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Educação Interprofissional em Saúde:

Concepções e Práticas
Interprofessional Education in Health: Concepts and Practices
Nildo Alves Batista1

palavras–chave: Educação Médica ; Educação Interprofissional


keywords: Medical Educational; Interprofessional Education

CONCEPÇÕES e reconhece a importância da multiprofissionalidade no


cuidado, mas, acima de tudo rompe com a concepção
A EIP apresenta-se atualmente como a principal es-
puramente biomédica da saúde, centrada na doença,
tratégia para formar profissionais aptos para o trabalho
tendo o médico como figura central.
em equipe, prática essencial para a integralidade no cui-
Importante também frisar o momento que estamos
dado em saúde. Partimos dos pressupostos de que, para
em relação aos currículos dos cursos superiores em
entendermos a EIP, é necessário ressignificarmos dois
saúde. A implantação das DCNs, promulgadas há 10
conceitos essenciais – o de educação e o de saúde.
anos, ainda é um desafio, especialmente no tocante a
Educação entendida com uma perspectiva dialógica
mecanismos efetivos de integração curricular, diversi-
e crítica, comprometida com a construção de conhe-
ficação de cenários de aprendizagem, articulação com
cimentos como instrumentos de transformação social,
o Sistema Único de Saúde (SUS), resgate da dimensão
onde professor e aluno atuam em situações interativas
de ensino e aprendizagem. Esta concepção avança um ética, humanista, crítico-reflexiva e cuidadora do exer-
pouco mais, em relação à perspectiva construtivista, cício profissional, assumindo uma concepção ampliada
porque o conhecimento é concebido como processo de de saúde.
construção e o aluno assume o papel de sujeito do pro- Associadamente a estes desafios, vivenciamos a dis-
cesso de aprendizagem, mas, acima de tudo, rompe com cussão atual sobre a necessidade de ampliar o ensino
a perspectiva tradicional da transmissão de conteúdos, universitário para além da profissionalização específica,
do professor como detentor do saber e o aluno como a assunção da problematização na proposta de ensino,
receptor passivo de informações. com consequentes mudanças de atitude de professores
Neste sentido, importante citar Paulo Freire, quando e estudantes e a integração e interdisciplinaridade como
afirma que “o educador já não é aquele que apenas edu- direcionadoras da proposta de formação.
ca, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo Dentre estes e outros desafios, a necessidade de inte-
com o educando, que ao ser educado, também educa gração assume ponto de destaque. Integração entendida
[...]”1 (p. 64). numa perspectiva de novas interações no trabalho em
Já a Saúde é entendida numa concepção sócio-históri- equipe interprofissional, de troca de experiências e sa-
co-cultural, enfatizando a integralidade do cuidado, com beres e posição de respeito à diversidade, possibilitando-
a equipe de saúde atuando em uma perspectiva interdis- -se, com isso, a cooperação para o exercício de práticas
ciplinar. Esta perspectiva avança em relação à concepção transformadoras, parcerias na construção de projetos e
biopsicossocial que considera o processo saúde-doença exercício permanente do diálogo.

