirecionar contra o próprio
indivíduo sua agressividade, a qual será paga com um sentimento de culpa inconsciente.
Para descrever a relação conflitiva entre o singular (indivíduo) e o universal
(cultura), Freud recorreu a figuras míticas: Eros e, Thanatos. O assassinato do pai da
horda como origem da ordem simbólica e da cultura implica que o pai primitivo
inscreve nos filhos com a castração, uma espécie de corte que os carimba com a marca
da morte, de forma que a introdução do sujeito humano na ordem da cultura deriva
dessa marca infligida em nome do mal e da maldade. A morte que nos priva de um gozo
suposto, eternamente perdido e do qual nasce o pacto simbólico, a cultura, o laço social
vai originar também a religião e a repartição dos bens - o direito (Rey-Flaud, 200,8).
“A civilização é colocada antes mesmo de seu nascimento, sob o signo da
pulsão de morte” (Rey-Flaud, 2002,10). Mas ao mesmo tempo será Eros, força de
ligação, que responderá pela primeira comunidade. Os irmãos se unirão para evitar a
repetição do assassinato constituindo uma fraternidade. A fraternidade aqui se define
pelo que ficou fora do conjunto e faz surgir a segregação, pois implica estar separados
juntos; separados do resto. Ou seja: a união dos rivais só é possível pela aceitação da
interdição do gozo sem limites do Pai tirano. Ao renunciarem ao gozo e elegerem um
Totem, os irmãos farão pacto de não agressão perpetuados pelos rituais em torno do Um
da exceção, o que fica de fora – O pai gozador.
“Assim é introduzido in illo tempore o principio dialético que vai comandar o
desenvolvimento da civilização, a sabe, que o homem é cindido entre duas tendências :
de um lado, a se constituir como um ( formar comunidades) e, de outro lado, a manter
os privilégios de Um.” (Rey-Flaud, 200,11).O político se configurará no esforço de unir
o grupo elegendo um inimigo externo, o que implicará situar um ideal como bem
supremo, um ideal comunitário do triunfo através da violência.
Freud retoma as teses de 1913 ampliando-as, no texto O Futuro de uma ilusão.A
invenção de Deus é o lugar que lhe permite verificar a analogia entre o devir do
indivíduo e a história da civilização que pode ser resumida na formula “ a religião é a
neurose universal da humanidade”.( Freud, 1927, 57) A idéia de Deus se separa do mito
fundador da horda conservando duas figuras do pai: a do pai primordial - o pai ilimitado
e a do pai morto para produzir dois avatares imaginários da divindade – uma
providencia protetora e um “deus vingador que como retorno do recalcado, retoma por
sua conta a instancia superegóica para alimentar a culpabilidade dos fiéis” (Rey-Flaud,
200,15).
A religião surge do pai morto e herda o mandato: “Não matarás”, ambos
derivados do laço social e do pacto fraterno enquanto a repartição dos bens surge com a
proibição do incesto e a repartição das mulheres, instalando-se simultaneamente a
proibição do gozo e a distribuição dos gozos. Assim, a capacidade de ter uma crença
definirá relação do sujeito da linguagem com o mundo a ponto de Freud qualificar de
descrença (Unglauben) a convicção delirante do paranóico excluído na comunidade
simbólica dos homens.
O assassinato do pai relatado em Totem e Tabu apresenta-se como
imaginarização do Urverdrangung, sendo a figura de Deus o primeiro avatar ocorrido na
cena do mundo do pai morto, constituindo-se na pedra angular das idéias e para além da
realidade psíquica, as quais o homem concede sua crença (Rey-Flaud, 200,17). Com
essa imaginarização da lei simbólica da linguagem que integra os indivíduos em uma
comunidade de crentes, gera a produção de ideais e figuras superegóicas que sustentam
o mundo da crença, o Édipo é consagrado no campo social (Rey-Flaud, 200,19).
Dessas formulações deriva a questão: Seria o homem capaz de fazer a economia
da figura intermediária de um deus-pai e produzir um modo de idealização referido ao
puro logos, isto é:o afrontamento dialético entre Eros e Thanatos poderia ser
ultrapassado de modo a introduzir o homem num espaço pacificado pela razão (Rey-
Flaud, 200,12)
A civilização como comunidade pode se constituir em outro terreno que o das
ilusões? A ciência seria capaz de tornar esse processo caduco, poderia a verdade tomar o
lugar do bem para sustentar uma crença pura e assegurar a constituição do laço social?
No mesmo artigo Freud descreve que a cultura abarca o saber e poder-fazer que
os homens adquiriram para governar a natureza e arrancar-lhe os bens que satisfaçam
suas necessidades, como abarca também a criação de normas para regular os vínculos
recíprocos entre os homens, em particular, a distribuição dos bens acessíveis.Assim as
relações pessoais e o consumo de bens não são independentes entre si: os vínculos entre
os humanos estão profundamente influídos pela medida de satisfação pulsional, e os
bens existentes criam a ilusão de poder medir essa satisfação (Freud, 1930, 94-102 )
Poderíamos pensar então pensar que a psicanálise freudiana envelheceu porque
pensou o indivíduo e seu mal-estar dentro de uma sociedade monogâmica e de
capitalismo industrial, quando a socialização do indivíduo se dava dentro do núcleo
familiar onde a figura do pai representava o princípio de realidade , que essa teoria da
cultura é um reflexo do momento histórico específico em que foi formulada e portanto
inadequada na contemporaneidade?

