Você está na página 1de 75

1

SUMÁRIO

PREFÁCIO

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1 AS ORIGENS

CAPÍTULO 2 OS ARQUÉTIPOS

CAPÍTULO 3 OS SONHOS

CAPÍTULO 4 INDIVIDUAÇÃO

CAPÍTULO 5 PARA LER JUNG

CAPÍTULO 6 ESPIRITUALIDADE JUNGUIANA

CAPÍTULO 7 AS QUATRO FACES DE DEUS

CAPÍTULO 8 GNOSE E ALQUIMIA

CAPÍTULO 9 JUNG E A ARTE

CAPÍTULO 10 CONFLITO DE GÊNIOS

CAPÍTULO 11 RESIGNIFICAÇÃO

CAPÍTULO 12 O CAMINHO

2
PREFÁCIO

O renascimento do interesse pela obra de Jung reflete as


condições próprias do terceiro milênio, o clima da Nova Era,
com sua espiritualidade difusa e seu pensamento multipolar e
fragmentado. Poderia ser a saída para a crise da psicologia
profunda, nome sob o qual é usual incluir a psicanálise e a
psicologia analítica, além das demais correntes que lidam
com o conceito de inconsciente. No centro de tudo está, é
claro, a psicanálise, cujas origens situam-se no ambiente
sombrio dos dias finais do império Austro-Húngaro. Com a
decadência do poder político, a intelectualidade burguesa
vienense passou a se dedicar mórbida e compulsivamente,
aos temas da sexualidade e da morte. A Viena de Freud não
era mais a Viena da música alegre das valsas, mas, sim, a
das sufocantes lembranças de um tempo perdido, o que se
refletirá, na teoria psicanalítica, em uma preocupação
obsessiva com o passado. Este clima pesado e inquietante
moldou o pensamento de Freud, sem que, talvez, ele
percebesse o quanto era vulnerável ao mesmo. Entretanto,
na burguesa e republicana Suíça, outras correntes de
inquietações fervilhavam sob a calma superfície de seus
lagos, forças muito antigas e poderosas e que muitos
julgavam desaparecidas. Dali surgiu uma alternativa para a
psicologia sem alma de Freud, formulada por seu colaborador
e depois rival, Carl Gustav Jung, que trabalhou com ele de
1906 até 1913.

3
Freud preocupava-se com uma aceitação ampla para sua
obra e temia que a psicanálise fosse vista como apenas
um movimento cultural judaico. Recebeu Jung, portanto,
com todas as honras, tratando-o como o príncipe herdeiro,
pois sendo o mesmo suíço e psiquiatra de reputação
estabelecida, representava para o movimento psicanalítico
um nível maior de reconhecimento internacional e
diversidade. Após trabalharem juntos por sete anos, eles
se separaram e passaram a trilhar caminhos bastante
diferentes, mas o que os uniu, no início, foi a paixão por
um lado da psique humana, denominado “o inconsciente”,
ideia que, de modo vago, já circulava no pensamento do
século XIX.
1
Como escreveu Hugo Von Hofmannsthal :
Não possuímos nosso Eu.
ele sopra de fora sobre nós,
foge de nós por muito tempo,
e nos retorna em um suspiro.
A crise da modernidade provocou o surgimento de
variados e exóticos sistemas de pensar a natureza
humana, ou modos de ver o mundo, métodos de
interpretação totalizantes que pretendiam ser capazes de
explicar a nova realidade. Os que permaneceram são
agora defrontados com a visão crítica da pós
modernidade, encontrando o seu maior e, talvez último,
desafio.

4
1. Hugo Von Hofmannsthal (1875 1929) poeta austríaco
INTRODUÇÃO

O tempo quente e seco criava uma atmosfera pesada e


inquietante, prenúncio daquelas rápidas e intensas tempestades
de verão, comuns na região de Zurique. Alguma coisa parecia
preste a explodir e uma enorme ansiedade se apossava das
pessoas na casa. Duas xícaras, sem que ninguém tivesse se
encostado nelas, tinham saltado no ar e se espatifado no chão.
Jung se inquietava, apesar de ter sido avisado em sonhos.
Nesse momento a sineta da porta soou duas vezes. A
governanta abriu a porta, a tempo de ver a sineta se mover
sozinha, por uma terceira vez, mas não havia ninguém lá fora.
Voltou assustada para informar ao seu patrão, que apenas
acenou com a cabeça, em um vago sinal de apaziguamento.
Jung compreendeu que eles tinham chegado. “São os mortos,
que voltaram de Jerusalém”, murmurou. Deu instruções para
que não fosse mais incomodado naquela tarde e que iria ficar
sozinho no seu consultório. Reclinou-se na sua poltrona e sua
mão, aparentemente sem controle, traçou no papel o que
parecia ser um título e que dizia simplesmente: “Sete Sermões
aos Mortos”. Jung sorriu, enquanto os vultos enchiam a sala, a
sua volta. Um mundo extraordinário e transparente se abria mais
uma vez para ele, um mundo que Freud jamais conheceria.

5
CAPÍTULO 1

AS ORIGENS

Freud iniciou a sua carreira como neurologista,


dedicando-se ao estudo dos distúrbios mentais. Seus
primeiros trabalhos foram sobre pacientes histéricas, que o
levaram à seguinte noção: algo fala de dentro dessas
pessoas e não é algo consciente e racional. Ele definiu esta
parte escura da mente como o inconsciente, embora a ideia,
em sua essência, já fora levantada por outros cientistas,
como ele mesmo admitiu. Na sua definição, o inconsciente
tem as seguintes características: desconhece a palavra não,
é atemporal, amoral, não esquece nem perdoa e nele nada
passa, nada termina.
O inconsciente seria a sede das pulsões, não se
deixando acessar diretamente. São os atos falhos chamados
de deslizes freudianos, os esquecimentos inexplicáveis, as
associações livres e os sonhos que permitirão o seu acesso,
embora de uma maneira indireta.
Freud representa um tipo de mentalidade própria do
final de século XIX e começo do século XX. O estilo das
ciências humanas, na época, espelhava-se nas teorias da
física e o conceito de energia parece tê-lo influenciado,
levando-o a propor um equivalente psíquico, a libido, que
seria algo como uma energia sexual. O perigoso fascínio
pela analogia, que contaminará a psicanálise, começava aí.

6
Há ecos também do Romantismo, como a
passionalidade, a exaltação do conflito de opostos, a
rebeldia contra a autoridade, o amor impossível ou
inaceitável o incesto, em particular, a concepção do
homem irracional e a obsessão pelo lado marginal do
ser humano.
Jung, por outro lado, vinha de uma família religiosa
e desde criança tinha visões e sonhos premonitórios.
Caso sua obra fosse analisada por um espírita, talvez
ele poderia identificar ali um médium. Isto está muito
discretamente colocado em suas obras, mas as
sensações que ele descreve como imaginação ativa,
podem ser interpretadas como o equivalente do
chamado transe mediúnico. Jung interessava-se
profundamente por filosofia, religião, mitologia, alquimia
e esoterismo em geral e foi ficando cada vez mais
envolvido com misticismo. Freud, entretanto, achava
que a psicanálise, para se firmar como ciência, deveria
manter-se completamente afastada de qualquer
conexão com o ocultismo, ou com qualquer forma de
religião.
Em 1913 ocorreu o rompimento entre Freud e Jung.
Após ásperas trocas de cartas e muitas discussões,
Jung é intimado a se demitir como presidente da
Associação Psicanalítica Internacional (conhecida como
IPA). Jung retirou-se e, do primeiro time, só Carl Riklin e
Alphonse Maeder o seguiram.
7
Como consequência, estabeleceu-se em Zurique a
sede da Associação Internacional de Psicologia
Analítica (conhecida como IAAP), que congrega os
seguidores de Jung e, em Londres, permaneceu a sede
da IPA, Associação Psicanalítica Internacional, em torno
dos freudianos ortodoxos, embora a situação atual seja,
na verdade, muito mais complicada do que isto, mas
fugiria ao assunto deste livro. Sabine Spielrein curiosa e
trágica personagem não pode ser esquecida, pois ela
teve um papel importante, só agora revelado, graças à
liberação da correspondência trocada entre ela e Jung.
Sabine começa como sua paciente. No final do
tratamento, Jung convenceu-a a se tornar uma
psicanalista (essas coisas eram fáceis naquela época).
Ela tornou-se amante de Jung, que após algum tempo
decide encerrar a relação.
Desesperada com o abandono, ela chegou a
agredi-lo com uma faca. Posteriormente ela se aliou a
Freud e teria contado ao mesmo as opiniões negativas
que Jung tinha sobre ele, ajudando a envenenar o já
difícil relacionamento entre os dois.
Jung exercia reconhecidamente um grande
fascínio sobre as mulheres, que formavam a maioria
do seu círculo interno de discípulos, chamadas por
muitos de as valquírias, uma alusão irônica às deusas
guerreiras dos mitos germânicos. Esta personalidade
carismática parece explicar muito do seu sucesso
como terapeuta.
8
Podia ser de um charme extraordinário quando
quisesse, mas muitas vezes o que aflorava era o
temperamento de um rude camponês suíço. Muitos
estranharam essa mistura de forte espiritualidade e
disposição ao embate acalorado, marcas de uma
personalidade cheia de contradições. Difícil é imaginar
que Freud, sombrio, amargo e austero, pelos padrões
de hoje, fosse continuar amigo dele por muito tempo.
O psiquiatra britânico Ernest Jones, o “carrasco”
de Freud, foi o encarregado da tarefa de isolar Jung,
conseguindo para isso o apoio da maioria dos
membros da Associação Psicanalítica Internacional,
através de pesadas manobras de bastidores.
Uma disputa de ideias que, portanto, nunca foi
resolvida por um debate aberto, algo muito estranho
para um movimento que se pretendia, pelo menos no
início, uma ciência. Aqui vale lembrar que o mesmo
tratamento de choque foi aplicado aos demais
dissidentes da psicanálise. As duas correntes
principais em que esta se cindiu mantiveram por muito
tempo a animosidade dos mestres e apenas nas duas
últimas décadas os contatos entre ambas tornaram-se
mais frequentes. Após a ruptura com Freud, Jung ficou
livre para elaborar a sua própria variante da
psicanálise, que ele denominou de psicologia analítica.
Uma das suas mais importantes proposições nessa
nova fase é que, além do inconsciente individual, cada
ser humano compartilharia um inconsciente coletivo
com toda a humanidade.
9
O inconsciente, para Jung, não atua somente como
função do passado pessoal, como propôs Freud.
Também gera sonhos premonitórios, percebe eventos
paralelos em lugares distantes talvez uma forma de
telepatia e reflete o passado remoto da humanidade.
Um super inconsciente, ao lado do qual o proposto por
Freud não passaria de algo bem menor.
Ponto para Jung? Isto depende de como olharmos
a questão. O foco mais estreito de Freud poderia ser
mais correto cientificamente e a opção de Jung poderia
parecer uma combinação indevida de coisas. Em seus
escritos profissionais, Jung leva a entender que seria
algo como uma função hereditária. Em seus escritos
particulares, entretanto, ele parece crer em um acesso
da mente a uma fonte espiritual coletiva.
Conforme o caminho proposto por Jung, o
inconsciente não é visto apenas com temor, como
sendo apenas um depósito de recalques, mas é
observado e praticado em uma postura de admiração e
expectativa.
Ele é percebido como o local primordial, pois de lá
emana a consciência, surge alguém, um sujeito
singular, preso a uma história acima de tudo através de
muitas gerações, uma história que deve ter uma
sequência.
O relacionamento com o inconsciente se revela
uma dialética de contínuo desenvolvimento, cujo eixo se
encontra fora de nós e que nos escapa sempre, mas
que ainda assim nos estrutura e nos orienta.
10
Se o inconsciente nos molda e nos cria, a
consciência humana não tem uma história separada
dele. Somos, portanto, a história dessa união e por
isso o centro da psique será deslocado, por Jung, do
“ego” freudiano, essencialmente um conceito
iluminista, para um novo ponto de equilíbrio que ele
chama de “Si-Mesmo”, ou Self, núcleo de integração
de todos os elementos da personalidade, conscientes
e inconscientes.
Do inconsciente coletivo, conforme proposto por
Jung, surgem os grandes mitos da humanidade,
manipulados por todas as religiões. Os mitos e as
lendas podem ser considerados como os sonhos de
um povo e devem ser preservados como herança
cultural da humanidade, pois não são fantasias
arbitrárias, mas, sim, registros de um longo
desenvolvimento psíquico coletivo.
Os estudos de Joseph Campbell, autor de "O
Poder do Mito" e "As Mil Faces do Herói", contribuíram
para mostrar as semelhanças das mitologias dos
diferentes povos, outro fator importante para a
hipótese do inconsciente coletivo. Ele, que como
professor de literatura estudou mitologia comparada,
encontrou em Jung uma base científica para as suas
observações. Ele assessorou o diretor de cinema
George Lucas no roteiro de "Guerra nas Estrelas" que
é, de fato, uma releitura de mitos antigos.

