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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA

FICÇÃO BRASILEIRA – CRISTINA PRATES

GOTLIB, Nádia Battella. Macabéa e as mil pontas de uma estrela. In: Mota, Lourenço Dantas; Abdala Jr., Benjamin
Personae: grandes personagens da literatura brasileira. São Paulo: SENAC São Paulo, 2001. p.285

Macabéa e as mil pontas de uma estrela


Nádia Battella
Battella Gotlib
A primeira história

Macabéa nasce no serão de Alagoas. Passa fome quando criança. Perde os pais bem cedo e é
criada por uma tia, que a trata mal e com quem vai para o Rio de Janeiro. Mas a tia morre. E
Macabéa, sozinha, passa a morar num quarto de pensão, no subúrbio, com mais quatro moças
balconistas das Lojas Americanas. Trabalha como datilógrafa num escritório, mas, por ser
incompetente, encontra-se prestes a ser despedida pelo seu chefe, seu Raimundo. Vive a rotina de
uma vida miserável, sem se dar conta dessa miséria, achando, naturalmente, que a vida era assim
mesmo. E tem alguns poucos prazeres: recortar retratos de artistas de cinema e anúncios de jornais
velhos, ouvir músicas sentimentais e ensinamentos, aliás, inúteis, transmitidos pela Rádio Relógio.
Certo dia Macabéa conhece um paraibano, chamado Olímpico, que se torna seu namorado.
Metido a valente, era também ladrão, ambicioso e tinha o firme objetivo de vencer na vida e ser
deputado. Mas Glória, colega de trabalho de Macabéa, moça bem alimentada, sensual e esperta,
rouba-lhe o namorado. Tentando amenizar a culpa, convida-a para um lanche em sua casa, onde
Macabéa come demais e passa mal. Por causa dessa indisposição e também porque sente uma dor
por todo o corpo, ao receber o salário a nordestina procura um médico, aliás, frustrado, por ser
médico de pobre e não ganhar dinheiro. O médico constata-lhe a magreza de subnutrida e um início
de pneumonia, receitando-lhe o que ela nunca poderia comprar: boa alimentação. É também Glória
que, com boas intenções no sentido de que Macabéa tenha vida melhor, indica-lhe uma cartomante,
Madame Carlota, graças à qual conseguira arranjar o namorado, Olímpico.
A cartomante, ex-prostituta e cafetina, lê a sorte de Macabéa e, comerciante sagaz, vende-
lhe a ilusão de um futuro feliz, anunciando-lhe casamento com um estrangeiro bonito e rico.
Macabéa sai de lá cheia de esperança. Mas justamente ao sair dali, é atropelada por um carro
estrangeiro, um Mercedes-Benz. Estendida no chão, como se fosse perfurada por uma estrela de mil
pontas que explode suas entranhas, ela tenta vomitar, vomitando um pouco de sangue. É também
seu momento de brilho e glória, pois pela primeira vez é notada pelas pessoas que dela se
aproximam, quando atinge a plenitude daquilo que sempre quis ser, uma estrela de cinema. Neste

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momento, Macabéa morre. E consegue ser Macabéa, ou seja, ela mesma, na sua grandeza de brilho,
olhada então por todos que a rodeiam, e na sua miséria de ser sempre nada e ninguém, jogada perto
da sarjeta e do capim que nasce entre as pedras de um beco.
Esta poderia ser uma história de Macabéa, a partir da seleção de alguns poucos dados
biográficos seus, que aparecem no romance. A hora da estrela, escrito pro Clarice Lispector e
publicado em 1977. Só que tais fatos, embora façam parte da história de Macabéa, são insuficientes
para traduzir sua história. Macabéa não é apenas resultado da soma da sequência de fatos. O que faz
do romance não é bem o que acontece, mas o que circunda este acontecer, tal como na linha do
romance moderno de Virgínia Woolf conforme o entendeu o crítico Erich Auerbach.¹ Ou seja, não
são apenas os fatos que fazem a personagem. Há toda uma matéria narrativa que a envolve para
tentar desvendá-la e atingi-la no seu âmago. Afinal, quem é Macabéa? Esta é a pergunta que nós,
leitores do romance, fazemos. E é a pergunta que a todo momento o narrador da história, Rodrigo
M.S., se faz, e que o leva a escrever esta história.

A segunda história
Macabéa é então um produto do seu narrador. Aliás, toda personagem é, de fato, o produto
de um narrador que lhe conta a história, seja este narrador quem for. Mas neste romance há uma
situação especial: Macabéa nasce mesmo do narrador que faz parte da história enquanto
personagem. Ele é o autor do romance em que nos conta como ele “cria” Macabéa. Ele é o criador e
Macabéa é sua criatura. Macabéa existe como projeção dele, como parte dele e existe em função
dele. Ou seja: Macabéa existe na sua relação com o narrador, o personagem Rodrigo M.S. É ele
quem nos conta a história de como ele, escritor, inventa Macabéa, explicando, a todo momento,
como este trabalho, difícil, de lidar com as palavras e escrever um romance, acontece.

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¹ Erich Auerbach, “A meia marrom”, em Mimesis, trad. George Bernard Sperber ( São Paulo: Perspectiva, 1971 ).

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Além da história de Macabéa, a personagem, há pois uma outra história paralela: a história
de como o romance se faz.² Parece, aliás, que Macabéa acha-se entranhada no narrador e aos poucos
vai dele se desgarrando. Há, na verdade, um “parto ficcional” não apenas no sentido de que se trata
de ficção – um autor gera um livro - , mas no sentido de que é esta a história de que se compõe, “ na
verdade”, o romance. Ele nos conta como inventa a personagem de seu romance, Macabéa, que
nasce, cresce, trabalha, namora, sonha e morre.

O nascimento
Macabéa nasce logo no início do romance. Aliás, é quando o narrador narra como todo
início acontece, com a passagem do caos à forma. É o começo do mundo e da vida – do mundo
ficcional do romance e, com ele, da vida de Macabéa: “Tudo no começo começou com um sim.
Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida”.³
Nesse mesmo momento, em que as moléculas se juntam num “estrondo de átomos”, dá-se o
início das perguntas, inclusive a respeito deste próprio início, inatingível: “Como começar pelo
início, se as coisas acontecem antes de acontecer?”. E dá-se o início das frustrações de se conseguir,
pela palavra, contar a verdade das coisas: “A verdade é sempre um contato interior e inexplicável.”
Mas o narrador insiste: “Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas, continuarei a
escrever.” Macabéa é a execução de tal questionamento. É a personificação das perguntas possíveis.
Nesse início aparece também pela primeira vez a menção àquela que está nascendo aí como
personagem, e que, por enquanto, integra uma espécie de gente, as nordestinas, que acreditam na
palavra “felicidade”: “Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí
aos montes.” 4 Segundo depoimento do autor-narrador, sua personagem é uma nordestina que ele
viu “numa rua do Rio de Janeiro”, quando pegou “no ar de relance o sentimento de perdição no
rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também não sei
das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que5 sabe.” Assim nasce a
nordestina que, que ainda não tem nome, pela pena de Rodrigo.

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² Notar que o filme A hora da estrela, dirigido por Suzana Amaral e baseado no romance de Clarice Lispector, detém-se numa só
história – a história de Macabéa – desmanchando, pois, esse entrecruzamento de histórias que é característica básica da construção do
romance.