Uma nova configuração social na pós-modernidade

Os novos modos históricos e políticos de institucionalidade definem novos


modos de subjetividade, cujo ponto de relação não é mais a função do pai. Com as
mudanças sociais (sociedade de massa) e econômicas (sociedade de consumo), a
socialização se dá prevalentemente fora da família Estaria então obsoleta a tese
freudiana sobre o mal-estar, já que esta parte do da centralidade o pai na teoria?
A nova configuração social, descrita por filósofos e sociólogos, reduziu o poder
do Estado paternalista, forçando os cidadãos a se tornar criativos e empreendedores.
Produziu uma impressionante expansão das redes de comunicação (rádio, telefone,
televisão, internet) tornando o mundo uma verdadeira aldeia global. Esses meios de
comunicação democratizaram a informação como nunca antes a humanidade tinha
vivenciado. O avanço científico, tecnológico e farmacológico promete literalmente o
céu (era espacial), a beleza e a juventude prolongada.
O novo homem é intimado a se inventar, criar e recriar, ser si próprio e livre,
subjetivar-se, fazer-se sujeito, construir-se, desconstruir-se, flexibilizar-se, enfim, ser
uma metamorfose ambulante, o que provocou um sujeito desnorteado diante de tantos
modelos identificatórios que parecem se equivaler e dificultam a escolha.
O conceito de sujeito em Lacan que é impensável sem o conceito de alteridade.
Essa alteridade, o Outro, antecede o sujeito e é o lugar no qual o sujeito tem que se
enlaçar para se constituir como desejante. Esse Outro anterior ao sujeito, permite a
função simbólica e pois dá apoio para o sujeito para que seu discurso se repouse num
fundamento. Entre o Outro e o sujeito se estabelece uma dialética, na qual o sujeito é
tanto sujeição, “subjectus”, como resistência ao Outro. O sujeito “só é sujeito por ser
sujeito de um grande Sujeito” (Dufour, 2005, 39) ) e basta declinar no lugar do grande
Sujeito ou do Outro, que teremos as figuras que estão no centro das diferentes
configurações sociais: a Phisis, Deus, Rei, Povo, Mercado.
O grande Sujeito da pós-modernidade, a figura do Outro social, é o Mercado
pois na virada neoliberal se constituiu uma sociedade que situa o mundo e todas as
relações como mercadorias. Assim, “o triunfo do neoliberalismo trouxe consigo uma
alteração do simbólico” (Dufour, 2005, 14), isto é: do Outro. Se o Outro se altera, o
sujeito também se transforma, pois esse sujeito desse grande Sujeito – o Outro é o
sujeito que se insere no laço social como sujeito consumidor.
Lacan no seminário “A lógica do fantasma” afirmou “Eu não digo que a política
é o inconsciente mas apenas que o inconsciente é a política.” (1966-67) designando
assim não só a produção de novas subjetividade pela nova ideologia como seu caráter
dominante e dominador no mundo globalizado, isto é: o capitalismo não recuará diante
de nada, até converter os que rejeitam suas vantagens ou aniquilá-los.
A vida social é organizada em torno de grupos, os grupos são organizados em
torno de Ideais e lideranças. Freud mostrou que a idealização, ilusão e crença levam os
sujeitos a noção de causa a defender Freud, 1921, 120-121). O sujeito , esse Outro não
adquire uma forma única, ele se apresenta como múltiplo, caracterizando diferentes
