Você está na página 1de 6

O ENTERRO

Por Jorge Raskolnikov

Personagens: Mariana, a defunta. Maria, irmã de Mariana. Clara, a muda; As amigas da falecida:
Carla; Alice, Cintia, Talita, Kelly.

Cenário: Uma sala comum.

Quadro único.
Velório. Mariana, a defunta está no caixão. Ao seu lado, sua irmã chorosa fala ao celular. Clara está
ao lado de Mariana e a contempla.

MARIA: (Fungando) O corpo dela já chegou, mulher... (Funga) Pois é... (Funga, hesita) Uma coisa
horrível, mulher... Era pra ser só um passeio no rio amazonas e ela... (Choramingando) Acabou
dentro da barriga da cobra... Uma cobra enorme... (Escuta) O rapaz matou a cobra, abriu a barriga,
tirou ela junto com mais dois jacarés, mas ela já tinha morrido... (Choraminga novamente) Minha
irmã virou almoço de jibóia. (Chora, depois de um tempo se acalma) Almoço não que os jacarés
eram bem maiores, mas ela serviu de tira gosto... (Escuta) Tá bom, tá bom... Vocês tão chegando,
né, vou esperar viu... Talita, tu sabe que a amizade dela com vocês era sem preço. Tá... Tchau.
(Desliga o telefone e se aproxima do corpo da irmã) A pobrezinha da minha irmã... Morreu desse
jeito...
(A campanhia toca. Maria sai. Logo depois volta ao lado de Alice)
ALICE: (Parando em frente ao caixão) Gente! (Com voz de choro) Eu não acredito, Senhor, porque
tu levou ela? Ela era tão jovem, uma criança ainda... (Se aproxima ainda mais da morta) Meu Deus,
a morte não respeita a juventude! Que desgraça! Não importa que a gente use creme, hidratação
cutânea, plástica, botox, vem sempre essa malvada da morte levar tudo! Não quer nem saber que se
a gente encontrou o melhor creme do mundo!
MARIA: (Ao lado de Alice) Isso é verdade!
ALICE: (Choramingando) Olha mulher, o rostinho dela... Tão inocente, tão infantil, uma criança...
MARIA: Ela era mais velha que eu dois anos, mas nem parecia...
ALICE: (Chorando) Que vida mais injusta, mulher, que vida sem sentido... (Parando de chorar ao
perceber que seu celular toca) Um instante... (Atende ao telefone) Alô... Sim... Já tou aqui... Vocês
tão vindo, né... Certo, certo, até... (Desligando o telefone) Como eu ia dizendo... Nessas horas a
gente percebe que a vida é tão frágil...
MARIA: Quem era no telefone?
ALICE: A Kelly... Ela tá vindo aí com Cintia...
MARIA: Ah, a Talita me ligou faz pouco tempo. Já ela chega com a Carla...
ALICE: Não vai ter espaço pra tanta gente, Maria, a Mariana era muito querida, mulher...
MARIA: Eu sei, Alice. Todo mundo gostava da minha irmã.
ALICE: Verdade. Não tinha quem não gostasse dela.
MARIA: Pois é...
(A campanhia toca)
ALICE: Deve ser as meninas...
MARIA: Vou lá...
(Maria sai. Alice se aproxima de Clara)
ALICE: (Para Clara) Coisa mais triste, né, mulher... Morrer assim tão jovem...
(Clara balança com a cabeça concordando. Depois de um tempo entram Maria seguida de Talita e
Carla)
TALITA: (Chorando) Meu Deus isso não pode ser verdade, a Mariana morta, não, não isso só pode
ser um sonho...
CARLA: Pobre da Mariana... Que coisa mais horrível!
1
(Talita e Carla se aproximam da morta e a observam)
TALITA: (Chorosa) Carla, Alice, como é que pode acontecer uma coisa dessas com uma pessoa tão
generosa?!
CARLA: (Choramingando) Uma pessoa tão alegre, cheia de vida que só fazia o bem, Talita...
ALICE: Não é justo, não é justo...
(Todas se abraçam e choram juntas. Depois de um tempo, elas se afastam e ficam paradas com ar
triste contemplando Mariana)
MARIA: Minha irmã não merecia isso...
ALICE: Morrer devorada por um jacaré...
MARIA: Jibóia...
ALICE: Ãh?
ALICE: Minha irmã foi engolida por uma jibóia...
CARLA: E eu entendi que ela é que tinha comido carne de cobra e morrido...