11
Os padres missionários espanhóis ficaram muito
impressionados ao encontrar na América, no século
XVI, entre os astecas, um ritual religioso em que uma
massa de sementes de amaranto, mel e sangue era
consagrada como corpo de deus e depois ingerida
pelos devotos. A analogia com a comunhão cristã
horrorizou os espanhóis, que então proibiram o cultivo
de amaranto. Poderíamos pensar aqui que este ritual
estivesse presente, de alguma forma, no inconsciente
coletivo.
Os críticos, porém, enxergam duas outras
alternativas: a difusão cultural, na qual ocorreria a
lenta transmissão de um conceito de uma cultura para
outra ao longo dos tempos. Pode ter havido também
uma evolução cultural independente, com o
surgimento, em muitas sociedades agrárias primitivas,
de um ritual em que algum produto da terra,
simbolizando a fertilidade da natureza, fosse
consagrado e consumido, representando uma união
com os deuses.

12
CAPÍTULO 2

OS ARQUÉTIPOS

Os arquétipos não são imagens, na realidade, mas


sim as estruturas de relações entre motivos e emoções,
associadas a padrões de comportamento e que
aparecem sob a forma de imagens para a psique.
Pertencem à mesma classe das pulsões e não devem
ser confundidas com as representações que adquirem
nos sonhos e visões. Na realidade, estas formas
exteriores variam de cultura para cultura, ou de pessoa
para pessoa. É a estrutura interna do arquétipo que
pertence ao inconsciente coletivo e não a sua
representação por imagens.
É importante ressaltar que os arquétipos são
combinações de motivos, ações e reações emocionais,
com várias possíveis alternativas de desenvolvimento
no tempo e nem sempre podem ser representadas por
pessoas. Situações como o nascimento, a morte e o
casamento, por exemplo, são também arquétipos. Jung
criticava Freud por ter trabalhado apenas um arquétipo,
o que ativa o complexo de Édipo.

13
Jung foi muito influenciado pelo conceito de
polipsiquismo da escola de psiquiatria francesa do
século XIX, isto é, a ideia de que a mente é o resultado
do funcionamento de unidades semiautônomas, que ele
denominou de complexos e que, no caso de uma
personalidade bem integrada, atuariam em sintonia,
criando a unidade da psique. Uma cisão temporária na
integração da personalidade possibilita o surgimento de
complexos autônomos que adquirem domínio sobre a
personalidade, em resposta a uma forte crise.
A esse conceito, digamos, horizontal, se
contrapõe o conceito vertical de Freud, de que a
personalidade é o resultado de uma sequência
histórica de acontecimentos na vida do indivíduo,
conceito influenciado pela psiquiatria alemã da época
que via, na história da linhagem familiar, no sucessivo
enfraquecimento do sangue através das gerações, a
razão do surgimento de doenças mentais. Freud muda
apenas o conceito de história das gerações para o da
história do indivíduo. Em vez de sangue ruim, infância
ruim. Para Jung a dissociação da personalidade é o
fator principal de crise, enquanto que para Freud é o
recalque que ocupa esse papel.
Para o pensamento mecanicista e reducionista de
Freud, a complexidade da personalidade se cria
simplesmente a partir de níveis ascendentes de
interações sucessivas de princípios básicos simples,
biológicos, no caso as pulsões, com o ambiente,
criando, portanto, um determinismo histórico-biológico.
14
Para Jung esta complexidade também depende
de outra direção, descendente, partindo de uma
orientação preexistente de um nível superior. Os
fatores básicos de motivação ficam bastante
ampliados em relação à teoria freudiana, o que resulta
em um sistema aberto, estando o ego pressionado
tanto pelas pulsões, quanto por uma quantidade
indeterminada de arquétipos. É preciso lembrar que
são as associações de uma sequência de padrões de
comportamento e atitudes, com as respectivas
emoções, que identificam o arquétipo. Podemos dizer,
simplificadamente, que o arquétipo é uma forma
complexa e elaborada de pulsão.
Entre os principais arquétipos, podemos ressaltar
o do herói salvador. Esse mito surge em todas as
culturas, em todos os tempos, sempre gerando muita
emoção. Seu nascimento é sempre misterioso, corre
perigo de vida quando criança, demonstra sabedoria
precoce, é informado de seu destino, geralmente,
através de um mentor, é submetido a uma série de
provações, executa ações milagrosas em prol de seu
povo e no final é traído e morto.
O arquétipo do herói salvador explicaria a força de
muitas religiões, pois quando se é associado a um
arquétipo, uma tremenda energia emocional é
desencadeada. Sobre a pessoa que está sendo
considerada como um herói em potencial, começa a
atuar a projeção por parte dos que o admiram,
reforçando o processo de identificação com o arquétipo.
15
Caso ocorra essa dupla situação, teremos, através
do reforço mútuo, o surgimento de um personagem
histórico com uma atuação representativa do arquétipo
do herói salvador. Após a morte do assim considerado
herói, os seus adeptos simplesmente transferirão a
projeção para a instituição que ele deixar, ou for
atribuída ao mesmo. Este mecanismo, fonte de enorme
poder, é a base de quase todas as religiões, o mito
fundador, que parece ser uma condição essencial para
qualquer entidade que pretenda sobreviver através dos
séculos.
Jung usou uma analogia com o espectro da luz,
sugerindo que se o consciente fosse a luz visível, as
pulsões estariam na região do infravermelho, tendo a
sua base na fisiologia. No outro extremo, na região do
ultravioleta, teríamos os arquétipos, cuja formação viria
de um nível superior, os princípios organizadores
universais.
Em um nível próximo, individual, teríamos o efeito
dos arquétipos residentes de atuação permanente e
contínua que são, na realidade, complexos que se
formam em torno da ativação de determinados
arquétipos (a persona, a sombra, a anima e Self). Essa
simplificação, embora de uso corrente, é fonte de
confusão, uma vez que o arquétipo reside no
inconsciente coletivo e não no individual.

16
Os arquétipos residentes - na realidade, complexos – e
suas representações nos sonhos serão descritos a seguir,
de uma forma sucinta:
A anima (ou, para as mulheres, o animus) é o lado
complementar, de sexo oposto, que atua como acesso ao
inconsciente coletivo. É a parte de nossa personalidade
que lida com o transcendente e, portanto, com o espiritual.
As pessoas muito pragmáticas e extrovertidas podem ter
dificuldade de perceber sua anima. A anima surge nos
sonhos como uma fada ou uma deusa, ou algum ser alado.
A sombra é o lado obscuro, rejeitado da personalidade,
que pode surgir nos sonhos como um malfeitor ou alguém
de aspecto grotesco. Equivale vagamente ao Id freudiano.
Nem sempre é negativa, podendo representar as
habilidades e os dons não desenvolvidos de uma pessoa.
Reconhecer e aceitar sua sombra faz parte do processo de
individuação.
A persona é a máscara com qual nos apresentamos ao
mundo. É a parte da nossa personalidade acessível às
outras pessoas no convívio diário. Em grande parte é
consciente, embora sua formação seja determinada por
processos inconscientes.

17
O Self - também chamado de Si-Mesmo em algumas
traduções - é o arquétipo que representa equilíbrio,
aceitação, conciliação, integração e totalidade. O Self
pode surgir nos sonhos como a figura de Cristo, ou um
rei, ou um símbolo circular, como o sol ou uma mandala
ou, às vezes, como uma árvore. O complexo central da
personalidade, ativado por esse arquétipo, também
chamado de Self é, ao mesmo tempo, o ponto central e
o todo da psique. Enquanto o Self como arquétipo é fácil
de entender, o Self como complexo da psique é um
conceito bastante complicado. A notar que nos escritos
iniciais de Jung falava-se em Imago Dei e não em Self.
Este complexo superior, capaz de coordenar todos
os outros, inclusive o complexo do ego, seria o
equivalente de uma representação interna da divindade,
um símbolo do deus interior. Costuma surgir nos sonhos
quando se inicia o processo de individuação e
representa um processo de busca do equilíbrio na
atuação dos diferentes complexos e uma integração dos
fatores conscientes e inconscientes.
Este processo se inicia por uma viagem interior
cheia de perigos na sua parte inicial (o confronto com o
lado obscuro da mente, nossos demônios interiores)
podendo, se mal conduzido, levar a uma perda de
contato com a realidade.

18
CAPÍTULO 3

OS SONHOS

Os sonhos sempre interessaram a humanidade,


sendo associados à religião, mensagens dos deuses ou
dos mortos, ou previsões do futuro. No século XIX,
entretanto, os sonhos eram vistos pelos homens da
ciência como um fenômeno de descontrole, como se o
cérebro adormecido funcionasse desordenadamente,
ao acaso.
Freud vai recuperar a importância dos sonhos,
considerados por ele como a Estrada Real para o
Inconsciente. Esse lance de mestre por ele mesmo
considerado como a sua maior descoberta ,
revolucionaria para sempre a psicologia. Sonhar não
custa nada, mas desprezar suas mensagens pode
custar muito caro. Um antigo provérbio diz que um
sonho não analisado é como uma carta importante que
a pessoa recebe e joga fora sem a abrir. Os livros de
interpretação de sonhos que existiram em tantas
culturas constituíam sistemas fixos de interpretação,
mas a partir de Freud e de Jung, uma novidade
importante surge: a interpretação depende do contexto
pessoal.