formas discursivas. Proliferam os agrupamentos baseados em diferentes ideais e
crenças. Cada membro do sente-se investido da missão de defender a causa pela certeza
dela ser portadora de uma verdade única. Assim, os sujeito se afiliam a diferentes
significantes, o Um ideal de cada grupo, que pode ser uma crença, uma idéia ou um
saber, ideal que se cristaliza e provoca fascínio e submissão.
Assim os coletivos se organizam em torno do Um, cuja fascinação pela
particularidade do Um e servidão gera a segregação e o combate ao diferente. Cria-se
uma pluralidade de grandes Sujeitos, que engendram formas discursivas novas que se
traduzem por diferentes formas de falar e de se realizar na linguagem. Uma das dessas
formas é uma modalidade nova de dominação extremamente violenta – a colonização e
escravidão, na qual o sujeito se submete por terror de exceção, isto é: o sujeito se
conforma ao imperativo vindo de um grande Sujeito diferente, que pode julgar para não
ser o diferente, conformando-se assim a mesmidade apresentada (Dufour, 2005, 51) .As
narrativas orais e escritas de que os agrupamentos se utilizam, reforçam a culpabilidades
do sujeitos quando ousam a transgredir a lei imposta ao grupo de que todos são iguais,
isto é devem gozar do mesmo modo.
A produção desse novo sujeito ocorreu porque houve uma mutação social
operada por um processo de dessimbolização do mundo ( Dufour, 2005, 12) pois se o
Outro social se transforma o sujeito também se altera. Esse processo se deu pela
eliminação do antigo sujeito crítico , postulado na razão transcendental kantiana a partir
da função do julgamento; do sujeito ideológico, nascido do marxismo, sustentado em
narrativas que o levam a lutar por ideais e do sujeito neurótico, formulado por Freud,
sustentado pelas paixões e desejos.
Isso foi possível pela eliminação da sobrecarga de sentido que amarrara o
homem no circuito das trocas no pacto social. A diluição dos valores ou a
dessimbolização do mundo do ponto de vista moral e transcendental, coloca como
modelo de novo indivíduo um sujeito dócil, que não se opõe para não ser rejeitado pelo
sistema, mas integrado, sem restrições. Com a alteração do simbólico, o homem pode
figurar como simples produto no ciclo neutro e expandido das trocas ( Dufour, 2005,
13) .
Destruindo todas as formas de lei que representariam um constrangimento para a
mercadoria, a dessimbolização produz um “sujeito precário, acrítico e psicotizante”, isto
quer dizer, um sujeito aberto às flutuações identitárias e disponível para todas as
conexões mercadológicas. (Dufour, 2005, 19- 20). Ao abolir todo o valor comum, o
mercado está a fabricar um novo “homem novo”, destituído da sua faculdade de julgar
(sem outro princípio que não seja o lucro máximo), levado a usufruir sem desejar (a
única redenção reside na mercadoria), formado para todas as flutuações de identidade
(deixou de haver sujeito, há apenas subjetivações temporárias, sempre precárias) e
aberto a todas ramificações mercantis. Assim o antigo Deus da Religião é substituído
pelo Deus do Mercado e a ciência seu servo.
Freud por seu lado, não se apresentou como o profeta de um mundo
reconciliado, mas no conflito desejo – cultura não se coloca do lado do desejo (singular)
contra a Lei (universal), nem a favor dessa contra aquele. (1930, p.193-194)

