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Os navegantes do tempo

Sofisticada civilização da América Antiga, os maias deixaram escrita que permite desvendar seus períodos de glória e decadência

Carlos Federico Domínguez Avila

1/12/2014

Era só o fim do ano, não foi o fim do mundo. Com a aproximação de 21 de dezembro de 2012, cresceu o
burburinho em torno de um antigo calendário no qual aquela data seria a última de todas. Mas era uma
interpretação errada: o dia apenas marcava a passagem do 13º para o 14º baktun – um ciclo de aproximadamente
394 anos. O episódio trouxe pelo menos uma consequência positiva: a visibilidade que a civilização maia
conquistou nos meios de comunicação de massa.

Trata-se, afinal, de uma das mais importantes, antigas e sofisticadas civilizações do planeta, que legou
enormes avanços para a matemática, a astronomia e a arquitetura. Isolada da Europa, da África e da Ásia,
construiu cidades, centros cerimoniais, pirâmides, fortalezas e monumentos. É também uma das pouquíssimas
culturas da América antiga com sistema de escrita próprio. Essa peculiaridade tem permitido aos epigrafistas e
outros cientistas iniciarem um “diálogo” transcendental com os autores de códices – equivalentes a livros e
revistas da atualidade – construções monumentais e outras inscrições.

Segundo o calendário maia, o mundo teria sido criado no ano de 3114 antes da nossa era. Sua cultura, no
entanto, surgiu a partir de migrações realizadas no chamado período formativo, e se estabeleceu no atual
território da Guatemala por volta do ano 600 a.C. Daí em diante, até a chegada dos conquistadores europeus e
a queda de seu último reino, em 1690, os maias passaram por ciclos de auge e de declínio, momentos de
resplendor e de decadência.

Eles ocuparam um território de aproximadamente 500 mil quilômetros quadrados, incluindo boa parte do
sudeste mexicano, a Guatemala, o Belize e zonas ocidentais dos atuais El Salvador e Honduras. Na América
Central e México viviam também outros povos, como os zapotecas, toltecas, astecas, lencas e chorotegas, que
compartilhavam com os maias numerosos conhecimentos, crenças religiosas, hábitos, formas de organização
política, ideologias, técnicas construtivas e agrícolas, além do famoso calendário. Os mesoamericanos viviam
sob sistemas jurídicos unificados e religiões politeístas. Com as despesas dos governos financiadas por
impostos, houve desenvolvimento urbano e a constituição de cidades cerimoniais. A política se organizava em
capitais provinciais e, em alguns casos, governos locais administrados de forma colegiada. Esses povos se
reconheciam como herdeiros e descendentes da ainda mais antiga civilização olmeca (entre 1200 e 400 antes
de Cristo) e, depois, da teotihuacana. Em consequência disso, reinava um certo ar “de família” entre eles. O
que não impedia, porém, a eclosão de muitos conflitos.

A região maia tem altas montanhas e zonas tropicais, e é banhada pelo Mar do Caribe e pelo Oceano Pacífico.
Essa disposição geográfica resultou em uma variedade de nichos ecológicos e permitiu grande diversidade
agrícola (milho, cacau, feijão, abóbora). Com os excedentes que a agricultura gerou durante vários séculos, foi
possível aos maias construir uma rápida diferenciação política, econômica e sociocultural. A partir do ano 600
a.C. distinguiam-se construções, cerâmicas e iconografia política tipicamente maias.

Especialistas sugerem a existência de três períodos mais ou menos claros da antiga civilização maia: o pré-
clássico (600 a.C. a 300 d.C.), o clássico (300 a 1050) e o pós-clássico (1050 a 1550). No primeiro houve uma
gradual sedentarização, crescente relevância da produção de milho, a formação de vilas autônomas e a
constituição de sociedades estratificadas. Entre os vários sítios pré-clássicos maias já descobertos, El Mirador é
especialmente significativo pela sua antiguidade e pelo grande porte e imponência das suas construções
públicas e privadas. Nesse local – situado na região de Petén, extremo norte da Guatemala – arqueólogos
descobriram uma pirâmide que é a mais volumosa do continente americano e talvez do mundo (plataforma:
320 x 600 metros, altura: 170,40 metros), superando as famosas pirâmides egípcias (Keops tem altura de
146,60 metros). As pirâmides maias tinham uma evidente conotação religiosa, e contavam inclusive com um
templo no topo.