³ Clarice Lispector, A hora da estrela (4ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978). P.15
4 Ibid.,p.16

5 Ibid.,p.16

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Ora, essas duas linhas narrativas – ou duas histórias – que aqui nascem juntas, também
caminham juntas, ao longo de todo o romance. De um lado, a história de Macabéa, personagem
caracterizada pela “falta”, pela miséria, e com certa dose de ingenuidade, ao acreditar que tal
“felicidade” possa existir. De outro lado, paralelamente, a história de Rodrigo escrevendo seu
romance, inventando Macabéa, e sobre ela se manifestando, por comentários, críticas,
autoexigências, ansiedades, titubeios, medos, frustrações, num depoimento “ao vivo”, enquanto
escreve, desta sua experiência profissional de escritor. De um lado, a falta de consciência de
Macabeá, sua personagem. Do outro, a história de consciência que dela tem o escritor, seu criador.
Esse jogo de modos de ver e construir essa história é importante como marca da narrativa: o assunto
do romance é a própria execução do romance. Trata-se, por essa razão, de um metarromance.
Macabéa nasce assim, misturada ao seu narrador, com um ou outro dado despontando em
meio às considerações que ele vai fazendo sobre a sua escrita, tendo diante de si poucos dados com
que construir sua personagem e muitos a comentar sobre este seu difícil trabalho. De qualquer
forma, Macabéa nasce da dor, a dor que a miséria, ou, de modo geral, o lado feio da vida provoca, e
que é tão difícil enfrentar, a que o narrador propõe dar vida para, expelindo-o de si, poder então aí
se enxergar e se reconhecer. Também Macabéa, ao final da história, vomita sua própria dor, ou
verdade interior, sob a forma de estrela que a tortura nas entranhas, em mil pontas dilacerantes.
Nesse início, Macabéa é obra em via de ser executada, “na iminência de”, enquanto narrador
esquenta o motor para fazer deslanchar sua personagem. Daí a aproximação que se faz aos poucos,
pelo narrador e por nós, leitores, que o acompanhamos nesse processo, em etapas sucessivas, numa
“visão gradual”, e num contato difícil, perigoso, sofrido, decisivo, irremediável. Mas por que tanta
dificuldade e tanto sofrimento? Por ser Macabéa quem é.

A infância
Filha do sertão, nasce menina raquítica. Fica órfã logo aos dois anos, quando os pais morrem
de “febres ruins”, no interior de Alagoas. Vem para Maceió com a tia, sua única parenta, tia
solteirona, que lhe batia muito e lhe dava também como castigo não comer goiaba com queijo, “a
única paixão na sua vida.”
Infância “sem bola nem boneca”, não podia nem mesmo brincar com bicho – seria mais uma
boca para comer –, e brinca então com pulgas. Trabalhava com a tia, varria o chão. Ouvia cantiga
de roda. E não se sabe bem por quê, vêm as duas para o Rio de Janeiro

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Vivia, pois, sem saber, sem perguntar e sem reclamar. Vivia apenas como um dia haveria de
morrer, e torturada, ainda que sem saber. É esse modo naturalmente instintivo de aderir à vida que
dá consistência à personagem. E que alimenta a inquietação do narrador, ávido e temeroso, neste
seu percurso de retratar Macabéa.

O chefe: seu Raimundo


A tia, que lhe arrumara emprego, morre. E ela, sozinha, vai morar numa pensão no subúrbio,
na rua do Acre, num quarto com mais quatro moças balconistas das Lojas Americanas, as quatro
Marias: Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria José e Maria apenas. Mora aí, perto das
prostitutas, dos depósitos de carvão e de cimento e do cais do porto. Falava muito pouco. Estava
resfriada há um ano. E tossia. À noite, tinha fome, pensava em coxa de vaca e mastigava e engolia
papel. Se tomava um gole frio de café antes de dormir, acordava com azia. Quando comia ovo,
passava mal do fígado, porque a tia lhe ensinara que assim era e ela obedecia. Para ela não havia
Deus, nem o outro. De vez em quando ia para a zona sul ver lojas.
É pois não só uma moça que vive no rio de Janeiro, mas que vive numa “cidade feita contra
ela”. A moça, que por enquanto é “uma nordestina”, ainda sem nome, vai assim se formando a
partir do que ela é: a que não tem.
Diferentemente das moças que vendem o corpo, por exemplo, corpo que lhes é a “única
posse real”, a personagem nem isso tem: “mal tem corpo para vender”. Vive sob a rejeição: [...]
ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém”. E é anônima, como milhares de
outras moças, “espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até
a estafa”, como objetos substituíveis que “tanto existiriam como não existiriam”. Não se dava conta
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de que “ vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável”. E imediatamente o
narrador faz associação consigo mesmo: “Aliás – descubro eu agora – também eu não faço a menor
falta, e até o que escrevo um outro escreveria”. Ao se reconhecer em Macabéa, reconhece-se
também como um número, perfeitamente substituível.
Mas enquanto o narrador é escritor e romancista que manipula os recursos de
linguagem de modo a mobilizar o seu leitor, Macabéa é datilógrafa que simplesmente copia, e mal,
letra por letra, os textos que lhe dão para datilografar, ensinada pela tia, já que havia estudado
apenas até o terceiro ano primário. Copiava, por exemplo, “a letra linda e redonda do amado chefe a
7 ‘desiguinar’.”
palavra ‘designar’ de modo como em língua falada diria:
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6 Ibid., p. 36

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7 Ibid, p.20

Daí o cuidado do narrador em tocar essa pobreza, correndo o risco, irremediável, de


transformá-la numa outra coisa, já que ele, como escritor tem erudição, embora afirme não ser um
intelectual porque escreve com o corpo. Teme “desfigurar” a pobreza da moça, que é ignorante,
enriquecendo-a com seus próprios bens intelectuais e artísticos de escritor. Nesse caso, a palavra
enfeitada não condiz com a coisa que ela representa: “ [...] não vou enfeitar a palavra pois se eu
tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro – e a jovem (ela tem dezenove anos) e a jovem
não poderia mordê-lo, morrendo de fome. Tenho então de falar simples para captar a sua delicada e
vaga existência”. 8 O escritor tenta assim alcançar Macabéa – ou seja, esse falar simples e
despojado de cânones de um “outro” – para isso implodindo a sua própria tradição das
significações. Esta experiência de linguagem suicida é o trunfo revolucionário desse romance.
E o narrador propõe, a todo momento, esse projeto como não sendo apenas dele, mas de
todos nós. Eis o caráter político-militante dessa experiência da linguagem de Macabéa, que por
enquanto não tem nome, que nasce da lama e cujo destino o narrador nos delega, a nós, leitores:
“Cuidai dela porque meu poder é só mostrá-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve
por causa da esvoaçada magreza”. 9 Defrontar-se com o “outro lado” de cada um de nós e que é de
todos nós parece ser a intenção do narrador, ao se expor nesse cotejo, difícil, com esta sua face ao
mesmo tempo desprezível e sedutora.
Porque no contato com a personagem, há o contato com o insosso, o não esquematizável. E
o narrador precisa armar-se de coragem para enfrentar esse estado de risco diante do que ainda lhe é
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desconhecido, ao “abandonar sentimentos antigos já confortáveis”. Daí o poder desmitificador
da escrita, que, neste romance, lida com essa “coisa” que é a personagem sem “valor” de mercado,
fora de qualquer sistema, insólita. Afirma o narrador: “Faltava-lhe o jeito de se ajeitar”. 11 Sem o
repertório dos valores consagrados pelo meio social, ausente da consciência desse repertório, a
moça vive como quem imersa em si mesma. E age como se fosse “tola”.

