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2012 JLAesp
2012 JLAesp
Magda Soares
através de textos
que resultam em práticas verdadeiramente educativas, já que são inspi- sintonia com as demandas sociais".
radoras. Apenas esse traço já seria suficiente para exaltar a alegria do
convívio com Magda Soares, já que o trabalho também pode ser momento Magda, parabéns nesta e em outras datas queridas...
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Reportagem: Ana Carolina Martins, Bianca de Andrade Martimiano, Cecília Lana, Júlia Pelinson, Laura Ribeiro Araújo e Lorena Calonge| Revisão: Lúcia Helena Junqueira
O Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) é um órgão complementar da Faculdade de Educação (FaE) da
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Alfabetização
As concepções que adotamos sobre alfabetização – corresponde uma concepção de indivíduo alfabetizado. Se, as pessoas interagem, através da leitura e da escrita.
Ensino de Português
Eu gostaria de ter feito uma pesquisa sobre o ensi-
Eterna Mestra
Marcas na formação Impossível escrever sobre a Magda sem voltar a Tanto tempo passado, recebo, aqui em São Paulo, um
Sônia junqueira
Editora e escritora de livros para crianças
Legado acadêmico Dona de uma produção teórica de peso, a professora Magda Soares
nunca deixou de refletir sobre os desafios do ensino público brasileiro
porLauraRibeiroAraújo
Contribuição para o campo da alfabetização Brian Street – Professor titular de Linguagem na Educação do King’s
College da Universidade de Londres e pesquisador visitante do Ceale
Devo a Magda muito de minhas reflexões em torno do Um problema teórico fundamental está na própria definição pergunta "você sabe ler e escrever?" e formulado algumas
termo "letramento", pois faço uso desse conceito para me de alfabetização. Quando produzimos estatísticas sobre críticas: Responda "sim" e se juntará às fileiras dos chamados
concentrar mais nos processos que envolvem os usos da alfabetização, uma pergunta central pede resposta: o que alfabetizados. Responda "não" e será considerado analfabeto.
leitura e da escrita em situações sociais do que nas limita- é essa alfabetização que vem sendo analisada e medida? As estatísticas obtidas não refletirão todo o espectro de
das habilidades do uso tradicional do termo "alfabetização". Foi essa reflexão sobre a terminologia que levou, no habilidades envolvidas nas competências de leitura e escrita.
No 33º encontro anual da ANPEd, participei de uma Brasil, ao reconhecimento de que o termo "alfabetização" não Novamente, Magda tem dado importantes contribuições
mesa com um companheiro que argumentou que o termo "al- compreendia plenamente as complexidades necessárias para para esse debate por meio de um projeto desenvolvido no
fabetização" poderia ser empregado em ambos os sentidos avaliar e medir "o que é a alfabetização". O termo "letramento" município de Lagoa Santa. O objetivo do trabalho é evitar
– para designar habilidades específicas de leitura e escrita levava a uma visão mais sofisticada. Algumas instituições a dicotomia entre alfabetização e letramento e enfatizar
ou usos sociais mais amplos. Escolhi desafiar essa visão e ligadas à UNESCO têm apoiado essa visão. Por exemplo, práticas de linguagem dialógicas, como a produção de
acabei recorrendo ao trabalho de Magda Soares. Em 1992, o LAMP [sigla que, em português, significa Programa de livros pelos próprios alunos, a reescrita de clássicos da
em um encontro anterior da ANPEd, ela havia argumentado: Análise e Monitoramento da Alfabetização] tem feito a literatura e o trabalho com diferentes gêneros textuais.
