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Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às põe a analisar a incorporação da obra do psicólo-


apropriações neoliberais e pós-modernas da go Lev Semenovich Vigotski (1896-1934) ao uni-
teoria vigotskiana. Newton Duarte, Campi- verso ideológico neoliberal e pós-moderno e sua
nas: Autores Associados, 2000, 269p. conseqüente desvinculação da matriz teórica mar-
xista.
Carla Macedo Martins Segundo o livro, este processo ocorre através
Coordenadora Editorial da revista da aproximação da teoria vigotskiana a dois ideá-
Trabalho, Educação e Saúde rios externos – e opostos – à mesma: de um lado, a
<revtes@fiocruz.br> pedagogia do “aprender a aprender”, oriunda da
concepção psicológica e epistemológica construti-
vista de Piaget; e, de outro, o relativismo cultura-
Como o título indica, o livro Vigotski e o “apren- lista, centrado nas interações lingüísticas intersub-
der a aprender”: crítica às apropriações neolibe- jetivas e representado especialmente pelo neoprag-
rais e pós-modernas da teoria vigotskiana se pro- maticismo de Putnam e Rorty.

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Para Duarte, o lema “aprender a aprender” é portante o aluno desenvolver um método do que
um representante das pedagogias que retiram da aprender os conhecimentos descobertos e elabora-
escola a tarefa de transmissão do conhecimento so- dos por outros; a atividade do aluno deve ser im-
cial objetivo. Esta concepção pedagógica se aproxi- pulsionada pelos interesses do próprio; e a educa-
ma – e até se confunde – com o pós-moderno, pois, ção deve preparar os indivíduos para acompanha-
para este último, de forma semelhante aos ideários rem a sociedade em acelerado processo de mudan-
construtivistas, o conhecimento estaria centrado ça. Ainda neste capítulo, o autor analisa tais posi-
nas estruturas de percepção e ação do sujeito e na cionamentos em dois discursos oficiais (o Relató-
sua capacidade de se adaptar a novos ambientes. rio para a Unesco da Comissão Internacional sobre
Assim, a equivalência entre o pensamento vi- Educação para o Século XXI e os Parâmetros Curri-
gotskiano e o ideário do “aprender a aprender” culares Nacionais).
tem como conseqüência a transformação do pri- No segundo capítulo, Duarte revisa as caracte-
meiro em um instrumento útil para o esvaziamento rísticas do universo ideológico neoliberal e pós-
do processo educacional escolar, cuja importância moderno. Tais características podem ser resumidas
e centralidade são postas à prova exatamente pelo a um relativismo epistemológico e a uma redução
ideário pós-moderno. Por este caminho, Duarte de- da realidade à interação semiótica. O autor indica
monstra uma questão central em sua investigação: que o fato de ambas as teorias – a vigotskiana e a
a aproximação de Vigotski aos ideários pedagógi- pós-moderna – considerarem a centralidade do so-
cos do “aprender a aprender” implica uma apro- cial não implica uma equivalência entre ambas: a
priação deste estudioso ao pós-moderno e ao neo- questão é como o social é focalizado.
liberalismo. A historicidade do ser humano e o esvaziamen-
Quanto à segunda questão, o autor inicia a dis- to da individualidade na sociedade capitalista con-
cussão observando que o relativismo culturalista, sistem no tema do terceiro capítulo. O autor consi-
com sua ênfase nas interações lingüísticas intersub- dera a análise de Marx da passagem do pré-capita-
jetivas, é bastante caro ao pós-moderno – ou, nas lismo ao capitalismo, em que ocorre a substituição
palavras do autor, ao “niilismo pós-moderno”. A das relações interpessoais por aquelas medidas
aproximação do pensamento vigotskiano com o re- apenas pela mercadoria, a separação entre trabalho
lativismo culturalista como uma forma de incorpo- e capital, e a substituição do conhecimento especí-
rar este pensamento ao ideário pós-moderno é, as- fico pela capacidade de trabalho abstrata. Duarte
sim, evidente. Portanto, traduzir a dimensão social conclui que a valorização do aprender a aprender é
da mente presente em Vigotski em termos de uma um resultado deste processo, por produzir um pro-
ênfase nas interações intersubjetivas resulta em cesso pedagógico que visa a uma adaptabilidade às
uma apropriação pós-moderna do pensamento vi- alterações do capitalismo.
gotskiano. No quarto capítulo, que podemos considerar o
A apropriação de Vigotski por estes dois uni- ápice da discussão, o autor defende uma leitura
versos é discutida a partir da literatura do campo marxista da obra de Vigotski. Para tal, ele parte da
da educação, ao longo dos seis capítulos compo- análise das estratégias de incorporação do pensa-
nentes do livro, intitulados “O lema ‘aprender a mento vigotskiano ao ideário pós-moderno e neo-
aprender’ nos ideários educacionais contemporâ- liberal. Duarte não só coteja edições da obra de Vi-
neos” (capítulo 1); “Neoliberalismo, pós-modernis- gotski com as traduções ocidentais, como também
mo e construtivismo” (capítulo 2); “A historicidade identifica o que poderíamos rotular de “estratégias
do ser humano e o esvaziamento da individualida- discursivas da incorporação do pensamento vigots-
de na sociedade capitalista” (capítulo 3); “Em defe- kiano”.
sa de uma leitura marxista da obra de Vigotski” (ca- O resultado desta análise é uma sistematização
pítulo 4); “A crítica radical de Vigotski a Piaget” de tais estratégias em três esferas. A primeira resi-
(capítulo 5); e “A psicologia de Piaget é sociointera- de em separar Vigotski de outros autores da psico-
cionista” (capítulo 6). logia sócio-histórica soviética, especialmente Luria
No primeiro capítulo, o autor identifica quatro e Leontiev. A segunda estratégia seria substituir o
posicionamentos valorativos do lema ‘aprender a que escreveu Vigotski pelo que escreveram seus in-
aprender’ nos ideários educacionais contemporâ- térpretes e pelas traduções resumidas – censuradas
neos: a aprendizagem que o indivíduo realiza por – dos textos vigotskianos. Por fim, a terceira estra-
si mesmo é tida como a mais desejável; é mais im- tégia consiste em enquadrar a defesa da distinção

