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T E OR I A D O DIREIT O

Hugo Otávio Tavares Vilela

O DIREITO SOVIÉTICO: o último enigma


122
SOVIET LAW: the last enigma
Hugo Otávio Tavares Vilela

RESUMO ABSTRACT
Propõe expor o direito soviético, que influenciou o séc. XX, mas que The author aims at exposing Soviet Law, which influenced
permanece desconhecido pela maioria dos operadores do direito. the twentieth century, remaining nonetheless unknown by
Analisa os principais fatos, pessoas e acontecimentos que marca- most jurists.
ram esse fenômeno que, iniciado em 1917, perdurou até 1991. He assesses the main facts, people and events that have
highlighted this phenomenon, which started in 1917 and
PALAVRAS-CHAVE lasted until 1991.
Teoria do Direito; direito soviético; implantação; sistema socia-
lista; Pashukanis; direito pós-Stalinista; perestroika. KEYWORDS
Law theory; Soviet Law; implementation; socialist system;
Pashukanis; post-Stalinist Law; perestroika.

Revista CEJ, Brasília, Ano XX, n. 70, p. 122-129, set./dez. 2016


Hugo Otávio Tavares Vilela

1 INTRODUÇÃO fazê-lo, sem que se misturem o substrato que se quer retratar


Não há história do presente. Anos ou décadas são neces- com ponto de vista de quem conta a história.
sários para que o observador, mesmo que tenha estado no Um exemplo. A distinção entre direito subjetivo e direito ob-
calor dos acontecimentos, possa descrever a época que viveu: jetivo não estava demarcada na língua russa nos primeiros tem-
as linhas de força, humores, personagens. Entretanto, se muito pos do direito soviético. A palavra russa “pravo” era utilizada tanto
esperar, perderá o momento para descrever o que pretende, para designar direito subjetivo quanto direito objetivo. Assim, tra-
pois o mesmo tempo que proporciona clareza à narrativa, se dutores que se debruçaram sobre as obras dos teóricos russos
dilatado demais, torna distantes, fugidios, os “ecos do passado”. pós-revolução valeram-se de palavras de outras línguas, como
O direito soviético ruiu em 1991; portanto, há 25 anos. Um inglês ou alemão, para transmitirem o que acreditavam ter sido
historiador que deseje retratar o direito do século XX pode ain- dito, mas é difícil dizer se as diferenciações que esses tradutores
da contar com fontes vivas para transmitir a história de alguns estabeleceram reproduziam uma concepção dúplice do fenôme-
ordenamentos. A China, a Índia, os países africanos estão vivos no jurídico que a utilização de um vocábulo só tornava obscura,
e pulsantes, podendo auxiliar o historiador que buscar seu pas- ou se essa palavra única transmitia um unitarismo em que os
sado. Já a União Soviética não está. Quem quiser contar a his- russos acreditavam, e que não sobreviveu às traduções.
tória daquele direito encontra-se num momento de suficiente
distanciamento dos fatos, mas deve demorar. Embora o direito soviético tenha sido um dos
Embora o direito soviético tenha sido um dos ordenamentos ordenamentos mais poderosos e
mais poderosos e influentes do século XX, poucos ocidentais o co-
nhecem. É lamentável, pois a boa compreensão do futuro depen- influentes do século XX, poucos ocidentais
de do quanto compreendemos o que passou. Não quer dizer que o conhecem. É lamentável, pois a boa
novos regimes marxistas surgirão. Mas, de um jeito ou de outro, o 123
futuro reserva ordenamentos juspolíticos diferentes dos que exis-
compreensão do futuro depende
tiram até aqui. Alguns poderão ter elementos semelhantes aos do quanto compreendemos o que passou.
que havia no regime soviético. Quem o sabe [pergunta] por isso,
sobre como conhecer o que se passou em qualquer fenômeno A reprodução histórica que se segue pode ter incorrido em
juspolítico de grandes dimensões nos prepara para o futuro. deslizes como esse, que, em grande parte, são inevitáveis. Na
Outra razão para estudarmos o ordenamento soviético é a lição poética de Certeau: Um outro luto, mais grave, se acres-
curiosidade que deve mover qualquer um que se importe com centa ao primeiro. O Povo também é apartado. ‘Nasci povo,
direito. Sabemos, por exemplo, que, após a II Guerra Mundial, tinha o povo no coração... Mas sua língua, sua língua me era
os direitos humanos foram amplamente reconhecidos e am- inacessível. Não pude fazê-la falar. Silencioso também para
pliados. As constituições se tornaram mais fortes e também o ser objeto do poema que fala de si. Certamente, ele autoriza a
controle de constitucionalidade e diversas formas de jusnatu- escrita do historiador, mas por isso mesmo está ausente dela.
ralismo viscejaram de maneira mais ou menos disfarçada, ou [...] (CERTEAU, 2011, p. 16).
sem disfarce. Mas tudo isso aconteceu para “cá do muro”. De qualquer forma, diferentemente da maioria dos países
Frequentemente, chamamos mundiais fenômenos que só te- da Europa, a nação russa se organizou ao longo dos séculos
mos certeza de que aconteceram num pedaço do mundo. sem referenciais normativos de grande relevância. Livros russos
Há também um aspecto curioso, que torna imprescindível co- de direito só surgiram no século XIX, e só com a reforma de
nhecer o direito da URSS para melhor entendermos os ordenamen- 1864 criou-se um tribunal profissional (DAVID, 2002, p. 187).
tos não socialistas: eles competiam1. Durante a Guerra Fria, Estados
Unidos, países europeus e de outras regiões mantiveram um ge- 3 O MARXISMO NA RÚSSIA E NO MUNDO: FINAL DO SÉCULO XIX E
neroso estado de bem-estar social, mesmo à custa de considerável COMEÇO DO SÉCULO XX
déficit orçamentário. A explicação geopolítica mais aceita para esse O surgimento do marxismo no século XIX dificilmente
fenômeno é a necessidade que tais Estados capitalistas tiveram de terá paralelo na história, pela força e entusiasmo com que
proporcionar a seus cidadãos um grau de bem-estar semelhante ao arrebatou a todos: O que o marxismo traz de novidade é
que era conferido gratuitamente pelos países socialistas. a docta spes (esperança douta), a ciência da realidade, o
saber ativo voltado para a práxis transformadora do mundo
2 CONHECENDO OUTRO DIREITO e para o horizonte do futuro. Ao contrário das utopias abs-
Antes de iniciar as seções jurídicas deste artigo, é necessária tratas do passado – que se limitavam a opor sua imagem-
uma ressalva histórica. Conhecer um direito passado é repro- -desejo ao mundo existente –, o marxismo parte das ten-
duzir – e toda reprodução é incompleta –, por ser impossível dências e das possibilidades objetivas presentes na própria