Traduzido por Laura Ribeiro aRAÚJO
porBiancadeAndradeMartimiano
Orientadora de caminhos
Ex-orientandos falam sobre personalidade engajada, paciente e atenciosa de Magda Soares
porJúliaPelinson
Ao longo de sua trajetória profissional, Magda Soares Mestre atualizada e engajada Acolhimento
orientou mais de 60 alunos em dissertações de mestrado e
teses de doutorado. Quando param para falar de Magda e Muitos ex-alunos ressaltam como, desde o início de sua Um dos aspectos mais destacados pelos antigos alu-
relembrar os velhos tempos, os ex-orientandos destacam atuação como professora e pesquisadora da UFMG, Magda nos é a generosidade com que Magda ensinava e ouvia
a generosidade da professora para ensinar e a liberdade sempre se manteve atualizada com relação a pesquisas opiniões, além da disponibilidade, apesar da agenda sem-
que ela conferia a cada um, para que desenvolvessem suas internacionais na área da Educação, em uma época em que pre cheia. A professora aposentada da UFMG Avani Avelar
pesquisas da maneira que preferissem. ainda não existia internet para facilitar as comunicações. A Lanza relata um dos gestos atenciosos da orientadora:
ex-aluna Maria Mello Garcia, hoje professora do Instituto "Quando passávamos por Magda no corredor, ela abria
Método Superior de Educação Anísio Teixeira, conta que o contato um caderno onde guardava vários bilhetes e entregava
com teorias estrangeiras era um diferencial para os alunos: um para cada aluno. Os bilhetes continham dicas de lei-
De modo geral, Magda iniciava as orientações com "Estudávamos textos que sequer haviam chegado ao Brasil". tura e ideias para nossa pesquisa". Orientanda de Magda
uma série de encontros coletivos, dos quais participavam Outra marca do ensino de Magda Soares eram as dis- entre 1988 e 1991, a atual pesquisadora do Ceale Maria
vários orientandos. O objetivo das reuniões era fazer com cussões sobre educação que sempre tocavam em questões Lúcia Castanheira conta que a mestra acompanhava a
que os alunos, aos poucos, conseguissem delimitar o que relativas à realidade socioeconômica do Brasil. Seus alunos evolução dos alunos de forma bastante tranquila, aguar-
iriam investigar em suas pesquisas. Um de seus alunos eram estimulados a perceber como o uso da leitura estava dando o tempo que cada um levava para compreender a
da pós-graduação entre os anos 1987 e 1996, o atual presente de maneiras diferentes no cotidiano de crianças situação educacional no Brasil e conseguir iniciar seus
pesquisador Antônio Augusto Batista, lembra como Magda de classes sociais distintas e a intervir diretamente na próprios estudos. "Magda estava sempre interessada em
enfatizava a importância de se definir bem o objeto de realidade. Professora aposentada da FaE/UFMG, Maria entender as questões que trazíamos para as orientações
estudo: "Ela brincava dizendo que deveríamos ser capazes Therezinha Bedran conta que, na época em que Magda e em provocar nossa reflexão", completa.
de resumir o tema da nossa investigação rapidamente, orientou sua pesquisa, ela ajudou-lhe a "entender a si- O depoimento de Maria Antonieta Cunha, uma das pri-
em uma conversa de elevador, entre um andar e outro". tuação das camadas populares e os problemas que as meiras alunas que Magda orientou no campo da leitura
Uma vez que os orientandos já sabiam exatamente o crianças dessas camadas enfrentavam quando chegavam literária, resume o sentimento dos orientandos quanto à
que iriam estudar, a professora lhes dava grande liberdade à escola sem o domínio da linguagem considerada culta". maneira de Magda de ser e de trabalhar: "Ela foi uma inspi-
para desenvolver a pesquisa e escrever. Magda estava sem- ração extraordinária para minha carreira e para minha vida".
pre disposta a ouvir perspectivas diferentes e a dialogar,
como afirma a orientanda da década de 1990 e hoje pro-
fessora da UFMG, Mônica Correia: "Ela não impunha nada, Até hoje a Magda nos desafia a ver,
Com a Magda, aprendi a conci- na pesquisa, uma função social, para
sentíamos que a construção do pensamento era coletiva". liar o dever do engajamento com algo que o conhecimento adquirido seja usa-
que, na verdade, eu já tinha, mas que do para resolver os problemas sociais.
ela reafirmou em mim, que é o gran-
de prazer de buscar o conhecimento. Isabel Cristina Alves da Silva Frade, orientada por
Magda durante o mestrado (1993) e o doutorado (2000).
Essa é a relação dela com o conheci-
Um dia antes da minha apresen- mento, e é essa a relação que deveria
DEPOIMENTOS tação de mestrado, eu liguei pra ela
perguntando se não nos encontrarí-
ser, sempre, a da Universidade.