1 Professor Titular. Departamento de Saúde, Educação e Sociedade. Universidade Federal de São Paulo, Santos, SP, Brasil.

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Nildo Alves Batista

Neste ponto, poderíamos questionar: do outro como parceiro legítimo na construção de co-
nhecimentos, com respeito pelas diferenças num movi-
• Os Cursos de Graduação em Saúde no Brasil tem mento de busca, diálogo, desafio, comprometimento e
se comprometido com o desenvolvimento de pro- responsabilidade são componentes essenciais.
fissionais para trabalho em equipe? Esta estratégia tem como pressupostos educacio-
• Como preparar os estudantes para o trabalho na nais a aprendizagem de adultos (aprende-se quando se
perspectiva da integralidade do cuidado? vê significado, considera-se o conhecimento prévio de
• Como propiciar melhor conhecimento dos estu- aprendiz e percebe-se aplicabilidade no que se apren-
dantes sobre as especificidades de diferentes pro- de), a aprendizagem baseada nas interações e a aprendi-
fissões de saúde? zagem baseada na prática (movimentos de observação,
simulação, ação).
Apesar de óbvias, estas preocupações não têm sido A EIP se compromete com o desenvolvimento de três
objeto de novas propostas de formação profissional no competências - competências comuns a todas as pro-
Brasil. É reconhecida a sua importância, mas mantém-se fissões, competências específicas de cada área profissio-
uma ênfase nos cursos em si, procurando-se estratégias nal e competências colaborativas, ou seja, o respeito às
de aprimoramento voltadas para uma visão de prática especificidades de cada profissão, o planejamento parti-
isolada das diferentes profissões. cipativo, o exercício da tolerância e a negociação, num
A implantação da EIP na formação em saúde aparece movimento de redes colaborativas.
como resposta a estas indagações. Consiste de oportuni- Na avaliação das experiëncias de EIP na formação
dades de treinamentos conjuntos para o desenvolvimen- profissional em saúde, dois instrumentos são descritos
to de aprendizagens compartilhadas. Enfim, ocasiões nas na literatura – um Questionário com Escala de Percep-
quais duas ou mais profissões aprendem juntas com e ção da Experiência Interprofissional (IEPS), criado em
sobre as outras. 1990 e modificado em 20074,5, e um Questionário para
Como proposta de formação, a educação interprofis- avaliação de atitudes e prontidão (RIPLS) que utiliza uma
sional vem sendo discutida nos últimos trinta anos, espe- escala Likert para avaliar a competência para o trabalho
cialmente nos Estados Unidos e Europa, com o intuito de equipe e colaboração, a identidade profissional e a
de estimular o aprimoramento do cuidado em saúde por discussão dos papéis profissionais.
meio do trabalho de equipe. Os princípios da educação Revisões sistemáticas da literatura mostram os efeitos
interprofissional se aplicam tanto para a graduação das di- positivos da EIP na formação em saúde. Isto não significa
ferentes profissões de saúde quanto para a educação per- a inexistência de dificuldades na sua implantação, como
manente dos profissionais componentes de uma equipe de falta de definição precisa, resistências tanto institucio-
trabalho2. nais como de docentes e discentes, entraves curricu-
Para Barr3, a EIP consiste na inversão da lógica tra- lares, iniciativas simplificadas como estratégia de redu-
dicional da formação em saúde - cada prática profissio- ção de custos e eventuais problemas com corporações
nal pensada e discutida em si -, abrindo espaços para a profissionais.
discussão do interprofissionalismo. O mesmo autor afir- No Brasil, ainda são escassas as experiências sobre
ma também que a EIP é uma proposta onde profissões EIP. Experiências de aprendizagem conjunta existem,
aprendem juntas sobre o trabalho conjunto e sobre as mas não com o objetivo de desenvolvimento de compe-
especificidades de cada uma, na melhoria da qualidade tências para o interprofissionalismo. Ainda temos qua-
no cuidado ao paciente. se que uma ausência de publicações relativas ao tema,
A EIP se compromete com uma formação para o in- apesar de existirem experiências pontuais. Atualmente,
terprofissionalismo, no qual o trabalho de equipe, a dis- vivências e relatos de experiências de treinamento con-
cussão de papéis profissionais, o compromisso na solu- junto e aprendizagens compartilhadas em políticas indu-
ção de problemas e a negociação na tomada de decisão toras de mudanças na graduação como o Pró-Saúde e
são características marcantes. Para isto, a valorização da o PET-Saúde têm-se revelado como potenciais espaços
história de diferentes áreas profissionais, a consideração de EIP.

