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DEBATE DEBATE
A mediação entre conhecimento e práticas sociais:
a racionalidade da tecnologia leve, da práxis e da arte

Mediation between social knowledge and practices:


the rationale of soft technology, praxis and art

Gastão Wagner de Sousa Campos1

Abstract This paper analyzes three rationales Resumo Este trabalho analisa e compara três
used to understand the relationship between racionalidades utilizadas para compreender a re-
knowledge and practice. It acknowledges and crit- lação entre conhecimento e prática. Reconhece e
icizes the hegemony of the technological ratio- critica a hegemonia da racionalidade tecnológi-
nale, and points out that use of the concept of soft ca, identifica que o emprego do conceito de tecno-
technology does not resolve the typical epistemo- logia leve não resolve a redução epistemológica
logical reduction of the technical rationale when típica da razão técnica quando estuda as práticas
it studies social practices, management and health- sociais, a gestão e o trabalho em saúde. Sugere um
care work. An analytical and conceptual method método analítico conceitual para o estudo de prá-
is suggested to analyze social practices and health- ticas sociais e do trabalho em saúde, utilizando-se
care work, using a technological rationale, in a racionalidade tecnológica, da práxis e da arte.
addition to that of the praxis and the art. Palavras chave Práticas sociais, Trabalho em
Key words Social practices, Healthcare work, saúde, Práxis, Tecnologias leves.
Praxis, Soft technology.

1
Departamento de Medicina
Preventiva e Social,
Faculdade de Ciências
Médicas, Universidade
Estadual de Campinas. Rua
Tessália Vieira de Camargo
126, Barão Geraldo.
13083-970 Campinas SP.
gastaowagner@mpc.com.br
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Campos GWS

Introdução ses construídas pelos autores envolvidos em cada


processo. Em geral, é mais adequada sempre
O objetivo do presente trabalho é analisar a rela- quando o objeto com que se lida são relações
ção entre o conhecimento e a prática, desenvol- humanas e o objetivo é agregar algum valor ao
vendo uma crítica ao senso comum contempo- ser humano ou à sociedade: educação, saúde,
râneo que reduz essa relação à sua dimensão tec- justiça, etc. A variabilidade dos casos e a comple-
nológica. O termo Tecnologia, em vários dicio- xidade do processo – práticas sociais e da subje-
nários, é definido como o saber científico institu- tividade – dificultam a aplicação automática do
ído utilizado pelos vários ramos da ciência apli- saber prévio, exigindo-se, portanto, reflexão e
cada. Para o Dicionário Aurélio1 tecnologia é o criatividade do agente da prática.
“conjunto de conhecimentos especializados, de prin- A racionalidade artística objetiva valores es-
cípios científicos, que se aplicam a um determina- téticos, e a relação do artista com o conhecimen-
do ramo de atividade”. Onde ficariam os siste- to e os padrões instituídos, necessita ser a mais
mas teórico-conceituais? Qual o lugar para o livre possível, já que se espera originalidade no
desenvolvimento de métodos que orientassem a produto do labor artístico.
seleção e a escolha de técnicas apropriadas? Observe-se que estas três racionalidades não
A partir de uma reflexão com base em filoso- possuem conteúdos equivalentes. Tampouco são
fias da prática, sugere-se a adoção de outras raci- excludentes entre si. Distinguem-se exatamente
onalidades, além da tecnológica, para se pensar pela maneira diversa como interferem no modo
as mediações ente conhecimento e prática. Além como os agentes lidam com a relação entre o
da razão técnica, utiliza-se a racionalidade da práxis saber e o fazer. Trata-se, contudo, de diferenças
e a da arte para se pensar essa relação. O método de escala. Sendo difícil precisar onde termina a
analítico conceitual proposto para pensar a me- técnica e onde começa a práxis ou a arte. Esta
diação entre a teoria e a prática considera, por- escala diz respeito à maior ou menor possibili-
tanto, que não há somente uma modalidade de dade de aplicação automática ou mecânica do
razão. Diferentes modalidades de razão vêm sen- conhecimento no momento da prática. Esclarece
do desenvolvidas pelo ser humano para lidar com também sobre a maior ou menor autonomia do
a relação entre o conhecimento e sua aplicação agente da prática para lidar com o conhecimento
prática. Para o método analítico conceitual ado- instituído, de sua maior ou menor capacidade de
tado, a potência compreensiva e operativa das interferência durante o processo de trabalho ou
várias racionalidades depende de sua adequação em qualquer forma de ação orientada por algum
prática a cada processo singular. Há alguns ele- conhecimento. Na técnica o automatismo é má-
mentos que devem ser considerados para discri- ximo; na práxis, intermediário e na arte, muito
minar a adequação de uma dada racionalidade: pequeno ou ausente.