Antônio Augusto Gomes Batista, orientado por Magda
Iniciávamos o mestrado que-
rendo salvar a educação do país,
amos para repassar o conteúdo. Ela durante o mestrado (1990) e o doutorado (1996).
querendo que nossa pesquisa fosse
respondeu: “Pra quê? Você é a pessoa um “holofote” para a resolução dos
que mais sabe sobre o tema!”. Mas disse problemas educacionais. Magda nos
Eu já tinha doutorado em Letras, O que eu escrevi nos agradecimentos ensinava que não era possível que
que, se eu quisesse mesmo encontrá- da minha dissertação de mestrado, vale
mas ainda queria conciliar esse curso -la, tudo bem. Fui à casa dela e ela me nosso estudo fosse um holofote, que
com Pedagogia para fazer um trabalho ainda hoje: “À Magda por ter tido a poderia ser apenas uma das velinhas
tranquilizou, me deixou mais segura. oportunidade de com ela conviver nesses
de qualidade na área da Educação. de um bolo e que, somando-se várias
Foi assim que a Magda, generosamen- Avani Avelar Xavier Lanza, orientada anos de trabalho, pela maneira especial velas, teríamos um holofote.
te, aceitou orientar meu mestrado em por Magda durante o mestrado (1988). com que ela se fez e se faz presente”.
Educação sobre leitura literária. Francisca Izabel Pereira Maciel, orientada por Magda
Maria Lúcia Castanheira, orientada por durante o mestrado (1994) e o doutorado (2001).
Maria Antonieta Antunes Cunha, orientada Produzir uma dissertação de mes- Magda durante o mestrado (1991).
por Magda durante o mestrado (1986) trado não é algo fácil. Você tem um
referencial teórico, faz a pesquisa e o Pouco antes de terminar a gra-
Às vezes eu ficava admirada em ver duação, passei em um concurso para
seu tema surge. Mas na hora de redigir, como, estando na academia, Magda
você se sente perdido. Eu escrevia, es- trabalhar como professora dos anos ini-
era capaz de compreender tão bem nos- ciais. A Magda sugeriu que eu fizesse
crevia e pensava “ainda não é isso o que sa prática de professor em sala de aula.
eu quero”. Foram muitas idas e vindas, um registro diário do trabalho nessa es-
e a Magda teve uma paciência de Jó! Maria Mello Garcia, orientada por
cola e disse que me orientaria para que
Magda durante o mestrado (1992). eu apresentasse uma proposta de mes-
Maria Terezinha Saad Bedran, orientada trado baseada nessa experiência. Foi
por Magda durante o mestrado (1989). ela quem me ensinou a olhar para a
prática pedagógica e problematizá-la.
Mônica Correia Baptista, orientada por
Magda durante o mestrado (1996).
A primeira vez que tomei o avião para ir ao Brasil foi onde descobri que a cozinha de Minas se parecia com a dos
nos tempos do Collor. 1991? 1992? Como eu não tinha meus Alpes natais. Comer carne de porco com polenta, logo
certeza de voltar um dia "ao país do cruzeiro", guardei uma depois de descer do avião, isso também era tranquilizador. Magda, entretanto, enviou-me doutorandas para está-
cédula como lembrança. E eu tinha razão. Quando voltei, o Magda falava francês como se tivesse feito seus estudos gio sanduíche em Paris. Eu nunca soube o que ela esperava
Brasil era o país do real. Conheci, então, um país que os em Genebra, de onde saíram tantos pesquisadores da área exatamente de mim, mas a terceira coisa em que ela me fez
jovens de hoje não podem nem imaginar. Por outro lado, da psicologia da criança. Fiquei sabendo, com surpresa, que acreditar foi que eu saberia co-orientar pesquisas, mesmo
quando se trata de educação, os temas que discutíamos eu estava enganada, mas ela me surpreendeu ainda mais que não tivesse o direito a isso.
e que nos inquietavam nesse tempo tão distante, em que quando começamos a falar sobre salas de aula e profes- De minha parte, eu tinha certeza de que os projetos de
não tínhamos nem PISA nem Internet, nem tablets, ainda sores. Seus artigos de pesquisa, seus relatórios em inglês tese eram bons, já que tinham sido aceitos por ela. Mas eu
são os mesmos. Viagem após viagem, vi a situação das para organizações internacionais, tudo que pude ler dela, não era psicóloga, linguista ou especialista em didática; eu
escolas e dos professores melhorar, mas (no Brasil como depois disso, me impressionaram menos do que seu inte- trabalhava com a história da leitura escolar. Eu conhecia
na França) a questão continuava sendo democratizar o resse pela realidade cotidiana da escola. Nos discursos dos apenas a escola francesa e ignorava tudo a respeito das
ensino, melhorar as interações entre alunos e professores, acadêmicos daquele tempo, os maus resultados da escola pedagogias de alfabetização no Brasil. Pensei então que
em resumo, lutar contra o fracasso escolar. eram atribuídos à ignorância dos professores, ignorância, na Magda me confiava "suas meninas" para que eu cuidasse
O avião estava atrasado. No aeroporto Charles de verdade, da pesquisa. Eu já era bastante cética em relação de sua saúde, como faz uma madrinha por suas afilhadas
Gaulle, enquanto aguardava o embarque, li, pela primeira a essa ideia, pois era difícil atribuir aos pesquisadores os exiladas por um ano em Paris. Eu me preocupava, então,
vez na vida, um livro inteiro em português. Era um pequeno enormes progressos da alfabetização ao longo do século em que elas pudessem comer bem sem pagar muito por
livro, Linguagem e escola: uma perspectiva social, publicado XX: tratava-se, antes de tudo, do resultado do trabalho dos isso. Em relação à alimentação intelectual, eu encontrava
em 1986. Eu tinha sido convidada a vir ao CEALE por Magda professores, facilitado por medidas sociais e políticas. Como seminários, eu as inundava de livros, de revistas, de artigos.