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Educação Interprofissional

UMA EXPERIÊNCIA O eixo O ser humano em sua dimensão biológica se


constitui de um núcleo comum de conhecimentos neces-
É no contexto da educação interprofissional que se in- sários para todos os cursos propostos (o conhecimento
sere o desenho curricular dos novos cursos do Campus biológico necessário a um profissional para atuação na
Baixada Santista da Universidade Federal de São Paulo, área da saúde) e um núcleo específico de aprofundamen-
onde foram implantados os Cursos de Graduação em to a partir das necessidades de cada curso.
Educação Física, Fisioterapia, Nutrição, Psicologia, Tera- O eixo O ser humano e sua inserção social, abrangendo
pia Ocupacional e Serviço Social. as áreas de Antropologia, Sociologia, Psicologia, Educação,
Assumem-se como objetivos destes cursos a forma- Filosofia, Ética/Bioética, Economia e Administração fun-
ção de um profissional da área da saúde preparado para da suas atividades de formação e aprendizagem em uma
o trabalho em equipe interprofissional, com ênfase na busca permanente de articulação da prática com a teoria,
integralidade no cuidado ao paciente, uma formação procurando superar a concepção que desarticula saberes
técnico-científica e humana de excelência em uma área entre básico e profissional. Assume como objetivos gerais
específica de atuação profissional além de uma formação formar o aluno para compreender o surgimento das Ci-
científica, entendendo a pesquisa como propulsora do ências Humanas como área de conhecimento, além de
ensino e da aprendizagem. comprometer-se com uma formação em saúde que incor-
Para concretizar estes objetivos, os seguintes princí- pore, teórica e metodologicamente, as contribuições das
pios direcionam o projeto pedagógico: indissociabilidade diferentes áreas do conhecimento das Ciências Humanas.
de ensino, pesquisa e extensão, prática profissional como O eixo Trabalho em saúde abrange, de forma integrada
eixo norteador do projeto pedagógico, problematização entre os cursos, temáticas comuns aos diferentes pro-
do ensino a partir da prática e da pesquisa, interdisciplina- fissionais de Saúde: saúde como campo de saber, políti-
ridade, posição ativa do estudante na construção do co- cas de saúde, profissões de saúde, o trabalho em saúde,
nhecimento, posição facilitadora/mediadora do docente serviços de saúde, a integralidade no cuidado, saúde pú-
no processo ensino/aprendizagem, integração com a co- blica/saúde coletiva, Epidemiologia, trabalho em equipe
munidade, integração entre os diferentes níveis de ensino multiprofissional e interdisciplinar, a produção do conhe-
e pesquisa, dinamicidade do plano pedagógico com cons- cimento em saúde.
trução e reconstrução permanente, avaliação formativa O eixo Aproximação a uma prática específica em saúde,
como feedback do processo, desenvolvimento docente. desenvolvido desde o início do curso, de maneira pro-
Assumir a educação interprofissional como direciona- gressiva e respeitando a autonomia do aluno, aborda as
dor desse projeto implicou o desenvolvimento de uma questões especificas de cada uma das seis profissões dos
proposta formativa interdisciplinar e interprofissional, cursos propostos (Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Psi-
rompendo com a estrutura tradicional centrada em dis- cologia, Educação Física, Nutrição e Serviço Social).
ciplinas, e a formação específica de determinado perfil Os compromissos assumidos com a formação em saú-
profissional. Assim, todos os Cursos têm um desenho de ancoram-se na compreensão das ciências numa pers-
curricular direcionado por quatro eixos de formação pectiva que rompe com o caráter instrumental e/ou aces-
que perpassam os anos de graduação. Em cada um dos sório dos conteúdos e metodologias próprias dos campos
eixos, entendidos como caminhos percorridos pelos es- científicos, envolvendo-se na construção da reflexão críti-
tudantes durante seu processo formativo, módulos que ca sobre as práticas em saúde, a partir dos condicionantes
aglutinem áreas temáticas afins constituem a proposta biológicos e culturais, do trabalho, das relações sociais,
curricular. das condições de produção, de vida nas sociedades.
Prevê-se uma articulação entre os quatro eixos pro- Um traço central dessa experiência é a constituição in-
postos, orientados pela formação de profissionais da saú- tencional de turmas que mesclam alunos dos seis cursos
de comprometidos com atuações consistentes, críticas e que compõem o campus: são as classes “misturadas” onde
potencialmente transformadoras da realidade social: ên- a questão fundamental é “o que um profissional de saúde,
fase na educação interprofissional, interdisciplinaridade, independentemente de sua especificidade profissional de-
enfoque problematizador e produção do conhecimento. veria saber?”. Nesta proposta, os alunos tëm, em todos os