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realidade: é graças a essa mediação real que ele permite o reto dizer que, para eles, o direito era uma impostura coercitiva,
advento da utopia concreta (LÖWY, 2012. p. 163). cuja finalidade seria legitimar e dar eficácia à estrutura social
O marxismo era uma religião. Segundo Schumpeter (2008, que oprimia o proletariado. Mas, entre esses escritos, há passa-
p. 5-6), mesmo um feito científico perfeito não teria causado o gens que permitem constatar a posição e a função que atribuí-
furor que ele causou, nem teria ganhado sua aura de imortalida- am ao direito no aparelho estatal. Nesse sentido é a opinião de
de. Ainda consoante esse autor (2008, p. 5-6), a aura religiosa do J. D. Galligan (2007, p. 266, tradução nossa):
marxismo explica a atitude de seus adeptos para com os não mar- No prefácio de Contribuição à Crítica de Política Econômica
xistas. Para os adeptos, os oponentes não estavam só em erro, (1859), Marx traçou a famosa distinção entre base e superes-
mas em pecado. A dissenção ao marxismo era vista não só como trutura. A base consistiria nas relações entre membros de uma
desvio intelectual, mas moral. Por isso, segundo ele, entendê-lo sociedade em relação a seus meios de produção. Essa base
implica conhecer o cenário em que ele surgiu. Tratava-se do ápice econômica teria papel determinante em relação a todas as
da civilização burguesa, tempo do materialismo mecânico. A fé, formas de relação social. Religião, filosofia, estética e direito
em qualquer sentido real, estava rapidamente desaparecendo, seriam apenas parte dessa superestrutura. Uma teoria autôno-
enquanto intelectuais apregoavam distraidamente a lógica de Mill ma do direito poderia sugerir, em desacordo com o que Marx
e o medíocre Direito [tradução nossa]. e Engels disseram, pois pressuporia que o direito poderia ter
O mais curioso é que esse vácuo ideológico inquietante era uma existência autônoma em relação à base.
sentido pela população russa em geral, que pressentia grandes Um exame mais atento desses escritos leva a concluir que
acontecimentos no horizonte. É o que se percebe de Dostoiévski, a visão de Marx e Engels era mais complexa do que foi dito
escrevendo em 1871 (2004, p. 100): Desculpe, pode ser que eu acima. Ao comentar a legislação medieval inglesa, Marx dá a
tenha me enganado ao chamar seu trabalho literário de arti- entender que muitas daquelas leis haviam sido estabelecidas
go. Ele apenas reúne observações, mas não toca absolutamen- para expulsar os trabalhadores do campo e levá-los à cidade
te na essência da questão ou, por assim dizer, no seu aspecto para tornarem-se proletariado urbano. Porém, ele comenta ou-
moral. Até rejeita inteiramente a própria moral e professa o tras leis que haviam sido promulgadas justamente para impedir
princípio moderno da destruição universal com vistas a objeti- esse êxodo rural, mas que acabaram não tendo efetividade.
vos definitivos, bons. Já exige mais de cem milhões de cabeças As nuances de seu comentário indicam que, para Marx, nem
para a implantação do bom senso na Europa, bem mais do toda legislação era ditada pela classe dominante, mas que a
que exigiram no último congresso da paz. efetividade de qualquer lei dependia da aprovação dessa classe
124 (HARRIS, 2004, p. 270).
[...] diferentemente da maioria dos países J. W. Harris (2004, p. 271) explica tal aspecto: [...] parece
da Europa, a nação russa se organizou ao claro que Marx e Engels não supunham que cada detalhe da
legislação teria uma explicação econômica. Além disso, Engels
longo dos séculos sem referenciais normativos parece indicar que o direito poderia reagir ou se contrapor à
de grande relevância. Livros russos de direito só base econômica. Esta segunda parte é de vital importância. Ela
afirma que, ao menos segundo Engels, o direito teria alguma
surgiram no século XIX, e só com a reforma de
autonomia, pois, do contrário, não conseguiria reagir ou se con-
1864 criou-se um tribunal profissional. trapor à sua base econômica.
Outro aspecto revelador é que, por mais que atribua a seus
Essa mesma intranquilidade era sentida nas classes mais escritos caráter estritamente científico, Marx não consegue es-
abastadas, também conforme Dostoiévski (2004, p. 360): [...] conder sua visão maniqueísta da luta de classes, segundo a qual
Compreendo bem demais por que os russos de condição estão um capitalista não é apenas um ocupante da classe dominante,
todo debandando para o estrangeiro, e em número cada vez mas alguém especialmente cruel (HARRIS, 2004, p. 272).
maior a cada ano que passa. Simplesmente por instinto. Se Na visão de Marx e Engels, o direito tinha outra característi-
o navio está afundando, os ratos são os primeiros a fugir. A ca repugnante: seu papel doutrinador. Segundo eles, seria por
Santa Rússia é um país de madeira, miserável e... perigoso, um intermédio do direito que o povo aprendia o suposto caráter
país de miseráveis orgulhosos em suas camadas superiores, sacrossanto da propriedade, da liberdade contratual e da igual-
enquanto a imensa maioria mora em pequenas isbás de ali- dade de todos perante a lei. (COTTERRELL, 2003, p. 212).
cerces instáveis. Ela ficará contente com qualquer saída, basta A repulsa de Marx não tinha por alvo apenas o direito em
apenas que lhe expliquem bem. Só o governo ainda quer resis- si, mas os regimes constitucionais liberais cuja existência ele
tir, mas fica agitando um porrete no escuro e batendo na sua possibilitava. Os regimes constitucionais que emergiam das
própria gente [...]. revoluções burguesas continham, segundo ele, uma peculiar
As décadas que precederam à Revolução Bolchevique, de espécie de pseudoconsciência. O liberalismo baseia-se na
1917, haviam sido duríssimas. Até 1915, os russos já haviam fantasia de que, pelo exercício dos direitos políticos universais
passado por duas guerras desastrosas (LOSANO, 2007, 169). (sufrágio, opinião), participamos de um processo benigno de
garantia de nossos direitos privados universais (propriedade e
4 O DIREITO SEGUNDO MARX E ENGELS contrato). São esses direitos que definem o modo capitalista
Marx e Engels, mesmo tendo escrito tantos livros, não deixa- de produção, e seu exercício, seu acendramento em constitui-
ram qualquer obra sistemática de direito. Por isso, não é incor- ções liberais garante que a vida na “sociedade civil” operará