Soares e me sentia muito intimidada por encontrar uma eu fazia pesquisas e trabalhava também com formação Eu encontrava salas de aula em que elas pudessem fazer
professora universitária tão famosa. Começando a ler esse de professores, tinha aprendido, por prudência, a manter observações, assim eu poderia ver a escola francesa atra-
livro, descobri, assustada, que eu entendia tudo: Magda me separadas essas duas partes de minha vida profissional. Eu vés de seus olhos. Tudo isso visava prevenir os riscos de
fez acreditar que eu compreendia o português. Vinte anos pensava que haveria sempre um abismo entre, de um lado, depressão que ameaçam todos os brasileiros que são con-
depois, essa lembrança continua a me parecer inacreditá- as questões colocadas pelos pesquisadores e, de outro, os frontados ao frio, ao céu cinza, às longas noites de inverno.
vel. Ela escrevia com perfeita clareza, eu concordava com problemas que os professores tinham que resolver todos Tomei consciência, muito tempo depois, que o artifício
tudo que ela expunha e me sentia "em casa" nessa língua os dias. Magda me fez pensar que eu poderia, talvez, estar de Magda era outro: em Paris, como as doutorandas não
desconhecida. Minhas surpresas se relacionavam apenas errada. Foi a segunda coisa em que ela me fez acreditar: podiam mais se lançar ao campo de pesquisa para juntar
ao "rumor da língua". Num dicionário, eu havia encontrado que há uma maneira de fazer pesquisa que poderia se cada vez mais dados, elas deveriam voltar ao que já tinham
as palavras desconhecidas que se repetiam em todas as aproximar das realidades da sala de aula. coletado, reler, anotar, colocá-los em ordem para redigir a
páginas ("crianças", "fracasso"), tão estranhas aos meus E é por isso que sempre gostei tanto de voltar ao tese. Eu tinha prometido que leria seus textos, pois acre-
ouvidos franceses. Desde essa experiência inaugural, as CEALE. Eu voltava por causa da hospitalidade brasileira. ditava que entendia o português escrito. Mas o português
crianças permaneceram para mim como sendo "aqueles Voltava também pelas amizades estabelecidas ao longo das alunas não era o de Magda e eu era obrigada a pedir
que gritam", pois a palavra me remetia a "criant", particípio dos dias e, principalmente, para me revigorar. O CEALE esclarecimentos sobre tudo: sobre o objeto de pesquisa,
presente do verbo "crier", em francês, que significa "gritar". foi para mim um lugar mítico e frágil, onde se imbricavam o campo, a coleta de dados, suas escolhas, as entrevistas
Já a expressão "fracasso escolar" me levava a pensar em de forma natural o trabalho de pesquisa, o conhecimento com os atores, suas referências teóricas. Cada uma deveria
barulho de vidro quebrado ou acidente rodoviário, pois eu sobre a sala de aula e as questões a respeito da forma- conseguir me explicar, em francês e em voz alta, o que ela
me lembrava da palavra francesa "fracas", que tem esse ção de professores. Em outros centros universitários, em esperava daquele projeto. Magda me provou assim que,
significado. Na França, a palavra que usamos para fracasso Paris como em São Paulo, a segmentação das pesquisas das turmas de alfabetização até o final dos estudos univer-
é "échec" e ela faz pensar sobretudo no "jeu d’échecs", o especializadas (em psicologia, em linguística, em didática, sitários, os alunos podem progredir graças a professores
jogo de xadrez, esse jogo silencioso onde não há vencedor em literatura, em sociologia, em história) proíbe uma tal que não sabem muita coisa e entendem menos ainda, se
sem vencido. Assim, lendo Magda, descobri duas coisas: convergência de saberes em torno do que hoje se chama estes têm realmente vontade de se instruir "em campo".
