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O e n s i n o e o d es e n v o l v i m e n t o d a c r i a n ç a d e z e r o a t r ê s a n o s
 Lígia Márcia Martins1

O trabalho pedagógico dirigido às crianças de zero a três anos


indiscutivelmente encerra grandes desafios. Nenhum outro segmento educacional
parece-nos tão representativo da “pedagogia da espera” quanto o que se destina às
crianças dessa faixa etária, ou seja, da idéia segundo a qual pouco há que se fazer até
que elas cresçam!
Essa idéia, lamentavelmente, tem atravessado os tempos e
conformado modelos de atendimento em creches (em especial,
públicas) que avançam pouco além da garantia aos cuidados básicos
de alimentação, higiene, segurança, etc...
Não obstante a hegemonia desta tendência, nossa experiência
profissional junto a diretores e professores de instituições dessa
natureza; conhecedores do papel insubstituível que tem uma educação
d e q u a l i d a d e e m t o d a s a s e t a p a s d a v i d a d os i n d i v í d u o s ; t e m r e v e l a d o
um outro anseio: como superar as práticas cotidianas espontaneístas
na direção da organização de ações educativas mediadoras das formas
pelas quais a criança se relaciona com seu entorno físico e social,
tendo em vista explorar as suas máximas possibilidades de
desenvolvimento.
E s t e t e x t o n ã o s e a r v o r a e s s a r e s p os t a e m s u a c o m p l e t u d e , m a s
pretende contribuir para a assunção dessa tarefa. Para tanto,
teceremos num primeiro momento algumas considerações sobre
c o n t e ú d o s d e e ns i n o n a s c r e c h e s p a r a , n a s e q ü ê n c i a e e m r e l a ç ã o a
eles, discorrer sobre o desenvolvimento da criança de zero a três
anos.
 
1   A l g u m as r e f l e x õ e s s o b r e c o n t e ú d o s d e e n s i n o n a s c r e c h e s
 
Qualquer análise que se faça acerca de conteúdos de ensino
d e v e c o n s i d e r á - l o s n o b o j o d e u m a q u e s t ã o m a i s a m p l a , i s t o é , d as
premissas do projeto político pedagógico que orientam o trabalho
1
Doutora em Educação, professora do curso de Graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências,
UNESP, Bauru e Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Faculdade de Ciências e Letras, UNESP/Araraquara.
Integrante do Grupo de Pesquisa “Estudos Marxistas em Educação”.
2

e d u c a t i v o e m p a u t a . Is t o p o r q u e o s c o n t e ú d o s d e e n s i n o n ã o s e
encerram em si mesmos (não se trata de mera ocupação para as
crianças!), mas representam mediações histórico sociais pelas quais
os i n d i v í d u o s a m p l i a m s u a s p os s i b i l i d a d e s d e c o n t r o l e s o b r e s i
mesmos e sobre o mundo ao desenvolverem funções psíquicas
especificamente humanas.
Os conteúdos de ensino articulam-se a fundamentos
filosóficos e históricos da educação, à concepção de criança e
s o c i e d a d e , a p r e s s u p os t o s t e ó r i c o s a c e r c a d o d e s e n v o l v i m e n t o i n f a n t i l
e suas relações com a aprendizagem, expressando-se como um dos
e l e m e n t o s d a m a t r i z p e d a g ó g i c a , a p r es s u p o r a s e l e ç ã o e o r g a n i z a ç ã o
de conteúdos, a metodologia de ensino e as diretrizes de avaliação.
O texto que ora se apresenta não tem como objetivo abordar
todos esses elementos. Focaliza apenas a questão da seleção e
organização dos conteúdos de ensino em relação à dinâmica do
desenvolvimento da criança de zero a três anos.
C o n c e b e m o s c o m o c o n t e ú d o s d e e n s i n o os c o n h e c i m e n t o s m a i s
e l a b o r a d o s e r e p r e s e n t a t i v o s d a s m á x i m a s c o n q u i s t a s d os h o m e n s , o u
seja, componentes do acervo científico, tecnológico, ético, estético,
etc. convertidos em saberes escolares. Advogamos o princípio
s e g u n d o o q u a l à es c o l a , i n d e p e n d e n t e m e n t e d a f a i x a e t á r i a q u e
atenda, cumpre a função de transmitir esses conhecimentos, isto é, de
ensinar. Portanto, como o lócus privilegiado de socialização para
a l é m d a s e s f e r a s c o t i d i a n a s e d os l i m i t e s i n e r e n t e s à c u l t u r a d e s e ns o
comum.
Com esta afirmativa não estamos emitindo um juízo de valor
depreciativo nem da cotidianidade nem da cultura popular, mas,
procurando delimitar fronteiras entre as inúmeras instituições
socializatórias e a escola, que, para desempenhar o mesmo papel que
outras agências educativas não teria razão de ser.
Em face destas considerações a questão que se apresenta
refere-se à modalidade de conteúdos de ensino que devam orientar o
trabalho pedagógico com os bebês2 e com as crianças pequenas. Como