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de acordo com os princípios do egoísmo seus principais autores. Ao contrário, sua mudava o texto, deixando claro que se
e da exploração, que são exatamente o característica principal foi o esforço, ini- tratava de período excepcional. Incentiva-
contrário do que se proclama na teoria ciado por Marx e Engels e que se estende se o lucro dos camponeses e de inves-
política (KENNEDY, 1998, p. 336). até hoje por seus seguidores, de sistema- timentos estrangeiros. A coletivização
A maneira iconoclástica de ver o tizar, aprofundar e emendar os retalhos continuava a se acentuar, mas algumas
fenômeno jurídico se tornou tão indis- doutrinários sobre direito deixados pelos exceções eram permitidas. Algumas fi-
sociável do pensamento marxista que re- dois grandes teóricos socialistas. caram famosas, como os kulaks, médios
verbera nos marxistas contemporâneos, proprietários rurais que empregavam
alguns deles integrantes do movimento 5 OS PRIMEIROS ANOS DO DIREITO mão de obra.
Critical Legal Studies. É comum que seus SOVIÉTICO E SEU MESTRE Ao longo desses primeiros anos,
textos, muitas vezes ricos e de grande va- O direito soviético tem seu marco principalmente naqueles em que Lênin
lor científico, sejam metralhadoras contra inicial com a promulgação da “Declaração manteve pleno controle do Partido
a ciência ou mesmo a práxis jurídica: [...] dos Direitos dos Povos da Rússia”, em 15 Bolchevique, o grande teórico, pensa-
temos um sistema capitalista. Esse siste- de novembro de 1917, logo após a dor e estruturador jurídico do regime
ma é baseado na propriedade privada Revolução. Embora não se tratasse de foi Evgeny Bronislavovich Pashukanis
dos meios de produção. Se temos um uma constituição do ponto de vista técni- (18911937). Pouco se sabe de seu
sistema assim, é natural que tenhamos co, mas sim uma declaração de direitos passado, o que provavelmente era pro-
injustiça e miséria, que são implícitas ao com algumas normas de estruturação do posital e se devia à sua origem judai-
sistema. O papel dos juízes é cumprir Estado, foi reconhecida como ato norma- ca, não apreciada na Rússia de então,
e interpretar as leis que estabelecem tivo superior naqueles primeiros mo- marcantemente antissemita. O certo é
as normas gerais de propriedade dos mentos pós-revolucionários. que se envolveu com os bocheviques
meios de produção. Assim, os juízes for-
mam um aparato ideológico do Estado. O direito soviético tem seu marco inicial com a promulgação
(KENNEDY, 1998, p. 281-282).
da “Declaração dos Direitos dos Povos da Rússia”, em 15 de
Não tendo sido propriamente sis-
tematizada por seus autores originais novembro de 1917, logo após a Revolução.
(Marx e Engels), a teoria marxista do di-
reito foi recebendo contribuições de ou- Entretanto, foi rapidamente substitu- ainda como estudante da Faculdade 125
tros pensadores ao longo da história. Por ída pela Constituição de 10 de julho de de Direito da Universidade de São
exemplo, Lênin corrigiu Engels quando 1918, assim descrita por Vergottini (2013, Petersburgo. Posteriormente, seguiu para
este disse que o estado burguês iria se p. 751, tradução nossa): A Constituição a Universidade de Munique, onde se es-
esvair e dar lugar a uma sociedade sem de 1918 da República Russa refletia, cla- pecializou em economia política. Embora
Estado. Segundo Lênin, o primeiro passo ramente, a situação conflituosa que se estivesse na Alemanha no decisivo ano
seria a aniquilação do estado burguês e criou no país com a guerra civil e as ocu- de 1917 e início de 1918, retorna ime-
sua substituição por um estado proletá- pações estrangeiras. O conflito de clas- diatamente à Rússia e, mesmo jovem,
rio, o qual, com o tempo, iria se esvair ses se evidenciava continuamente, e o torna-se figura central a arquitetar o di-
dando lugar à sociedade sem Estado propósito de destruição da velha classe reito soviético que então nascia.
(HARRIS, 2004, p. 273). Posteriormente, de governo se manifestou textualmente. Sua principal obra foi A Teoria Geral
foi a vez de Stuchka corrigir Pashukanis, Institui-se a ditadura do proletariado do Direito e do Marxismo, de 1926. Nela,
o grande jurista soviético do início do urbano e rural a título transitório, para o autor explica com impressionante cla-
século XX (embora, na prática, a dispu- estabelecer o socialismo e, enfim, elimi- reza como o direito tratava o trabalho.
ta tenha acabado num empate, como nar o poder estatal. O poder estatal se Sua conclusão era a de que para o direi-
veremos a seguir). Para Pashukanis, o organizou como entidade constitucional to, como também para o Estado, o tra-
Estado de transição entre o capitalismo unitária, segundo a concepção marxista balho era uma commodity, como grãos
e a sociedade sem Estado teria de se e em contraponto com o princípio liberal ou minério de ferro. Assim, para fazer
valer das leis burguesas vigentes, pois, da separação de poderes. Não se admi- circular essa riqueza, o direito se valia de
segundo sua posição, o direito em si se- tiu a presença no governo de expoentes institutos e mecanismos assemelhados
ria intrinsicamente burguês. Já a posição da classe burguesa. O poder se concen- aos que utilizava para fazer circular as
de Stuchka, que recebeu a maior parte trou em órgãos do proletariado [...]. demais commodities.
dos aplausos de então, afirmou que o A promulgação da Constituição Seu maior mérito foi proporcionar
Estado de transição se valeria de uma lei de 1918 não implicou a pacificação do uma explicação científica e convincente
de cunho soviético, que vigoraria até o povo russo. A guerra civil perdurou até para a exploração do trabalho pelo regime
desaparecimento do fenômeno estatal 1920. De 1921 a 1928 prevaleceu a Nova capitalista. Antes de Pashukanis, os auto-
(PASHUKANIS, 2009, p. 16). Política Econômica (NEP), que represen- res davam respostas pouco substanciosas
Por tudo isso, pode-se dizer que a tava um recuo em relação aos coman- sobre o tema, preferindo valer-se de frases
concepção marxista-leninista nunca foi dos peremptórios de socialização da de efeito contra a exploração do homem
uma obra fechada e sistematizada por Constituição de 1918, mas que não lhe pelo homem e a mais valia; uma densa