19
Para Freud, o sonho é a realização de um desejo,
mas este desejo não aparece de uma forma clara. O
sentido latente fica disfarçado no sentido manifesto,
processo denominado trabalho-do-sonho, que ocorre
para driblar o censor da consciência. Aqui há uma
discordância importante com Jung, que considerava não
haver tal processo, uma vez que, no momento do
sonho, esta função crítica deveria estar desativada;
caso contrário, por que existiriam os pesadelos? E se a
consciência está em repouso, o que é este censor
acordado? Não pode ser parte do Inconsciente, pois o
Inconsciente não censura.
Para Jung as imagens do sonho são uma
linguagem simbólica própria, não lógica, específica do
inconsciente. Não conseguimos acessar facilmente as
informações do inconsciente, não em função do
recalque, mas porque estes dados estão em uma
linguagem que não entendemos (imprecisa, emocional,
sem logica, amoral, desconexa em relação ao tempo e
ao espaço).
Para os freudianos, o sentido manifesto do sonho,
sua narrativa aparente, é rapidamente abandonado e
através do método das associações livres, procura-se
atingir o conteúdo latente, sua mensagem oculta, ou
seja, à percepção dos complexos. Jung, porém,
discordava frontalmente disto, achando que este
processo equivaleria a se afastar do sentido específico
do sonho.
20
Ele achava que o conteúdo manifesto, a narrativa
original, é de suma importância e por causa disso o
método da amplificação é usado, procurando-se o maior
número possível de referências associadas às imagens
originais. Os sonhos serão, portanto, interpretados de
diferentes modos pelas várias correntes da psicologia
profunda, incluindo aí a grande diferença que para Jung os
sonhos podem estar se referindo ao futuro, e não apenas
ao passado. As terapias convencionais buscam uma
adaptação, pretendem moldar o psiquismo a uma linha de
normalidade preestabelecida e, portanto apresentam um
juízo de valor, por mais disfarçado que possa parecer. Ao
contrario, tanto na psicanálise quanto na psicologia
analítica é proposto um mergulho nas profundezas do ser,
um autoconhecimento sem um referencial ético prefixado.
Os sistemas de Jung e de Freud têm em comum, além do
individualismo, o relativismo moral e compartilham do
mesmo ponto fraco, que é a falta de uma visão política e
social. Apesar dos grandes esforços, por alguns de seus
adeptos atuais para a inclusão de uma agenda de atuação
no campo social, esta se revela algo desajeitada, precária
e ineficaz, problema que remonta à origem desses
sistemas, como veremos adiante.

21
Do lado da psicologia analítica, o grande defensor da
atuação política é Andrew Samuels. Segundo ele, a única
coisa em que os analistas são realmente bons é em
conseguir que as pessoas expressem conscientemente o
que já sabem inconscientemente, mas ainda não
perceberam ou pensaram.
Os analistas deveriam se aliar expressamente aos
grupos marginais ou minorias, desvendando a experiência
psicológica de ser um excluído. Eles poderiam ajudar a
superar os estereótipos defensivos impostos pela cultura
dominante, ao analisar a natureza e a existência da
diferença em si, como é se sentir diferente, como é viver
essa diferença.

22
CAPITULO 4

INDIVIDUAÇÃO

Quando o Ego se defronta com o Self, isto se parece


muito com uma experiência religiosa, como a dos grandes
místicos como Meister Eckhardt, Tauler, Hildegard Von
Bingen, Angelus Silesius e São João da Cruz e seus
encontros com o Deus interior. Jung mergulhou nesse
processo, de 1913 a 1916 e relatou o extremo desgaste e a
ameaça de colapso mental que essa sua viagem interior lhe
provocou. Existem registros de que, no início da psicologia
analítica, vários pacientes foram levados através desse
mesmo processo, tendo o analista como guia. O caso mais
bem documentado foi o de Herman Hesse1, que escreveu
“Demian” inspirado no seu processo de individuação. Esse
modo de encarar o processo de individuação como uma
crise aguda de grandes proporções, estimulada pelo
analista, que começaria por uma nekyia, ou descida aos
infernos, foi abolido na psicologia analítica a partir dos anos
70, quando várias práticas polêmicas - entre elas a da Soror
Mystica - foram abandonadas.

__________
1. Herman Hesse (1877 - 1962) escritor alemão.
23
Andrew Samuels, a grande voz do bom senso
dentro da psicologia analítica, sugere que o processo
de individuação seja visto como três possibilidades
distintas: a primeira, um processo genérico de
amadurecimento ao longo de toda a vida. A segunda,
como um processo típico de crise na meia-idade, que
requer um esforço deliberado de superação, mas que,
a rigor, consistiria de um processo de evolução e
adaptação. No terceiro sentido, esse sim próprio da
psicologia analítica na sua fase heroica, o processo de
individuação seria um processo mais drástico e
complexo, envolvendo uma integração total da
personalidade, incluindo aspectos transcendentais,
algo que seria restrito a pessoas com necessidades
espirituais mais profundas. Ao centrar o foco nas
questões sexuais e na sua ligação com a infância mais
tenra, “aos cinco anos o jogo já está feito”, disse Freud,
o pensamento freudiano subestima o desenvolvimento
da personalidade nas etapas posteriores da vida.
A religião se reduz à neurose obsessional coletiva
da humanidade e o surgimento de temas míticos em
sonhos seria apenas a revelação de insignificantes
resíduos fósseis do inconsciente. É exatamente sobre
tais resíduos, contudo, que Jung vai construir sua
grande obra. Se para Freud a religião é uma doença,
para Jung é a falta de religião, mais especificamente a
falta de uma vida espiritual, que seria uma doença.

24
CAPÍTULO 5

PARA LER JUNG

Ao contrário de Freud, que foi um brilhante


explanador, Jung, com os seus trabalhos densos,
introspectivos e técnicos, jamais superou suas
dificuldades de comunicação. Mesmo o livro mais
conhecido sobre o pensamento junguiano, "O Homem
e seus Símbolos", do qual ele apenas escreveu o
primeiro capítulo, rende-se a essa dificuldade. Seus
discípulos, a quem orientou e encarregou de escrever
os demais capítulos, também não primavam pela arte
de comunicação, com exceção de Jolande Jacobi.
Uma farta gama de belas ilustrações, presentes na
maioria das edições, tenta compensar visualmente o
que falta no texto complexo, mas em vão procurar-se-
á, ali, a alma do movimento junguiano. Para termos
uma melhor ideia de quem foi Jung, é preciso ler,
antes de tudo, o livro "Memórias, Sonhos, Reflexões",
parcialmente escrito por ele e completado, com base
nos seus diários, por Anniela Jaffè.

25
Que Jung é difícil de ler, talvez esta seja a única
unanimidade a respeito da sua obra. Parte da
dificuldade é a sua intenção de esconder ou minimizar o
forte conteúdo espiritual presente na mesma. Uma
associação com fenômenos espiritualistas levaria a uma
acusação de ocultista, que representava, para a
mentalidade então dominante, uma ideia de coisa
doentia, louca, decadente, que poderia destruir sua
credibilidade científica. Daí o cuidado com que evita
termos que poderiam soar estranhos ou mesmo não
científicos. Por exemplo, o que ele chama de
imaginação ativa poderia ser entendido como transe
mediúnico ou, diríamos hoje, estados alterados da
consciência, mas este é um assunto que ele queria
evitar a todo custo. A um leitor descuidado poderia
parecer que ele está falando sempre de sonhos, mas
analisando-se bem o texto, percebe-se que este não é o
caso.
Arquétipo é um termo que cobre várias situações
diferentes na sua obra. Em algumas situações o termo
se refere às próprias imagens arcaicas, em outras a
predisposições atemporais, estruturas sem conteúdo.
Em outras, ainda, são determinantes teleológicos,
afetando o desenvolvimento da psique como atratores
estranhos. Em algumas passagens do texto, contudo,
não há como evitar a estranha sensação de que o termo
ativação de arquétipos poderia ser substituído por
possessão por espíritos.

26
Mais uma vez nos deparamos com a famosa
ambiguidade de Jung e as suas tentativas de esconder
uma conexão espiritualista. Essa ambiguidade
ocasional, que afinal ele mesmo admitiu ter empregado,
exige um trabalho de releitura. É preciso lembrar que
até o final da sua vida ele repudiava com veemência o
epíteto de místico.
As dificuldades não param nisto. Para provar suas
ideias, ele normalmente não usa um simples raciocínio
dedutivo, mas algo que poderíamos chamar de
processo de ilustração. Cita uma longa sequência de
analogias e exemplos, similares à ideia original e, a um
determinado momento, dá-se por satisfeito. O acúmulo
de evidências paralelas parece ter sido suficiente para
ele. O leitor fica com a estranha sensação de ter pulado
o trecho do texto onde a ideia teria sido demonstrada.
Isso pode parecer pouco científico para nós, mas não
para a época, quando o modelo mais admirado de
ciência era a arqueologia, não no sentido atual, mas à
moda de Heinrich Schliemann, o descobridor de Tróia
que, munido de versos de Homero, pás e uma brilhante
imaginação, julgou ter descoberto a Tróia da Ilíada. Sua
mulher, Sophia, desfilava nos melhores salões da
Europa usando as joias encontradas nas escavações,
que Schliemann jurava, mesmo sem provas
convincentes, terem pertencido a Helena de Tróia. A
atuação de uma mente ousada, aventureira e
especulativa, parecia naturalmente científica para os
contemporâneos de Jung e Freud.
27
Os textos de Jung também atravessam com alguma
dificuldade a barreira da latinidade. Portam uma pesada e
quase indecifrável ironia norte-europeia, um modo peculiar,
espiralado, de rodear o assunto, multiplicando as descrições
paralelas, inflacionando o texto de substantivos, algo estranho
à nossa maneira latina, digamos, adjetivada. A França, por
exemplo, apresentou uma significativa resistência às ideias
tanto de Freud como de Jung. Os franceses sempre
consideraram os pensadores germânicos como soturnos e
sombrios, depressivos e indigestos. Junte-se o
antigermanismo ao antissemitismo da burguesia e teremos a
perfeita barreira às ideias de Freud na França da época.
Só com o alegre jogo de palavras de Lacan é que,
finalmente, Freud se tornou palatável para os sutis intelectos
gauleses. “Enfim, uma psicanalise à francesa!” exclamará
Edouard Pichon. E o que aconteceu foi que essa
“Psicanalise à Francesa” direcionou-se para teoria e analise
textual, em vez de priorizar a prática clínica. Contra o
biologismo de Freud, surge então Lacanismo, filosófico e
literário, muito mais próximo da tradição intelectual francesa.
Além disso, o movimento lacaniano vai herdar do meio
intelectual parisiense, fortemente impregnado de marxismo, o
zelo doutrinário, a impaciência com pensamentos divergentes
e uma auto confiança injustificável.

28
Por um outro lado, é curioso o interesse por Jung
no Brasil, onde, pelo menos em tese, a aversão à
introspecção profunda seria um traço cultural
dominante. Pode-se supor que haja um terrível mal-
entendido na fonte, pois esta introspecção profunda, na
sua vertente germânica, é uma busca frenética e
alucinada do eu interior, uma procura obsessiva da
própria identidade, com ímpetos destrutivos, à moda de
Nietzsche e não de acordo com a nossa vertente
melancólica e jansenista. Os textos de Jung estão
impregnados dos sentimentos da sua classe
conservadora, com citações profusas de autores
clássicos gregos, além do inevitável "Fausto" de
Goethe1, conhecimentos comuns às pessoas de sua
educação no mundo cultural germânico de então.
Platão, Kant, Schoppenhauer e Nietzsche são
influências importantes na sua obra que é, sob certos
aspectos, uma resposta a Nietzsche. Mesmo assim, é
preciso lembrar que informações importantes sobre
Jung foram por muito tempo omitidas, como as várias
sessões mediúnicas das quais ele participou entre 1920
e 1923 e o que teria sido o seu maior sonho (ou transe)
em que ele se sentiu transformado no deus Mitras, fatos
só divulgados após 1980. Essas histórias geraram
acusações posteriores de que ele estaria tentando
fundar um culto.