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8 Ibid, p.19
9 Ibid, p.24
10 Ibid, p.25
11 Ibid, p.31

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Assim é na primeira vez em que aparece em cena dialogando com o “seu amado chefe”, seu
Raimundo Silveira. Quando este lhe manda embora, porque era datilógrafa incompetente – errava
demais e sujava o papel -, ela ainda lhe pedia desculpas. Tanto que o chefe fica surpreendido “com
a inesperada delicadeza e alguma coisa na cara quase sorridente da datilógrafa”. Ameniza então a
decisão, dizendo que a despedida poderia não ser para já, poderia demorar um pouco. É quando a
moça, atordoada, vai ao banheiro, olha ao espelho e não vê imagem nenhuma ou vê imagem
“deformada” pelo espelho “ordinário”, com nariz enorme, como se fosse de palhaço.
Essa incompetência incomoda. Antes ignorá-la, que tentar tocá-la, entendê-la, consertá-la.
Por isso Macabéa é a ferida em carne viva, que se vê a cada esquina. É como uma palavra fora do
esquadro de um determinado código, ausente de seu campo de atuação, em que nada significa,
deslocada, sem se dar conta disso e de nada. É a funcionária de um escritório, mas sem função. Este
confronto instiga o questionamento. Como é possível existir ainda ali a vida, em meio a tanta
pobreza? Por isso afirma o narrador: “[...] existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque parece.
Existir não é lógico”. 12 O romance conta a história de um autor que se defronta, pois, como
absurdo da vida de Macabéa.

Os prazeres
No domingo, “acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada”. O ócio é seu
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grande prazer: o nada fazer. E num determinado domingo teve uma alegria: viu um arco-íris. E logo
quis ver fogos de artifício, como em Maceió. Tinha luxos: pintar de vermelho as unhas das mãos e
ir ao cinema uma vez por mês. E pedia emprestado da amiga do quarto o aparelho de rádio para
ouvir, diariamente, bem baixinho, de madrugada, pela Rádio Relógio, o programa “hora certa e
cultura”. 14
Mas o mais importante era o modo como vivia, sem pensamento: “Nunca pensara em ‘eu
sou eu’”. 15

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12 Ibid, p.26
13 Ibid, p.43
14 Ibid, p.47
15 Ibid, p.45

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O narrador, que constantemente pensa, e que confessa certo puder seu – talvez também
fingindo – de falsear a realidade da moça, parece comandar o processo narrativo. No entanto, a
certa altura ele atribui tal processo criativo ao “deus-dará”. Ocasião e acaso se misturam. E o leitor
fica sem saber, ao certo, quem domina esta situação o autor da obra; ele ou ela, Macabéa, que vai
adquirindo consistência e poder.
Porque Macabéa vai ganhando força à medida que preenche o espaço da narrativa, com
grande dimensão justamente de sua leveza magra e incipiente, não pensante, quando se impõe ao
autor, ainda que involuntariamente, mediante o seu silêncio, em cuja memória não mora nem os
nomes do pai e da mãe, os quais a tia nunca mencionou, e ela esqueceu. Algumas marcas, no
entanto, permanecem. Porque comera gato frito em criança, às vezes tinha enjoo, quando comia. E
nunca fora a restaurante, só comia no botequim da esquina, de PE. Mas vivia na ingenuidade de
confiar na afirmação de que “quem espera sempre alcança”.
Essa plena aceitação de tudo, sem questionamento, leva-a a uma espécie de devaneio, com
“deslumbrantes sonhos”, ainda que sem êxtase. Não era santidade. Era apenas “uma longa
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meditação sobre o nada”. Os anúncios que recortava de jornais velhos do escritório, ela colava
num álbum. Nessa coleção de resíduos do consumo, o mais precioso era a imagem de um pote de
creme, que a leva a uma conclusão: se tivesse um, comeria, a colheradas. E o narrador explica: ”[...]
é que lhe faltava gordura e seu organismo estava seco que nem saco meio vazio de torrada
esfarelada”. 17
E quando vê um homem “tão, tão, tão bonito”, sente vontade de tê-lo em casa. 18
A série de ingredientes que o romancista vai recortando faz parte de um repertório
descartado da tradição da arte compromissada com a contemplação do que é “belo”. E a reação do
leitor é de certo desconforto e mal-estar. Não é agradável conhecer Macabéa. Não é agradável ler
esse romance. Dá repulsa. Às vezes enjoo. Pode-se, pois, afirmar que o mesmo “não” com que
compõe a personagem, o autor usa para compor esse livro que se faz contra si mesmo, que se mata a
cada página, pela carga de dados negativos que vai somando, de modo a não deixar que nenhum
valor se sustente. Sob este aspecto, o livro é mesmo uma explosão que tudo desmonta e desmitifica.
Daí, no entanto, a razão também do seu valor artístico, criando uma espécie de magnetismo de
atração do narrador e do leitor por essa personagem, a mais abjeta.
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16 Ibid, p.47
17 Ibid, p.48
18 Ibid, p.50

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Tal magnetismo não só nos fisga pelo estranhamento dessa figura, Macabéa, como pelo
estranhamento do seu narrador, que assim se descobre, estranho entre todos, através dela. Centrado
na consciência do seu papel profissional de escritor e de sua classe social mais favorecida, o
romancista conta com patrimônio intelectual. Mas sabe que a leitura do romance é supérflua para
quem tem fome: analfabeto não lê. Sabe que para a média burguesia, o romance é apenas válvula
pela vida massacrante que tal classe leva, sem perspectivas mais concretas de mudanças. E sabe que
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a classe alta o ignora ou o tem “como um monstro esquisito”. Tem um livro e não conta com
possíveis leitores. Tal como Macabéa, o narrador, através dela, ironicamente, descobre-se também
deslocado.

O namorado: Olímpico
Era um “namoro ralo”. Nem poderia ser diferente, sendo Macabéa quem é.
E começa no mês de maio, tido tradicionalmente como o mês das noivas. Teve até certa
preparação, ainda que involuntária. A moça nordestina mente ao patrão que arrancará um dente e
consegue um dia de folga, quando pode desfrutar do quarto todo para ela. Justamente no mês de
maio, quando encontra “a primeira espécie de namorado de sua vida”, pela primeira vez Macabéa
fala no romance. Conversa- se a isto se pode chamar de conversa – com o moço que encontra, no
meio da chuva.
A primeira reação do namorado, quando ele lhe pergunta seu nome e ela responde, é de
estranhamento. Ele não entende: “ – Maca – o quê?.” E comenta que esse nome “até parece doença,
doença de pele”. 20 Configura-se a esquisitice de Macabéa agora a partir do seu próprio nome.
Só num outro encontro é que ela se lembra de lhe perguntar o nome e ele responde: Olímpico de
Jesus Moreira Chaves, encobrindo o nome que era apenas Olímpico de Jesus, levando o “de Jesus”
típico dos que não têm pai.

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19 Ibid, P.24
20 Ibid, P.53

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A realidade dos dois é parecida: ambos nordestinos, deslocados na cidade grande. Eram,
como afirma o narrador dessa história, “bichos da mesma espécie que se farejam”. 21 Mas há uma
grande diferença entre os dois: ele acha que sabe; ela não acha nada. Ele tem ambições: livrar-se
dessa vida pela ascensão social, ainda que através de recursos ilícitos, como o roubo, o assassinato,
o casamento com parceira de posição social mais elevada. Por isso não admite que “ não sabe”
certas coisas, como o próprio significado de seu nome, Olímpico. Por isso afirma ser “metalúrgico”,
não simplesmente “operário”. Ela, por sua vez, acha que não precisa “vencer na vida”. 22
Durante o namoro, há coincidências desagradáveis: quando se encontram, chove sempre. E
nas conversas, há “falta de assunto”. Impossível haver troca de ideias, emoções, pensamentos, já
que o sentido não caminha, fica estático, na tautologia, isto é: uma coisa é sempre essa coisa mesma
e não uma outra. Tal tendência é natural em Macabéa – para ela as coisas são o que são e pronto.
Para ele, “a coisa ser apenas o que é” é uma opção adotada por esperteza, para assim se safar de
situações embaraçosas.
Por isso Macabéa responde ao pé da letra, sem atentar para os outros sentidos de qualquer
palavra. Ou responde com sentido aproximado: para ela, “amor” é um “não-se-o-quê”. 23 Ou
dizer qualquer coisa, como quando param em rente a uma loja de pregos, parafusos, canos e latas:
“-Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?”. 24 Às vezes, pressionada por Olímpico – que a
recrimina por não dizer nada – diz frases que ouve na Rádio Relógio, ensinamentos inúteis do tipo “
e você sabia que...”, como esta: “ E você sabia que a mosca voa tão depressa que se voasse em linha
reta ela ia passar pelo mundo todo em 28 dias?” 25