TALITA: Pois é... Cobra cozida, um prato típico da Amazônia, gostoso, mas muito perigoso...
MARIA: Não, mulher ela foi devorada por uma jibóia... Mataram a cobra, tiraram ela, mas já era
tarde...
ALICE: Ah...
TALITA: Comendo cobra, sendo comida por ela, tanto faz... Pior que ninguém mais vai ver a nossa
Mariana sorrindo... (Começa a chorar)
(Todas choram. Clara, com acenos de cabeça concorda com tudo que é dito)
CARLA: Ela foi a pessoa mais alegre que eu já conheci na minha vida...
TODAS: Verdade...
TALITA: Boa, generosa...
TODAS: Sim, sim...
(Entram Cintia e Kelly)
CINTIA: (Chorando desesperada) Gente, que é isso? Como é que pode? Deus, antes tu tivesse me
levado do que a minha amiga!
KELLY: (Se aproximando da morta) Olha meu Deus, ela parece que tá dormindo, gente...
(Maria abraça Kelly e Cintia. Elas choram juntas)
CINTIA: Que mundo é esse onde uma mulher linda, charmosa e cheia de vida como a Mariana se
vai assim pura e simplesmente?
KELLY: Uma pessoa tão sincera, sempre com uma boa palavra pra dizer pra gente...
ALICE: Verdade... E tão jovem!
MARIA: Pobre da minha irmã...
CARLA: Ela era o sorriso em vida!
CINTIA: Linda em todos os sentidos...
TALITA: Tão boa com todo mundo...
(Clara acena concordando com todas)
KELLY: (Triste) E pensar que eu nunca mais vou ouvir a voz dela... Meu Deus... Não é justo!
(Chora. Cintia a abraça)
ALICE: Pra sempre vou lembrar o rosto jovial da Mariana... A morte cruel ao menos conservou sua
beleza jovem pra sempre...
MARIA: Que palavras bonitas, Alice...
(Alice abraça Maria)
CARLA: Quanta dor, meu pai... (Chora)
KELLY: Maldito índio canibal!
MARIA: Índio canibal? Que índio tu tá falando, Kelly?
CINTIA: E num foi, Maria? Um índio canibal da Amazônia que matou tua irmã com flecha pra
devorar?
TALITA: Não foi índio não, Cintia... Ela foi atacada por um jacaré...
ALICE: Cobra, Talita...
TALITA: Cobra tu, mulher, não tenho coragem não...
2
ALICE: (Envergonhada) Não, mulher, foi uma cobra que atacou a Mariana...
TALITA: Ah...
KELLY: Vala, me disseram que tinha sido um bando de índio faminto que atacou o barco que ela
tava...
CINTIA: Pra mim disseram isso também...
MARIA: (Para Talita) Que foi que tu disse agora a pouco pra Alice?
TALITA: Como assim?
MARIA: Quando ela disse cobra e tu disse que não tinha coragem...
TALITA: Ah, besteira, Maria... É que a Mariana ficou me devendo um dinheiro e eu entendi outra
coisa que a Alice falou...
MARIA: Ah...
CARLA: Gente, essa é a primeira vez que a gente chora por causa da Mariana, ela era tão alegre...
CINTIA: Claro que é a primeira vez, ela nunca tinha morrido antes!
CARLA: Não foi isso que eu quis dizer...
ALICE: E o que tu queria dizer?
CARLA: Que ela era tão bem humorada que perto dela a gente só fazia rir...
CINTIA: Ah, eu me lembro, tinha umas roupas delas que me faziam rir demais...
(Todas olham para Cintia com ar reprovador. Clara o tempo todo faz gestos com a cabeça
concordando com as garotas)
MARIA: Como assim, Cintia?
CINTIA: (Envergonhada) Nada não...
KELLY: Gente, a Mariana foi a pessoa mais sincera que eu já conheci na vida...
TALITA: Além de muito generosa, ajudava todo mundo...
ALICE: Se bem que ela ficou te devendo uma grana...
TALITA: Mulher, não fala nisso não... Isso não importa! Mesmo que ela tenha deixado uma
herança enorme eu não quero saber de pagamento... (Olha para Maria esperando que ela diga
alguma coisa)
MARIA: Pois é, e a minha irmã deixou tudo pra caridade, sabe...
TALITA: Eu sei, eu sei, mas mesmo que viesse algum pagamento pra mim eu não recebia não...
(Silêncio)
ALICE: (Depois de um tempo) Para sempre vou sentir falta da minha amiga... Ela sempre gostava
de escutar a gente, ouvir nossos problemas...