29
1. Johann W. Goethe (17491832), o grande gênio da literatura alemã.
Além da arqueologia e da mitologia, temos uma
influência da contracultura da época em Jung, o que não
ocorre com Freud. É um pouco difícil definir as
dimensões exatas dessas influências, mas o ocultismo e
as ideias de um retorno a uma religião anterior ao
cristianismo certamente estão presentes nas divagações
da chamada volkisch kultur, a cultura popular germânica
da época.
A onda orientalista, que surgiu a partir do
movimento hippie dos anos 60, foi um movimento
difuso, populista, liberal, não hierarquizado, repleto de
cores, danças e incensos. Mas a onda orientalista
esotérica que varreu a Europa dos meados do século
XIX ao início do século XX teosofia, antroposofia e
outros – teve um caráter diferente, dual. Mas foi,
principalmente, um orientalismo conservador, elitista e
hermético.
Algumas formas, contudo, atingiram um público não
convencional e passaram a integrar o circuito de
contracultura de Schwabing-Ascona, de 1880 até 1920,
que foi o equivalente do movimento hippie dos anos 60
do século XX. Schwabing era o bairro boêmio de
Munique e Ascona, na Suíça, o ponto de encontro dos
jovens adeptos do amor livre, das drogas e dos cultos à
natureza, para o que naturalmente ajudava muito que a
polícia suíça fosse mais tolerante que a alemã.

30
Jung, certamente, esteve em contato com alguns
desses elementos, diríamos hoje, alternativos, porque
muitos acabavam internados, provavelmente por
consumo excessivo de drogas, no hospital psiquiátrico
de Burghölzli, onde ele clinicava como psiquiatra.
Essa contracultura teve uma estranha combinação
de elementos: o orientalismo, o culto à natureza e ao
solo da pátria, o povo como entidade mítica, a
mitologia germânica como fonte de inspiração, a
paixão pelos acampamentos ao ar livre e cânticos em
torno de fogueiras, elementos que o nazismo soube
muito bem explorar.
Como a mitologia germânica ficou fora de moda
por causa da sua adoção pelo nazismo, hoje em dia
nossos esotéricos apelam para a mitologia céltica, que
não tem essa vinculação, embora aparentada e
continuam as danças sob o céu estrelado, as túnicas
brancas, o culto à Lua. Sai Wotan, entram os druidas.
Em todo caso, não convém alimentar ilusões.
Filhos de sua época, tanto Jung quanto Freud, eram
politicamente conservadores e adeptos de soluções
autoritárias, sem nenhuma simpatia com posições de
esquerda. Ambos mantiveram suas vidas, pelo menos
oficialmente, dentro dos padrões da respeitabilidade
burguesa vigente.

31
Em que sentido, então, poderiam ser considerados
revolucionários? Na realidade, esses presumíveis
herdeiros do iluminismo eram portadores de uma visão
humanista e liberal restrita ao campo do comportamento
individual.
Estavam em oposição, apenas, a uma postura
autoritária que pretendia impor um controle rígido dos
comportamentos e dos modos de pensar individuais,
uma característica marcante da era Vitoriana. Em uma
análise sociopolítica, deveríamos considerar que o
surgimento da psicologia profunda caracteriza, a rigor,
apenas uma revolta liberal e não uma revolução no
sentido mais amplo. Isso talvez explique porque
tentativas posteriores de achar uma conexão entre a
psicanálise e os movimentos de reforma da sociedade
(como tentaram Wilhem Reich, Herbert Marcuse, Jean
Paul Sartre e Norman Brown) nunca foram bem
sucedidas. Parecia tentador ligar a libertação do
indivíduo à libertação das massas, mas isto acabou se
revelando um projeto utópico.
Deve-se registrar também que Jung foi acusado de
simpatia pelo nazismo, pois em alguns de seus escritos
nota-se alguma velada admiração pelo mesmo,
essencialmente pelas forças míticas desencadeadas,
postura que ele abandonou a partir de 1938, horrorizado
com os rumos que as coisas tomaram. Mas a sombra
ficou, pelo menos pelas estranhas companhias, uma
vez que os círculos de hermetismo e a extrema direita
sempre tiveram uma certa afinidade entre si, como
documentado no livro de Miguel Serrano, “Hesse e Jung
32
– história de duas amizades”.
A modernidade fez surgir na terra de ninguém entre
o recuo da Igreja e o avanço da Ciência, dezenas de
novos sistemas de pensamento, a maioria deles
baseada em racionalizações parcialmente científicas, a
rigor misturas de ideologia e ciência, com a típica e
enervante tendência à militância. Criados de um modo
extremamente personalista, abusivamente abrangentes,
muito marcados pelo contexto específico de uma época,
a modernidade, e de uma cultura eurocêntrica,
utilizaram métodos de divulgação e conversão
semelhantes a movimentos políticos ou seitas.
Freud tinha percebido claramente o perigo de ser
considerado apenas mais um ponto de vista e escreveu
um longo texto negando que a psicanálise fosse um
modo específico de ver o mundo e que, na realidade,
ela deveria fazer parte da visão científica geral. Ele usou
o termo alemão weltanschauung, literalmente
cosmovisão, mas o seu raciocínio parece bastante
ingênuo para os tempos de hoje, em que as grandes
narrativas perderam seu brilho e têm que dividir o
espaço democraticamente com uma infinidade de novas
opções.
Os defensores atuais da psicanálise preferem uma
atitude mais elástica, jogando em três posições
simultaneamente. Assim, a psicanálise seria uma
ciência, um processo terapêutico e um método de
interpretação e investigação, querendo dizer com isso
que se trata de um sistema triplamente qualificado.

33
A questão, porém, é se na realidade não se trata
de uma combinação incompleta de um pouco de cada
uma dessas coisas. No modo pragmático e imediatista
atual, as pessoas estão mais preocupadas com
soluções do que com interpretações e, portanto, são
tempos de crise para a psicologia profunda.
Esta crise não deriva de que a psicanálise esteja
certa ou errada, mas da incapacidade de uma fórmula,
tão vinculada à modernidade, se manter dominante em
um mundo pós-moderno, no qual o contexto não lhe é
absolutamente favorável. A psicologia analítica só não
foi tão atingida porque inclui elementos que são
especialmente caros ao pensamento contemporâneo,
como a questão espiritualista, da qual James Hillman
tentou, sem sucesso, se libertar.
Andrew Samuels distingue, com fina ironia, quatro
tipos de analistas junguianos: o fundamentalista, que se
orienta rigorosamente pela vida e obra de Jung; o
clássico, ligado às ideias pessoais de Jung, mas com
uma visão crítica. O desenvolvimentista, que associa a
psicologia analítica com os estudos freudianos sobre o
desenvolvimento da criança e do adolescente.
Finalmente, o chamado psicanaliticamente orientado,
que valoriza a transferência como o problema maior e,
neste caso, a diferença entre esse modelo e a
psicanálise ortodoxa freudiana cai quase a zero.

34
CAPÍTULO 6

ESPIRITUALIDADE JUNGUIANA

O pai de Jung, Paul Jung, era um pastor


protestante que parece ter perdido progressivamente a
sua fé, ficando bastante deprimido em consequência,
situação que o jovem Jung acompanhou angustiado e
que o influenciou muito, tanto que ele atribuiu a morte
precoce do pai ao fato de a religião não ter sido capaz
de lhe dar uma vida espiritual de intensidade esperada.
Para sempre carregaria uma desconfiança pelo
cristianismo e um desejo inconsciente de reformá-lo.
A mãe de Jung, Emilie Preiswerk, como também
vários parentes do ramo materno, tinham dons
mediúnicos. O pai de Emilie, Samuel Preiswerk, que
também era pastor, “conversava” com sua falecida
primeira mulher e costumava pedir à sua segunda
mulher que ficasse atrás dele enquanto fazia sermões,
para afastar os maus espíritos que ele sentia perto de si.

35
Helene Preiswerk, prima de Jung, também tinha
estranhos poderes e foi o tema da dissertação doutoral
de Jung: "Sobre a Psicopatologia dos Fenômenos
Ditos Ocultos". No trabalho ela é citada com um
pseudônimo, mas como Basiléia era uma cidade
pequena, todos acabaram por identificá-la. Ela,
provavelmente por causa disto, jamais conseguiu
casar-se. Na época, tais dons eram interpretados
como o chamado sangue fraco, meio caminho andado
para a loucura, destino provavelmente temido por
Jung. Talvez, por isso, ele quisesse tanto tornar
científicas as observações sobre fenômenos
paranormais, justificando essas tendências, retirando a
sua ligação com a chamada fraqueza da mente e é
evidente que nesse caso ele advogava em causa
própria. Os fatos relatados acima explicam porque a
posição de Jung em relação à espiritualidade foi tão
influenciada por fatores familiares.
Quando lhe perguntaram se acreditava em Deus,
Jung respondeu: "Eu não acredito (...) eu sei!" A
religião para ele, portanto, não era nem uma crença
racional, nem fé em uma revelação transmitida. Seria
uma vivência interna, intensa e individual, como para
os grandes místicos, cuja experiência de Deus parecia
bem pouco ligada à estrutura oficial das religiões
organizadas. De fato ele afirmava que a religião
organizada é a melhor maneira de matar a experiência
espiritual. Esta espiritualidade selvagem, que ele
propunha, não teria realmente como agradar às
correntes religiosas mais conservadoras.
36
Esta é a distinção fundamental que ele fazia: o
fenômeno religioso era uma realidade para a psique,
mas nada se poderia dizer sobre a existência da coisa-
1
em-si. Nisso ele pretendeu seguir a filosofia de Kant ,
mas os filósofos profissionais consideram que ele
manipulou esses conceitos, apenas para evitar definir-
se sobre a realidade última das coisas espirituais. Já
os teólogos negam que a religião possa se basear na
análise de experiências e observações psicológicas,
uma vez que seu poder deriva da verdade revelada,
portanto, fora do alcance da pesquisa empírica. Essa
foi a posição do padre dominicano inglês Victor White,
que passou três meses discutindo com Jung, a convite
do mesmo, sem que eles chegassem a um
entendimento comum. Pouco tempo após a morte do
padre Victor White, Jung escreveu para seus amigos,
lamentando essa perda e declarando que gostaria que
o mesmo tivesse sido seu sucessor. Estranhas
palavras para quem sempre insistia que seu sistema
não era uma religião. Se Jung pretendeu recriar um
culto pagão, direcionado a Mitras ou Dionísio conforme
suposição precariamente formulada por seus críticos
mais radicais, ou simplesmente propor uma reforma do
cristianismo, tornando-o mais místico, como afirmam
outros, é uma questão aberta a debates, mas de
interesse apenas histórico.

1. Immanuel Kant (1724 1804), filósofo alemão.


37
Embora nenhuma religião dê a sua aprovação
oficial, na prática os contatos são intensos e
permanentes. Existem, no momento, vários padres
católicos e pastores protestantes que são analistas
junguianos, sem que o grande público se dê conta.
No "Guild of Pastoral Psychology" analistas
junguianos e padres da igreja anglicana se reúnem
semanalmente em Londres, há cinquenta anos. Devem
ser lembrados também os interessantes debates com o
reverendo Vincent Cox, de confissão anglicana, que
constam da obra de Jung "Vida Simbólica”.
A partir de 1980 o pensamento junguiano foi sendo
redescoberto pelo grande público, coincidentemente
com a falência do modelo materialista, mecanicista e
reducionista da ciência e com o surgimento gradual de
uma nova espiritualidade. Esta nova espiritualidade, ou
espiritualidade da Nova Era ou onda de esoterismo,
como é popularmente conhecida, parece ser um
fenômeno caótico, principalmente se observarmos o
ecletismo das chamadas lojas de artigos esotéricos. Se
prestarmos atenção, contudo, veremos que algumas
ideias dão uma certa unidade a esse conjunto de
movimentos, como a ideia de que a religiosidade é
muito mais uma experiência pessoal do que a
submissão a uma verdade revelada. Podemos observar
também a aceitação da expressão multicultural, ou seja,
a ideia de que a liturgia e os textos sagrados são visões
culturalmente diferenciadas dos mesmos fenômenos
38 espirituais básicos.
Ainda outra ideia é a do caráter sagrado do mundo
em que vivemos, uma certa visão panteísta. Tudo isso
encontra apoio direto nos escritos de Jung, que enxerga
o ser humano como conectado a uma Alma do Mundo,
referida também como Anima Mundi ou Unus Mundus.
Não é de se estranhar, portanto, que Jung tenha se
transformado em um guru da nova era, embora isso leve
a uma visão limitada de sua obra. Os que se fascinam
pelos aspectos mágicos da vida de Jung provavelmente,
se decepcionarão com seus seguidores atuais. Há
sempre uma distância entre o criador de uma obra e a
instituição por ele legada e a psicologia analítica atual
tornou-se, gradualmente, um movimento psicoterápico
quase convencional, embora com um interesse incomum
por questões de religião e espiritualidade.
O desejo humano por transcendência encontra eco
em Jung, mas não em Freud. Seria de se esperar que as
religiões organizadas tivessem se interessado por aquele,
devido à sua abertura para o fenômeno religioso. A
concepção junguiana, contudo, insinua o que os líderes
religiosos mais temem: que a diferença entre as religiões
seja pouco relevante, sendo a experiência direta da
divindade possível através de qualquer uma delas ou
mesmo sem elas e, portanto, o interesse por Jung surge
mais da periferia do poder eclesiástico do que do seu
centro.