O período clássico é o mais conhecido. O volume e a qualidade das informações arqueológicas e históricas
desse período se devem a um peculiar sistema de escrita. Denominado de logográfico, ele combina
aproximadamente 800 signos, entre fonéticos e ideográficos. Mesmo com a virtual extinção da escrita maia por
imposição do poder colonial espanhol, epigrafistas e outros cientistas conseguiram decodificar e entender mais
de 80% dos antigos glifos. Foi no período clássico que os maias alcançaram seus mais espetaculares projetos
arquitetônicos, técnicos e artísticos. O reino de Copán, por exemplo, acabou sendo chamado pelos
especialistas de “Atenas do Novo Mundo”. A alcunha se deu pelas maravilhosas esculturas tridimensionais, por
suas construções cerimoniais e político-administrativas, pelos comprovados avanços intelectuais –
especialmente em astronomia – e pela continuidade e harmonia do conjunto urbanístico. Explorado desde o
século XIX, Copán é provavelmente o sítio arqueológico maia mais bem conhecido. Está comprovado que uma
dinastia copaneca reinou entre os anos de 426 e 822, tendo o auge de seu desenvolvimento econômico, político
e social no século VIII. Mas Copán foi abandonado no século seguinte, junto com muitos outros reinos maias,
especialmente do centro e do sul, por motivos que ainda estão sendo apurados pelos arqueólogos. As principais
hipóteses são o excesso de população, a degradação ambiental – com prolongados períodos de seca – a
turbulência sociopolítica dentro dos próprios reinos e os numerosos conflitos intramaias e, possivelmente, com
outros povos não maias. Somente na região de Yucatán conseguiram ser mantidos reinos, como Chichen Itza
(recentemente eleito uma das “Novas Maravilhas do Mundo Moderno”) e Uxmal.

O período pós-clássico (1050-1550) foi uma época menos esplendorosa, mais belicosa e conturbada. Boa parte
dessa fase teve domínio da cultura tolteca – um povo procedente do centro do atual território mexicano que
conseguiu penetrar militarmente na região de Yucatán, subordinando os maias e impondo sua economia e
ideologia.

Nos séculos XVI e XVII, as chamas da Inquisição espanhola se dedicaram a dizimar o que restava daquela
civilização. A partir do momento em que os espanhóis apareceram em Yucatán e na Guatemala, e em virtude
do modelo descentralizado de organização política predominante, foi necessário conquistar individualmente
cada reino, até a queda do último, por volta de 1690. A ordem era destruir as expressões culturais e religiosas
maias existentes. Quase todo o conhecimento do antigo sistema de escrita foi perdido, mantendo-se somente a
tradição oral. Foi a redescoberta de quatro códices sobreviventes (chamados de Dresden, Madri, Paris e
Grolier), além das pesquisas arqueológicas (epigrafia, antropologia física, cerâmica, iconografia,
paleobotânica), nos séculos XIX e XX, que propiciaram crescentes conhecimentos sobre os maias.

O advento das independências e da ordem republicana no México e na Guatemala, em 1821, não representou
grandes melhorias no modo de vida dos povos indígenas americanos. Na década de 1980, o governo
guatemalteco chegou a ser denunciado internacionalmente por praticar um virtual genocídio contra as
comunidades maias do país. Acredita-se que mais de 100 mil guatemaltecos de origem maia tenham sido
assassinados. Na época, as vítimas foram acusadas pelos autoritários governantes do país de compactuar com
ideias revolucionárias. A luta pelos direitos indígenas – e pelos direitos maias – acabou sendo expressa no
Prêmio Nobel da Paz de 1992, recebido pela guatemalteca Rigoberta Menchú Tum. Dois anos depois, um
levante armado tornou conhecidas as reivindicações dos maias-lacandones na região de Chiapas, no México.

A batalha continua. Ameaçados pelas políticas de colonialismo interno, pelo racismo e por faraônicas obras de
infraestrutura, atualmente cerca de 10 milhões de maias e descendentes seguem resistindo em prol dos
direitos humanos, pelo respeito à sua cultura e pela memória de uma civilização que por séculos se destacou
na América.

Carlos Federico Domínguez Avila é professor do Centro Universitário Unieuro. Organizador do livro Política,
Cultura e Sociedade na América Latina: estudos interdisciplinares e comparativos (Vols. 1 e 2, Editora CRV,
2015).

Saiba mais:

NAVARRO, Alexandre Guida. “A civilização maia: contextualização historiográfica e arqueológica”. História, 27 (1), p. 347-
377, 2008. Disponível em: www.scielo.br.
PHILLIPS, Charles. O mundo asteca e maia. s.l.: Folio, 2006.
GRUBE, Nikolai (org.). Los Mayas. Una civilización Milenaria. Barcelona: Ullmann, 2006.
GENDROP, Paul. A Civilização Maia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

Filmes:

Cracking the Maya Code (Michael Coe e outros, 2008). Disponível em: www.pbs.org.
Apocalypto (Mel Gibson, 2006)

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