Um novo supereu para o sujeito)

O declínio do papel do pai teria abalado as bases da teoria psicanalítica do


superego como herdeiro do complexo de Édipo já que nos setores mais avançados da
atual sociedade, o cidadão já não se sente seriamente perseguido pelas imagens do pai? .
Lacan foi o primeiro teórico em psicanálise a ressaltar a queda da imago paterna
(2003,166-167) na sociedade ocidental mas isto não o levou a rejeitar as teses
freudianas sobre o social e o político, pois ele destacou o lugar da função e apontou as
figuras que substituem o pai como primeira alteridade, primeiro exterior fundante do
sujeito na ordem simbólica
O olho de Deus que tudo vê, julga e condena se secularizou, assumindo o nome
de superego individual e cultural. O preço que pagamos pelo avanço civilizatório
responde pelo nome de neurose e sentimento inconsciente de culpa. O grande Outro da
religião, Deus, se tornou o da Cultura, esse grande Outro a qual os indivíduos estão de
tal modo assujeitados.
Lacan , no seminário I , afirma “O supereu é um imperativo (...) O supereu tem
relação com a lei, mas uma lei insensata que chega a ser desconhecimento da lei . (...) O
supereu é, a um só tempo, a lei e a sua destruição” (1979, 123) Ele se identifica àquilo
que há de mais devastador, de mais fascinante nas experiências primitivas do sujeito, à
figura feroz. Já no seminário XX, ele percebeu que o supereu repressor freudiano cedeu
lugar a um supereu que agora ordena “goza”, sem deixar de ser “figura obscena e
feroz”. (Lacan, 1982, p. 11)
Zizek explicita que não estamos mais diante da velha situação psicanalítica
descrita por Freud por meio da idéia de supereu que articulava civilização e recalque ao
postular que não podemos gozar porque internalizamos proibições sociais e uma
autoridade paterna que culpabilizava o prazer sexual. A injunção social hoje é: Goze de
todas as maneiras! Goze sua sexualidade, realize seu eu, encontre sua identidade sexual,
alcance o sucesso ou mesmo, goze uma ascese espiritual . A “forma do supereu é
precisamente a do sacrifico aos deuses obscuros ... reafirmação da violência bárbara da
selvagem lei obscena para cobrir o vazio do fracasso da lei simbólica. ”(2003, 165).
Na época retratada por Freud, o mal-estar decorria de uma falta de liberdade, de
uma excessiva e indevida repressão que o homem moderno acatou em troca de certa
segurança. Hoje, essa é sacrificada no altar da liberdade, que tem como Deus o
Mercado. Mais do que seu Deus – o mercado, no capitalismo atual o que se vê é o
fascínio e a servidão a uma utopia, que demanda aos sujeitos tomar como verdade
absoluta, que a felicidade consiste em servir a um Senhor, um Deus único– o Mercado
(Souki, 1999, 49). Nesse que se chama Um, pois tudo é mercadoria, a natureza, saber e
o sujeito,esse Um totalitário, esse que tem o poder de saber e falar a todos, indica que há
liberdade na realização nas miragens que esse Outro fornece. O sujeito, alienado nessa
fantasia do UM, “ enfeitiçado pelo Nome do Um, é impelido a gozar a qualquer preço
(Melman, 2004, 58)
Lacan situa a essência do direito jurídico é repartir a cada um o gozo que lhe
toca. O direito não é o dever. Ninguém obriga a ninguém a gozar, salvo o supereu que é
o imperativo de gozo (1982, p. 11). O supereu como imperativo de gozo é uma
modalidade de gozo que rejeita a castração, porque rejeita a impossibilidade. Destrói a
eleição forçada do sujeito do inconsciente. Onde se expulsa a impossibilidade rege a
relação do UM: Todo, sem nenhuma possibilidade de descompletamento. Uma
subjetividade absoluta, que se impõe como vontade no mundo, sem que nada que a
limite , nem nada que a divida em sua verdade.