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21 Ibidem
22 Ibid, p.60
23 Ibidem
24 Ibid, p.54
25Ibid, p.68

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Quando Macabéa lhe pergunta coisa que não sabe, já o malandro Olímpico tem outras
saídas: agride Macabéa, repreendendo-a por fazer tanta pergunta; ou recrimina-a porque faz
perguntas para as quais não há resposta. É durante um passeio no Jardim Zoológico que Macabéa
lhe pergunta: “ –Na Rádio Relógio disseram um apalavra que achei meio esquisita: mimetismo”.
As palavras, aqui, são coisas, quase personagens, que fazem parte do repertório do que o romance
discute:a linguagem e o universo da representação. Olímpico não sabe responder, olha para ela
desconfiado e a repreende, usando a força de macho: “- Isso é lá coisa para moça virgem falar? E
para que serve saber demais? O mangue está cheio de raparigas que fizeram perguntas demais” .
Numa só fala, para camuflar a própria falha (ele não sabe o que “mimetismo”significa), o homem
atribui á mulher uma moralidade ( há coisas que ela não pode fazer ), a ignorância (ela não precisa
saber demais) e dirige-lhe uma ameaça ( o castigo para a mulher desobediente seria viver no
mangue, como prostituta, lugar “só pra homem ir”) 26 .
A reação de Olímpico, em relação a Macabéa, pode ser a de nós leitores, diante dela. Em
meio a um diálogo sem nexo – já que habitam diferentes universos e não conseguem se entender –
ele lhe faz pergunta crucial: “ [...]Escuta aqui: você está fingindo que é idiota ou é idiota mesmo?”
Esta talvez seja a afirmação que mais propriamente traduza o modo de ser de Macabéa e nosso, de
leitor, que diante dela temos uma reação dúbia: ela provoca em nós o riso, seguido de uma certa
culpa de haver rido. Ela é e não é idiota. E nós rimos e não rimos dela.
A resposta de Macabéa também é significativa, no contexto do livro, quando ela lhe
responde: “ – Não sei bem o que sou, me acho um pouco...de quê?...Quer dizer não sei bem quem
eu sou”. Ou seja: o que ela é, para ela, é indefinível.Ela personaliza, sob tal aspecto, a verdade que
nunca se atinge, a representação pela palavra que nunca é fiel à coisa representada, já que o
mimetismo (a representação) é sempre uma “imagem” do real, nunca a coisa em si. Essa coisa é
inexplicável. Como Macabéa é inexplicável e acaba sendo construída pela seu criador por tentativas
de aproximação do que talvez ela seja.
Tanto que, logo em seguida comprova-se a diferença entre os dois personagens, no diálogo
em que Olímpico lhe pergunta se ela sabe pelo menos que se chama Macabéa. E ela responde: “-É
verdade. Mas não sei o que está dentro do meu nome. Só sei que eu nunca fui importante [...]” a que
o Olímpico namorado responde: “- Pois fique sabendo que meu nome ainda será escrito nos jornais
e sabido por todo o mundo”.27 Ela, vivendo naturalmente a “falta” ou o “oco” de si mesma num
eterno presente. Ele, projetando um futuro promissor, pela exibição e propagação das aparências.
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26Ibid, p67 27Ibid, p.68

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Nessa altura, o narrador, que deixara os seus dois personagens dialogando, volta a assumir a
narrativa, um tanto surpreso por estar ali, apenas registrando os fatos, sem falar de si. Por isso
indaga,intercalando-se na história, entre parênteses: “Mas e eu? E eu que estou contando esta
história que nunca me aconteceu e nem a ninguém que eu conheça?”. Trata-se de ironia do autor,
que sabe que histórias como esta estão acontecendo a cada instante. E ao mesmo tempo em que
afirma que faz ficção – a história é invenção – volta-se para si mesmo justamente para mostrar que
“ele sabe”, ou seja, fica abismado consigo mesmo “por saber tanto a verdade”, sendo este o seu
ofício de escritor, o de “adivinhar na carne a verdade que ninguém quer enxergar.” 28 Mais uma
ironia desse narrador, ao afirmar a força da sua ação ficcional, quando a verdade abafada é por ele
desvelada, nesse seu universo ficcional.
Mas o tal namoro só poderia não dar em nada. A vida de Macabéa era “insossa, que nem pão
velho sem manteiga”. E ele “era um diabo premiado e vital e dele nasceriam filhos”. 29 Se ele tinha
o sêmen, ela tinha ovários murchos. Dito e feito. O namoro tem um fim.

A colega: Glória
É quando o narrador de repente descobre que Olímpico não estava satisfeito com o namoro e
se interessa pela colega de escritório de Macabéa, Glória. Enquanto Macabéa era “subproduto”,
Glória tinha “classe” e, apesar de feia, era bem-alimentada. Tinha mãe, pai, comida na hora certa. E
o pai ainda trabalhava num açougue...
Quando se desfaz o namoro, Macabéa, que esperava ficar noiva e se casar, que tinha desejo
e sensualidade, ainda sem saber que tinha, não chora. Reage como sempre: aceita, sem choro. Até
ri, sem saber bem por que razão. Não sente nem tristeza – porque “tristeza também era coisa de
rico, era para quem podia, para quem não tinha o que fazer. Tristeza era luxo”.30
E compensa a falta com algo que lhe dava prazer:já que os outros não lhe faziam festa
nenhuma, ela promove para si uma festa particular, no dia seguinte ao do final do namoro. Compra
batom novo, bem vermelho, pinta os lábios, mas quando olha no espelho, o vermelho mais parece
“grosso sangue” brotando-lhe dos lábios. E Glória, surpresa, achando que mais parecia
“endemoniada” e prostituta, “mulher de soldado”, lhe faz uma pergunta terrível: “- Ser feia dói?”31
Aliás , Macabéa toma aspirina porque ela “se dói o tempo todo”. 32
____________________________________________________
28 Ibid,p.69
29 Ibid,p.71
30 Ibid,p.74
31 Ibid,p.75
32 Ibid,p.77

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Nessa altura, Macabéa se encontra mais próxima de Glória, que era estenógrafa, ganhava
mais e não se atrapalhava com as palavras difíceis. Para Macabéa, “Glória era um estardalhaço de
existir”.33 Tem o que Macabéa sempre desejou: a gordura. E o eu tentou ter, fazendo à tia o único
pedido da sua vida: tomar óleo de fígado de bacalhau, que vira em um anúncio, o que lhe foi
negado, porque era um luxo. Glória tinha também sensualidade, com seus pêlos oxigenados,
pintinha junto da boca, buço forte que parecia bigode, traseiro alegre, ar de “ninguém manda em
mim”.
Combinava, então, com Olímpico, que para impressioná-la e conquistar posição de macho,
mastigara pimenta malagueta sem nem beber água depois. Olímpico tentaria continuar escondendo,
envergonhado, seu coração solitário para “subir” na vida e entrar nesse “mundo dos outros”. E o
narrador perdoa essa ambição desenfreada, que surge por injunção social, um tipo de massacre da
espécie indefesa. “O sertanejo é antes de tudo um paciente. Eu o perdoo.”, 34 afirma o narrador-
leitor de Os sertões, de Euclides da Cunha, que parodia a frase em que o escritor afirma que “o
sertanejo é antes de tudo, um forte”. 35, paródia que aí funciona como um libelo político de defesa
do povo tão explorado, que tem de se armar para sobreviver, e que ainda não consegue esperar pela
sua hora.
Se Macabéa não chega a ser amiga de Glória, nem esta, dela, Glória tinha no entanto
atenções para com Macabéa. Conversava com ela, no escritório. Dava-lhe aspirina, quando
precisava. Ria-se dela, sem maldade. Era “uma safadinha esperta, mas tinha força de coração”. Mas
não era amiga, era apenas colega. Afinal, afirma o narrador: “Ninguém pode entrar no coração de
ninguém”.36
Macabéa tinha em Glória uma conexão com o mundo, ainda que leve, como já tivera, no
passado, com a tia, seu Raimundo, Olímpico e as moças com que repartia o quarto. No campo dos
sonhos havia ainda presenças constantes, como o retrato de Greta Garbo, que Macabéa admirava,
embora quisesse ser mesmo Marilyn Monroe. Este mundo de leves conexões iria contar ainda com
mais dois elos: o médico e a cartomante.

