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Campos GWS. A Mediação Entre Conhecimento e Práticas Sociais A Racionalidade Da Tec. Leve, Da Práxis e Da Arte PDF
Campos GWS. A Mediação Entre Conhecimento e Práticas Sociais A Racionalidade Da Tec. Leve, Da Práxis e Da Arte PDF
DEBATE DEBATE
A mediação entre conhecimento e práticas sociais:
a racionalidade da tecnologia leve, da práxis e da arte
Abstract This paper analyzes three rationales Resumo Este trabalho analisa e compara três
used to understand the relationship between racionalidades utilizadas para compreender a re-
knowledge and practice. It acknowledges and crit- lação entre conhecimento e prática. Reconhece e
icizes the hegemony of the technological ratio- critica a hegemonia da racionalidade tecnológi-
nale, and points out that use of the concept of soft ca, identifica que o emprego do conceito de tecno-
technology does not resolve the typical epistemo- logia leve não resolve a redução epistemológica
logical reduction of the technical rationale when típica da razão técnica quando estuda as práticas
it studies social practices, management and health- sociais, a gestão e o trabalho em saúde. Sugere um
care work. An analytical and conceptual method método analítico conceitual para o estudo de prá-
is suggested to analyze social practices and health- ticas sociais e do trabalho em saúde, utilizando-se
care work, using a technological rationale, in a racionalidade tecnológica, da práxis e da arte.
addition to that of the praxis and the art. Palavras chave Práticas sociais, Trabalho em
Key words Social practices, Healthcare work, saúde, Práxis, Tecnologias leves.
Praxis, Soft technology.
1
Departamento de Medicina
Preventiva e Social,
Faculdade de Ciências
Médicas, Universidade
Estadual de Campinas. Rua
Tessália Vieira de Camargo
126, Barão Geraldo.
13083-970 Campinas SP.
gastaowagner@mpc.com.br
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Campos GWS
Apesar de todas estas considerações críticas, sideração de valores éticos modifica e amplia a
há que se reconhecer que a modalidade de medi- racionalidade técnica ao tomar como referência
ação tecnológica entre conhecimento e prática para agir tanto alguma teoria e seus desdobra-
comprovou sua eficácia em diversos campos da mentos tecnológicos, quanto um sistema de va-
atividade humana, particularmente, quando se lores e de diretrizes ético-políticas. Por exemplo,
trate da produção de artefatos materiais – mesas, ao se adotar como objetivo e finalidade do tra-
fármacos, automóveis, armas, etc. – e mesmo de balho clínico, além da saúde, o tema da constru-
serviços em que o objeto sobre o qual se trabalha ção de autonomia para o usuário, modifica-se
diretamente não sejam pessoas. Como é o caso radicalmente tanto o papel do profissional du-
de serviços em que as pessoas são beneficiários rante o processo de trabalho, quanto a compo-
indiretos, como tratamento de água, coleta de lixo, sição de recursos tecnológicos a ser utilizada em
preparação de alimentos, entre outros. dado projeto terapêutico7.
Os seres humanos são heterogêneos e ativos;
A racionalidade da práxis seus atributos, no caso da saúde, o processo saúde
e doença, dependem de múltiplos planos de pro-
Os limites da racionalidade tecnológica ocor- dução. Além do mais, quando submetidos a al-
rem principalmente nas práticas sociais, em con- guma prática têm capacidade de reagir em dois
textos em que a atividade ou o trabalho realiza- planos: segundo a inércia ou a resiliência típica
se mediante interação pessoal (intra, inter ou dos objetos naturais, mas também reagem e in-
transpessoal). No campo das práticas sociais a teragem para além da inércia das coisas. Estes
relação linear entre saber e fazer tem a eficácia atributos humanos aumentam o grau de incer-
comprometida. Aristóteles recomendava que nes- teza sobre o resultado das práticas sociais, exi-
sas situações a racionalidade que comandaria a gindo capacidade reflexiva e de tomada de deci-
relação entre saber e prática seria a da práxis. Ele são durante o processo de trabalho ou de inter-
cita três campos de atividades – a política, a ética venção. A utilização mecânica de tecnologias não
(justiça) e a clínica - onde o pensar e o agir técni- se adéqua a esse tipo complexo de prática ou de
cos não seriam suficientes ao atendimento das trabalho. Por outro lado, não há práxis sem co-
finalidades básicas destas práticas. Podemos, nhecimento prévio e uso em ato de técnicas.