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nuvem de praguejos ideológicos que o autor conseguiu transpor eram necessárias para que o mercado não parasse, mesmo sob
com agudo raciocínio. Depois de sua teoria, a relação entre o a NEP. O governo russo chegou mesmo a instruir jurisconsultos
direito e o trabalho nunca mais seria vista da mesma forma. a estudar o direito russo pré-revolucionário, como também os
Um dos pontos mais frisados por Pashuknis em sua obra – códigos alemão, suíço e francês (HEAD, 2008, p. 103).
e que depois lhe traria vários problemas – é que a exploração Mas não tardou para que leis soviéticas fossem editadas,
dessa commodity chegava ao máximo com o capitalismo e sua demonstrando que Stuchka também tinha sua parcela de razão.
normatização, sendo imprescindível romper esses grilhões e al- [...] sob o Código Civil promulgado em 1922, qualquer negó-
cançar uma sociedade sem Estado, o que finalmente libertaria cio que objetivasse, de maneira óbvia, o prejuízo do Estado, era
os trabalhadores (HARRIS, 2004, p. 271). considerado inválido [...]. Além disso, seu artigo 6º estabelecia
Todas essas ideias ecoam no texto da primeira constituição que: ‘Ninguém pode ser privado ou limitado em seus direitos
soviética (1918): A principal tarefa desta constituição, neste mo- civis, salvo nas hipóteses e pelos procedimentos previstos em lei.
mento de transição, é o estabelecimento de uma ditadura do pro- Ademais, o mesmo afirmava que ‘direitos civis devem ser prote-
letariado e dos camponeses mais humildes, sob a forma de uma gidos, exceto nos casos em que são exercidos em contradição
ponderosa autoridade estatal russa, com o propósito de completa com sua função sócio-econômica (HEAD, 2008, p. 103-104).
supressão da burguesia, a destruição da exploração do homem Por esta última passagem, percebe-se que o direito soviético
pelo homem e a instalação do socialismo, no qual não haverá não chegou ao extremo de negar a existência de direitos subjeti-
divisão de classes nem autoridade estatal (HEAD, 2008, p. 3). vos. Não houve, por exemplo, a adoção de uma teoria mais ra-
dical como a do direito como situação jurídica, de Duguit. O que
O período imediatamente posterior a Stálin foi houve foi o reconhecimento geral de que os direitos subjetivos
marcado por grandes mudanças no cenário tinham funções sociais. Algo parecido com o que a Constituição
brasileira de 1988 estabeleceu em relação à propriedade e seu
político do bloco socialista, principalmente com devido respeito à função social (art. 5º, incs. XXII e XXIII).
a crescente denúncia por parte dos novos Esta seção não pode ser encerrada adequadamente sem
uma ressalva de ordem técnica. Mesmo após todas as mudan-
governantes da URSS das atrocidades
ças acima verificadas, o direito soviético permaneceu como fru-
cometidas por Stálin. to do tronco romano-germânico, ao qual permaneceu filiado
até seu desaparecimento. Houve forte rompimento político com
126 O fato é que, apesar de suas imensas dificuldades iniciais, a os demais ordenamentos da mesma origem, mas não em sua
União Soviética conseguiu criar, já nos seus primeiros anos, um estrutura formal (LOSANO, 2007, 153).
corpo de normas que colocaria em “xeque” os ordenamentos
do ocidente: [...] enquanto os juristas ocidentais defendiam a 6 O PERÍODO STALINISTA (1924-1953)
propriedade, a liberdade do contrato, o Estado de Direito e a Lênin faleceu em 1924. Em 1936, Stálin já havia expurgado
igualdade, os bolcheviques argumentavam que tais doutrinas tudo que havia na legislação soviética que fizesse referência ao
haviam sido produzidas justamente para perpetuar a desigual- desaparecimento gradual do Estado. Em 1936, o regime stalinis-
dade; enquanto o ocidente defendia a entidade familiar, o go- ta já havia formalmente repudiado a noção marxista básica de
verno soviético clamava por verdadeira liberdade de escolha que as sociedades socialistas deveriam caminhar gradativamen-
tanto para contrair matrimônio quanto para divorciar-se2, além te para o desaparecimento do Estado. (HEAD, 2008, p. 108).
de defender a igualdade entre os gêneros; enquanto muitas Por mais irônico que seja, os juristas de Stálin não precisa-
legislações ocidentais questionavam o ateísmo, o Direito ram realizar acrobacias técnicas para minar as estruturas que
Soviético defendia a liberdade de não crer; apenas para com- Pashukanis arquitetara, bastou utilizá-las em sentido contrário
paração, deve-se dizer que na Grã-Bretanha de então, o divór- ao da intenção de seu criador. Tudo que fizeram foi utilizar suas
cio só era permitido em caso de adultério, sendo que à mulher teorizações despidas do teor ideológico que o autor acreditava
não bastava comprovar o adultério do marido, como também erroneamente serem de sua essência. Ironicamente, embora
crueldade ou abandono do lar; também o Código Civil Francês tenha percebido que as teorias de Kelsen podiam ser utilizadas
vigente à época dizia que a esposa devia obediência ao mari- em sentidos não queridos pelo autor austríaco, Pashukanis não
do, sendo obrigada a viver com ele e com ele seguir para onde percebeu que o mesmo poderia ocorrer com suas teorias.
ele fosse (HEAD, 2008, p. 4-5, tradução nossa). As críticas que Pashukanis fez à teoria do também judeu
O governo bolchevique sabia que devia adotar regras comer- Kelsen, conforme explanadas na Teoria Pura do Direito, se bem
ciais claras e internacionalmente padronizadas para atrair capital lidas, demonstram que o mestre russo não opunha qualquer
estrangeiro. Nesse aspecto, Pashukanis estava certo em relação a objeção sistêmica ao aparato teórico criado pelo austríaco. A
Stuchka, pois o Estado proletário precisou se valer de legislação enxurrada de insultos que dirigiu a Kelsen pode ser resumida
burguesa para que o país não entrasse em colapso por déficit. em uma simples advertência: esse aparato teórico, em mãos
Ao final, um decreto de 1921 determinou que apenas uma corte erradas, pode fazer muito estrago. Mas, por alguma razão,
– especializada em direito empresarial – podia anular contratos Pashukanis, ao menos conscientemente, não percebeu que o
e que, no futuro, a estatização de qualquer empresa só seria re- mesmo lhe poderia acontecer (PASHUKANIS, 2009, p. 70).
alizada mediante ato especialmente editado para tal fim. Dessa Tanto Kelsen quanto Pashukanis construíram sistemas jurí-
forma, os bolcheviques admitiram que as velhas leis burguesas dicos valorativamente neutros e não parecem ter se apercebi-