natureza e atributos do objeto sobre o qual se Poderíamos ilustrar a relação entre estes três
age, objetivo da prática e complexidade do pro- termos fazendo uma analogia com Georges Gan-
cesso, o que inclui o papel mais ou menos reflexi- guilhe2 quando analisou o normal e o patológico:
vo e autônomo do agente durante o agir. Quan- ... o limite entre o normal e o patológico torna-se
do o objeto da ação é uma coisa e se objetiva a impreciso. No entanto, isto não nos leva à continui-
produção de bens ou serviços materiais, concre- dade de um normal e de um patológico idênticos em
tos, em geral, a racionalidade tecnológica mos- essência, salvo em relação a mudanças quantitativas
tra-se adequada. A razão tecnológica é a domi- – e a uma relatividade da saúde e da doença bastante
nante do ponto de vista discursivo na sociedade confusa... Haveria um continuum entre as três
moderna, tem seu fundamento na filosofia de modalidades de razão com que os seres humanos
Descartes e na variedade de autores que resumem realizam a mediação entre saber e fazer, ainda quan-
a razão à lógica formal, como é o caso do materi- do estas variações de grau terminem por indicar
alismo, do mecanicismo ou das várias formas de qualidades distintas em cada estilo de mediação.
positivismo. A razão tecnológica imagina que o Considere-se, entretanto, que a definição dos limi-
trabalho e as práticas humanas seriam regulados tes entre o modo tecnológico de lidar com a aplica-
pelo saber previamente acumulado, de preferên- ção do conhecimento, ou da práxis ou do artístico
cia consolidado como ciência. Opera com a redu- é uma construção social, variável, portanto, con-
ção máxima da autonomia do agente. forme a época e o sujeito. Para a razão tecnológica
A razão da práxis é a lógica dialética que re- a única relação científica, e, portanto, segura e útil,
conhece contradições, paradoxos e aporias, bus- entre saber e fazer seria a técnica. O uso de tecnolo-
cando orientar a ação humana a partir de sínte- gia apropriada indicaria a mediação virtuosa entre
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saber e fazer. Frequentemente, estas modalidades para garantir eficácia e eficiência a qualquer ação
contaminam práticas típicas de outras áreas. Por ou ao trabalho em particular. A racionalidade
exemplo, um trabalho artístico poderá ser realiza- tecnológica é suficiente naquelas atividades em
do obedecendo à razão tecnológica sempre quan- que o saber instituído sob a forma de normas,
do o “artista” produzir obras em série, estritamen- padrões, protocolos, serve como principal orien-
te elaboradas a partir do padrão dominante. No tação para a atividade do agente da prática. Cita-
caso, haverá um sacrifício da originalidade em de- se o exemplo da fabricação de mesas por um
corrência do baixo grau de invenção e de criativi- carpinteiro. Em virtude da força do instituído,
dade do agente. Vale considerar ainda que esta quase não há espaço para a criação em ato du-
imprecisão de limites decorre também do fato de rante o processo de fazer-se, ou seja, durante o
que na modalidade práxis e artística de saber-fazer trabalho. Ao agente cabe a aplicação, de forma
há incorporação, em medidas variáveis, de técni- regular e mecânica, de invenções e de descobertas
cas. Tanto a práxis quanto a arte, ao aplicar algum realizadas no passado. O adestramento do agen-
saber, utilizam tecnologias. te segundo esses padrões e normas de conduta é
Trata-se, portanto, de um referencial ampli- o elemento essencial para assegurar o cumpri-
ado para se pensar a relação entre o saber e o mento dos objetivos e metas traçadas.
