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(Azis Simão)
T
anto quanto sei, a minha lembrança mais
recuada do professor Azis Simão data dos
meus primeiros tempos de estudante do
curso de Ciências Sociais. O ano é impre-
ciso. Possivelmente final de 1968 ou início
de 1969, durante uma assembleia realizada
no anfiteatro da História, ocasião em que
a implantação da reforma universitária era
discutida por alunos e professores. Os âni-
mos estavam exaltados, e não poderia ser
diferente. A transferência abrupta do curso
para a Cidade Universitária expunha, me-
lancolicamente, a tragédia dos acontecimen-
nais antigos. Embora na ocasião tenha mais conferia ao métier, ligada à ideia da plu-
conversado que consultado documentos, isto ralidade, ao seu caráter libertário e ini-
foi suficiente para despertar o interesse pela ciador3. É como se a palavra exprimisse a
história do operariado. Também um ganho “libertação das mentes”, o lema de maio
efetivo inapreciável: entre colegas, intelectu- de 1968 que ele mais apreciava.
ais e operários, fiz amigos de toda a vida” Mas foi como aluna do seu curso sobre as
(Simão, 1988, p. 12). Organizações Burocráticas, no último ano da
faculdade, que pude perceber as expressões
As suas preocupações políticas não arre- mais desenvolvidas da sua postura. Pela pri-
feceram, pelo menos segundo as minhas lem- meira vez li Max Weber de modo sistemá-
branças, com o decorrer dos anos. Mantinha tico e travei conhecimento com a literatura
permanente contato com o grupo anarquista sociológica recente a respeito da burocracia.
liderado por Jayme Cuberos e com vários Professor Azis nutria verdadeira ojeriza ao
outros antigos militantes. Foi a consciên- crescente poder da burocracia, nem mesmo
cia da importância que o meu orientador absolvia aqueles tipos de administração soi
atribuía a esses laços que me fez aceitar o disant representantes de sociedades socia-
convite para pronunciar palestra no Centro listas. A crítica que dirigia ao socialismo
Anarquista, localizado em acanhado espaço real era acerba, afirmando que a liberdade
num prédio comercial do Brás, uma vez que não podia se submeter a nenhum princípio,
a data e o horário desanimavam qualquer mesmo que fosse ao da igualdade. Não dava
pessoa: sábados durante a tarde. Apesar de trégua à nomenklatura e jamais lhe concedeu
ter apreciado muito a experiência, só acatei qualquer alforria. Ele próprio só havia se
a solicitação por julgar que a minha aquies- formado em Ciências Sociais e se tornado
cência seria de grande agrado do meu pro- professor de Sociologia na Universidade de
fessor. Ele não procurava converter-nos às São Paulo por causa da ausência de regula-
suas posições, tampouco as escondia. mentos e normas cerceadores das diferenças:
“Como era notório, os professores seguiam o “Eu tinha essa formação e esse passado quan-
tradicional princípio de não fazer da cátedra do, na secretaria da Faculdade de Filosofia,
uma tribuna, como era costume dizer. Nem expliquei minha situação, perguntando se
por isso eu me sentia mentalmente bifurca- poderia frequentar alguns cursos. Para mi-
do em professor e político. Ambos estavam nha surpresa, podia até mesmo matricular-me
indissolúveis no mesmo intelectual zeloso como aluno ouvinte, sem quaisquer forma-
da ética de seu ofício, em mim como nos lidades especiais, o que possivelmente não
outros. Apesar da distinção formal, nossas aconteceria em outra faculdade. Depois da
posições ideológico-partidárias eram sobe-
jamente conhecidas” (Simão, 1988, p. 16).
3 “Para Arendt como para Freud, a saída está na palavra.
Na palavra encontra-se a possibilidade do ‘recomeço’,
A dimensão ética da sua condição de única alternativa ao ciclo do eterno retorno. Trata-se,
professor pressupunha, assim, a palavra então, de tentar entender o que, no presente, vem
impedindo a palavra de funcionar em sua dimensão
como inauguração do sentido público que libertária e iniciadora” (Costa, 1998, p. 110).
“Fiquei meio boêmio. Mas o que era boe- compreensiva. Sabia que o meu professor
mia? Defino o boêmio como aquele que não apreciava, e muito, a literatura5. Conhecia a
tem relógio, que esquece o tempo. Os inte- sua concordância com o meu trabalho. Mas
lectuais... encontravam-se nos cafés. Eu ia nenhuma das possíveis explicações parece
à cidade e sabia onde encontrar os amigos. suficiente. Era como se ele trouxesse subi-
As conversas ‘nos cafés sentados’, à tarde tamente à memória algo de muito profundo,
ou à noite, tinham enorme importância in- que estivesse revisitando uma experiência
telectual não apenas em São Paulo, mas em inexcedível. Eu me calei. O espaço ficou
todas as grandes cidades do país” (Simão, ocupado pelo nosso silêncio.
1989, p. 68). O meu orientador, a pessoa para quem
A sua cigarrilha, fumada com alguma a palavra era tão essencial, percebia a
parcimônia e abandonada poucos anos an- eloquência do silêncio. Foi assim quando
tes da morte, era resquício da sua atração eu me decidi por concorrer à vaga de pro-
juvenil pela vida boêmia. Atribuo o meu fessor junto ao Departamento de Sociolo-
gosto de receber os orientandos em casa à gia da USP. Estranhei o seu mutismo e a
memória do sentimento agradável que fluía ausência dos seus telefonemas. Por pudor,
daqueles momentos. Mas, no conjunto desses não o consultei sobre a minha decisão de
encontros, jamais me esquecerei de uma prestar o concurso. Após o resultado e a
situação em especial. Escrevia minha tese minha indicação, chamou-me ao telefone:
de doutoramento e o professor Azis, após “Acompanhei o seu desempenho; estou or-
chamar a atenção para problemas centrais gulhoso de você”. Compreendi, então, que
da teoria, falou-me a propósito de uma pas- ele jamais estivera distante, torcia por mim,
sagem em que eu analisava Grande Sertão: afastara-se em nome dos princípios, estava
Veredas. “Nunca se esqueça do significado preservando a ética da vida acadêmica. O
do nome Riobaldo. É rio vazio. Torrente que seu silêncio não significava isolamento da
flui, que perdeu substância.” Pela primeira nossa relação, ou possível desinteresse. Ele
vez, tive a impressão de que uma sombra estivera permeado por palavras não verba-
de vida se passava nos seus olhos mortos. lizadas, mas a todo tempo pronunciadas de
O seu rosto subitamente iluminou-se, ha- modo inaudível. Desde então, após anos da
via a presença de sonho no seu semblan- sua morte, ainda ouço as palavras do profes-
te. Penso muitas vezes nesse episódio, sem sor Azis, servindo-me de guia e iluminando
conseguir encerrá-lo totalmente numa teia o meu caminho.
5 “Trabalhava com meu pai. Quando nos mudamos poderia trabalhar como autônomo... Não era um
para São Paulo, em 1928, ele me colocou numa trabalho ruim. Enquanto andava pelas ruas, pen-
casa atacadista (de café). Fiquei apenas três meses sava em literatura. Vocês sabem: todos daquela
nesse emprego. Foi o suficiente... Ele percebeu geração começávamos nossa vida intelectual pela
então que não tinha jeito mesmo e achou que eu literatura” (Simão, 1989, p. 67).