________________________________________________
33 Ibid,p.74
34 Ibid,p.79
35 Euclides da Cunha, Os sertões, edição crítica por Walnice Nogueira Galvão (São Paulo: Brasiliense/Secretaria do Estado da Cultura, 1985) p.179
36 Clarice Lispector, A hora da estrela, cit., p.78

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O médico de pobre
Convidada por Glória para tomar lanche em sua casa, no subúrbio carioca, Macabéa bebe e
come demais. E passa mal. Mas não vomitou para não desperdiçar o que havia comido. Dois dias
depois, com o dinheiro do salário, procura “o médico barato” indicado por Glória. E a consulta
mostra mais uma situação de calamidade, quando a pobreza é a grande doença, pois o médico lhe
pergunta se faz regime (pois era tão magra), o que ela comia (era cachorro-quente e às vezes
sanduíche de mortadela) e o que bebia (só café e refrigerante).
O que faz um médico de pobre que detesta ser médico de pobre? Dá o mínimo de si, já que
não ganha o dinheiro que gostaria de ganhar. Finge que não percebe nada dessa miséria. E lhe
recomenda procurar um psicanalista, porque comer só cachorro-quente era pura neurose. Depois de
lhe tirar um raio X, constata começo de tuberculose pulmonar, ao que ela responde: “-Muito
obrigada, sim?” E lhe recomenda um bom prato de “espaguete bem italiano”.37 Ao final, depois de
lhe recomendar que não tomasse álcool, e ela não entender o que significa , ela explode: “- Sabe de
uma coisa? Vá para os raios que te partam!”. Se por um lado o médico assume atitude cínica,
misturada com certo sadismo e grosseria, por outro lado parece também vítima das circunstâncias,
deixando explodir sua própria impotência diante das adversidades.
O narrador se insere novamente na história para manifestar a Macabéa a sua paixão: “Sim,
estou apaixonado por Macabéa, a minha querida Maca, apaixonado pela sua feiúra e anonimato
total pois ela não é para ninguém”. 38 É nesse momento que o narrador, empolgado por sua pobre
criatura amada, praticamente resume o que é Macabéa:

Maca, porém, jamais disse frases, em primeiro lugar por ser


de parca palavra.
E acontece que não tinha consciência de si e não reclamava
nada, até pensava que era feliz.
Não se tratava de uma idiota, mas tinha a felicidade pura
dos idiotas. E também não prestava atenção em si mesma:
ela não sabia. 39

____________________________
38 Ibid,p.82
39 Ibid,p.83

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Inspirado por seu objeto artístico e continuando o processo da intertroca, o narrador age com
sua matéria narrada tal como Macabéa, que não pensa. Afirma o narrador, entre parênteses: “(Esta
história são apenas fatos não trabalhados de matéria-prima e que me atingem direto antes de eu
pensar. “sei muita coisa que não posso dizer. Mas pensar o quê?)” 40 Será que diz ele a verdade? Ou
mente, como também mente Macabéa, infantilmente, pois achava “ que boa educação é saber
mentir”? 41
É quando Glória, talvez por remorso, sugere a Macabéa procurar também uma cartomante.
Afinal, ela arrumara um namorado, Olímpico, porque a cartomante lhe anunciara que assim seria.
Macabéa lhe pergunta se é caro. Nesse exato momento, o narrador mais uma vez interrompe o
diálogo para se inserir na história.
Afirma que está “cansado de literatura”, cansado talvez da companhia de seus personagens.
E não escreve por três dias. Sozinho, sem personagens, “despersonalizo-me”, como se tirasse uma
roupa, afirma ele. E quando volta, sente falta de Macabéa. E dá sequência ao diálogo. Este intervalo
incontrolável, desfazendo-se por momentos da experiência tão intensa que é a de criar essa história,
seria mais uma estratégia narrativa do autor, manifestando medo, apreensão, ansiedade diante do
que ainda terá de contar, tentando, assim, mais uma vez, adiar o andamento da sua história. E dessa
forma habilmente cultiva uma espécie de suspense, aumentando a ansiedade do leitor.
Macabéa, com dinheiro emprestado pela colega Glória, rumou para Olaria, de táxi, achou
facilmente o apartamento térreo, e, enquanto tocava a campainha, notou “que entre as pedras do
chão crescia capim”, e que “capim é tão fácil e simples”. 42 Aliás, tão fácil e simples como a própria
Macabéa. E como Rodrigo gostaria de ser. Pelo menos é o que ele nos afirma a cada passo do
romance, o que no entanto também pode ser mais um recurso de que se vale para nos seduzir,
provocando em nós a paixão por Macabéa, paixão que ele próprio afirma sentir pela sua pobre
Maca. Esta também de amor do autor por sua criatura.

_______________________________
40 Ibid,p.84
41 Ibid,p.83
42 Ibid,p.86

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A cartomante
Com a cartomante será dada a última cartada na vida de Macabéa, no sentido de retirá-la
desse vazio, inserindo-a naquilo que se acredita ser felicidade. Mas o que Macabéa recebe é mais
um não, disfarçado de sim, através da aparência fingida da eficiência da cartomante que tenta
seduzi-la com encenações e mentiras. Macabéa, encantada, admira a sala, onde tudo era de plático:
poltronas, sofás, flores. E depois que de lá sai uma moça com olhos vermelhos de tanto choro, é
finalmente recebida por Madame Carlota, maquiada com exagero e mau gosto.
Enquanto fala, a cartomante come bombons, que não oferece a Macabéa, que, por sua vez,
não estranha, já que “aprendera que as coisas são dos outros”. 43 E enquanto a cartomante conta
vantagens, fica patente também a sua miséria, pois passa pela prostituição, pega doenças, sofre
decadência física, é vítima de violências e explorações. E ao ver as cartas, intercala comentários de
mulher experiente, como por exemplo: “cheiro de homem é bom e faz bem para a saúde”;”entre
mulheres o carinho é muito mais fino”.44
Quando Macabéa corta as cartas “com a mão trêmula”, o leitor percebe que a personagem
efetivamente colocada em cena caminha para um momento de grandiosidade: “ pela primeira vez ia
ter um destino”. 45 Cria-se um certo suspense, diante da revelação que lhe ia ser dada.
Há dramaticidade na fala da cartomante, com o objetivo de “impressionar” sua cliente,
quando lhe conta como foi e é a sua vida, aliás, tão fácil de adivinhar. E, de repente, muda o curso
da sua versão em relação à vida de Macabéa: promete-lhe a felicidade. E prevê mudança a partir do
momento em que ela sair daquela casa: terá o namorado de volta, haverá casamento, o emprego
estará garantido pelo atual chefe, haverá dinheiro trazido por homem estrangeiro, aliás, o casamento
será é com um estrangeiro “que parece se chamar Hans” e que é “alourado e tem olhos azuis ou
verdes ou castanhos ou pretos”. 46 e tem muito dinheiro, e vai lhe vestir “com veludo e cetim e até
casaco de pele.” 47
A charlatanice da cartomante fica patente. À moça que de lá saíra chorando e que seria feliz,
a cartomante anunciara infelicidade. À Macabéa, anuncia a concretização de sonhos que a moça
experimenta numa espécie de torpor. Sente-se tonta, o coração bate-lhe forte, fica “bêbada”,
“desorientada”, assume que está apaixonada pelo gringo que nem conhece: Hans. E parte de
encontro ao seu “maravilhoso destino” 48
_______________________________________________________
43 Ibid,p.88
44 Ibid,p.89
45 Ibid,p.91
46 Ibid,p.92
47 Ibid,p.93
48 Ibid,p.94