O mal estar na contemporaneidade: o discurso capitalista

Freud em “Psicologia das massas e Análise do eu”, põe em evidência que a


hipnose leva consigo algo sinistro. O que acorda o hipnotizador no sujeito, é a sua idéia
de pai. Pai a quem o representou como uma personalidade onipotente e perigosa, com
relação ao qual tinha de observar uma atitude passiva, masoquista, renunciando a toda
vontade própria. O líder, o caudilho da massa, nos diz, é ainda o temido pai primitivo. É
assim como no hipnotizador recai a onipotência do pai terrível do mito da horda
primitiva.(1921, 141-147) Podemos colocar aqui a figura obscena e feroz do super-eu
arcaico e em quem ocupa o lugar de hipnotizado fica reduzido a ocupar a posição de
objeto, sumido em um estado de despojamento dos seus recursos simbólicos.
No Seminário 1, Lacan expressa que “o hipnotismo tenta fazer do sujeito, seu
objeto, sua coisa, tenta virá-lo dócil como uma luva, para tirar dele o que quer, está
impulsado por uma necessidade de dominar e de exercer seu poder (1979, 165) . Ele
também nos adverte que nenhuma sugestão mesmo sendo a mais lograda, apodera-se
totalmente do sujeito, porque o que resiste é o desejo. No hipnotismo põe-se em jogo
uma questão oracular, no sentido de que haveria um saber por parte do hipnotizador
respeito do desejo do Outro pode se dizer que haveria a ilusão de uma conjunção de
saber e poder. É de assinalar que a sugestão que é o nódulo do hipnotismo, encontra-se
presente em qualquer laço humano, dado que a sugestionabilidade é um fenômeno
primário e irredutível da vida psíquica humana.
Na sociedade contemporânea, o discurso do poder se caracteriza por pretender
transformar o real , não respeitando nenhuma barreira, rejeitando todo limite e portanto
a castração Na sociedade sem lei, o pai, como transmissor da lei, falha, não funciona e
assim não garante a divisão do sujeito, e o acesso ao desejo. O que une o grupo é o
pacto de comum acordo de transgressão dessas leis, impondo a própria idéia de bem, do
bem gozar. Tanto o inimigo interno como externo se lhe atribui um gozo diferente do
próprio, portanto um gozo ignorado, invejado e temido, na qual a intensidade vai mais
além do possível de representar. Por isso parece imperioso destruir o inimigo gozante já
que há um real que é o impossível universalizar, e que é insuportável para quem quer
governar, porque governar o gozo é da ordem do impossível. O mandato social se
arroga o direito de decidir qual é o bem para todos, do bem gozar.
A ciência vem a dizer qual o Bem supremo que os homens devem aceder e lhe
impõem através do consumo de bens. A tecnologia ajuda que a eficiência, como
significante amo da sociedade, justifique e ordene tecnologicamente a satisfação do
cliente acima de todas as coisas, porque ilusoriamente comprará a produção que
acumulará ao capital. Freud já nos advertirá que as criações dos homens são
incontroláveis e perigosas: ciência e técnica pode ser empregada para avanço como
aniquilamento cultural.
A mescla atual de liberalismo, hedonismo e seu mais além,. Mais além que
Freud abordou em 1920, se traduz na emergência de novos sujeitos e de um novo
vinculo social sem freio à pulsão.Lacan descreve inicialmente quatro discursos