39
Também não poderia conquistar muita simpatia a
opinião dele de que as religiões organizadas tradicionais
seriam como conchas abandonadas de moluscos,
estruturas ocas, das quais a verdadeira vivência
religiosa já teria partido há muito tempo.
Alguns estudiosos pretenderam achar semelhanças
entre o pensamento de Jung e o budismo. É uma
comparação difícil de ser feita, pois existem várias
formas de budismo e a terminologia utilizada não tem
equivalente exata no pensamento dito ocidental. Sempre
é possível achar analogias, mas no caso o mais correto
é admitir que haja alguns pontos de semelhança, talvez
apenas com a tradição budista da linha Teravada. A
nossa tendência de colocar os sistemas de pensamento
em categorias rigorosamente definidas pode ser a razão
das nossas dificuldades de entendimento, uma vez que
no mundo budista e hinduísta não existe uma fronteira
definida entre psicologia, filosofia e religião.
Curiosamente, o pensamento de Jung partilha deste
mesmo problema, pois transgrede as mesmas fronteiras.
Para muitos psicólogos não seria verdadeiramente uma
psicologia por causa da sua vertente espiritualista; para
os teólogos não tinha nada a ver com religião por causa
do seu empirismo e para os filósofos era um sistema
insuficientemente estruturado.

40
CAPITULO 7

AS QUATRO FACES DE DEUS

Um tema recorrente em Jung é a significação


mágica do número quatro. Ele considerava que na
Trindade cristã faltava uma pessoa e escreveu um longo
artigo de elogios ao dogma da Assunção de Nossa
Senhora promulgada por Pio XII. Finalmente, afirmava,
temos a quarta pessoa, o personagem feminino que
faltava. Podemos imaginar a consternação que este
elogio deva ter produzido no Vaticano, naquela época.
Jung sugeria, com notório exagero e falta total de
senso político, que também não se podia excluir o lado
mau de Deus e que o diabo também deveria ser
contemplado, levando o reverendo Vincent Cox a
indagar, exasperado: "Afinal, o senhor quer quatro ou
cinco pessoas divinas?", para o que Jung não forneceu
qualquer resposta satisfatória.
Estas incursões de Jung pelo campo teológico
sempre foram recebidas com reservas, principalmente o
seu livro "Resposta a Jó", com considerações sobre o
chamado problema do mal.

41
Neste trabalho ele mostra o Deus do Antigo
Testamento como arrogante e prepotente com Jó. Afinal,
jogar todas as desgraças do mundo sobre o pobre homem
só para ver se ele era realmente fiel, está bastante distante
de um Deus infinitamente bom e justo. Jung mostra um Jó
moralmente superior, que leva Deus a querer se
aperfeiçoar, levando-O à sua decisão de se encarnar como
homem. Essa concepção, digna de um José Saramago é,
no mínimo, uma bela criação literária. Para os teólogos, a
posição é a mesma de sempre: Jung está fora do seu
campo, não deveria tratar de teologia.
Mas qual a razão de Jung tocar nesse assunto?
Simplesmente porque o Deus que aparece nos sonhos de
seus pacientes e nos dele próprio, é um Deus com uma
face cruel, que inspira temor. De acordo com Jung, se o
inconsciente revela um Deus tão terrível, esta impressão
deve decorrer de um fator psíquico inconsciente que
conhece a essência ambivalente da divindade, de fato o
Senhor do Bem e do Mal. Jung mostra que apenas o
cristianismo insiste na bondade absoluta de Deus,
embora com a exceção do calvinismo, que aponta Deus
como justo, mas se recusa a defini-lo como infinitamente
bom. Para a maioria das outras religiões a divindade
suprema seria tanto criadora como destruidora.
A obra de Jung suscita grandes objeções por parte
dos setores cristãos mais conservadores. A "Coalizão
Americana dos Cristãos Conservadores" chega a
considerar, com grande exagero, Jung como a maior
ameaça ao cristianismo nos tempos atuais.
42
Este temor deriva da grande penetração do
pensamento junguiano junto às bases da maioria das
denominações cristãs. Para esses conservadores
Jung é um caminho para o neopaganismo, um fator
principal do movimento Nova Era corrente. Não
podemos nos esquecer, contudo, da origem calvinista
da maior parte do cristianismo americano, com todas
as implicações em termos de suspeita, exclusão e
desprezo aos considerados não eleitos. Alavancadas
pelo seu grande poderio financeiro, as organizações
cristãs conservadoras americanas estão apoiando
todo e qualquer ataque a Jung, como o tendencioso
livro de Richard Noll, "O Culto a Jung", exemplo
acabado do que a crítica literária chama hoje de
patografia, ou seja, uma biografia que vasculha todos
os aspectos negativos que se possa encontrar sobre
alguém, concentrando-se sobre eles e dando-lhes a
pior interpretação possível.
Andrew Samuels argumenta que é perda de
tempo simplesmente defender a pessoa de Jung. Ou o
movimento junguiano gerou um sistema coerente de
ideias que funcionam e atuam positivamente e se
liberta da veneração ao seu fundador, ou fica
marcando passo, na defesa de uma pessoa em vez de
ideias; o que é inoperante, pois quase todos os
grandes homens tiveram alguns pontos fracos
indiscutíveis, indecisões, fraquezas e posições dúbias.

43
Já a reação a Jung entre os católicos varia muito,
vai da posição extremada de incompatível com o
cristianismo de acordo com o padre Raymond Hostie,
passando pela admiração lúcida do teólogo Leonardo
Boff até, no outro extremo, a posição do padre John
Dourley de que a psicologia analítica deveria
simplesmente absorver o cristianismo.
Cabe aqui uma observação: o encontro de uma
espiritualidade em aparente declínio com uma psicologia
em expansão teria de ser traumático. Porém, as grandes
religiões se movem lentamente, pois é da sua essência
agir pensando em séculos e não em meses ou anos.
Qualquer um que queira pensar no futuro do cristianismo
deveria levar em conta o fator Jung. As mudanças,
maiores ou menores, têm uma grande probabilidade de
ocorrer nessa direção.
O teólogo James Heisig, que estudou a fundo a
questão, definiu o diálogo entre a psicologia analítica e o
cristianismo como "(...) absolutamente caótico (...) apesar
de quatro décadas de discussões (...)". As opiniões de
Jung sobre religião continuam a gerar polêmicas, como a
ideia de que a psique humana é e sempre será ativada
por quatro faces de Deus: o Criador Severo e Irado, a
Grande Mãe Compassiva, o Filho Salvador Heroico e o
Espírito de Sabedoria. A quaternidade de Jung pode não
ser correta teologicamente, mas parece refletir uma
profunda sabedoria do inconsciente coletivo, ou uma
faceta desconhecida da psicologia da alma.
44
CAPÍTULO 8

GNOSE E ALQUIMIA

Jung recuperou os estudos sobre a alquimia


revelando que na estrutura do seu discurso se
esconde uma discussão sobre a alma e o seu
desenvolvimento espiritual. Estabeleceu uma ligação
desses estudos ao antigo gnosticismo e daí, para
tempos mais recuados, às religiões pagãs, como o
mitraísmo e a religião do antigo Egito. Sua fascinação
pelo gnosticismo era tanta que ele assinou com o
1
pseudônimo de Basilides o seu famoso "Sete Sermões
aos Mortos". Essa corrente espiritual, embora
condenada como heresia, teria seguido paralela ao
cristianismo, como uma sombra através dos séculos.
Talvez seja o lado esotérico, complementar, nunca
admitido publicamente.
É a fascinação de Jung por essas ideias que gera,
em tese, a acusação de paganismo, embora ele visse
muito além disso, propondo uma ligação entre todas
as formas de religião e os conhecimentos esotéricos.
É lógico que uma maneira tão peculiar de encarar a
religiosidade teria uma reação bastante controvertida.

45 1. Basilides, gnóstico do século II d.C.


Seria complicado definir, em poucas linhas, o
gnosticismo, mesmo porque o mesmo se constituiu de
várias tendências com diferenças importantes entre si.
Mas alguns princípios básicos são comuns: a ideia de que
o mundo foi criado por um deus inferior, o demiurgo,
sendo que o Deus supremo está acima desta criação
imperfeita. Portanto, o mundo carrega o estigma do erro,
mas cada pessoa possui em si mesma a centelha divina,
que se libertando deste mundo de trevas, poderá alcançar
a divindade suprema. Tal experiência só seria possível
através de um conhecimento secreto, que é a gnose, ou
conhecimento esotérico, que permitiria ao discípulo
superar essa prisão do mundo, embora apenas poucos o
conseguiriam.
Jung afirmava que a religião estava ligada à história
cultural de um povo. Nunca recomendou que as pessoas
abandonassem o cristianismo. Ao contrário, afirmava que
seria inútil as pessoas do mundo ocidental se dedicarem,
por exemplo, às exóticas religiões orientais. O substrato
cultural do ocidental jamais absorveria todo o contexto
inerente àquelas formas de religiosidade. Seria perda de
tempo um ocidental posar de budista. Ficaria no máximo
uma caricatura, na sua opinião. Lembrava que embora
houvesse no Japão, há alguns séculos, comunidades de
japoneses cristãos, os seus descendentes continuavam a
ter sonhos com motivos budistas.