que as explicações para o fracasso escolar, no Brasil, eram de "letramento". Eu senti que era a incrível cultura de E depois, Magda se aposentou, e eu também. Ela
semelhantes às da França, o que era tranquilizador. Ao Magda que possibilitava manter essa abertura. Essa con- continua a ir até as salas de aula e eu também. Espero
mesmo tempo, eu entendia que as análises teóricas dos jugação era singular demais para poder ser reproduzida a publicação do seu novo livro com impaciência. Lendo
livros não me ensinariam a respeito das diferenças entre com facilidade. Mas Magda me fez acreditar que aquilo que Magda, continuarei a acreditar que a pesquisa teórica e o
as escolas da França e do Brasil. Para conhecê-las, eu teria existia em algum lugar poderia também existir em outros. conhecimento prático do ofício podem caminhar no mesmo
que ir até as escolas. E foi o que eu fiz. Como eu não tinha o título de "Professeur d’université", passo. E continuarei a acreditar que entendo perfeitamente
Quando Magda me recebeu em Belo Horizonte, levou-me mas apenas o de doutora, não tinha o direito, na França, o português. É inacreditável, mas é verdade. É isso que
a um restaurante que hoje já não existe mais, o Mala e Cuia, de orientar teses de doutorado. você é para mim, Magda, inacreditável, mas verdadeira.
Longe de ser um traçado harmonioso, as linhas que bordaram a trajetória profissional de Magda Soares
sofreram cortes bruscos e tomaram direções inimaginadas. No entanto, quem para pra conferir o desenho
atual tem a certeza de que um elemento comum orientou as escolhas da educadora, por mais variadas
que elas tenham sido: o desejo de reduzir, ainda que minimamente, as angústias do professor brasileiro
porAnaCarolinaMartinseLorenaCalonge
Esse trecho é parte do livro Metamemórias – Memórias: Travessia de uma educadora, no qual
Magda Soares conta as experiências vividas ao longo de sua trajetória acadêmica, constituída de cer-
tezas firmemente "plantadas", como diz a própria educadora, que foram "arrancadas" e substituídas ao
longo de sua vida. "Magda foi mudando suas perspectivas em função do tempo vivido. Isso faz parte da
flexibilidade mental dela, da capacidade de adaptar as ideias à realidade que se está vivendo, de estar
sempre aberta a novas teorias. Essa é uma virtude rara", acredita o professor emérito da Faculdade Primeiros riscos
de Educação (FaE) da UFMG, Oder José dos Santos. Quando menina, Magda pretendia fazer carreira na área
Em Metamemórias, livro que foi escrito por Magda em 1981 para atender a um requisito do concurso de ciências exatas. No entanto, ao cursar o terceiro ano
de professor titular da UFMG, a educadora afirma que somente na vida universitária pôde viver suas do segundo grau, encantou-se com as aulas de português
contradições em relação ao "inconformismo com a realidade social, que busca expressão na crítica, e ministradas pela professora Ângela Vaz Leão e decidiu
o compromisso com a prática social, que obriga à ação nessa mesma realidade que se critica". concorrer a uma vaga no curso de Letras. "Na época, eu nem
Magda graduou-se em Línguas Neolatinas pela UFMG e, mais tarde, tornou-se doutora em Didática. sabia que existia um curso de Letras, mas eu via Ângela Leão
Começou a lecionar na UFMG em 1959 e só se aposentou quarenta anos mais tarde, em 1999, mesmo ano e pensava: ‘é isso que eu quero ser!’. Ângela me fascinou
em que recebeu o título de professora emérita da Instituição. Durante todo esse período, ela se dedicou às com a literatura, com a língua, me explicou o que era o curso
aulas nos cursos de graduação em Letras e em Pedagogia. e depois me preparou para o vestibular", relembra Magda.
Mas a trajetória de Magda foi muito além da atuação nas salas de aula. A educadora desenvolveu Magda fez Letras Neolatinas e se formou na turma de
pesquisas que influenciaram (e ainda influenciam) as práticas de ensino em todo o país e que contribuíram 1954. "No meu primeiro período de faculdade, o curso fun-
para a formação de muitas gerações de professores brasileiros. A maneira de ensinar português que cionava numa sala emprestada do Instituto de Educação.