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A morte
Agradecida, Macabéa dá um beijo na cartomante, ela que só beijava a parede, quando
pequena, porque não tinha a quem beijar. E consegue ver que sua vida era uma miséria. Ao sair
dali, no final da tarde, sabe que houve mudança – e por palavras. “Assim como havia sentença de
morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida.” 49 Começou a atravessar a rua. E foi atropelada
por um carro amarelo, um Mercedes-Benz “enorme como um transatlântico”, carro que tem
justamente uma estrela como símbolo.
Essa outra queda, Macabéa também não lamenta. Nem se dá conta do que realmente lhe
estava acontecendo, quando um fio de sangue lhe escorre da cabeça, a cara voltada para a sarjeta,
onde “viu entre as pedras do esgoto o ralo capim de um verde da mais tenra esperança humana.
Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha vida: nasci”. 50
O narrador faz breves comentários que vai encaixando na narrativa, ora tendendo a
recomeçar a história, antes do atropelamento, ora constatando que “a verdade é irreconhecível” para
os homens e, portanto, não existe, ora indagando, tão aflito, se “toda história que já se escreveu no
mundo é história de aflições.”
Macabéa lutava ali, “muda”, sem gritar, perto da sarjeta e do capim entre as pedras do beco,
quando começou a garoar. E pela primeira vez as pessoas que se aproximam olham para ela.
Ela não morre logo. Pelo contrário, o narrador indaga, ainda se ela vai mesmo morrer, como
que lutando contra este destino, ainda que alguém já tenha posto ao lado do corpo uma vela acesa. E
indaga a respeito desta sua narrativa: “É assim que se escreve? Não, não é acumulando e sim
desnudando. Mas tenho medo da nudez, pois ela é a palavra final.”
Nesse final, Macabéa está próxima de ser o que ela é: Macabéa desnuda pelo narrador, reduzida ao
que na realidade é: Macabéa. Ou: Nada. Por isso afirma o narrador: “Enquanto isso, Macabéa no
chão parecia se tornar cada vez mais uma Macabéa, como se chegasse a si mesma.” 51
O narrador ainda tateia o tempo e indaga se chegou a hora: “Acho com alegria que ainda não
chegou a hora de estrela de cinema de Macabéa morrer.” Se poderia já matar Macabéa, adia, porque
quer o pior, que é a vida, a qual lega a nós, leitores, como “um soco no estômago”. É quando vê
Macabéa abraçada a si mesma, em posição fetal, repetindo eu sou, sem saber quem era: “Era uma
maldita e não sabia.” 52 Ela, ali, à espera da morte, como nós todos: porque ela “está como nós na
véspera de morrer”.
Nessa agonia última, em que a morte se confunde com o desejo e o gozo, de forte apelo
sensual, Macabéa descobre-se também mulher: “ [...] pois só agora entendia que a mulher nasce

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mulher desde primeiro vagido. O destino de uma mulher é ser mulher” 53 E pronuncia as palavras
que ninguém entendeu, apenas o narrador: “Quanto ao futuro”.54 E que parecem como um dos treze
títulos do livro, que fica vibrando no leitor, em suspenso, como uma porta aberta para o nada.
É nessa hora que Macabéa transpassada pela tortura interior, tenta expelir o seu âmago:
“Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjoo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o
que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas.” 55 E vomitou um pouco de sangue.
O narrador conta como se deu este derradeiro momento da morte por algumas imagens, sendo, cada
uma, uma tentativa de tradução dessa devoração, a morte como ato selvagem e instintivo de luta
pela sobrevivência: “E então – então o súbito grito estertorado de uma gaivota, de repente a águia
voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra, o macio gato estraçalhando um rato sujo e
qualquer, a vida come a vida.” O narrador mata sua personagem, para que sua história acabe, ele
também bicho devorando sua presa. Mas também ocorre o contrário. “Macabéa me matou”, afirma
ele.
Macabéa é uma parte do autor, com a qual ele, finalmente, se encontra, após tensionar, até as
últimas consequências, o fio de tal defrontação, ele morrendo com ela. “A morte é um encontro
consigo”, afirma ele. Só resta ao narrador “acender um cigarro e ir para casa”, quando manifesta o
que todos nós, leitores, sentimos, nessa gradual aproximação da Macabéa, que a essa altura, é
também nossa: “ –Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?!” 56
O narrador acompanha assim Macabéa nas suas incursões pela vida passando pelos vários
espaços possíveis: o campo profissional do trabalho, o campo sentimental das relações afetivas, o
campo físico da saúde, o campo religioso das crenças e seitas místicas. Mas em nenhum deles há
uma porta de saída. No entanto, a visão que se tem de Macabéa não é uma visão negativa.
Por um lado ela encarna o não ter, num mundo regido pela premência do ter, concluindo-se
que neste nosso país, pobre não tem vez. Mas ela também encarna o milagre da sobrevivência como
espécie arcaica que resiste, na sua força instintiva de bicho forte, enquanto matéria viva pulsando,
imune à violência dos agravos que a vida lhe prepara a cada instante.
__________________________________________
49 Ibid,p.95
50 Ibid,p.96
51 Ibid,p.98
52 Ibid,p.100
53 Ibid,p.101
54 Ibid,p.102
55 Ibid,p.101
56 Ibid,p.103

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A Terceira história
Macabéa é também imagem positiva de certo encanto que se tenta agarrar. Sob tal aspecto,
encarna o gosto pela palavra, que é também coisa inatingível. Daí sua paixão pela palavra
“efemérides”, ainda que sem saber o que significa. E pela coisa-livro. Ouve na rádio que há um
livro chamado Alice no país das maravilhas. E se sente atraída por um livro que o chefe deixara em
cima da mesa e que se chama...Humilhados e ofendidos. 57 Mais ironias, cruéis, do autor.
Macabéa , que nunca recebera nem carta nem telefonema, sonha em ser artista de cinema, só
ia ao cinema quando o chefe lhe pagava o salário, e em cinema poeira que era mais barato. “Adoro
as artistas. Sabe que Marilyn era toda cor-de-rosa?” Gostava de musicais. E de filmes de terror.
Com a ingenuidade de quem acredita em tudo que lhe dizem ou que vê, acredita em anjos.
Essa ingenuidade inofensiva e indefesa causa consternação enternecida, por parte do
narrador – e do leitor. Porque apesar de toda a sua pobreza, ou miséria, “não havia nela miséria
humana. É que tinha em si mesma uma certa flor fresca.” De fato, nessa redução a si mesma,
consegue ser, ainda que involuntariamente ou inadvertidamente, “matéria vivente em sua forma
primária.” E se basta a si, no pouquíssimo quase nada de que se compõe, já que tem apenas “a
pequena flama indispensável: um sopro de vida”. 58
E não seria essa a ambição, escondida, do narrador? Nesse processo todo de aproximação da
sua personagem, o que ele quer é justamente atingi-la, atingindo-se no seu mais de dentro possível,
encarando a falta. Quando pensa que poderia ter nascido ela, estremece e sente culpa. Mas ao
conseguir matar Macabéa, com ela morrendo, enquanto autor, não teria ele atingindo o âmago de si
– tanto do ponto coletivo, social, de classe? Em ambos os casos, emerge uma intimidade até então
resguardada, abafada, camuflada, diante desse seu lado o mais miserável e desprezível.
A espinha dorsal de Macabéa como “persona ficcional”reside numa constatação: “Há os que
têm. E há os que não têm. É muito simples: a moça não tinha. Não tinha o quê? É apenas isso
mesmo: não tinha.”
Esse aparente fatalismo de Macabéa apenas realça por contraponto, o permanente estado de
crise e disponibilidade de grito e revolta por parte do narrador, que sente por Macabéa o que
Macabéa não tem condição de experimentar por si mesma: o direito ao grito, mediante o
compromisso sério com a reivindicação.
O leitor tem uma missão, pois, a cumprir, que nos delega, a nós, como leitores-cúmplices
deste destino: “ ([...] se houver algum leitor para esta história quero que ele se embeba da jovem
assim como um pano de chão todo encharcado. A moça é uma verdade da qual eu não queria saber.
Não sei a quem acusar mas deve haver um réu.)” 59