ordenadores do gozo e que fazem laço social, mas aparece o mal estar do discurso
capitalista, o qual não supõe uma ordem de gozo senão acumulação do mesmo, sendo
por fim renegatório da castração. Nela há um sujeito que se dirige ao saber, no caso
atual o saber da ciência, através da tecnologia, para produzir objetos com valor de
mercado com os quais satisfazer-se. Ignora-se que a verdade deste discurso é que está
comandado por um amo que ordena consumir (Lacan, 1992, 9-21)
Analiticamente, no discurso capitalista não se trata de acumulação monetária
mas de gozo. Não há forma de introduzir uma dissonância nesse discurso, porque sua
essência não é econômica, nem técnica, mas mais-valia de gozo. Não há forma de
introduzir a impossibilidade nesse discurso. «O discurso capitalista, dizia Lacan, é algo
de loucamente astucioso (...), funciona às mil maravilhas, não pode funcionar melhor.
Mas, justamente, funciona demasiado depressa, consomese. E tão facilmente se
consome, que se consume» (Lacan,1972). Resumindo: o verdadeiro problema do
capitalismo é ele funcionar bem demais. De tal forma que um dia terá de acabar por
tudo consumir: os recursos, a natureza, tudo sem exceção – incluindo os indivíduos que
o servem.Na lógica capitalista «o antigo escravo» foi substituído por homens reduzidos
ao estado de «produtos»: «produtos (...) consumíveis tanto como os outros»
Lacan denominou estes objetos presentes em cada esquina como latusas. Dessa
forma, altera-se sensibilidade que é modelada sob a lógica do capital, ficando o desejo
de alteridade em função do consumo de produtos e da posse de objetos, resultando em
relações coisificadas (1992, 163). A sociedade pós-moderna ao se constituir como um
reino que oferta mercadorias como semblantes de desejo, cria a demanda no qual
aprisiona os sujeitos no circuito infinito de consumo, no qual o último objeto a ser
consumido é o próprio sujeito. Sempre um pouquinho a mais, assim o sujeito passa a
trabalhar para o mercado, gastar a sua mais valia, para usufruir de um objeto cujo único
valor é de uso, fazendo com que seu excedente retorno ao Senhor. Portanto, é uma
falácia opor “a ordem subjetiva quase intemporal à dimensão histórica das relações
sociais” (Chemama, 1997, 23). No discurso capitalista, Lacan situa que os efeitos
devastadores sobre o sujeito, pois seu imperativo sendo “ Consuma para ser” (Sadala,
1999, 49) , ele é loucamente astucioso mas destinado à morte”, não respeita nem
corpo do escravo, acabará por consumir até a si próprio.
No texto Mal-estar na Cultura, Freud estabeleceu analogias entre o supereu
individual e o supereu cultural, nos quais estabelece que a humanidade se enferma
frente as exigências culturais , como conseqüência dos conflitos pulsionais luta (1930,
166). È o caso de Viena, sociedade sob intensa repressão sexual, provocando uma
neurose social. Havia de um lado a pulsão e de outro uma autoridade do lado da lei que
regulariza, normaliza .Atualmente, a lei se transforma na única transgressão verdadeira,
a lei não mais como pacificadora mas como um mandato mal compreendido, obtuso de
gozo Temos que nos perguntar não somente sobre que tipo de construção discursiva
seria compatível com esta exigência subjetiva de gozar a qualquer preço mas de onde
ela tira seu poder.