fazer. Esse mesmo referencial permite a análise Quando a racionalidade tecnológica domina
de políticas, de modalidades de gestão e do tra- o trabalho vivo em ato, conforme conceituado
balho em saúde. por K. Marx, este é conduzido pelo trabalho
morto (pela produção anterior de conhecimento
A racionalidade tecnológica e, em geral, sintetizado sob a forma de ferramen-
tas, máquinas, manuais de conduta, arranjos
A saúde é campo de saber aplicado. Segundo organizacionais, etc.). Para a razão tecnológica, a
o discurso oficial da medicina, o trabalho em autonomia do trabalhador ou de qualquer agente
saúde seria baseado em um saber que se preten- da prática não é necessária, ao contrário, seria
de científico, isto é, uma prática tecnológica rea- até inconveniente ou, no mínimo, um risco des-
lizada com base em evidências comprovadas pela necessário, já que, adotando-se evidências cientí-
ciência. O caráter estritamente técnico do traba- ficas, não haverá momento em que os agentes
lho em saúde, seja ele clínico ou coletivo, tem estariam obrigados à reflexão ou à tomada de
sido questionado por vários autores. A profes- decisão. Para a razão tecnológica, em qualquer
sora Maria Cecília F. Donnagelo e Luiz Pereira3, circunstância, seja qual for o objeto trabalhado
ainda na década de setenta, já se perguntavam se (coisa ou relações sociais), ou, seja lá qual for a
a medicina seria uma prática técnica ou social: complexidade do processo, seria possível e con-
A medicina, que em uma primeira aproxima- veniente organizarem-se linhas de produção con-
ção pode ser encarada como uma prática técnica, duzidas pela norma ou padrão instituído, em que
isto é, como manipulação de um conjunto de ins- caberia ao trabalhador, além dos gestos condu-
trumentos técnicos e científicos para produzir uma zidos pela norma, a realização de ajustes sempre
ação transformadora sobre determinados objetos – segundo a referência padronizada.
o corpo, o meio físico – responde, enquanto tal, a A medicina baseada em evidências5, apesar
exigências que se definem à margem da própria de suas declarações sobre a importância da ex-
técnica, no todo organizado das práticas sociais periência clínica, imagina, centralmente, condu-
determinadas, econômicas, políticas e ideológicas zir o trabalho clínico com base em evidências co-
entre as quais se inclui. (p. 15) lecionadas, em momentos anteriores, por meio
Aristóteles4, em a Ética a Nicômaco, conside- de estudos estatísticos de várias ordens. Evidên-
ra a existência de três modos de relação entre o cia é uma palavra latina e significa “certeza mani-
conhecimento e a prática. Haveria a atividade téc- festa, qualidade ou caráter do evidente”. Esse estilo
nica, a práxis e aquela puramente teórica. O mé- de razão tecnológica não valoriza a prudência re-
todo analítico conceitual utilizado incorporou os flexiva do agente em cada caso. Tampouco valo-
dois primeiros conceitos e, com base na lógica riza a preparação do profissional para o exercí-
do filósofo, incluiu também a racionalidade da cio de interpretações crítica da tecnologia consi-
arte como uma terceira possibilidade. Para esse derada adequada a priori, valendo-se do contex-
autor, o saber fazer não se reduz à tecnologia. Há to singular, das especificidades do “objeto” sobre
campos de atividade humana em que o saber o qual se age e, menos ainda, em função de valo-
tecnológico, ainda que útil, é insuficiente para res objetivados pela prática (autonomia do usuá-
assegurar os objetivos almejados. Hoje diríamos: rio, por exemplo).