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do disso totalmente à época. Ao menos tese kelseniana do direito como técnica sérios apuros mesmo tendo se alinhado
no caso de Pashukanis, esse aparente específica de organização social (ambas a Stálin, em razão de sua teoria de de-
oblívio é difícil de explicar, pois ele era exprimem uma concepção técnica e não saparecimento do Estado. Era o oposto
um marxista, ideologia que prega aber- ética do direito); e desse modo as duas do que Stálin queria. Talvez não lhe te-
tamente que qualquer ideia, força ou teses dialogam e se confirmam. [...] Além nha passado pela cabeça que bastava a
teoria podem ser utilizadas por quem disso, a luta da nova escola chefiada ele demonstrar a Stálin que sua teoria
estiver no poder em seu proveito. Assim, por Vichinsky em defesa da legalidade era neutra e que, valendo-se dela, Stálin
a teoria do mestre russo para explicar a soviética, pela restauração da concep- poderia aniquilar ou eternizar o Estado,
relação do trabalho pelo sistema capi- ção do Direito como complexo de regras mas essa ideia não lhe ocorreu, ou lhe
talista poderia muito bem ser utilizada gerais e abstratas, impostas pelo poder repugnou a ponto de não a levar adiante.
para continuar, até aumentar a explora- coercitivo do Estado, contra as doutrinas Mas o fato é que sabia o perigo que cor-
ção dos trabalhadores, tudo a depender que remetem a Pasciukanis, segundo o ria e tentou se safar. Em 1927, elabora o
que quem tivesse no poder e pudesse se qual o Direito não seria mais que uma que viria a ser a primeira de várias “corre-
servir da teoria. É nesse sentido a obser- superestrutura da sociedade burguesa, ções” à sua Teoria Geral, visando agradar
vação de Roger Cotterrell, um autor britâ- destinado assim a desaparecer em uma a sanha estatista do líder de ferro (HEAD,
nico que escreveu décadas depois desses sociedade socialista, tal luta só pôde ser 2008, p. 160).
acontecimentos: o Marxismo é o primei- levada adiante com eficácia, assimilando Apesar de tudo isso, seu algoz não
ro e mais importante corpo teórico que a teoria normativista, elaborada pela mais o perdoou. O líder de ferro eliminou
nega a existência de qualquer essência refinada ciência jurídica contemporânea, Pashukanis a seu estilo, tendo-lhe força-
moral ou política. Ele retrata o meio so- isto é, a doutrina que descreveu a estrutu- do a humilhar-se primeiro, negando suas
cial como palco de lutas entre interesses ra formal do ordenamento jurídico válida, ideias anteriores, sugando-lhe a força
irreconciliáveis formas de pensar radi- como Kelsen reitera, tanto para o ordena- de trabalho até a última gota e, como
calmente diferentes (COTTERRELL, 2003, mento jurídico liberal quanto para o co- requinte final, dando-lhe, nos últimos
p. 214, tradução nossa). munista. O que existia de ingênuo e tam- momentos, a esperança de se haver rea-
Vychynsky, um grande jurista soviético bém de grotesco, nas disposições jurídicas bilitado, nomeando-o para o comitê que
que acabou tomando o lugar de Pashukanis de Pasciukanis e seus seguidores (que esboçaria a Constituição de 1936 (HEAD,
quando este foi assassinado em 1937, che- Vichinsky chama um tanto rudemente de 2008, p. 166).
gou a ironizar Kelsen, Pashukanis e Duguit traidores, contra-revolucionários, provoca- A alegação de Stálin para o assassi- 127