O Poder e o novo Um: a opinião publica

No texto “Psicologia das massas” Freud diz que “o sujeito que experimenta a
sugestão, tem que possuir um convencimento não baseado na percepção nem no
razoamento, mas num laço erótico”(1921, 145-146) Podemos dizer que se a
identificação representa a forma mais prematura e efetiva do enlace afetivo a um objeto,
a dita se constitui em relação à demanda do Outro, e nesse sentido existe sujeição
respeito de uma ordem de sugestão. O ser humano é capturado pela sedução que exerce
a linguagem nele.
O pai em sua função essencial, como terceiro da relação do sujeito ao gozo é
artifício e artífice da cultura, é fundador da Lei e da Linguagem. A relação dos cidadãos
com a lei tem seu lado estrutural e atemporal (o proibido) mas como deve articular-se
está sujeita as contingências da história. Portanto o proibido (estrutural) e a relação que
os cidadãos tem com isso deve associar-se ao estado (temporal-histórico) da crença no
Pai. No liberalismo tem-se um sujeito auto-fundado, não marcado pela castração, não
incluído em um discurso que o determine e estabeleça o princípio genealógico, isto é o
mesmo que dizer a promoção da dessubjetivação das ações humanas. Lei do mercado, a
lei perde possibilidade metaforizante e capacidade normativizante, fica reduzida a
gestão administrativa.
Se não há mais Pai, não há mais o Um da exceção?
O Um é da estrutura, e ao ser anulado ressurge como um novo Um ressurge. Na
sociedade pós-moderna, o Um surge na massa. O Um da massa é a opinião publica, não
por denominação mas por exercício ( Miller, 1991, 65) convertendo-se a massa em um
novo tirano. Esse novo soberano da democracia ultraliberal não serve mais ao Estado,
pois a opinião publica serve a um novo Deus - o Mercado. Desde a programação de TV,
todos eventos sociais e culturais e até as campanhas políticas são organizada em torno
da opinião publica indicando uma nova tirania sustentada por cada um dos cidadão, o
que a torna inquestionável.
Assim, na democracia a verdade esta recalcada porque a opinião publica tem a
mesma função que antes o poder tinha: apagar a diferença, a exceção. A exceção a ser
aniquilada não é a mesma do velho poder, mas é o Mestre, o Amo que marca a diferença
em política, pois não se pode mais questionar a opinião publica.
O gozo esta presente no vinculo social fazendo sintoma e , por tanto, a política
será cada vez mais a gestão do gozo, e por isso, a gestão do sintoma, uma vez que o
sintoma não é outra coisa que o vinculo do sujeito e do Outro, só que em seu "interior"
leva a parte não vinculada ao Outro, sua parte pulsional. Mas o diabólico da pulsão é
que usa o Outro para sua satisfação, mas não o Outro dos ideais, mas o Outro enquanto
objeto. O novo vínculo social será cada vez mais sem o Outro e esse vinculo será cada
vez más o lugar do encontro dos nomes particulares de gozo dos sujeitos.
O verdadeiro problema para o pacto político, para o contrato social se no fato de
que o resto de gozo não entregue à castração é refratário ao pacto, constituindo o
irrenunciável particular. Isto é: o gozo pulsional é o que cada sujeito não sacrifica ao
pacto social e é esta uma das fontes do mal-estar social.
O poder da opinião publica nada quer saber sobre o estrago que produz viver as
exigências pulsionais sem nenhum tipo de restrição, pois submetida ao Deus do
mercado, funciona no modelo da pulsão que nada mais é do excesso em ato. O
hedonismo coloca um problema político pois o sujeito aí não é um sujeito desejante, já
que o desejo surge da falta, é um sujeitos crente só da imanência do prazer.
A exclusão do sujeito da sociedade de consumo gera o ódio e a destrutividade.
Cria-se dentro do espaço social uma segregação pelo fato de constituir um excluído, que
acaba se generalizando para todos os diferentes estilos de viver. Verifica-se assim o
efeito perverso da universalização do discurso capitalista pela recusa da diferença, na
revanche que se dá pelo retorno de Thanatos. Ali onde o indivíduo não pode se unificar
à família, ao grupo, à sociedade, à pátria e ao planeta, sob o império de Eros; a Pulsão
de Morte atuará de modo implacável dissolvendo todas unificações e identidades. Aqui
a violência implicará na reapropriação do poder. Poder de Consumir. Consumir para ser.
Ser Feliz.
Em psicanálise a traição do desejo tem um nome: Felicidade ( Zizek, 2003, 77)