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Apesar de todas estas considerações críticas, sideração de valores éticos modifica e amplia a
há que se reconhecer que a modalidade de medi- racionalidade técnica ao tomar como referência
ação tecnológica entre conhecimento e prática para agir tanto alguma teoria e seus desdobra-
comprovou sua eficácia em diversos campos da mentos tecnológicos, quanto um sistema de va-
atividade humana, particularmente, quando se lores e de diretrizes ético-políticas. Por exemplo,
trate da produção de artefatos materiais – mesas, ao se adotar como objetivo e finalidade do tra-
fármacos, automóveis, armas, etc. – e mesmo de balho clínico, além da saúde, o tema da constru-
serviços em que o objeto sobre o qual se trabalha ção de autonomia para o usuário, modifica-se
diretamente não sejam pessoas. Como é o caso radicalmente tanto o papel do profissional du-
de serviços em que as pessoas são beneficiários rante o processo de trabalho, quanto a compo-
indiretos, como tratamento de água, coleta de lixo, sição de recursos tecnológicos a ser utilizada em
preparação de alimentos, entre outros. dado projeto terapêutico7.
Os seres humanos são heterogêneos e ativos;
A racionalidade da práxis seus atributos, no caso da saúde, o processo saúde
e doença, dependem de múltiplos planos de pro-
Os limites da racionalidade tecnológica ocor- dução. Além do mais, quando submetidos a al-
rem principalmente nas práticas sociais, em con- guma prática têm capacidade de reagir em dois
textos em que a atividade ou o trabalho realiza- planos: segundo a inércia ou a resiliência típica
se mediante interação pessoal (intra, inter ou dos objetos naturais, mas também reagem e in-
transpessoal). No campo das práticas sociais a teragem para além da inércia das coisas. Estes
relação linear entre saber e fazer tem a eficácia atributos humanos aumentam o grau de incer-
comprometida. Aristóteles recomendava que nes- teza sobre o resultado das práticas sociais, exi-
sas situações a racionalidade que comandaria a gindo capacidade reflexiva e de tomada de deci-
relação entre saber e prática seria a da práxis. Ele são durante o processo de trabalho ou de inter-
cita três campos de atividades – a política, a ética venção. A utilização mecânica de tecnologias não
(justiça) e a clínica - onde o pensar e o agir técni- se adéqua a esse tipo complexo de prática ou de
cos não seriam suficientes ao atendimento das trabalho. Por outro lado, não há práxis sem co-
finalidades básicas destas práticas. Podemos, nhecimento prévio e uso em ato de técnicas.
hoje, acrescentar a essa lista a pedagogia, a ges- Alguns filósofos, para ilustrar a necessidade
tão, o cuidado e o autocuidado, a amizade, o da razão práxis, costumam trazer o exemplo da
lazer, práticas amorosas, entre outras. Observe- lei que proíbe o assassinato. A lei funciona como
se que todas estas práticas sociais têm em co- uma norma ou um padrão geral de comporta-
mum o fato de que são práticas relacionais, em mento, que deverá ser conhecido pelo juiz, mas
que o agente e o “objeto” sobre o qual se atua são que nunca deverá ser aplicado de modo mecâni-
pessoas. Política é o governo da Polis, lida com as co ou automático porque a morte de outrem
relações sociais e com os outros. Clínica é o tra- poderá ter ocorrido em um contexto de guerra
balho terapêutico de humanos sobre humanos, declarada pelo Estado, e, no caso, o agente deve-
cuidado de si e dos outros. Ética e Justiça é a ria ser homenageado; ou de legítima defesa de
busca do bem, a aplicação da lei para julgar ação sua vida – no caso, não haveria crime. Para o
de outros. Aristóteles afirmava que a razão teóri- exercício desse tipo de prática o pensar e o agir
ca é aquela que busca a verdade, e a práxis a que técnico não são suficientes, necessita-se da racio-
busca compreender a ação humana. nalidade da práxis, em que o agente, o trabalha-
Kant6 estabeleceu algumas diferenças entre a dor, o profissional, deverá modificar a aplicação
“razão pura”, o conhecimento teórico, aquele que da lei, fazer o padrão variar em função de ca-
busca “o que há”, e a “razão prática”, pela qual se racterísticas singulares do caso. Para o proceder
imagina e se constrói “o que deveria ser”. Segun- típico da práxis necessita-se conhecer a lei, a nor-
do esse filósofo, na razão prática o julgamento ma, o padrão, o conhecimento instituído, mas
da adequabilidade da ação decorre também do exige-se capacidade de reflexão e de agir pruden-
cumprimento de alguma finalidade, sendo, por- te, criando-se novos procedimentos em ato.