KELLY: O problema é que contava pra todo mundo depois... (Ao perceber o que falou tenta
corrigir) Mas era sem maldade, sem maldade nenhuma... Ela era muito sincera...
CARLA: Poucas pessoas no mundo foram tão contentes quanto a Mariana... Custo acreditar que ela
morreu!
CINTIA: (Olhando para a morta) Gente, a morte é mesmo uma coisa horrível, olha o que ela fez ao
rosto da nossa querida Mariana... Ela tá com uma expressão tão triste que deixou ela assim, assim,
como eu posso dizer...
ALICE: Envelhecida?
KELLY: Cara de quem aprontou?
TALITA: De quem deve?
CARLA: Infeliz?
CINTIA: Não, não, feia mesmo... (Subitamente olha para a irmã da morta) Desculpa, mulher...
MARIA: Tá tudo bem, eu entendo...
ALICE: Mas realmente, olhando assim ela parece muito mais velha...
(As outras observam por alguns instantes. Clara balança a cabeça afirmativamente)
TALITA: Ela tem uma cara de quem ficou faltando resolver umas coisas em vida...
CARLA: A expressão de alegria dela deu lugar a um rosto sofrido, desgraçado...
CINTIA: A bichinha ficou irreconhecível...
KELLY: Parece que tá escondendo alguma coisa que fez...
MARIA: (Chorando) Pobre da minha irmã... Envelhecida, mal resolvida, desgraçada, feia,
3
inadimplente!
(Clara chora discretamente)
TALITA: Oh, meu Deus, não pensa isso não! Ela pelo menos deve tá em paz agora...
CARLA: Vamos acreditar que ela chegou no outro mundo com a alegria que sempre viveu aqui...
CINTIA: A morte deve deixar qualquer um feio...
KELLY: Deus perdoe todas as suas falhas, falsidades e mentiras...
ALICE: E esse rosto envelhecido deve ter sido causado pela dor da morte...
TALITA: E pelas dívidas que deixou em vida...
MARIA: (Voltando a chorar) Pobrezinha da minha irmã...
CINTIA: (Tentando fazer as amigas mudarem o tom da conversa) Que perda, meu Deus! Uma
criatura que só fez o bem...
(As outras percebem a intenção de Cintia. Clara balança a cabeça negativamente)
TALITA: Uma santa em vida!
ALICE: Uma pessoa como ela não merecia ir tão cedo!
KELLY: Que perda, que perda... O que vamos fazer agora sem nossa amiga, gente? (Chora)
CARLA: (Desesperada) Acabou a alegria da minha vida! Nunca mais vou sorrir!
CINTIA: (Em volta alta) O mundo perdeu uma das mulheres mais lindas e elegantes que já existiu!
MARIA: Não vamos exagerar, não é pessoal? Sei que minha irmã não era um modelo de perfeição!
ALICE: Mulher, não fala isso. Não se deve falar assim das pessoas que morreram!
MARIA: Vamos deixar de coisa, eu sei que todo mundo aqui tinha algum problema com minha
irmã!
TALITA: Assim, foi muito errado o que ela fez comigo em não pagar meus 500 reais do cartão,
mas... Mas eu prefiro deixar pra lá...
CARLA: Apesar de ela ser uma pessoa sem graça e só falar bobagem eu até já tinha me
acostumado com as bobagens dela, pois eu sabia que no fundo ela era uma boa pessoa...
KELLY: Ela tinha a mania de mentir e espalhar fofoca, mas... Ninguém é perfeito, né?
(Clara discretamente acena positivamente)
ALICE: Ela parecia uma velha, mas era uma boa pessoa.
CINTIA: Se vestia muito mal, se maquiava horrivelmente, mas era nossa amiga mesmo assim...
TALITA: Apesar de todos os seus defeitos queria muito que ela tivesse viva aqui com a gente...
MARIA: Eu sei... Pra ver se ela te pagava, não é?
TALITA: Besteira, mulher, eu lá fazia questão de míseros 400 reais!
CARLA: E não era 500? (Noutro tom) Bem, que importa? (Pausa) Nossa perda foi irreparável...
KELLY: Verdade... Embora a gente vá ficar livre de tanta fofoca e falsidade...
ALICE: Olha, a Mariana podia ter essa cara de acabada, mas devia ter alguma qualidade...
CINTIA: Sim, divertir a gente com aqueles vestidos horríveis!
(Todas riem)