Magda introduziu por meio de suas coleções didáticas modificou profundamente as práticas pedagógi- Depois, fomos para o Edifício Acaiaca, onde funcionavam
cas desde a década de 1960. "Os livros didáticos que ela produziu marcaram uma forma diferenciada todos os cursos da Faculdade de Filosofia e Ciências.
de interagir com a língua portuguesa", reconhece a professora emérita da FaE, Eliane Marta Teixeira. Era muito bom, porque a gente convivia com o pessoal
Magda também participou de projetos pioneiros, como a criação do Colégio Universitário da UFMG, da História, da Filosofia, da Geografia, da Biologia, da
em 1965; do Programa de Pós-graduação em Educação da UFMG, em 1970; e da fundação do Centro Física", conta a professora.
de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), em 1990. Ainda antes de terminar a graduação, Magda começou
Em nível nacional, ela foi peça chave para a consolidação da ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação a dar aulas no Colégio Metodista Izabela Hendrix, mesma
e Pesquisa em Educação), tendo auxiliado na criação, em 1981, dos chamados GTs (Grupos de Trabalho) da instituição onde havia concluído sua educação básica: "Eu
Associação. Mais significativo ainda, Magda coordenou, nos anos de 1992 e 1993, o GT de Alfabetização. "O tinha uma verdadeira paixão por aquele colégio", revela.
surgimento desse GT marcou o aumento da visibilidade e da legitimidade da alfabetização como campo de "Mas também fui professora do Colégio Municipal São
investigação e prática", orgulha-se a pesquisadora do Ceale Aparecida Paiva. Cristóvão e do Colégio Estadual Central. Até que, um dia, a
Em outubro deste ano, Magda recebeu o troféu Paulo Freire, durante uma cerimônia realizada na professora de português do Colégio de Aplicação da UFMG
35ª Reunião Anual da ANPEd, em Porto de Galinhas (PE). "Um momento inesquecível para todos nós, pediu afastamento e a catedrática diretora da instituição,
ali presentes, foi quando ela se levantou da plateia e tomou lugar à mesa, participando ativamente das dona Alaíde Lisboa de Oliveira, me chamou para substituí-
discussões sobre o estado da arte da alfabetização", conta Aparecida Paiva. -la". Foi assim que Magda começou a lecionar na UFMG.
Rupturas necessárias
Se um velho colega, amigo ou aluno de Magda Soares
se debruçar sobre os escritos mais recentes da educadora,
ou mesmo tiver a oportunidade de assistir a uma de suas
Fase liberal-pragmática Visão operacional
palestras, é bem provável que note diferenças entre os Em suas primeiras experiências como professora, na No ano de 1968, o Brasil retomou sua expansão eco-
ensinamentos antigos e as concepções atuais. Isso por- década de 1950, Magda procurava incentivar a partici- nômica e o planejamento educacional passou a integrar o
que, ao longo dos anos, Magda não hesitou em assumir pação ativa dos alunos no ensino, com a formação de Plano Nacional de Desenvolvimento. Isso significava que
mudanças na maneira de enxergar o fenômeno do ensino. associações, de grêmios e de clubes, com a realização o ensino passava a ser considerado um bem a serviço do
Para o pesquisador Antônio Augusto Gomes Batista, que foi de trabalhos comunitários e extraclasse. As estratégias crescimento econômico e da integração nacional. Como a
orientado por Magda durante o doutorado e esteve à frente eram típicas do escola-novismo, movimento que pregava própria Magda já explicou, muitas vezes, um país atravessa
da direção do Ceale por alguns anos, essa vontade de estar que o ensino deveria ter a função de "preparar os alunos um momento social que traz consigo uma ideologia domi-
sempre buscando novas respostas para as perguntas sobre para a vida", o que implicava, de certa forma, adaptá-los nante tão bem adequada às necessidades do período que se
a educação é uma das maiores qualidades de Magda: "Se à sociedade. Em Metamemórias, Magda afirmou que essa torna impossível não tomá-la como ideal. Foi assim que ela
você parar para analisar a obra dela, vai notar que ela não linha de pensamento a que aderiu nos primeiros anos de se viu, juntamente com os demais professores brasileiros,
tem compromisso com o que escreveu antes, mas com a sua vida profissional não foi uma escolha consciente: por ensinando os alunos a obter maior eficiência e melhores
busca de respostas a perguntas. Mesmo que as respostas não conhecer outra prática pedagógica senão aquela que resultados a menores custos: "Nos vimos, inesperadamente,
que ela encontre hoje contradigam o que ela já respondeu. lhe fora apresentada como ideal durante sua formação transformados em agência adestradora de mão de obra".