tanto, ético. Considero, apoiando-me em Kant, Em grande medida, concordo com a análise
que na racionalidade da práxis, além do conheci- de Alfredo Pereira Júnior8 quando afirma: “sus-
mento acumulado, do saber sobre as tecnologi- tento a visão de que a tecnologia é um componente
as apropriadas, o agente deverá considerar, tan- necessário da práxis”. Mas discordo quando afir-
to na programação, quanto durante a execução ma que a “reprodução da alienação estaria não na
da atividade, os objetivos de seu trabalho. A con- própria tecnologia, mas sim na ação de grupos eco-
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nômicos, interessados em lucro pela inovação tec- ção ao saber instituído quanto aos governantes e
nológica”. O autor citado utiliza algumas refle- normas de cada uma das instituições e organiza-
xões de Karl Marx para fundamentar sua análi- ções onde ocorre a atividade. Daí, a defesa, em
se. Considero que, ao longo de sua obra, Marx várias sociedades modernas, de que estes agentes
trata do conceito de práxis de forma ambígua. operem com certo grau de autonomia na justiça,
Ora, particularmente na Ideologia Alemã9, defi- clínica, saúde pública e governo. Essa necessida-
nindo-o como toda atividade por meio da qual de estrutural de assegurar-se poder aos agentes
o ser humano cria e transforma as relações soci- da práxis obriga a sociedade a inventar formas
ais e, concomitante, sua própria existência; ora, de controle sobre essa autonomia para prevenir
Marx o utiliza como equivalente do trabalho o abuso de poder. A regra geral, segundo minha
humano em geral, aproximando-se, nessa ver- opinião, para atenuar a tendência ao uso do po-
tente, da concepção de Alfredo Pereira Júnior. Em der é a democratização institucional por meio da
alguma medida, quando Marx considera que cogestão e do agir comunicativo, instituindo-se
toda atividade humana teria a lógica da práxis, formas de prática compartilhada da clínica e dos
ele subestima o grau de alienação que o trabalho processos educativos, o direito de defesa, a liber-
organizado com base na razão técnica produz. dade de opinião e de associação12.
Esta segunda abordagem de Marx é mais explici- O exercício da práxis depende de uma for-
ta no Capital, onde se afirma que o desenvolvi- mação Paidéia para os agentes13. Um saber com-
mento tecnológico, por si só, asseguraria bem- preensivo, que inclua o conhecimento técnico es-
estar e progresso, na medida em que o desenvol- pecífico de cada campo, e também o governo de
vimento das forças produtivas acabaria por alte- si mesmo e as relações sociais e políticas. Exige
rar as relações de produção no sentido de inclu- domínio sobre o conhecimento cognitivo, subje-
são e da cidadania plena (o comunismo). tivo e político. Tudo isto, exatamente para am-
Aproximo-me mais da posição sustentada pliar a crítica e a inventividade de cada agente
por Marx na Ideologia Alemã e depois reelabora- diante da especificidade de cada caso. O conheci-
da por Castoriadis10 quando afirma: mento sobre cada caso depende da capacidade
Chamamos de práxis este fazer no qual o outro de observação do contexto, de escuta e de intera-
ou os outros são visados como seres autônomos [...]. ção com usuários e pares. Mais do que apenas
Existe na práxis um por fazer, mas esse por fazer é escutar, implica na arte de compartilhar decisões
específico: é precisamente o desenvolvimento da durante a prática.