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Nominaremos como bebês as crianças de zero a dezoito meses.
3

concebê-los e como organizar o plano de atividades orientador da


r o t i n a n os b e r ç á r i o s e m a t e r n a i s ?
C o ns i d e r a m o s q u e a r e s p o s t a a e s t a i n d a g a ç ã o d e m a n d a u m a
reflexão acerca da natureza das ações realizadas junto aos pequenos.
T r a t a - s e d e s e c o n s i d e r a r e m q u e m e d i d a e c o m o os c o n h e c i m e n t o s
científicos se tornam presentes no trabalho que se desenvolve junto
às crianças de zero a três anos.
Para a proposição e condução de ações que superem a prática
espontaneísta o professor precisa dispor de conhecimentos que
interfiram de modo indireto ou direto no desenvolvimento da criança.
Observe-se que tal diretividade diz respeito aos conhecimentos que
medeiam a atividade docente e não à atividade propriamente dita, que
sempre interferirá diretamente (positiva ou negativamente!) no
referido desenvolvimento.
Aos conteúdos de interferência indireta denominamos de
conteúdos de formação operacional , que compreendem os saberes
interdisciplinares que devem estar sob domínio do professor e
subjacentes às atividades disponibilizadas aos alunos. Incluem os
saberes pedagógicos, sociológicos, psicológicos, de saúde, etc. Esses
conhecimentos não serão transmitidos às crianças em seu conteúdo
conceitual e nesse sentido é que promoverão, nelas, o que
c l a s s i f i c a m o s c o m o a pr e n d i z a g e m i n d i r e t a .
Ao serem disponibilizados, incidem na propulsão do
d e s e n v o l v i m e n t o d e n o v os d o m í n i o s p s i c o f í s i c o s e s o c i a i s e x p r e s s os
em habilidades específicas constitutivas da criança como ser histórico
social, a exemplo de: autocuidados, hábitos alimentares saudáveis,
d e s t r e z a p s i c o m o t o r a , a c u i d a d e p e r c e p t i v a e s e ns o r i a l ,   h a b i l i d a d e s d e
comunicação significada, identificação de emoções e sentimentos,
vivência grupal, dentre outras. À luz desses saberes a criança
desenvolve propriedades e constrói conhecimentos empíricos3 na
centralidade das operações e ações que executa conquistando,

3
O conhecimento empírico deriva diretamente da atividade sensorial prática das pessoas em relação aos objetos e fenômenos da
realidade. Compreende o conhecimento construído a partir do imediato e fisicamente presente tal como captado pela percepção.
4

progressivamente, formas culturalmente elaboradas de


funcionamento.
Aos conteúdos de interferência direta denominamos conteúdos de formação
teórica que compreendem os domínios das várias áreas do saber científico transpostos
sob a forma de saberes escolares. Permearão as atividades propostas às crianças tendo
em vista sua socialização como tal, isto é, para que se efetivem como objetos de
apropriação devem ser transmitidos direta e sistematizadamente em seus conteúdos
conceituais e para tanto, precisam ser ensinados.
Tais conhecimentos corroboram para aquisições culturais mais elaboradas,
tendo em vista a superação gradual de conhecimentos sincréticos e espontâneos em
direção à apropriação teórico-prática do patrimônio intelectual da humanidade.
Os conteúdos de formação operacional interferem diretamente na constituição
de novas habilidades na criança, mobilizando as funções inatas, os processos
psicológicos elementares, tendo em vista a complexificação de sua estrutura e modos de
funcionamento, a serem expressos sob a forma de funções culturais, de processos
psicológicos superiores. Ao atuarem nesta direção instrumentalizam a criança para
dominar e conhecer os objetos e fenômenos do mundo à sua volta, isto é, exercem uma
influência indireta na construção de conceitos.
Os conteúdos de formação teórica por sua vez, operam indiretamente no
desenvolvimento das funções psicológicas à medida que promovem a apropriação de
conhecimento. Por exemplo, o ensino do conteúdo formas geométricas à uma criança
não contém apenas a aprendizagem de uma propriedade matemática, pois, ele também
incide sobre os processos de percepção, atenção, memória, linguagem, etc. Daí que
jamais os conteúdos teóricos a serem ensinados possam ser selecionados sob a ótica
simplista e pragmática circunscrita à sua utilização imediata. Tais conteúdos, atuando
diretamente na elaboração de conceitos, operam indiretamente no desenvolvimento das
funções afetivo-cognitivas.
A categorização apresentada cumpre uma função essencialmente organizativa
do planejamento pedagógico, uma vez que na experiência escolar do aluno tais
conteúdos operam articuladamente, numa relação de mútua dependência. A título de
auxiliar a elaboração e o registro de um plano de ensino levando em conta a
categorização em questão, apresentamos o quadro ilustrativo a seguir.
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Área do Conhecimento: Língua Portuguesa Matemática


Conteúdo: Dicção: articulação e ritmo Contagem oral
fonético
Objetivo: Aprendizagem da Aprendizagem de
linguagem oral quantificação
Natureza do conteúdo: Formação operacional Formação teórica
Procedimento: Após modelo pelo Cantando a música pipoca4
professor: a criança
assoprará pequenas
bolinhas de papel coloridas
com canudinho plástico em
situação lúdica
(Exemplo de planejamento destinado a crianças de dezoito meses a dois anos)