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Tal como outras tantas personagens da ficção de Clarice Lispector, como Joana, Virgínia,
Lucrecia, Lori, G.H, Ângela, ou Ana e Laura, Macabéa integra-se num circuito de mulheres-
personagens desestabilizadoras da ordem e instauradas de questionamentos pela própria palavra,
num bombardeio da linguagem que inaugura uma nova postura diante do processo do sentido e da
significação. 60
Macabéa é o nome – ou a palavra – que a gente não precisa entender. Mas perceber. É o que
tais personagens femininas e algumas masculinas – como Martim, por exemplo de A maçã no
escuro – conseguem traduzir, ao longo dessa ficção. Macabéa afirma, quando não entende o que é
“Olímpico”: “[...] a gente não precisa entender o nome”. 61 Ironicamente, acaba-se desprezando
também o “olímpico”, coisa de homem que “sabe” e que quer “vencer” na vida.
Por isso Macabéa é musical. Ultrapassa a carnadura da palavra. Sob este aspecto, a
personagem é como um som que se soma aos outros. E o livro pode ser lido – ou ouvido – como se
fosse uma partitura. O narrador grita no início uma música de dor, “melancolia sincopada e
estridente”, 62 sua história tem “ritmo descompassado” e lhe falta “ melodia cantabile”, num “alegro
com brio”, “tendo como contratom o baixo grosso da dor”. 63 Quer alcançar “o trombone mais
grosso e baixo , grave e terra”, 64 ou mesmo “ a flauta doce”, 65 acompanhado pelo “rufar enfático
de um tambor batido por um soldado”, que cessará quando começar a contar a história, 66 com
acompanhamento de “violino plangente tocado por um homem magro bem na esquina”, 67 enquanto
conta a história de Macabéa, ou “toca” nela. A única coisa belíssima na vida de Macabéa é ter
ouvido Uma furtiva lacrima, cantada por Caruso. E a leitura do livro é um “mergulho na vastidão do
mundo musical que não carecia de se entender.” 68

___________________________________________
57 Ibid,p.50
58 Ibid,p.48
59 Ibidem
60 Desenvolvo essas propostas em: Clarice, uma vida que se conta (São Paulo: Ática, 1995)
61 Ibid,p.55
62 Ibid,p.15
63Ibid,p.21
64 Ibid,p.25
65 Ibid,p26
66 Ibid,p.28
67 Ibid,p30
68Ibid,p62

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Se os fatos são sonoros, entre eles há o sussurro, tal como o sopro de vida de Macabéa. E na
hora da morte, “como no canto coral se ouvem agudos sibilantes.” 69 Há o tocador de violino na
hora da sua morte, 70 quando os sinos badalam, sem som. 71 Enfim, “o substrato último da música
era a sua única vibração”.72
Se a música domina, esparramando-se entre as palavras, favorecendo a leitura como uma
percepção de sensações múltiplas, outras artes concorrem, no sentido de dar conta de quem é
Macabéa, que é transfigurada pela pintura, ora figurativa, ora mais abstrata; pelo desenho, quando
se quer alcançar uma sensação fina e que “esse finíssimo não se quebrasse em linha perpétua”; pela
fotografia, nas inúmeras fotos que o narrador tira dessa personagem; por um evento , que conta com
patrocínio de refrigerante célebre, a coca, e como se fosse um espetáculo de teatro, com um
narrador que se encontra “mais ator”, e que, com “malabarismo de entonação”, obriga “o respirar
alheio” a lhe “acompanhar o texto”. E amarrando as várias sequências de experiências de Macabéa
e do narrador, surgem, repetidamente, nos momentos mais efusivos, as “explosões”, entre
parênteses, como marcação cênica da reação da personagem.
E acorrem também diferentes vozes, de diferentes lugares, numa mistura também
descentrada, sem o poder de centro classificador e hierárquico. É como se a preocupação erudita de
usar os recursos do metarromance, que o narrador manipula com requintes de apurada sofisticação,
fosse se abrindo aos recortes extraídos do repertório oral das frases feitas, de sabedoria popular,
como por exemplo: “Um meio de não obter é não procurar, um meio de ter é o de não pedir”. 73 A
voz do documento oficial aparece, quando escreve como se fosse por motivo grave de “força
maior”, ou por “força de lei”. 74 E do imaginário nordestino vem a imagem da literatura de cordel,
explicitamente mencionada nesta espécie de folhetim melodramático, com encaixe de histórias
ouvidas na infância – a história do velho que montou nas costas do jovem e depois que atravessa o
rio, não o abandona mais – e de cantigas de roda: “Quero uma de vossas filhas de marré-marré-
deci”.
E há o discurso de declaração amorosa: “[..] que é que você me pede chorando que eu não
lhe dê cantando.”
As vozes dos meios de comunicação de massa emergem nos programas de rádio – a Rádio
Relógio com as músicas sentimentais, marcação do tempo, ensinamentos típicos da chamada
cultural de almanaque, absolutamente inúteis, do tipo: “[...] o único animal que não cruza com filho
era o cavalo” – 75 e anúncios comerciais. Os recortes de anúncios extraídos de jornais e revistas
compõem o álbum da memória dessa moça alijada do consumo, peças da cultura de sucata reciclada
e guardada por Macabéa. E o mundo hollywoodiano do cinema está presente nas paredes do seu

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quarto de pensão, onde prega retratos de Greta Garbo e Marilyn Monroe, modelos de beleza e
gostosura que alimentam a fantasia inocente de Macabéa.
O autor implícito parece se servir de todas as artes e de todas as vozes para querer preencher
a falta que a sua Macabéa lhe faz sentir. Mas todo o esforço é inútil. O arsenal das representações
lhe deixa apenas a constatação de que tudo isso nada vale a não ser como moeda que se contesta, e
que se destrói, para, mediante o uso desse repertório, destruir sua própria eficácia de representação,
num processo suicida da palavra – e da arte em geral. A palavra só vale quando dela não se precisa
mais, atingindo o sentido pleno na nudez do silêncio.