46
Apesar de seu enorme interesse por religiões
orientais, jamais advogou que as pessoas se
tornassem budistas ou hinduístas, abandonando o
cristianismo, ao contrário do que muitos possam
pensar.
O que adiantaria, ele perguntava, as pessoas
aprenderem ioga, que surgiu numa cultura de fuga
da realidade, enquanto continuassem altamente
agressivas e competitivas dentro da sociedade
ocidental? A retomada da religiosidade individual
passaria pela religião ligada à cultura em que as
pessoas foram criadas.
Sempre criticou o protestantismo tradicional por
ter perdido seu sentido de liturgia, por sua rejeição do
misticismo e pela perda da emoção religiosa mais
profunda. Apesar disso, ele jamais abandonou
formalmente a Igreja Reformada Suíça, de origem
calvinista, embora matizada por influências luteranas,
da qual seu pai tinha sido pastor.
Jung via o catolicismo como muito mais
saudável psiquicamente, devido ao seu alto
conteúdo emocional. O que ele rejeitava de negativo
no catolicismo era o centralismo e o autoritarismo,
com o que ele declarou claramente jamais poder
concordar, em seu artigo "Porque não sou católico".
Jung escreveu os prefácios de dois livros de
Richard Wilhem, o "Livro das Mutações", um estudo
sobre o I Ching, e o livro "O Segredo da Flor de
Ouro", sobre alquimia chinesa.
47
Seus estudos do I Ching e da alquimia chinesa
relacionavam-se à questão da universalidade dos
arquétipos e do substrato universal comum do
inconsciente coletivo, não sendo uma simples
validação dos processos ali descritos.
O mesmo vale para suas observações sobre o
tarô e a astrologia. Trata-se, em todos esses casos, do
vislumbre de uma estrutura psicológica comum a todos
esses temas e não, como erradamente se pensa, de
acreditar que esses processos teriam uma validade
total, um processo divinatório que realmente
funcionasse em qualquer circunstância. Seja como for,
Jung costumava fazer mapas astrais de seus clientes e
sua filha Gret Baumann-Jung tornou-se a mais famosa
astróloga de Zurique.
É verdade que sob certas situações especiais,
poder-se-ia ter muito mais que um acerto aleatório,
através do fenômeno de sincronicidade quando, Jung
acreditava, poderia ocorrer uma manifestação de
arquétipos, contendo mensagens de significado
específico e real. Por exemplo, o nascimento de uma
pessoa predestinada a ser famosa estar associado ao
aparecimento de uma estrela nova no céu, fato que
evidentemente não poderia ser explicado pelas leis da
física.
A sincronicidade seria a ocorrência de
coincidências significativas, sem nenhuma conexão
causal, porém interligadas por um sentido simbólico.

48
Essas manifestações não estariam, contudo, sob
controle da vontade, advindo daí as suas divergências
2
com Rhine a respeito das pesquisas parapsicológicas.
Não se tratariam de poderes, mas, sim, de
ocorrências. Evidentemente, estamos falando de um
dos pontos mais controversos das ideias de Jung.
Aqui, estamos pisando em terreno realmente frágil. A
sincronicidade não é, contudo, um ponto essencial do
pensamento junguiano.
Quanto à astrologia, o significativo seria a
coincidência dos movimentos dos astros com as
estruturas psicológicas. Os astrólogos, através de
séculos de estudos, teriam projetado naqueles corpos
celestes e nos seus movimentos, as percepções que
jaziam no inconsciente coletivo. O que significa que se
estamos lendo o que está escrito nas estrelas,
estamos lendo, até certo ponto, o que a humanidade
mesmo escreveu, porque ao atribuir símbolos e
significados aos astros e seus movimentos, usando a
intuição, o ser humano simplesmente parece ter
transferido a sabedoria do inconsciente coletivo para
um suporte específico.
É importante destacar, como fez o filósofo e
professor Renato Janine Ribeiro, que Jung deu um
novo sentido à astrologia que, se antes era vista como
uma maneira de detectar infortúnios ou lances de
sorte, passa a ser mais uma análise das possíveis
influências positivas e negativas atuando sobre a vida
das pessoas, dando uma oportunidade ao ser humano
de compreender a sua própria vida.
49

.
2. John B. Rhine (18951980) parapsicólogo americano
Alguns autores atuais, mesmo influenciados por
Jung, preferem citá-lo apenas como uma referência
distante, seja para evitar conexões com suas atitudes
mais polêmicas, seja pela necessidade de parecerem
originais. É o caso dos criadores da psicologia
transpessoal e também do filósofo americano Ken
Wilber que, curiosamente, reivindica ter sido o primeiro
a estabelecer uma conexão entre psicologia e religião
oriental.
Ele tece algumas críticas muito interessantes,
como o pouco reconhecimento da importância das
estruturas intersubjetivas (linguagem, cultura, ética,
sistemas sociais) tanto por parte de Jung quanto de
Freud e qualificando entre o que ele chama de falácias
prétrans o fato de Jung não distinguir entre os
componentes espirituais préracionais, ou seja, infantis
e primários, e os transpessoais, ou seja, produtos de
uma evolução espiritual.
Ken Wilber falha, contudo, ao ficar preso ao
paradigma do espiritualismo evolucionista, como
grande parte dos pensadores alternativos e,
especialmente, os pseudobudistas da Califórnia e do
Colorado. Há um otimismo ingênuo nessa postura,
fruto de uma sociedade que acha que tudo se
resolverá e da melhor maneira possível, apenas levará
tempo. Não há o sentido do trágico, não há
passionalidade em Ken Wilber.

50
CAPÍTULO 9

JUNG E A ARTE

Jung sempre incentivou os seus pacientes a


desenhar ou pintar as imagens que apareciam em
seus sonhos. Para ele, a forma era significativa e não
apenas o conteúdo que pudesse ser extraído dessas
representações. Ele achava importante que as
pessoas desenhassem e pintassem regularmente, de
modo livre, possibilitando a expressão dos conteúdos
inconscientes. Sua ligação com a arte não encontra
paralelo em Freud, que a considerava uma sublimação
neurótica. Esta posição foi criticada por Jung como
sendo o equivalente a considerar a obra de arte como
uma doença. Afinal, considerar que as neuroses de
um artista influenciaram a sua arte, não explica o
apelo que a grande obra exerce sobre tantas pessoas.
Para Jung, a Grande Arte apresenta-se como uma
mensagem do inconsciente coletivo para toda a
humanidade. Trata-se, portanto, de canalização e não
de sublimação.

51
Devido ao excesso de energia psíquica consumida
por tão grande tarefa, esse processo pode provocar um
desequilíbrio da personalidade. Assim, para Jung, a
atividade artística, em seu nível mais alto, pode alterar a
mente do artista, levando-o a neurose, se seu psiquismo
não estiver forte o bastante. Para Freud, ao contrário,
são as neuroses que explicam a obra de arte.
É interessante comparar a análise da obra de
Leonardo da Vinci, "A Virgem, Santana e o Menino
Jesus", sobre a qual tanto Freud, quanto Jung,
escreveram. Fica claramente demonstrado o
posicionamento diferente dos dois. Enquanto Freud
desdobra-se sobre os prováveis problemas sexuais de
Da Vinci, a análise de Jung pergunta por que essa obra
nos fascina e conclui que ali está representado o
arquétipo da dupla maternidade, que nos remete ao mito
do duplo nascimento, o físico e o espiritual, que seria o
fator que nos comove profundamente.
A influência de Jung é muito marcante nas artes,
por seu entendimento de que a criatividade é uma força
positiva única e especial. Jung alertou para a força das
imagens e a tremenda carga psíquica de que podem
estar possuídas, influenciando nesse sentido até mesmo
a psicanálise, apesar da mesma tradicionalmente ter
valorizado a palavra em detrimento da imagem. Como
vimos, ele tinha um grande sentido visual das coisas e
considerava que a criatividade artística tenderia a ativar
e expor o material inconsciente, levando a uma
harmonização da psique.
52
Grandes cineastas como Ingmar Bergman,
Frederico Fellini e Akira Kurosawa, foram diretamente
influenciados por ele. Kurosawa tem uma frase
interessante, com um tom muito junguiano: "o homem
é um gênio enquanto sonha".
Jung foi um grande incentivador da arte como
terapia, insistindo que a realização e a contemplação
dessas expressões plásticas tinham um efeito
terapêutico importante. Considerava que uma imagem
possuía um valor simbólico, portanto, não redutível a
uma simples descrição racional. Em uma passagem
breve, mas curiosa, chegou a especular que a dança
poderia também ter efeito terapêutico, o que para a
época era uma ideia incomum.
A mandala (que significa círculo em sânscrito),
figura muito utilizada para meditação no budismo
tântrico tibetano, foi identificada por Jung como o
símbolo da totalidade psíquica. Segundo ele, este
motivo aparece frequentemente nos sonhos das
pessoas na crise inicial que precede o processo de
individuação. Surge ocasionalmente também em
desenhos de psicóticos. E aparece como símbolo de
uso comum em épocas de crise em muitas culturas.
A mandala é formada por uma série de figuras e
motivos ao redor de um ponto central, rodeado de
círculos ou de formas quadradas e está geralmente
dividida em quatro, oito ou doze seções, apresentando
cores variadas, além do seu desenho complexo.
53
Jung localizou figuras similares em quase todas as
culturas e valorizava muito seu sentido universal. Ele
também pintou uma série de mandalas e algumas dessas
figuras estão representadas na sua obra "Os Arquétipos e
o Inconsciente Coletivo". Desenhar ou pintar mandalas,
segundo ele, teria um grande e importante efeito
terapêutico.
Os vitrais de rosáceas das catedrais góticas seriam
um exemplo do uso religioso das mandalas. Ironicamente,
há muitas vezes mais mandalas que cruzes nas igrejas.
Formas circulares têm tradicionalmente uma conotação
de totalidade e na forma de uma serpente mordendo o
rabo, representavam a eternidade para os antigos
egípcios, do mesmo modo que a serpente uroboros dos
alquimistas. Muitos críticos acharam exagerada a
obsessão de Jung por mandalas, mas para ele a
universalidade de um símbolo como a mandala era um
argumento muito forte para a teoria do inconsciente
coletivo, daí sua importância.
Jung irritou muitos ufólogos ao sugerir na sua obra
"Um Mito Moderno" que as visões de discos voadores
seriam alucinações compensatórias, visões de mandalas,
provocadas pela angústia da sociedade moderna em
relação a uma possível guerra nuclear.
Jung deparou-se com a enorme quantidade de
material mitológico contido nas alucinações dos
psicóticos internados no Hospital psiquiátrico de
Burghölzli, material para o qual ninguém antes tinha
prestado atenção.
54
Ele percebeu que, muito além de ser apenas um
sintoma, essas visões poderiam estar sinalizando uma
tentativa de cura da própria mente. Ele tinha uma
enorme capacidade de intuição, surpreendendo muitas
vezes seus pacientes ao adivinhar situações que os
mesmos tinham vivido antes de eles mesmos as
contarem.
Nise da Silveira, brilhante psiquiatra brasileira,
utilizou muito a arteterapia com os internos do hospital
do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro.
Entusiasmada com as ideias de Jung, encontrou-se com
ele em Zurique. Depois de uma longa conversa, Nise
perguntou: "Meus pacientes pintam, mas aquilo não faz
sentido". Jung fez uma longa pausa. E, fitando-a nos
olhos, respondeu: "Estude mitologia".
Nise passou a ver com novos olhos os trabalhos de
seus pacientes. Sim, ali estavam os deuses e demônios,
seus enigmas, rituais e celebrações e as estranhas
visões que provocavam, tudo colocado nessas obras
hoje famosas e que são exibidas no Museu do
Inconsciente. Esta atitude frente aos delírios acabou se
disseminando por várias instituições psiquiátricas, tendo
como exemplo mais famoso o caso de Artur Bispo do
Rosário, embora o mesmo não estivesse ligado
diretamente a Nise da Silveira.
Artur Bispo do Rosário, negro, pobre, louco, gênio,
hoje é tema de artigos e livros, um fenômeno cultural,
exposto na Bienal de Veneza e eternizado no campo
das artes.
55
O seu "Manto para Encontrar com Deus" é uma
obra que emociona, arte em estado puro, absoluto, o
ponto máximo de um processo de resignificação da
loucura, de redenção daqueles que não tiveram voz,
mas mantiveram a chama do contato direto com a
essência divina.
O grande pintor Van Gogh, em carta a Gauguin,
lembra que a arte deve ser procurada no mais
profundo de nossa alma, como um diamante
escondido no interior da terra. Essa posição é muito
semelhante à de Jung. A arte aqui não é sublimação,
fuga, mas, sim, encontro, descoberta. Nesse caminho
para dentro, a primeira camada encontrada é
semelhante ao inconsciente proposto por Freud, ou
seja, um depósito de sentimentos negativos
recalcados. É quando se consegue passar para além
desse ponto e continuar a viagem é que se chega ao
reino da arte, do sublime, da espiritualidade e da
transcendência, da unidade com o cosmos. A
psicanálise freudiana, por se basear no materialismo
absoluto, não consegue reconhecer, nem lidar, com
esta dimensão extra.