A Magda sempre soube fazer as rupturas necessárias". no Instituto Metodista Izabela Hendrix, a Escola Nova se
Como definiu a própria Magda em seu memorial, ao mostrou como o único caminho possível para o ensino. Sociolinguística aplicada à Educação
longo de sua trajetória, ela mudou da área da Letras para
a área da Educação; trocou a visão psicológica do ensino Em 1974, Magda se identificou com uma linha de pen-
Fase do nacionalismo-desenvolvimentista
pela sociológica; e substituiu a concepção da escola como samento na qual acredita até hoje: a Sociolinguística da
instrumento de correção das desigualdades sociais por No ano de 1964, um livro ainda pouco conhecido Educação, visão sociológica que entende o ensino como
uma que entendia a escola como instrumento de dissi- no Brasil chamou a atenção de Magda. A obra Cultural fenômeno profundamente inserido na sociedade capita-
mulação dessas desigualdades. Foundations of Education (As raízes culturais da educação, lista. A partir de então, para Magda, a escola passava a
em português), do filósofo e educador americano Theodore ser vista como um meio de legitimação da estratificação
Brameld, foi o impulso para a educadora mudar sua linha social, posição que substituiu a imagem tradicional da
de pensamento. "Brameld me fez criticar e abandonar a escola como ambiente neutro e igualitário. Ela descobria
orientação liberal-pragmática, que propunha, como obje- que o capital linguístico das classes dominantes era o
tivo da educação, a adaptação do indivíduo à sociedade, mesmo utilizado no material didático e exigido nas ava-
afirmando que o objetivo é, ao contrário, transformar a liações escolares. A partir desse novo ponto de vista, os
sociedade e que o papel da escola é promover a mudança alunos das classes sociais mais baixas poderiam ter seu
social", explicou Magda. Ao se aprofundar no estudo dessa fracasso escolar explicado, em grande parte, pela variante
ideologia pedagógica, a educadora se deu conta de que o linguística de seu meio social. Desde esse período, Magda
sistema de ensino funcionava como meio de seleção, em passou a buscar, em todas as suas ações educacionais
que os alunos das classes privilegiadas tinham maiores e formulações teóricas, maneiras de tornar a escola um
oportunidades que os demais. ambiente livre dos preconceitos linguísticos e sociais.
Circulação de ideias
Nesta edição comemorativa, o Letra A resgatou entrevistas realizadas com Magda Soares em diferentes momentos
de sua vida: 1993, 2005, 2011 e 2012. À semelhança de um espelho, os trechos das conversas podem refletir um
pouco do pensamento e das ideias de Magda em cada uma dessas fases, dando ao leitor uma noção de quais eram
as problemáticas com as quais a educadora estava às voltas no momento em que concedeu as entrevistas.
Se é interessante notar as permanências em seu discurso, – como a preocupação com a melhoria da
qualidade do ensino e o compromisso com a democratização do acesso à leitura e à escrita – mais curioso
ainda é perceber que, após 40 anos como pesquisadora e professora universitária, tendo se tornado referência
nacional nas discussões sobre alfabetização, Magda decide fazer o caminho inverso: retornar à origem e ver o
que se passa nas salas de aula de alfabetização.
Foto: Dois Pontos Trecho de entrevista originalmente publicada no Jornal Carpe Diem, publicação bimestral
do Centro de Aperfeiçoamento dos Profissionais de Educação da Secretaria Municipal de
Fotografias originalmente publicadas na Revista
Educação da Prefeitura de Belo Horizonte (SMED/PBH).
Dois Pontos de dezembro/86 - vol. 1, nº7
2005 porAparecidaPaiva,MarildesMarinhoeSílviaAméliadeAraújo
O que as pesquisas atuais têm revelado sobre o apren-
dizado da escrita?
Até os anos 1980, as pesquisas na área da alfabetização eram, de certa
forma, restritas, porque voltavam-se apenas para a questão metodológica.
Toda a discussão se limitava à eficácia ou não de métodos: os analíticos,
os sintéticos, o método global, o da palavração, o da silabação...