autonomia [...]. A práxis não pode ser reduzida a O trabalho em saúde é um exemplo claro de
um esquema de fins e de meios [...] a práxis jamais espaço social que necessita da lógica da práxis.
pode reduzir a escolha de sua maneira de operar a Entretanto, há inúmeros obstáculos para que se
um simples cálculo [...] a práxis é por certo, uma consiga operar no cotidiano com a práxis. Há a
atividade consciente, só podendo existir na luci- hegemonia do paradigma biomédico que se or-
dez; mas ela é diferente da aplicação de um saber dena com base na razão técnica, mas há outros
preliminar (não podendo justificar-se pela invo- empecilhos.
cação de tal saber – o que não significa que ela não A maioria das escolas de gestão, desde a Teo-
possa justificar-se). (p. 94-95) ria da Administração Científica de Taylor, preten-
Portanto, a hegemonia da racionalidade tec- de normatizar o trabalho ao máximo, retirando
nológica, apesar da importância do desenvolvi- autonomia e iniciativa dos operadores durante o
mento técnico, impõe alienação e perda de auto- processo de trabalho. A racionalidade predomi-
nomia a trabalhadores e às práticas sociais em nante na administração de pessoal é a tecnológi-
geral. Uma das pretensões da medicina e da saú- ca14. Nos últimos anos, um movimento interna-
de pública, quando predomina a racionalidade cional denominado de “gerencialismo” exacerbou
técnica, é o controle do estilo de vida das pessoas. essa tendência ao introduzir a gestão com base
O autocuidado deveria, tanto quanto o trabalho em resultados, trazendo para dentro das organi-
médico, organizar-se com base em evidências; zações a concorrência do mercado e demarcando
almeja-se a subordinação dos estilos de vida da a performance de cada trabalhador, equipe ou de-
maioria a comportamentos definidos pela ciên- partamento segundo a fixação de metas. Em ge-
cia e não em interação com valores, interesses e ral, estas metas são indicadores que reduzem o
necessidades dos agrupamentos e indivíduos11. sentido e o significado da prática a algumas de
O exercício da razão da práxis depende de suas dimensões, em geral, daquelas de maior in-
que o agente da prática desfrute de poder, de teresse ao poder dominante. Esse dado histórico
importante grau de autonomia, tanto em rela- e estrutural alerta para a dificuldade de traba-
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lhar-se em instituições, públicas ou privadas, se- com tecnologia, ainda que adjetivada de tecnolo-
gundo a racionalidade da práxis. Essa hegemonia gia leve.” (p. 117)
da racionalidade tecnológica na gestão acontece O professor Mario Testa19 adverte que, no
mesmo naquelas organizações em que predomi- campo social, o saber fazer cotidiano necessita
na uma lógica operacional que exige autonomia, ser pensado por referência a uma percepção teó-
criatividade e iniciativa dos trabalhadores, como rica compreensiva sobre o campo de saber e de
é o caso da saúde15 e da educação. práticas em questão, e também sobre o conjunto
de valores e interesses dos sujeitos envolvidos.
Tecnologias Leves A noção de tecnologia leve, portanto, não as-
segura um importante pré-requisito para a prá-
Os limites do modo de mediação tecnológico xis, a saber, o agente da prática necessita de um
entre saber e fazer no espaço das chamadas práti- referencial teórico-conceitual para auxiliá-lo a
cas sociais e da subjetividade têm estimulado o julgar e a decidir, durante o processo de traba-
surgimento de movimentos críticos dessa racio- lho, sobre a aplicação de técnicas, sejam elas leves
nalidade. Observa-se, ultimamente, com intuito ou duras. Julgamento e decisão que devem ser
de fugir dessa redução, uma tendência a buscar- tomados de modo dialógico com outros sujeitos
se socorro no conceito de “soft appropiate techno- implicados no processo, considerando-se tam-
logy”. O intuito declarado é a superação da aliena- bém valores e objetivos políticos e eticamente
ção, da burocratização e da redução dos objeti- construídos.