Referencias Bibliográficas

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Sandra Dias - Currículo
Doutora em Psicologia Clinica pela PUC-SP
Professora Titular da Faculdade de Psicologia PUC-SP
Coordenadora do Curso de pós-graduação “Psicanálise e Linguagem: uma outra
psicopatologia” PUC-SP
Autora do livro “ Paixões do Ser: pulsão e objeto na psicose”. RJ: Companhia de Freud
Fundadora da Oscip “Gestae: Instituto de Pesquisa, Ensino e Ações em Saúde Mental”

Resumo
O artigo apresenta um panorama da teoria do social em Freud através dos textos
Totem e Tabu, Psicologia das Massas e Analise do ego, O Futuro de uma Ilusão e Mal
estar na Civilização e a ressitua na contemporaneidade, através da releitura de Jacques
Lacan.
Foi através do mito de Totem e Tabu que Freud iniciou uma teorização que
articula o individual e o coletivo, o sujeito e o social e onde a origem do sujeito se
enlaça a violência do assassinato do Pai, detentor do mítico gozo que faz surgir a
fraternidade. Ao renunciarem ao gozo e elegerem um Totem, os irmãos farão pacto de
não agressão perpetuados pelos rituais em torno do Um da exceção, o que fica de fora –
O pai gozador.
O homem é cindido entre duas tendências : de um lado, a se constituir como um
( formar comunidades) e, de outro lado, a manter os privilégios de Um.A religião surge
do pai morto e herda o mandato: “Não matarás”, ambos derivados do laço social e do
pacto fraterno enquanto a repartição dos bens surge com a proibição do incesto e a
repartição das mulheres, instalando-se simultaneamente a proibição do gozo e a
distribuição dos gozos. Assim, a capacidade de ter uma crença definirá relação do
sujeito da linguagem com o mundo.
Se a psicanálise freudiana envelheceu porque pensou o indivíduo e seu mal-estar
dentro de uma sociedade monogâmica e de capitalismo industrial, quando a socialização
do indivíduo se dava dentro do núcleo familiar onde a figura do pai representava o
princípio de realidade , nem por isso essa teoria da cultura, se mostra inadequada na
contemporaneidade, basta que se articule o conceito de supereu ao pulsão de morte.
Se Outro da sociedade patriarcal era Deus, o Estado e o Rei, na sociedade
ultraliberal, a figura do Outro social é encarnada pelo Mercado que com sua máxima
“Consuma para ser” substitui o supereu da época patriarcal por um supereu desenfreado
cuja máxima é “Goze” Nessa nova configuração social em que se liberou as trocas do
seu valor simbólico, tudo é mercadoria, inclusive o sujeito.
Esse novo sujeito aberto a todos os fluxos e conectividade, submetido ao
discurso capitalista é hipnotizado pelo fascínio que a massa enquanto Um exerce através
da opinião publica. Esta se torna o verdadeiro poder político na sociedade pois encarna
o Pai tirano, o Um da exceção Esse novo soberano da democracia ultraliberal não serve
mais ao Estado mas serve a um novo Deus - o Mercado, assim ele apaga a diferença, a
exceção, pois é o resto de gozo que não passou pela castração
Assim, o gozo pulsional é o que cada sujeito não sacrifica ao pacto social e é
esta uma das fontes do mal-estar social atual que se exerce através de um supereu feroz
e obsceno cujo mandato é: Goze!.

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