56
CAPÍTULO 10

CONFLITO DE GÊNIOS

O pensamento de Freud oscilou muito durante os


anos em que ele trabalhou. Apesar de ter feito uma
opção materialista, rejeitando qualquer vertente
espiritualista na psicanálise, no fim da sua vida
declarou que se pudesse recomeçar, dedicaria mais
tempo ao estudo dos fenômenos paranormais. Embora
tenha se dedicado ao estudo de uma dinâmica da
mente na qual os problemas psíquicos surgiriam
através de processos mentais, previu, nos seus
escritos finais, que com o passar do tempo seriam
descobertos remédios que poderiam atuar nos
distúrbios mentais e, então, a psicanálise, cara e
demorada, poderia retirar-se de cena. Por que essas
declarações são tão pouco conhecidas? Porque o já
citado Ernest Jones se encarregou de classificar esses
comentários finais como sendo escritos especulativos
e não doutrinários e, dada a sua influência no
movimento psicanalítico, a sua colocação acabou
prevalecendo. Como sempre acontece, quem controla
a interpretação, controla a doutrina.

57
O momento crucial da disputa entre Jung e Freud
foi a publicação, em 1912, do livro "Símbolos e
1
Transformações da Libido" , por Jung, em especial o
capítulo "O Sacrifício", que apresenta uma visão mítica
do tema do incesto tratado como uma representação de
uma regressão da libido em direção a um estágio
anterior pré-natal, tendo apenas secundariamente uma
conotação sexual.
Esta versão da libido como uma força vital ampla
e geral, cuja expressão como sexualidade
representaria um estágio particular, contrariava o
rígido enfoque freudiano de que a sexualidade fosse a
força básica e primitiva. Freud apresentou,
posteriormente, sua resposta no livro "Totem e Tabu",
com a versão de que toda a civilização baseia-se na
proibição do incesto, originada da culpa relativa ao
assassinato do Grande Pai da horda primeva, a tribo
original da qual todos nós descenderíamos. A ideia da
horda primeva é de Darwin, do qual Freud era um
grande admirador. Os estudos modernos sobre
comportamento dos animais, especialmente sobre
nossos parentes próximos, os primatas, não apoiam
essa teoria. Instintivamente, os animais superiores, em
estado selvagem e em condições ecológicas normais,
tendem a cruzar fora do seu grupo familiar original. A
seleção natural teria favorecido comportamentos que
criassem maior diversidade genética, um fato que não
era conhecido na época de Freud.
58 1. Esse livro foi revisto várias vezes por Jung, tendo a última edição recebida o título de
"Símbolos da Transformação" (Obras Completas vol. 5).
Falta uma boa explicação de como este sentimento
de culpa se transmitiria ao longo de um período que a
moderna antropologia considera que poderia ter
chegado a trezentos mil anos. Também não fica definida
qual é a situação das mulheres no caso, uma vez que
esta teoria do crime primitivo faz referência apenas à
culpa de homens, que teriam matado o Grande Pai
porque o mesmo monopolizava as mulheres.
Uma teoria, portanto, com fundamentos precários.
O que não impede que "Totem e Tabu" seja o livro de
cabeceira para muitos freudianos lacanianos, adeptos
de uma flexibilização interpretativa que libera do
compromisso com a realidade literal. De fato,
argumentam, a hipótese do crime primitivo se adapta
tão bem à teoria geral freudiana, que não importa que a
mesma não seja verdadeira, mas, sim, que a construção
desse mito atenda à necessidade da psique humana.
Mas o que é isto, senão literatura!
O que importa seria a eficácia do saber construído,
não sendo relevante que seja verdade ou não.
Poderíamos, contudo, dizer a mesma coisa da história
de Pinóquio ou da Branca de Neve, porque aí estamos
muito mais próximos da criação literária do que qualquer
coisa que possa ser chamada ciência. A hipótese do
crime primitivo, cuja culpa carregaríamos até hoje, pode
ser considerada, então, como apenas uma postura
solitária e bizarra de Freud.
59
Durante muito tempo, Freud acreditou no hipnotismo
como terapia para, depois, abandoná-lo. Em 1884
começou a advogar o uso da cocaína para melhorar o
estado de espírito das pessoas, tendo inclusive o
recomendado à sua futura esposa Martha Bernays e a
alguns amigos. Só se deu conta do seu erro mais tarde,
quando seu amigo FischerMaxlow, a quem tinha receitado
cocaína, começou a apresentar alucinações, vendo
pequenas cobras subindo por sua pele.
O abandono da Teoria da Sedução por Freud também
foi feito com muita hesitação, numa ação cheia de dúvidas.
Com tantas idas e vindas, não teria sido possível somar as
posições de Jung às suas? Por razões não muito claras ele
resolve, no momento do conflito com Jung, definir uma
ortodoxia severa em torno da origem sexual das neuroses.
Logo ele, que tinha sido tão revolucionário e tão aberto a
ideias novas.
A sua fantástica flexibilidade, que lhe tinha permitido
ir tão longe, deu lugar a uma ferrenha obstinação. Jung
alertou-o de que sua obsessão era neurótica e causaria
problemas futuros para a psicanálise, que poderia ficar
rígida e limitada, previsão que muitos consideram
confirmada.
Freud não viu nenhum futuro na religiosidade, que
atravessava um período de descrédito muito grande. Ele
optou por um sistema rígido, materialista e reducionista.
E, no médio prazo, a escolha deu certa, pois atendeu ao
espírito da época. Estranhamente, contudo, uma parcela
significativa dos textos de Freud trata de temas ligados à
religião.
60
De fato Freud pertence ao brilhante grupo de
cientistas e intelectuais judeus que surgiu na Europa do
século XIX e início do século XX, período no qual as
restrições aos judeus foram sendo retiradas na maioria
dos países da Europa, até o surgimento do nazismo,
quando a situação voltou a se deteriorar, atingindo o
horror inimaginável.
Durante o século XIX, abriram-se as portas da
integração para esses jovens intelectuais ávidos de
reconhecimento e ascensão social, mas o preço a pagar
seria alto: o abandono das tradições judaicas e, em
particular, do judaísmo como religião. Muitos deles vão
optar, portanto, por um humanismo secular, pelo
ateísmo ou, no máximo, por um vago deísmo. O sistema
freudiano ficará, assim, marcado por esta falta de
espiritualidade.
No lugar de Deus, ausente, a força obscura do
inconsciente, também invisível e também portador de
ordens autoritárias, com o qual o ser humano pode no
máximo alcançar um armistício duvidoso. Um destino
triste e solitário, que se reflete na impressão de
melancolia na obra de Freud.
Jung, em contraste, propõe um mundo mágico,
exuberante e irracional. Ele não está se afastando, mas
sim procurando, as suas imaginárias raízes religiosas,
estranhas e perigosas, perdidas nas brumas do tempo
Acordar os deuses adormecidos pode ser um
grande problema, talvez o que Freud temesse...
61
Para alguns estudiosos, portanto, Jung não
deveria ser considerado um discípulo de Freud, pois
sua abordagem, desde o início, já traria uma direção
frontalmente diferente.
Freud encarna o espírito modernista, tomado por
um individualismo radical, secularismo absoluto e uma
tendência à criação de ideologias puras e totalizantes.
Jung, em contraste, revela algumas características
surpreendentemente pós-modernas, como sua atuação
multidisciplinar, sua aceitação da indeterminação, suas
concepções de entidades coletivas.
Isto torna as análises sobre ele prejudicadas
quando se originam de um certo olhar modernista. Por
exemplo, a crítica de que o pensamento de Jung é
uma mistura indevida de ciência e religião, sem levar
em conta que, a rigor, ele estava criando uma conexão
entre ciência e religião. O horror modernista ao
hibridismo fica aí evidente. A crítica que pode ser feita
é que ele não assumiu o real sentido do que estava
propondo. Fazer isto, contudo, traria uma perda de
credibilidade para a época em que trabalhou e limitaria
sua atuação como psiquiatra. A questão seria
resolvida com a definição atual ampla do que é a
ciência, que inclui não apenas os conhecimentos
adquiridos pela aplicação rigorosa do método
científico, mas também certos tipos de conhecimento
recebidos através da tradição ou pela intuição, ou pela
experimentação não racional.
62
CAPÍTULO 11

RESIGNIFICAÇÃO

O grande triunfo de Jung foi perceber na loucura, na arte,


na religião, no misticismo e nos sonhos, um fio condutor
comum: a presença de material mitológico. De diferentes
maneiras essas situações remetem ao inconsciente
coletivo, em que toda a humanidade se conecta.
Poderíamos ver, simplificadamente, a psicologia analítica
de Jung como uma fusão da psicanálise com os estudos
de mitologia, como também poderíamos ver o movimento
lacaniano como uma fusão da psicanálise com a
linguística, mais uma cobertura de filosofia e uma pitada
de dadaísmo. Roland Cahen, em uma célebre boutade,
coisa tão cara aos franceses, declarou que os junguianos
com seus arquétipos e os lacanianos com seus
significantes, haviam criado primos irmãos da confusão.
Claro que como amigo de Lacan ele podia se permitir tal
brincadeira, tendo ele até mesmo intermediado um
encontro entre Lacan e Jung, o qual contudo não resultou
em nada.

63
Além da resignificação da loucura, a resignificação
mais importante é a do sentido da morte, de fim ou de
destruição, para transformação. É aí que a postura
espiritualista marca sua maior diferença. Jung
acreditava em outra vida, embora não a definisse
exatamente. Ele constatava que os sonhos e as
experiências de quase morte apontavam para estar
embutido no nosso inconsciente o conhecimento de um
pós vida. Fiel ao seu método de não ir além da
realidade psíquica, não quis especular sobre o que isto
poderia ser realmente. Segundo Jung, ninguém da
meia-idade para frente, apresenta boa saúde psíquica
se não resolveu seu dilema religioso. Por isso, muitas
vezes, atendendo a pacientes católicos ou protestantes,
ele os mandava procurar um padre ou pastor.
Definitivamente não se vê sinais de que ele estivesse
fundando um culto oficial separado das religiões
existentes. O seu trabalho parece ter sido no sentido de
orientar a resignificação da religião da qual a pessoa já
estivesse participando, ou pelo menos tivesse ali as
suas raízes culturais.
Durante muito tempo Jung foi principalmente um
pensador para pensadores, de influência claramente
discernível em determinados meios intelectuais.
Paradoxalmente, foi sua adoção pelo público amplo, dito
da Nova Era, que popularizou sua figura nas quatro
últimas décadas, embora isto levasse a uma visão
simplificada de sua obra.
64
Freud, ao analisar que a vida é uma longa
caminhada para a morte, deduziu o conceito de pulsão
de morte, em oposição à pulsão de vida. Para Jung,
simplesmente não há pulsão de morte. A própria libido
aponta na direção do sentido de transformação e ao
longo da vida, a etapa final que podemos vislumbrar
como a morte seria como uma etapa de um processo
maior, ou seja, a morte passa a significar renascimento.
Jung concebe, portanto, a vida como uma caminhada
na qual o ser humano se eleva cada vez mais em
direção ao seu destino final.
A partir da meia-idade é que o processo de
individuação vai tomando forma. Já no sistema
freudiano, não há muito que dizer sobre a velhice, que
se apresenta apenas como uma etapa de decadência.
Costumava-se dizer, em tom de brincadeira, que Freud
seria para pessoas até trinta e cinco anos e que Jung
seria para maiores dessa idade.
Atualmente, a fórmula freudiana dá sinais de
cansaço e a reanimação que está sendo tentada à
custa de altas doses de Lacan tem os seus limites.
Principalmente porque, em seus escritos, Lacan luta
com ideias e teorias, pouco com casos clínicos. Suas
percepções, por mais instigantes que sejam em um
nível intelectual mais elevado, podem não
corresponder a expectativa da pratica clinica.