vos do processo de trabalho à sua rentabilidade. Escolas epistemológicas pós-modernas 20
Parece-me, contudo, que acrescentar o adjetivo (desconstrutivismo, filosofia da diferença, pós-
“soft” ao substantivo “technology” não altera as estruturalismo e outras) vêm criticando dura-
limitações da racionalidade tecnológica quando mente teorias e marcos conceituais, já que estes
se trata de práticas sociais (quer sejam intra, inter metadiscursos aprisionariam os agentes tanto
ou trans-subjetivas). Os conceitos de tecnologia quanto a razão tecnológica. Sugerem, como al-
leve e dura apareceram nos anos oitenta, ressalta- ternativa, que a prática deveria construir-se em
vam a importância de construírem-se técnicas ato. Parece-me que recomendam aos agentes da
apropriadas também para o território das rela- prática liberar-se do saber instituído, em geral e
ções humanas: Maurice Albertson e Audrey Fau- não somente do tecnológico, em um grau ainda
lkner16 construíram o conceito de “appropriate soft maior do que aquele recomendado pela práxis.
technology” para pensar modos científicos para Em realidade, a razão da práxis recomenda que
se lidar com “the social structures, human intera- se conheça e se leve em consideração, ainda que
tive processes, and motivation techniques”. de forma crítica, o saber instituído, já que não se
Ao traçar a história do movimento em prol trataria de reinventar tudo a cada intervenção ou
de tecnologias apropriadas, vários autores 17 a cada atividade.
apontam a influência de Ghandi em sua consti-
tuição. Particularmente quando estimulou a pro- Racionalidade da arte
dução artesanal e caseira de tecidos como forma
de lutar contra o colonialismo inglês na Índia. Essa concepção pós-moderna assemelha-se
Emerson Merhy18 introduziu o conceito no cam- à terceira forma de mediação proposta pelo es-
po da saúde lembrando que ele pode ser utiliza- quema analítico conceitual apresentando nesse
do para reforçar o domínio das tecnologias du- artigo, a saber, a racionalidade da arte. Nessa
ras no trabalho vivo, mas sugeria também que modalidade de racionalidade a ligação do agente
poderiam ser utilizadas “tecnologias leves para o artista com o saber, conceitos e tecnologias nor-
exercício dos autogovernos e nos processos in- malizados, é ainda mais tênue do que na práxis.
terseçores (sic)”. (p. 71) Nessa modalidade predomina a invenção; a cria-
Ricardo Ayres, em debate com Merhy, ressal- tividade e a busca de originalidade são imperati-
tou a importância de realizar-se uma discussão vas. Aqui, o talento e a intuição são elementos
cuidadosa sobre a ubiquidade com que vem sen- constitutivos do agente, tão ou mais relevantes
do utilizado o conceito de tecnologia, preocupa- do que a formação e a disciplina. Na arte, a prin-
va-o o fato de que o cuidado em saúde depende- cipal finalidade é estética, ou seja, almeja-se a ca-
ria de improvisação e criação singular, postura pacidade de encantar a outros seres humanos. O
não autorizada ou estimulada pela razão tecno- grau de experimentação permitido e necessário é
lógica: “Minha questão refere-se à pertinência de maior do que aquele tolerado na práxis, já que
tratar o espaço relacional trabalhador usuário nesta o “objeto” com o qual se trabalha são pes-
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soas, enquanto na arte são materiais – pedra, te de nossas práticas, mas também amputa tudo
tinta, papel, instrumentos -, que podem ser des- aquilo que não cabe em seu leito estreito. As ex-
cartados quando do insucesso da experiência. Na pressões de resistência a estas amputações são,
práxis, o trabalho com pessoas impõe restrições somente para citar algumas vertentes: a saúde
éticas ao experimentalismo e à invenção. Sugerir coletiva, a concepção de promoção à saúde, a
uma clínica ou alguma modalidade de trabalho luta pela democracia institucional, a teoria do
coletivo conduzidos com a racionalidade artísti- agir comunicativo, a psicanálise, as noções de
ca me parece perigoso, já que se tenderia a expor atenção psicossocial, de clínica ampliada, com-
os usuários a riscos inadmissíveis e a facilitar partilhada e centrada no sujeito, são os espaços
abuso de poder por parte do agente. Entretanto, de crítica e de ampliação da razão tecnológica.