hoje, acrescentar a essa lista a pedagogia, a ges- Alguns filósofos, para ilustrar a necessidade
tão, o cuidado e o autocuidado, a amizade, o da razão práxis, costumam trazer o exemplo da
lazer, práticas amorosas, entre outras. Observe- lei que proíbe o assassinato. A lei funciona como
se que todas estas práticas sociais têm em co- uma norma ou um padrão geral de comporta-
mum o fato de que são práticas relacionais, em mento, que deverá ser conhecido pelo juiz, mas
que o agente e o “objeto” sobre o qual se atua são que nunca deverá ser aplicado de modo mecâni-
pessoas. Política é o governo da Polis, lida com as co ou automático porque a morte de outrem
relações sociais e com os outros. Clínica é o tra- poderá ter ocorrido em um contexto de guerra
balho terapêutico de humanos sobre humanos, declarada pelo Estado, e, no caso, o agente deve-
cuidado de si e dos outros. Ética e Justiça é a ria ser homenageado; ou de legítima defesa de
busca do bem, a aplicação da lei para julgar ação sua vida – no caso, não haveria crime. Para o
de outros. Aristóteles afirmava que a razão teóri- exercício desse tipo de prática o pensar e o agir
ca é aquela que busca a verdade, e a práxis a que técnico não são suficientes, necessita-se da racio-
busca compreender a ação humana. nalidade da práxis, em que o agente, o trabalha-
Kant6 estabeleceu algumas diferenças entre a dor, o profissional, deverá modificar a aplicação
“razão pura”, o conhecimento teórico, aquele que da lei, fazer o padrão variar em função de ca-
busca “o que há”, e a “razão prática”, pela qual se racterísticas singulares do caso. Para o proceder
imagina e se constrói “o que deveria ser”. Segun- típico da práxis necessita-se conhecer a lei, a nor-
do esse filósofo, na razão prática o julgamento ma, o padrão, o conhecimento instituído, mas
da adequabilidade da ação decorre também do exige-se capacidade de reflexão e de agir pruden-
cumprimento de alguma finalidade, sendo, por- te, criando-se novos procedimentos em ato.
tanto, ético. Considero, apoiando-me em Kant, Em grande medida, concordo com a análise
que na racionalidade da práxis, além do conheci- de Alfredo Pereira Júnior8 quando afirma: “sus-
mento acumulado, do saber sobre as tecnologi- tento a visão de que a tecnologia é um componente
as apropriadas, o agente deverá considerar, tan- necessário da práxis”. Mas discordo quando afir-
to na programação, quanto durante a execução ma que a “reprodução da alienação estaria não na
da atividade, os objetivos de seu trabalho. A con- própria tecnologia, mas sim na ação de grupos eco-
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lhar-se em instituições, públicas ou privadas, se- com tecnologia, ainda que adjetivada de tecnolo-
gundo a racionalidade da práxis. Essa hegemonia gia leve.” (p. 117)
da racionalidade tecnológica na gestão acontece O professor Mario Testa19 adverte que, no
mesmo naquelas organizações em que predomi- campo social, o saber fazer cotidiano necessita
na uma lógica operacional que exige autonomia, ser pensado por referência a uma percepção teó-
criatividade e iniciativa dos trabalhadores, como rica compreensiva sobre o campo de saber e de
é o caso da saúde15 e da educação. práticas em questão, e também sobre o conjunto
de valores e interesses dos sujeitos envolvidos.