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anos do curso, momentos de aprendizagem compartilhada nos-, prova do progresso, instrumentos qualitativos e
(80% no primeiro ano, 40% no segundo ano, 20% no ter- quantitativos para avaliação do processo pelos alunos.
ceiro ano e reuniões semanais no quarto ano). Além disso, tem sido objeto de pesquisa apresentado e
Estes momentos de formação compartilhada permi- aprovado por agëncias de fomento, como os projetos
tem a vivência de grupos interprofissionais, onde mistu- “A interdisciplinaridade como princípio formativo na gra-
rar-se implica criar uma disponibilidade para conviver duação em saúde: dos planos às concepções docentes”7
com o outro, conhecendo-o melhor, respeitando-o em e “A educação interprofissional na graduação em saúde:
suas singularidades e buscando construir relações inter- preparando profissionais para o trabalho em equipe e
pessoais mais inclusivas. para a integralidade no cuidado”8.
Na medida em que se altera a lógica tradicional de for- Por fim, importante registrar a cultura criada no Cam-
mar em saúde, insere-se o diálogo com as práticas docen- pus Baixada Santista sobre a Educação Interprofissional.
tes: os professores, com suas histórias de formação pau- Esta cultura, já consolidada na graduação, direcionou a
tadas na especialização disciplinar, veem-se confrontados criação tanto da Pós-Graduação lato como stricto sensu.
com seus desejos e possibilidades de aprenderem a en- Com estes princípios, foi criada a Residência Multiprofis-
sinar de um modo mais participativo, interativo, criativo. sional, envolvendo as áreas de Fisioterapia, Terapia Ocu-
E estas possibilidades podem ser ampliadas por meio do pacional, Nutrição, Psicologia, Serviço Social, Farmácia
envolvimento dos docentes na construção de um projeto e Enfermagem, e o Programa Interdisciplinar, nível Mes-
pedagógico inovador, tomando-os como co-responsáveis trado em Ciências da Saúde.
pelos rumos e rotas da proposta de formação em saúde.
Assim, também é novo para o professor sair da métri- REFERÊNCIAS
ca disciplinar e colocar-se no diálogo com colegas oriun-
1. Freire P. A Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2002.
dos de outros campos disciplinares, relativizando suas
2. Barr H. Interprofessional education: today, yesterday and tomorrow: a re-
certezas e acreditando ser possível e necessário (re) view. (Other) London, UK: Higher Education Academy, Health Scien-
conhecer as dinâmicas do saber, fazer e ser em saúde. ces and Practice Network; 2005.
Constituir um eixo, intrinsecamente interdisciplinar, e 3. Barr H. Competent to collaborate; towards a competency-based
model for interprofessional education. J Interprofessional Care.
atuar nos módulos exige considerar ângulos ainda não
1998;12(2):181-8.
descortinados e/ou valorizados, revisitar o já conhecido 4. Luecht RM, Madsen MK, Taugher MP, Petterson BJ. Assessing profes-
e abrir-se para caminhos novos. sional perceptions: design and validation of an interprofessional edu-
Como nos dizem Larossa e Kohan6: cation perception scale. J Allied Health. 1990;19:181–91.
5. Mcfadyen AK, Maclaren WM, Webster VS. The interdisciplina-
ry education perception scale (IEPS): An alternative remodel-
Também a experiência, e não a verdade, é o que dá led sub-scale structure and its reliability. J Interprofessional Care.
sentido à educação. Educamos para transformar o 2007;21(4):433-43.
que sabemos, não para transmitir o já sabido. Se al- 6. Larrosa J, Kohan W. Apresentação. In: Rancière J. O Mestre Ignorante:
cinco lições sobre a Emancipação Intelectual. Belo Horizonte: Autên-
guma coisa nos anima a educar é a possibilidade de
tica; 2002. p. 1-38.
que esse ato de educação, essa experiência em gestos 7. Edital MCT/CNPq 401539/2006-7: A interdisciplinaridade como prin-
nos permite liberar-nos de certas verdades, de modo cípio formativo na graduação em saúde: dos planos às concepções
a deixarmos de ser o que somos, para ser outra coisa docentes.
8. Edital MCT- CNPq/ MS-SCTIE- DECIT Nº 23/2006: A Educação In-
para além do que vimos sendo.(p.1)
terprofissional na Graduação em Saúde: preparando Profissionais para
o Trabalho em Equipe e para a Integralidade no Cuidado
Nos intercruzamentos das práticas dos sujeitos, dos
conteúdos, das opções didático-pedagógicas, tem- se ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
depreendido o valor dessa experiência formativa que
parece ser potencialmente transformadora da formação Nildo Alves Batista
em saúde comprometida com a construção do Sistema Av. Dr. Altino Arantes, 1300, apto 61-F
Único de Saúde. Saúde - São Paulo
Este projeto tem sido avaliado por diferentes meca- 04042-005 SP
nismos - grupos focais envolvendo professores e alu- nbatista@cedess.epm.br

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