A quarta história
Se Macabéa nasce de pais cujos nomes se perdem na memória, e se tem como pai também o
narrador, que a pariu, ao longo da sua narrativa, tem também uma relação de maternidade forte com
a autora, que é Clarice Lispector.
E a história de Macabéa, em certos aspectos, na sua relação com Clarice Lispector, se repete.
Clarice Lispector conta, em fevereiro de 1977, em entrevista para a TV Cultura de São Paulo, que
passeava pela feira dos nordestinos do bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, quando apreende
o olhar de uma moça nordestina meio que perdida na cidade grande. E faz anotações sobre
personagens do romance. Informa: “É a história de uma moça nordestina, de Alagoas, tão pobre que
só comia cachorro-quente”. E complementa: “A história não é só isso, não. A história é de uma
inocência pisada, de uma miséria anônima.”
Nessa mesma entrevista não conta o nome da nordestina, Macabéa. Nem o título do livro,
que seria publicado nesse mesmo ano de 1977, A hora da estrela. Mas anuncia, nessa entrevista,
que o livro tinha “treze nomes, treze títulos”, mantidos, aliás, desde a primeira edição em coluna
vertical, e com seu nome próprio de autora, Clarice Lispector, inscrito entre eles, sob a forma de
assinatura. A lista dos títulos do livro, antecedendo o início da história, pelas muitas sugestões que
traz ao leitor, funciona com uma espécie de guia de possíveis leituras, como fossem pontas de uma
estrela que projetam em várias direções, fios de sentido que podem ser puxados pelo leitor, ao
escolher algum ou alguns desses títulos, se quiser.
O nome da personagem, Macabéa, nos remete ainda a tempos mais remotos, dos macabeus,
gente forte que resistiu aos gregos defendendo o templo no Monte Sião e recusando-se a
desobedecer as leis judaicas. Impossível deixar de remeter a outro dado biográfico de Clarice
Lispector, descendente de judeus russos que vieram da Ucrânia para o Nordeste, justamente para
Alagoas, só depois para Recife, no início da década de 1920. Convém lembrar também que a

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família, para fugir da miséria, emigra pra o Rio de Janeiro, na década de 1930, perfazendo assim um
trajeto semelhante ao da sua personagem, Macabéa.
As implicações da autora com sua personagem são evidenciadas pela própria Clarice. Na tal
entrevista Clarice, que naquela altura morava no Rio de Janeiro, afirma que morou em Recife, foi
criada no Nordeste e ainda teve uma cartomante, que funcionou também como motor da história do
seu romance: “[...] fui a uma cartomante e imaginei...que seria muito engraçado se um táxi me
pegasse, me atropelasse e eu morresse depois de ter ouvido todas essas coisas boas. Então foi
nascendo também a trama da história.”
Essa entrevista foi concedida por Clarice Lispector no seu último ano de vida, quando então
solicitou ao seu entrevistador, Júlio Lerner, o compromisso de só levá-la ao ar depois de sua morte.
Clarice Lispector morreu no dia 9 de dezembro de 1977. E o entrevistador manteve seu
compromisso. 76
Se Clarice Lispector acaba presente na nossa leitura pelas inevitáveis associações entre os
dados biográficos da autora e de suas personagens – Macabéa e Rodrigo -, ela se faz também
explicitamente presente enquanto autora da novela num texto de dedicatória, publicado antes da
lista de títulos da novela e intitulado “Dedicatória do autor (Na verdade Clarice Lispector)”. Aí
evoca nomes de pessoas, na maioria de músicos, aos quais dedica esta sua obra, A hora da estrela,
pessoas em nome das quais ela escreve, já que precisa dos outros e sem esses outros ela não vive,
ou melhor, em função dos outros ela tenta saber quem é. Por isso escreveria a novela, para saber,
através de Macabéa, e de Rodrigo, quem seria ela mesma, Clarice?

__________________________________________
76 Essa entrevista foi publicada, com texto introdutório de Júlio Lerner intitutulado “ A última entrevista de Clarice Lispector”, em Shalom, ano 27,
nº296, São Paulo,PP.62-69

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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA
FICÇÃO BRASILEIRA – CRISTINA PRATES

Não só. Diria que Clarice Lispector não se confina numa identidade única, mas se desdobra
nas muitas vozes de que povoa a sua narrativa, numa espécie de orquestração ficcional que tende,
como tudo, para o silêncio. E abre novas perspectivas de sentido à nossa Macabéa, ao anunciar por
exemplo, que esta história, também transfigurada nessa “coisa aí”, também inexplicável, “acontece
em estado de emergência e de calamidade pública” e que se trata “de livro inacabado porque lhe
falta a resposta”. Espera que alguém lhe dê essa resposta, quem sabe nós, leitores, inseridos assim
nessa trama, logo na primeira página do livro. E abre o leque para os cúmplices de uma situação,
estimulando os nossos olhos críticos, procurando culpados.
Clarice, que tem nome na capa do livro, que tem assinatura entre os títulos, que assume a
autoria do texto da dedicatória do romance, é autora que se faz presente também de modo implícito
na história, embora desapareça aí enquanto autora. Ou melhor: ali permanece, mas travestida de
Rodrigo, a quem ela cedeu a voz, a escritor-homem, para fugir do “lacrimejar piegas” de mulher. E
teria conseguido? Ou o resultado seria justamente o oposto? Finge que é o homem, Rodrigo, o que
conta sem sentimentalismo, para justamente mostrar o contrário e escrever o que escreveria, como
mulher que é e como, na realidade, escreve.
Considerando que Macabéa é a criação de Rodrigo, que, por sua vez é criação de Clarice
Lispector, a autora implícita no romance, num jogo de “identidades intercambiáveis”, segundo
expressão de Benedito Nunes, 77 podemos considerar tanto Macabéa quanto Rodrigo também com
uma imagem da própria autora Clarice Lispector, como se aí existisse um triângulo: a escritora (da
dedicatória) e o escritor (o narrador do romance) defrontam-se com o seu objeto (o romance, a
palavra, Macabéa), desprezível e atraente, que encanta e repugna, e que é afinal “inenarrável”: o seu
sentido é vazio e nunca se alcança.

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77 Benedito Nunes, “O jogo da identidade”, em O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector (São Paulo: África, 1989), p.165

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Não se esquecer ainda de que esse “ser romanesco” é também alimento do artista. Afinal, ao
desmontar os papéis, desmonta-se a tradição do romance social dos anos 1930 no Brasil, que tinha
como um dos temas a miséria do nordestino. A literatura de Clarice insurge-se contra a tradição do
realismo histórico e do marxismo teórico, tal como observou Silviano Santiago, ao considerar o
romance como literatura política a partir da revolução que se faz na própria linguagem.78
Acrescente-se, no entanto, que tal romance, já flagrando o nordestino radicado na cidade grande,
não só não confia mais no suporte de tradição realista, que usa também, entre tantos outros suportes,
como matéria-prima para ser, aos poucos, desmontada pelo narrador, quanto submete o próprio
papel do escritor a tal desmontagem: o escritor também usa o “pobre” como objeto de romance. Só
através da ironia o narrador poderia levar adiante, como, aliás, leva, tal situação de conflito suicida
da criação romanesca.

A quinta história
A derradeira história de Macabéa só é possível absorver lendo o texto, do início ao fim, para
se saber que, afinal, ela aparece apenas a partir de determinados detalhes, que sempre remetem ao
nada que ela é e que se tenta tocar, agarrar, preencher, nessa busca de sentido, incursão inglória
através da leitura da ova de arte literária. E que nos traz, pelo menos, uma constatação: Macabéa,
“na verdade, Macabéa”, essa podemos perceber, apenas vez ou outra, de leve, e por alguns
instantes, antes que de novo se nos escape.
Macabéa é, assim, um objeto a ser tocado, mas para mostrar que é intocável, ou seja, que sua
realidade está tão imanentemente grudada na sua condição, que não há o que consiga essa
separação, ou representação. Ela é. Ela é a “coisa” desprezível que rejeitamos: “cabelo na sopa”.
Mas é também o ser imune às adversidades que gostaríamos de ser: “flor fresca”.
E se nos escapa, não é pela transcendência: ela não está além de. Mas pela imanência: está
inculcada em si. Resguardada na sua própria maneira de ser, intangível ao que a cerca, imune ao
magnetismo das relações sociais, Macabéa, essa “coisa”, permanece sempre num lugar neutro,
utópico, insustentável, num vácuo, que é ao mesmo tempo o lugar da exclusão – fora dos sistemas,
ser rejeitado; e o lugar em que, enquanto ser vivo, se basta enquanto pulsão vital, na “vida primária
que respira, respira, respira”. Por isso nos causa, ao mesmo tempo, indignação e encantado espanto.

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