por não terem percebido, ao menos com- dores, etc.) era considerar que o Direito nato de Pashukanis não merece qualquer
pletamente, que sistemas jurídicos são fosse caracterizado por um tipo particular crédito. Em verdade, num país de antis-
instrumentais de dominação de classes à de relações econômicas, a saber, pelas semitismo tão arraigado quanto a Rússia,
mão de quem quer que os detenha. Esse relações dos bens, que são próprias da a afirmação de que Pashukanis manco-
comentário de Vychinsky (que também se economia burguesa. Escapava a esses munava com o também judeu Trotsky
grafa como Vichinsky) é comentado por teóricos que o Direito é uma estrutura for- deve ser vista como um embuste grossei-
Bobbio: Quando, por exemplo, Vichinsky mal e, enquanto tal, pode ser aplicada a ro do que realmente aconteceu, que foi
observa, polemizando com Kelsen (e com qualquer tipo de sociedade [...]. (BOBBIO, algo bem simples: um ditador eliminou
Duguit) que ‘eles não veem no Direito a 2008, p. 44-46). um serviçal que não lhe era mais útil.
expressão dos interesses das classes domi-
nantes em determinada sociedade’ [...], ele 7 A QUEDA DE PASHUKANIS 8 A DISTENSÃO (1953-1966)
retira um cânone da pesquisa sociológica Apesar de ter aparecido como jurista O período imediatamente posterior
do Direito que tem grande importância, de primeira grandeza ainda sob Lênin, a Stálin foi marcado por grandes mu-
ou seja, que as normas jurídicas em seu que defendia o desaparecimento gra- danças no cenário político do bloco so-
conteúdo representam não ideias eternas dual do Estado, Pashukanis permanece cialista, principalmente com a crescente
de justiça, válidas para todos os tempos, em evidência no período stalinista. Sua denúncia por parte dos novos governan-
mas sim de interesses concretos domi- relevância só é posta definitivamente em tes da URSS das atrocidades cometidas
nadores. Nem por isso arranha minima- “xeque” em 1936, tendo sido executado por Stálin.
mente a solidez da doutrina normativa; em 1937, como “sabotador Trotskista”. Entretanto, no campo jurídico, não
num certo sentido, serve de confirmação Logo ele que, em 1926, alinhara-se a houve grandes aprimoramentos em re-
e reforço. [...] Primeiro, a atitude antinatu- Stálin, opondo-se claramente a Trotsky. lação ao que havia antes. A patológica
ralista, que fundamenta a concepção de De qualquer forma, é curioso perceber burocracia produzida por Stálin não foi
Vichinsky e dos juristas soviéticos, é a mes- que, provavelmente por ter sido morto desmantelada pela distenção. É verdade
ma de Kelsen, do qual poderão sempre por ordens de Stálin, muitos autores que burocracias eficientes são condições
que quiserem, extrair ótimos argumentos contemporâneos classificam Pashukanis sine qua non até mesmo para o funcio-
contra o direito natural visto como ótimo e como anti-stalinista, o que ele nunca foi namento de democracias modernas e
eterno. Em segundo lugar, a consideração (HEAD, 2008, p. 2). funcionais. Entretanto, uma burocracia
do direito como expressão dos direitos da É verdade que Pashukanis sabia, pesada e sem controle, que se impõe
vontade dominante encontra-se com a desde a morte de Lênin, que estava em como fim e não como meio, materializa