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entre Piaget e Vigotski como um anticientificismo, (p. 163). Tal estilo resulta em um aprofundamento
como um dogmatismo ou, ainda, como um descom- da crítica às incoerências e estratégias discursivas
promisso com “soluções pragmáticas eficazes para identificadas, pelo autor, no material analisado –
os problemas educacionais”. Considerando o con- ou seja, em seus oponentes.
ceito de trabalho, o autor conclui este capítulo pro- Em suma, o livro desvela os mecanismos dis-
vando que a teoria vigotskiana é marxista. cursivos de reelaboração das teorias vigotskianas
No quinto capítulo, discute-se a crítica – rotu- pelo ideário pós-moderno, através da análise da
lada pelo autor de “radical” – de Vigotski a Piaget. apropriação destas teorias ao construtivismo. Em-
Duarte indica, pela análise da edição completa do bora não seja seu principal objetivo, o livro contri-
texto da obra de Vigotski intitulada Pensamento e bui ainda para resgatar e revisar o pensamento da
linguagem, a distância entre as perspectivas teóri- chamada escola soviética de psicologia.
cas destes dois cientistas. Ambas as contribuições são essenciais para es-
Por fim, no sexto capítulo, o autor busca pro- tabelecer demarcações conceituais relevantes no
var que a psicologia de Piaget é sociointeracionis- cenário acadêmico contemporâneo, inclusive em
ta. Este capítulo desempenha, na linha de análise áreas de conhecimento que não a educacional. O
traçada por Duarte, a função de demonstrar que o pensamento da escola soviética de psicologia tem
pensamento de Piaget não carece do complemento sido revigorado no campo dos estudos sobre situa-
da dimensão sociointeracional, o que indica, mais ções concretas de trabalho, servindo de base, por
uma vez, o equívoco pós-moderno ao defender a exemplo, para a chamada ‘Teoria da Atividade’ (Ac-
necessidade de amalgamar Piaget e Vigotski para a tivity Theory). Esta abordagem enfoca os processos
solução dos problemas educacionais. cognitivos presentes no trabalho, especialmente
Podem-se destacar duas características da cons- no que diz respeito à implementação de novas fer-
trução textual do livro de Duarte. A primeira é o ramentas (como o computador), buscando também
seu caráter reiterativo. Mesmo nos capítulos em uma aproximação entre o pensamento vigotskiano
que o autor apresenta os princípios do pensamen- e diferentes matrizes teóricas. Portanto, as demar-
to neoliberal (segundo) ou a análise marxista ao ca- cações conceituais delineadas pelo livro de Duarte
pitalismo (terceiro), Duarte tece considerações so- são fundamentais não só para os profissionais do
bre Vigotski e outros representantes da escola da campo da pesquisa educacional, mas também para
psicologia sócio-histórica soviética. Se tais consi- os que se dedicam à análise dos processos sócio-
derações servem para lembrar-nos o tema em ques- histórico-cognitivos inerentes aos contextos con-
tão, este recurso resulta, em alguns trechos, em cretos de trabalho.
uma repetição excessiva dos pontos defendidos. Por fim, ao oferecer um exemplo contundente
Uma segunda característica é o estilo irônico e de uma tentativa de neutralização entre concep-
enfático com que o autor trata as estratégias dos ções teórico-metodológicas divergentes, a obra sus-
que se apropriam do pensamento vigotskiano. Por cita, em nós, uma dedução quase inevitável: esta
exemplo, Duarte descreve com tintas tragicômicas tentativa de neutralização, contraditoriamente,
a proposta pós-moderna de cindir Vigotski e ou- emerge em um contexto social e acadêmico de (su-
tros autores da psicologia sócio-histórica soviética: posta) valorização das diferenças. O pós-moderno,
“trata-se de apresentar o trabalho de Vigotski como a portanto, ao sublimar o pastiche, pode resultar em
odisséia de um pesquisador abandonado até mesmo uma pasteurização do conhecimento. O livro de Du-
por seus colaboradores próximos, mas que, apesar arte nos oferece importantes ferramentas analíticas
de viver no próprio centro do mundo socialista, man- para discutir estes processos sócio-discursivos con-
teve os laços com a comunidade científica interna- temporâneos, dos quais a pesquisa educacional não
cional, e acabou por receber o justo reconhecimento” está, de forma alguma, isenta.

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