65
Cada vez mais abstrato e teórico, voltado para um público
intelectualizado, o freudismo lacaniano, com sua linguagem
hermética e tautológica se aproxima perigosamente da
literatura e da filosofia, tornando-se uma metafísica da
palavra, segundo o filósofo Jacques Derrida. Com forte viés
estruturalista, fascinou intelectuais e literatos, ao desenfatizar
a sexualidade e por permitir longos e sofisticados textos com
divagações sobre temas linguísticos, filosóficos, literários e
científicos. Não se conseguiu, é preciso notar, encantar do
mesmo modo os pacientes/analisandos mas não se pode ter
tudo. Freud foi acusado de exagerar a sexualidade, Jung de
desvios espiritualistas e para Lacan sobra a critica de hiper
intelectualizar a psicanalise, carregando-a com temas
abstratos da linguística e da filosofia. Contra a sexualidade
crua, precoce e indomável proposta por Freud, e contra os
fantasmas/espíritos/arquétipos de Jung, Lacan propõe que
somos atormentados pelos “significantes mestres”, palavras
com poder, que surgem na cultura humana e que nos
colocam, pobres seres imersos e perdidos na linguagem, a
mercê das mesmas, com seu significado deslizante. Mas
Lacan, segundo Malcom Bowie, tinha a fraqueza fatal
daqueles que tem uma paixão pela criação elaborada de
sistemas, nas chamadas ciências sociais. Sistemas que
fascinam, a principio, pela engenhosidade mas tendem a
sucumbir diante da complexidade do fenômeno humano, que
não se deixa reduzir a esquemas.

66
Estes sistemas tendem a ter um alto grau de elaboração
interna, mas baixa interação significativa com o ambiente
externo, tornando-se auto suficientes e isolados, como o
mundo dos jogadores de xadrez, fascinante e complexo, mas
exclusivo para os aficionados. O pensamento lacaniano tem
dificuldades em conviver em condições de igualdade com
outras formas de visão de mundo, com o agravante de se
considerar o ponto central do conjunto de formas de pensar o
humano, posição que a maioria dos pensadores atuais se
recusa a aceitar. Mas há, por exemplo, o filosofo esloveno
Slavoj ŽiŽek que declara : “o núcleo central da minha obra é a
tarefa de usar Lacan como ferramenta intelectual previlegiada
para reatualizar o Idealismo Alemão”. Pode-se perceber
porque você com seus pequenos problemas, ninguém gosta
de você, sua vida não dá certo, vai de repente receber o
famoso “corte seco lacaniano” (sua conversa está ficando
chata! A sessão acabou aqui!) do seu analista idem. Como
vamos com nossas chatices e misérias competir em interesse
com a Reatualização do Idealismo Alemão?

67
Personalista, exclusivista e reducionista, o movimento
lacaniano tem pelo menos, garantida sua influencia na critica
literária e na filosofia. Mesmo Lacan sendo considerado um
grande pensador critico da psicanalise, o movimento
lacaniano, que se seguiu, não manteve nem de longe o brilho
do mestre, perdendo-se em uma linguagem opaca e cifrada,
pernóstica e claustrofóbica.
Deve-se, contudo, reconhecer a Lacan ter sido mais claro
e coerente do que seus adversários admitem, ou de que seus
seguidores consigam exercitar. Sua postura de provocador
dentro da psicanalise incomodou a ortodoxia reinante, e
sempre há algo de bom a dizer sobre quem se opõe ao status
quo. Sua oposição à chamada “psicologia do ego”, a variante
da psicanalise que domina o cenário americano, tem uma
lucidez extraordinária, ao apontar que na maioria das
neuroses o ego já está exageradamente ativado, sendo então
inútil e contraproducente fortalece-lo.
Este descentramento do ego tem ressonâncias com o
pensamento de Jung, que postulou o ego como um
componente a ser integrado com a produção inconsciente,
através de um novo centro da psique, o Self.

68
69
CAPITULO 12

O CAMINHO

Um terapeuta experiente relatou que o que encontrou na sua


prática, em realidade, foram pacientes freudianos, kleinianos,
junguianos, lacanianos ou adlerianos. Talvez cada grande mestre
tenha apenas percebido um lado da questão. Poderíamos dizer,
em uma visão extremamente pragmática, que cada forma
alternativa notabilizou-se por ser aplicável com sucesso em um
quadro restrito de sintomas e anseios. Neste sentido é que
destacamos a importância do pensamento junguiano para as
situações em que há um forte componente de espiritualidade
presente. Atuando como psicologia da experiência religiosa, a
psicologia analítica tem uma grande capacidade para mediar a
integração do indivíduo ao seu ambiente espiritual natural. Em
muitos casos, contudo, este ambiente não será o das religiões
organizadas, mas algo como o fenômeno pós-moderno típico da
religião individual, o uso fragmentado de crenças e praticas
diversificadas ou a procura de uma transcendência humanista.

70
No seu livro "O homem à Descoberta da sua Alma",
Jung já havia advertido sobre a grande perda da
modernidade. Durante dezenas de milhares de anos, a
humanidade viveu acreditando estar rodeada de espíritos,
que davam proteção e identidade, numa relação mágica com
a natureza e agora acha que pode dispensar tudo isto. O
homem moderno, de certo modo, perdeu sua alma e, em vez
de entrar em pânico, sequer se dá conta disso, dopado e
robotizado, imerso na sociedade de consumo. Muito
diferente dos antigos aborígines australianos que vigiavam
constantemente sua sombra, pois acreditavam que seu
sumiço representaria o da sua alma. Jung lidou durante
muito tempo com psicóticos de todas as classes e sempre
defendeu a sua experiência contrastando-a com a de Freud,
que jamais tratou de doentes mentais internados e cujos
pacientes eram, na maioria, neuróticos das classe média e
alta.

71
Do hospital psiquiátrico de Burghölzli, onde Jung
trabalhou, não se podia avistar o lago de Zurique, embora
ele estivesse tão próximo. O asilo havia sido construído
propositadamente assim, pois acreditava-se, na época,
que a visão de grandes volumes de água desencadeava
os ataques dos psicóticos. É na beira desse lago, perto de
Zurique, em Bolligen, que Jung resolve construir a sua
casa de campo, estranha residência, com uma arquitetura
ditada pelos seus sonhos e cujas paredes internas encheu
de pinturas místicas.
Era nesta casa que Jung se isolava, preparando sua
própria comida, na cozinha circular da torre. Não é difícil
imaginá-lo a preparar seus pratos complicados enquanto a
luz crepuscular, passando pelas pequenas janelas,
projetava nas paredes a sombra de um velho alquimista.
Raras pessoas eram convidadas a ir lá; a maioria dos seus
conhecidos e amigos era apenas recebida na sua
residência oficial de Kussnacht. Em Bolligen, Jung dizia,
"aqui eu posso ser eu mesmo".
Às vezes, no outono, as brumas apareciam
trazendo as vozes dos antepassados e, então, por
instantes mágicos, o futuro, o presente e o passado
misturavam-se e o murmúrio das pequenas ondas do
lago falava da eternidade. Os deuses egípcios traziam
seus presentes e Wotan passava ao largo, conduzindo
seus guerreiros de faces pálidas.

72
Ali em Bolligen atuava a personalidade número dois de
Jung, o Grande Mago do Inconsciente. Quando retornava a
Kussnacht, contudo, ele readquiria sua personalidade
número um, o respeitado e famoso psiquiatra suíço,
atendendo ao grande número de pacientes que vinham do
mundo inteiro. Jung não foi um asceta, de modo algum.
Certa vez, em um dia particularmente bonito, largou seu
consultório e foi velejar, abandonando seus pacientes que
haviam sido previamente marcados. Talvez a grande lição
da sua vida tenha sido o modo de evitar o desequilíbrio,
distribuindo sua energia psíquica de modo a atender às
várias demandas do psiquismo. Estaria aí um dos segredos
do processo de individuação que, segundo Jung, deveria
levar a uma maior integração com o mundo, em todos os
sentidos. A individuação não leva ninguém a se tornar um
santo, mas, sim, a integrar os aspectos positivos e negativos
de sua personalidade. Assinalemos que isto é bem diferente
do processo introspectivo da iluminação budista, no qual se
procura um distanciamento das sensações do mundo, um
certo grau de indiferença ou desapego ao mesmo. Jung nos
faz lembrar o poeta persa Omar Khayyam, no século XIII,
que combinava um misticismo difuso com "vinho, mulheres e
música".

73
Nota-se uma certa percepção dos arquétipos em
alguns poemas de Omar Khayyam, como no seguinte:

“Sinais do Destino, do Bem e do Mal,


foram gravados em nossa mente
pelas mãos do Invisível;
De nada adianta se lamentar,
pois eles permanecerão, eternamente“.

O maior legado de Jung é a constatação de que a


psique humana evolui sem cessar, mesmo na velhice. Uma
evolução consciente que quer nos levar além das
limitações atuais. Não somos movidos apenas por nossos
conflitos internos não resolvidos do passado, mas também
atraídos por um destino no futuro. É como se a nossa vida
estivesse sendo configurada por um mito pessoal, uma
lenda que desse sentido a tantos fragmentos. É este mito
que devemos procurar descobrir, para não ficarmos
desorientados com a aparente falta de nexo entre tantos
fatos estranhos que nos acontecem e a maneira
aparentemente desordenada como se apresentam.
Conhecer nossa lenda pessoal e identificá-la, lenta e
pacientemente, é uma das tarefas mais importantes para o
psiquismo. Essa busca nos provoca profundas solicitações
emocionais, cuja origem não está ligada a traumas infantis.
É evidente que estas solicitações podem ser profundamente
perturbadoras e nesse caso precisam de acompanhamento.
74
O mito pessoal não implica em que os fatos
estejam predeterminados mas, sim, que um conjunto
de tendências se apresenta como dominante e que
algumas configurações são preferenciais em relação a
outras. Portanto, isso não deve ser confundido com
uma postura fatalista, pois as pessoas podem optar
por atuar contra sua lenda pessoal, embora isso
possa levar a uma sensação de perda, de vazio ou de
inutilidade.
Na realidade esta descoberta da lenda pessoal se
confunde, em parte, com a tradicional busca do
sentido da vida, que sempre assusta as pessoas como
sendo um caminho complicado e difícil.
Por que não simplesmente fugir de tudo isso e
anestesiar-se com as várias terapias de felicidade
existentes hoje em dia, congelando essas
transformações ameaçadoras? A resposta seria a
mesma dada àqueles que querem permanecer como
uma eterna criança: isto simplesmente não é possível,
a longo prazo.
Métodos escapistas apenas adiariam a crise. Aqui
fica bastante clara a diferença entre procurar a
felicidade e entender o seu destino, o seu chamado
pessoal. Não é possível evitar as sombras, nem deixar
de ver a luz que as provoca. A alma nos indica o
caminho a seguir. Podemos ficar parados, mas o
caminho à nossa frente estará sempre nos
aguardando.

75
G. Borten, Belo Horizonte, Maio de 2001

Você também pode gostar