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as palavras de Schumpeter: O método burocrático imposto ao a terra, de bem distribuir seus produtos, etc.). Este instituto asse-
setor comercial, bem como o clima moral que ele irradia, é ca- melha-se bastante à noção de situação jurídica, de Leon Duguit
paz de abater até as mentes mais ativas (SCHUMPETER, 2008, (DAVID, 2002, p. 339).
p. 206-207, tradução nossa). Havia também a propriedade estatal propriamente dita, que
Outro aspecto desse período é que muitas das repúblicas era a que vigorava nas fazendas estatais (sovkozes) ou indús-
do bloco socialista se distanciaram política e juridicamente de trias. Nelas, nada era alienável, fora os produtos. Além disso,
Moscou, fazendo com que o direito soviético tivesse sobre elas embora fossem propriedade do povo soviético, sua gestão era
influência cada vez menor (LOSANO, 2007, p. 181-182). quase sempre incumbida a alguma empresa estatal, numa es-
pécie de concessão (DAVID, 2002, p. 340).
9 A DESAGREGAÇÃO E O FIM (1966-1991) Por fim, outra peculiaridade do direito soviético — que ficará
Do ponto de vista jurídico, o último período do bloco so- na história — era sua concepção de contrato. Estruturalmente,
cialista se caracteriza pela desesperada tentativa da Rússia de os juristas soviéticos não viam o contrato de maneira muito di-
manter a influência do direito soviético sobre os demais países ferente da noção que veio desde a Roma antiga e se perpetuou
do bloco, e seu clamoroso fracasso em fazê-lo. Muito antes da nos países do tronco romano-germânico. A peculiaridade aqui
abertura política e econômica (perestroika), iniciada em 1985, consistia em que, se o contrato fosse de teor econômico, sua
já era irreversível a busca pelos demais países de sua autonomia celebração era apenas uma culminância do detalhado plano
política e jurídica, o que vinha se manifestando desde o início econômico a que toda a economia soviética estava submetida.
da década de 1970. Dessa forma, os contratos de teor econômico eram pouco ou
nada determinados pela autonomia da vontade, e já nasciam
10 INSTITUTOS CURIOSOS DO DIREITO SOVIÉTICO atrelados fortemente a uma causa, a partir da qual deveria ser
Ao longo de sua existência, o direito soviético produziu ins- interpretado (DAVID, 2002, p. 342).
titutos jurídicos incomuns. O primeiro deles foi o princípio da
legalidade socialista. Tal princípio aproximava-se do que conhe- 11 O QUE RESTOU DA URSS
cemos como legalidade estrita, mas com um forte viés ideológi- A antiga URSS transformou-se num mercado comum que
co. Segundo a legalidade socialista, a interpretação da lei ou de tem na Rússia seu principal integrante. Sua prevalência econô-
uma regra administrativa não poderia resultar em uma conclu- mica sobre esses países é imensa, embora as dominações jurí-
são que atentasse contra os objetivos socialistas, sob pena de dica e cultural tenham diminuído.
128 ser considerada nula, ainda que tal interpretação derivasse da A Rússia continua sendo um país organicamente refratário
literalidade inequívoca da norma (MAIA, 2003, p. 73). à democracia. Um dos exemplos mais esdrúxulos é a insistência
Outra diferença que ali se observava é que o direito tinha em atribuir um poder quase real ao Presidente da República. A
um papel didático. Os atos processuais deveriam ser realizados Constituição Russa, desde sua promulgação em 1993, vem cada
de tal forma que resolvessem a lide e esclarecessem os envol- vez mais atribuindo ao presidente não só poderes de Chefe de
vidos sobre seus direitos e funcionamento da Justiça (MAIA, Executivo ou Chefe de Estado, mas algo assemelhando aos po-
2003, p. 77). deres que a Constituição brasileira de 1824 reservava ao impe-
Outra excentricidade era a coexistência obrigatória entre rador como Chefe do Poder Moderador (art. 10)3, cuja principal
os princípios da convicção íntima do juiz e o da consciência missão era a de resolver litígios entre os demais poderes.
socialista do direito. Essa combinação podia ser assim definida: Além disso, a Rússia persiste em resistir à liberdade judiciá-
o juiz devia decidir de acordo com sua convicção íntima, mas ria. Nesse sentido, preciosa a lição de Chavez: Em muitos países
era incogitável que sua decisão discrepasse do que geralmente de democratização tardia, o ramo judicial permanece incapaz
se entendia por consciência socialista (MAIA, 2003, p. 84; 87). de impor-se ao Executivo e a outros atores da arena política.
Mas, é claro, as grandes curiosidades concerniam ao direito Em alguns casos, países como Argentina, Rússia e Taiwan
de propriedade. A primeira delas foi a mudança de nomencla- instituíram eleições antes de terem consolidado o Estado de
tura e de escopo pelo qual passou o direito de propriedade. Direito, e essas eleições não precedidas da consolidação de
Ele passou a ser chamado de “propriedade pessoal”, e deveria um Estado de Direito apenas mascaram o fato de que outros
ter por objeto coisas relacionadas às necessidades pessoais do componentes essenciais a uma país democrático ainda não se
proprietário. Outra característica curiosa é que a coisa objeto de constituíram (CHAVEZ, 2010, p. 63-64, tradução nossa).
propriedade pessoal não podia ser utilizada para fins lucrativos
pois, se isso ocorresse, sua natureza passaria à de meio de pro- 12 O MARXISMO AMANHÃ
dução, bem necessariamente coletivo (DAVID, 2002, p. 338). Tal como foi dito na introdução, o estudo sistemático de
Outro instituto curioso é o usufruto ou aforamento que as todos os fenômenos juspolíticos de grande porte é essencial,
cooperativas (kolkozes) tinham sobre a terra. Com a Revolução para que nos preparemos para o futuro. Dificilmente surgirá
de 1917, toda a terra passou a ser propriedade do Estado sovi- algo muito semelhante à URSS, mas propostas coletivistas con-
ético. O que se transmitia às cooperativas era esse instituto que, tinuarão a existir.
grosso modo, podemos comparar ao usufruto ou ao aforamen- Por essa razão, o melhor é ouvir as palavras de Norbert
to (enfiteuse). Mas ele reserva uma peculiaridade fundamen- Horn: A discussão das posições fundamentais do Marxismo e
tal. Não se tratava de um feixe de poderes que se transmitia à das objeções a ele pertinentes não está hoje, de modo algum,
cooperative mas, isto sim, um feixe de obrigações (de explorar historicamente superada. Que gerações inteiras de intelectuais,