CARLA: Só se fosse, porque com aquelas piadas e comentários fora de hora só dava vontade de
matar ela...
MARIA: Tá bom! Já chega! Alguém vai falar mais alguma coisa da minha irmã?
(As garotas baixam a cabeça com vergonhas. Clara as observa com ar superior)
TODAS: Não!
MARIA: Pois agora é minha vez de falar... A minha irmã não prestava certo! Sempre foi uma
péssima pessoa! Horrível por dentro e por fora. Falsa, mal vestida, sem graça, avarenta, velhaca,
infeliz...
CARLA: Fedorenta!
MARIA: Como?
CINTIA: Mulher, não tinha pessoa que fedesse tanto como tua irmã?
KELLY: Ela não tá fedendo tanto agora porque devem ter dado um banho nela antes de colocar no
caixão...
ALICE: A garota parecia que não tinha olfato...
TALITA: A criatura fedia, não era brincadeira...
4
(Clara se aproxima de Mariana e cheira)
MARIA: Eu não convivia com ela desde que nossos pais morreram... Ela era mesmo muito
insuportável...
CINTIA: Ainda bem que não preciso mais fingir que tava triste...
TALITA: (Para Maria) Mulher, essa bicha não deixou nada aí que valha uns 300 contos? Não
queria ter esse prejuízo...
MARIA: Mulher, essa infeliz não deixou nada na vida, só falei aquele lance da caridade porque
tinha vergonha de dizer que ela acabou tudo com bebida e farra!
CARLA: Ainda bem que essa praga morreu!
ALICE: Agora eu me sinto muito melhor podendo falar mal dessa peste! Vocês não têm idéia dos
problemas que essa daí me fez passar...
(Clara fica olhando de um lado pra outro ouvindo as conversas)
KELLY: Matava a gente de vergonha nas festas... Sempre bêbada, caindo...
CINTIA: Uma vez vomitou em cima de um bocado de gente, que vergonha!
TALITA: Adorava sentar numa mesa de restaurante, pedir tudo e na hora de pagar a conta caia
fora!
CARLA: E tinha a mania de pedir roupa emprestada...
MARIA: Verdade...
ALICE: Nunca devolvia!
KELLY: E quando devolvia, minha filha, podia jogar a roupa fora porque não servia pra mais
nada!
TALITA: A roupa ficava impregnada com aquele fedor dela!
CINTIA: Até calcinha ela pedia emprestada!
TALITA: Ai que nojo!
CARLA: E olha, não pára por aí, ela devia a todo mundo, não foi só na Talita que ela deu o golpe...
MARIA: Maior decepção do meu pai e da minha mãe, essa minha irmã!
KELLY: Pois gente eu vou embora... Tinha vindo aqui só pra fazer uma média, fingir que me
importava com a garota...
ALICE: Também vou indo...
CINTIA: E eu...
MARIA: Calma, gente fiquem mais um pouco, depois do enterro vou pagar um jantar pra
comemorar a morte dessa...
(Nesse momento Mariana se senta)
MARIANA: Vão logo embora seu bando de falsas! (Após um grito de susto e medo todas exceto
Clara saem correndo) Tá vendo como são as coisas? (Sai do caixão) Fingi de morta só pra ver qual
é a dessas falsas... Até minha irmã, traidora, Judas versão feminina! (Vê Clara) Só você
mulherzinha não falou mal de mim. Clara, não é teu nome? A gente estudou junto, não foi?
CLARA: Hum...
MARIANA: Dá aqui um abraço... (Abraça Clara) Acho que nós vamos ser grandes amigas.
CLARA: Hum...
(Clara faz um gesto, enfia a mão no bolso, pega um bilhete e entrega para Mariana e sai)
MARIANA: (Lendo) Gente, desculpem a sinceridade, mas vim hoje aqui no velório da Mariana só
pra ter certeza de que essa desgraçada tinha partido dessa pra uma melhor. Nós estudamos juntas no
colégio e até hoje não conheci uma desgraçada tão imprestável quanto essa garota. Tive um
distúrbio psicológico e perdi a fala por causa dessa infeliz! Por favor leiam meu bilhete e a lista de
defeitos que eu gostaria de falar sobre essa miserável chamada Mariana...
(Mariana mexe no bilhete e um lista longa se desenrola como um rolo de papel higiênico)

Fim.

5
6

Você também pode gostar