As pesquisas aumentaram a partir dos anos 1980, como decorrência
do construtivismo, sobretudo pela influência dos estudos e pesquisas de
Emilia Ferreiro e de Ana Teberosky sobre o processo de aprendizagem
da língua escrita pela criança. Passamos, então, a contar com um
número grande de pesquisas, tomando como tema não mais o método de
aprendizagem da língua escrita, mas o processo da criança na construção Foto: Marcos Alves
Poesia completa e prosa - Manuel Gente - Fernando Sabino. Ed. Record, v.2, 1975. A obra
Bandeira. Ed. Nova Aguilar, 2009. A é uma coletânea das melhores crônicas escritas por
obra é uma antologia de toda a produção POEMA DE DUAS MAGDAS Fernando Sabino no Jornal do Brasil, entre abril de 1973
textual de Manuel Bandeira publicada e dezembro de 1974. Em um dos trabalhos selecionados,
Uma é Magda Becker Soares;
entre 1917 e 1966. Inclui crônicas, A outra Magda Araújo. "A última flor do Lácio", Sabino elogia a maneira como
críticas literárias e homenagens a outros Ah vida de caramujo Magda Soares atrela o ensino da leitura e da língua
autores, além de uma iconografia de A minha, escrita ao prazer, para despertar o interesse dos alu-
Em que entram moças aos pares,
seus trabalhos poéticos e em prosa. Na reunião das poesias nos. A partir de um paralelo que estabelece entre seus anos de colégio,
Mais noivas do que convinha!
do livro "Mafuá do malungo", em que o escritor homenageia Se por uma bebo os ares sua experiência como professor de português no Ensino Fundamental e
mulheres pelas quais se apaixonou, há uma poesia dedicada – E essa é Magda Becker Soares – sua presença como expectador em uma aula de Magda, Sabino defende a
a Magda Soares. No "Poema das duas Magdas", o poeta Por sua xará babujo linha metodológica "moderna" proposta por Magda propõe, explicitando a
– Scilicet Magda Araújo.
expressa sua admiração pela amiga, por quem "bebe os ares". ineficácia dos métodos de ensino tradicionais.
Guia da Alfabetização - Ed. Segmento, v.1, 2010. Edição especial da Guia da Alfabetização - Ed. Segmento, v.2, 2010. A segunda edição
Revista Educação, o Guia da Alfabetização homenageou os 20 anos temática da Revista Educação complementou as questões debatidas
do Ceale trazendo um conjunto de artigos sobre questões centrais no número anterior, além de ter trazido discussões mais contem-
para a área da alfabetização. Magda Soares foi a convidada especial porâneas sobre os novos paradigmas do campo da alfabetização.
da edição e, em entrevista, falou principalmente sobre a noção de Novamente, a revista contou com a colaboração de Magda Soares,
letramento, campo em que é a maior referência nacional. A educa- desta vez como autora de um texto. Na reportagem "Alfabetização
dora também discutiu práticas que poderiam levar a uma melhoria e literatura", a pesquisadora fala sobre os benefícios da leitura
da educação: o contato das crianças com literatura infantil, a necessidade constante de literária para crianças, por atrelar os processos de alfabetização e letramento ao prazer
adaptação dos livros didáticos de alfabetização às novas correntes de aprendizado e a da leitura, descreve as características dos bons livros literários infantis e explica como
formação específica para professores alfabetizadores. são as obras adequadas para cada idade e para cada fase da alfabetização.
O TEMA É
Alfabetização no Brasil: uma história de sua história - Maria do Rosário Longo Mortatti (org.). Ed.
Cultura Acadêmica, 2011. A obra é baseada nas discussões do I SIHELE (Seminário Internacional
Letramento: um tema
em três gêneros.
sobre a História do Ensino de Leitura e Escrita). As contribuições de Magda Soares ganharam um 1ª ed. Belo Horizonte:
capítulo exclusivo, escrito por Maria do Rosário Mortatti e Fernando Rodrigues de Oliveira. Os autores Autêntica, 1998. 190 p.
apresentam a trajetória pessoal e profissional de Magda e expõem a relevância de sua produção Linguagem e Escola: Alfabetização e
intelectual para o campo da Educação. Magda Soares também participa do livro como colaboradora. Em Uma Perspectiva Social. Letramento.
1ª ed. São Paulo: Ática, 1ª ed. São Paulo:
tom pessoal e intimista, ela conta um pouco de "sua história com a história da alfabetização no Brasil". 1986. 95 p. Contexto, 2003. 124p.