Tecnologias Leves A noção de tecnologia leve, portanto, não as-
segura um importante pré-requisito para a prá-
Os limites do modo de mediação tecnológico xis, a saber, o agente da prática necessita de um
entre saber e fazer no espaço das chamadas práti- referencial teórico-conceitual para auxiliá-lo a
cas sociais e da subjetividade têm estimulado o julgar e a decidir, durante o processo de traba-
surgimento de movimentos críticos dessa racio- lho, sobre a aplicação de técnicas, sejam elas leves
nalidade. Observa-se, ultimamente, com intuito ou duras. Julgamento e decisão que devem ser
de fugir dessa redução, uma tendência a buscar- tomados de modo dialógico com outros sujeitos
se socorro no conceito de “soft appropiate techno- implicados no processo, considerando-se tam-
logy”. O intuito declarado é a superação da aliena- bém valores e objetivos políticos e eticamente
ção, da burocratização e da redução dos objeti- construídos.
vos do processo de trabalho à sua rentabilidade. Escolas epistemológicas pós-modernas 20
Parece-me, contudo, que acrescentar o adjetivo (desconstrutivismo, filosofia da diferença, pós-
“soft” ao substantivo “technology” não altera as estruturalismo e outras) vêm criticando dura-
limitações da racionalidade tecnológica quando mente teorias e marcos conceituais, já que estes
se trata de práticas sociais (quer sejam intra, inter metadiscursos aprisionariam os agentes tanto
ou trans-subjetivas). Os conceitos de tecnologia quanto a razão tecnológica. Sugerem, como al-
leve e dura apareceram nos anos oitenta, ressalta- ternativa, que a prática deveria construir-se em
vam a importância de construírem-se técnicas ato. Parece-me que recomendam aos agentes da
apropriadas também para o território das rela- prática liberar-se do saber instituído, em geral e
ções humanas: Maurice Albertson e Audrey Fau- não somente do tecnológico, em um grau ainda
lkner16 construíram o conceito de “appropriate soft maior do que aquele recomendado pela práxis.
technology” para pensar modos científicos para Em realidade, a razão da práxis recomenda que
se lidar com “the social structures, human intera- se conheça e se leve em consideração, ainda que
tive processes, and motivation techniques”. de forma crítica, o saber instituído, já que não se
Ao traçar a história do movimento em prol trataria de reinventar tudo a cada intervenção ou
de tecnologias apropriadas, vários autores 17 a cada atividade.
apontam a influência de Ghandi em sua consti-
tuição. Particularmente quando estimulou a pro- Racionalidade da arte
dução artesanal e caseira de tecidos como forma
de lutar contra o colonialismo inglês na Índia. Essa concepção pós-moderna assemelha-se
Emerson Merhy18 introduziu o conceito no cam- à terceira forma de mediação proposta pelo es-
po da saúde lembrando que ele pode ser utiliza- quema analítico conceitual apresentando nesse
do para reforçar o domínio das tecnologias du- artigo, a saber, a racionalidade da arte. Nessa
ras no trabalho vivo, mas sugeria também que modalidade de racionalidade a ligação do agente
poderiam ser utilizadas “tecnologias leves para o artista com o saber, conceitos e tecnologias nor-
exercício dos autogovernos e nos processos in- malizados, é ainda mais tênue do que na práxis.
terseçores (sic)”. (p. 71) Nessa modalidade predomina a invenção; a cria-
Ricardo Ayres, em debate com Merhy, ressal- tividade e a busca de originalidade são imperati-
tou a importância de realizar-se uma discussão vas. Aqui, o talento e a intuição são elementos
cuidadosa sobre a ubiquidade com que vem sen- constitutivos do agente, tão ou mais relevantes
do utilizado o conceito de tecnologia, preocupa- do que a formação e a disciplina. Na arte, a prin-
va-o o fato de que o cuidado em saúde depende- cipal finalidade é estética, ou seja, almeja-se a ca-
ria de improvisação e criação singular, postura pacidade de encantar a outros seres humanos. O
não autorizada ou estimulada pela razão tecno- grau de experimentação permitido e necessário é
lógica: “Minha questão refere-se à pertinência de maior do que aquele tolerado na práxis, já que
tratar o espaço relacional trabalhador usuário nesta o “objeto” com o qual se trabalha são pes-
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