em casos extremos, observa-se a utilização desse A insistência em pensar-se o trabalho em saú-
estilo de prática na saúde. Isto ocorre em casos de como tecnológico, ainda quando se refira a
clínicos em que se considera o enfermo sem al- tecnologias leves, tem produzido o fetiche da fer-
ternativa de tratamento e, em comum acordo ramenta, do arranjo organizacional, da planilha
entre equipe e usuário, admitem-se terapêuticas para diagnósticos cognitivos e da subjetividade,
inovadoras e alternativas. Em catástrofes coleti- de dado modelo assistencial. Insto, o concreto
vas, os profissionais de saúde também se vêem da técnica tem detrimento de compreensões am-
obrigados a inventar práticas em virtude de con- pliadas (teorias, método analíticos conceituais)
dições precárias ou de eventos inusitados e com sobre o processo saúde, risco, doença e interven-
grande potencial de produzir danos. ção, sobre objetivos e finalidades da política, da
gestão e do trabalho em saúde. As razões da prá-
O trabalho em saúde e a práxis tica e da arte reconhecem que, em geral, há vários
meios para se atingir determinados fins ou me-
Na maior parte dos contextos, a gestão e o tas. E ainda, os mesmos meios, os mesmos ar-
trabalho em saúde necessitariam serem pensados ranjos organizacionais, a mesma composição de
como uma práxis. Sendo assim, como assegurar equipes, as mesmas linhas de cuidado, no con-
proteção aos usuários e à coletividade diante da creto, costumam produzir resultados distintos.
autonomia relativa inerente à racionalidade da A liberdade humana passa pela razão, pela
práxis? A valorização do conhecimento instituí- construção de razões com base em evidências
do, de outras experiências, é um dos mecanismos concretas, em valores éticos e políticos, no in-
que limita o arbítrio do agente. Na arte, em tese, o consciente, no interesse, no medo, no afeto, no
grau de liberdade do agente deve ser enorme, afi- desejo, na busca de reconhecimento... O ser hu-
nal a ironia, a caricatura e a crítica são também mano aprendeu a pensar sobre a existência, apren-
formas de construírem-se obras de arte. Outra deu a construir valores, teorias, métodos e técni-
trava de segurança e de proteção ao usuário é a cas para orientar nossas práticas individuais e
prática compartilhada, em todas as etapas do tra- coletivas, todo ser humano é filósofo em alguma
balho em saúde, entre profissionais e usuários. medida, como repetia e repetia Sócrates, Grams-
Cogestão do diagnóstico, dos projetos terapêuti- ci e Paulo Freire e tantos outros, cabe-nos cons-
cos e de intervenção, análise interativa dos resul- truirmos instituições que favoreçam este devir.
tados, tanto com usuários como com pares. Mais do que tecnologias apropriadas se tra-
No concreto, o maior empecilho para que a taria de buscar racionalidades, sistemas analíti-
racionalidade da práxis seja o paradigma domi- co-conceituais, métodos e teorias apropriadas.
nante com campo da saúde é a dominação da
razão técnica em todos os campos da atividade
Referências
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cola de Frankfurt, vários pensadores têm carac- 1. Ferreira ABH. Novo Dicionário Aurélio da Língua
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