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de Godoy. São Paulo: Perspectiva, 2012.


no mundo ocidental foram fortemen- MAIA, Fernando Joaquim Ferreira. Sistema recursal
te fascinadas por ideias marxistas. Os na República Socialista Federativa Soviética da
efeitos desta fascinação podem ainda Rússia. Curitiba: Juruá, 2003.
MIÈVILLE, China. The commodity-form theory of
ser verificados em toda parte, e uma international law. In: MARKS, Susan. International
continuidade de vida desse ideário, em law on the left. Cambridge: Cambridge University
uma ou outra forma, é, ao menos, de se Press, 2008.
PASHUKANIS, Evgeny B. The general theory of law
esperar no médio prazo (HORN, 2005,
and Marxism. Introduction by Dragan Milovanovic.
p. 315). New Bruswick; London: Transaction Publishers,
2009.
SCHUMPETER, Joseph A. Capitalism, socialism and
democracy. New York; London: Harper Perennial,
NOTAS 2008.
1 Nas primeiras décadas [do século XX], o VERGOTTINI. Giuseppe de. Derecho constitucional
liberalismo tinha um claro competidor no comparado. Traducción de Claudia Herrera. Bolog-
Marxismo, não só na forma de governos que na: SEPS; Buenos Aires: Editorial Universidad, 2013.
se proclamavam marxistas, mas também em
teoria política (DRYZEK; HONIG; PHILLIPS,
2008, p. 15, tradução nossa).
2 Em verdade, tal liberdade para contrair ca- Artigo recebido em 3/3/2016.
samento e divorciar-se durou pouco tempo, Artigo aprovado em 13/5/2016.
sendo revertida no tempo de Stálin (LOSANO,
2007, 185).
3 Houve artigo semelhante na Constituição
portuguesa de 1826 (art. 11). Ambas, brasi-
leira e portuguesa, basearam-se na obra de
Benjamim Constant (2005, p. 26).

REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Direito e poder. Tradução de
Nilson Moulin. São Paulo: UNESP, 2008.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 3. ed.
Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de 129
Janeiro: Forense Universitária, 2011.
CHAVEZ, Rebecca Bill. The rule of law and courts
in democratizing regimes. In: WHITTINGTON, Kei-
th E.; KELEMEN, Daniel R.; CALDEIRA, Gregory A
(Edits). The Oxford handbook of law and politics.
Oxford: Oxford University Press, 2010.
CONSTANT, Benjamin. Escritos de política. Tradu-
ção de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2005.
COTTERRELL, Roger. The politics of jurisprudence:
a critical introduction to Legal Philosopy. 2. ed.
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DAVID, René. Os grandes sistemas do direito con-
temporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho.
São Paulo: Martins Fontes, 2002.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. Tradução de
Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2004.
DRYZEK, John S; HONIG, Bonnie; PHILLIPS, Anne.
Introdução. In: DRYZEK, John S; HONIG, Bonnie;
PHILLIPS, Anne (Edits). The Oxford handbook of
political theory. Oxford: Oxford University Press,
2008.
HARRIS, J. W. Legal philosophies. 2. ed. Oxford:
Oxford University Press, 2004.
HEAD, Michael. Evgeny Pashukanis: a critical ap-
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HORN, Norbert. Introdução à ciência do direito e
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KENNEDY, Duncan. A critique of adjudication.
Cambridge; Massachusetts; London: Harvard Uni-
versity Press, 1998.
LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos:
introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-
-europeus. Tradução de Marcela Varejão. São Pau-
lo: Martins Fontes, 2007.
Hugo Otávio Tavares Vilela é juiz fe-
LÖWY, Michael. Judeus heterodoxos: messianismo, deral substituto da Seção Judiciária do
romantismos, utopia. Tradução de Marcio Honorio Estado de Goiás.

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