Para a promoção integral dos bebês e das crianças na primeira infância as


ações educativas devem contemplar os conteúdos de formação operacional e de
formação teórica em consonância com os períodos de seu desenvolvimento, havendo
entre elas uma relação de proporcionalidade inversa, tal como demonstra a
representação gráfica subseqüente.
primeira infância idade pré-escolar

nascimento 3a 6a

Conteúdos de formação operacional

Conteúdos de formação teórica

Diante do exposto, afirmamos a formação acadêmica do professor condição


insubstituível para a efetiva educação das crianças pequenas. Ele, com certeza, precisa
ter acesso a conhecimentos referentes aos diversos domínios científicos utilizando-os
como estratégias de enriquecimento de sua relação com a criança. Visando contribuir

4
Uma pipoca na panela, veio mais uma pra conversar, Foi um tal de poc, popoc, poc poc, popoc poc (refrão)
Duas pipocas na panela, veio mais uma pra conversar (refrão)... e assim sucessivamente até cinco.
O professor ilustrará a verbalização dos números com os dedos da mão.
6

com esta formação apresentamos, na seqüência, uma caracterização geral do


desenvolvimento da criança de zero a três anos.

2 A criança de zero a três anos

Antes de apresentarmos as considerações gerais sobre o desenvolvimento da


criança nessa faixa etária, façamos uma breve digressão.
A educação infantil, ao longo de toda sua história, revela-se atrelada a teorias
psicológicas do desenvolvimento. Sob nossa avaliação esta parceria tem se mostrado
muito menos frutífera que o necessário e que o possível. Dela tem resultado, no mais
das vezes, uma imensa psicologização da educação infantil que não ultrapassa a estreita
compreensão do aluno como sujeito empírico.
Compartilhamos a análise de Saviani (2004, p. 47) acerca das parcas
contribuições da psicologia para a educação à medida que possibilita a apreensão do
indivíduo empírico em detrimento do indivíduo concreto5. Essa primazia dispensada ao
indivíduo empírico encontra respaldo em teorias psicológicas que naturalizam o
desenvolvimento humano e que, ao penetrarem no campo educacional, sustentam as
usuais posturas contemplativas ao seu transcurso e a responsabilização do indivíduo, no
caso a criança, pelas vicissitudes que se apresentam em sua formação.
O destaque aqui conferido ao processo de desenvolvimento infantil não é
reiterativo do velho e habitual estudo desse processo a partir do qual cumpre ao
professor saber quando acontece o quê. Pelo contrário, visa afirmar a sua natureza
histórica social e especialmente, a decisiva influência que o ensino sistematizado pelo
professor exerce sobre ele.
Conforme assinalado por Vigotski6 e seguidores, o desenvolvimento dos seres
humanos demanda inter-relações, por meio das quais cada homem aprende a sê-lo
apropriando-se das conquistas produzidas pelas gerações precedentes. Aos seres
humanos não basta os atributos que dispõe no ato de seu nascimento, como os demais
animais. As características biológicas presentes neste ato são meramente preparatórias
para a sua interação com o mundo social, da qual tudo o mais dependerá, quer no
próprio plano biológico, quer no plano psicológico e social.
5
O autor apresenta uma distinção entre indivíduo empírico e indivíduo concreto caracterizando o primeiro como imediatamente
observável em suas características externas correspondentes à situação imediata; o segundo como síntese de múltiplas
determinações, apreendido à luz de sua natureza histórico-social.
6
Em relação à grafia do nome desse autor adotaremos a padronização brasileira (Vigotski), exceto em citações, nas quais
seguiremos a disposto na fonte.
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Sabidamente, se lançarmos ao mundo qualquer filhote animal; por exemplo,


um gato, as alternativas existentes serão: ou ele morre ou ele vira gato, ou seja,
permanece representante de sua espécie. Diferentemente, a história mostra que crianças
desprovidas de condições histórico-sociais de desenvolvimento que sobreviveram não
se tornaram seres representativos da espécie humana, ou seja, não se humanizaram.
Nisso reside a centralidade social do desenvolvimento, tese nuclear da
psicologia histórico cultural. Inexiste formação humana que possa prescindir de
apropriações dos produtos da cultura e esta relação de dependência do ser às condições
de sua existência é representativa da explicação conferida por Vigotski (1984) à
formação de todas as particularidades dos indivíduos.
Para esse autor é graças à interiorização que os processos interpessoais,
mediadores da relação da criança com seu entorno social, transmutam-se em processos
intrapessoais. Sendo assim, as características, os conteúdos simbólicos, os domínios e
habilidades próprios a alguém não se estruturam nele a partir de si mesmo.
Em suma, desenvolvimento se produz por meio de aprendizagens e esse é o
pressuposto vigotskiano segundo o qual o bom ensino, presente em processos
interpessoais, deve se antecipar ao desenvolvimento para poder conduzí-lo. Portanto não
há que se esperar desenvolvimento para que se ensine; há que se ensinar para que haja
desenvolvimento.
Tecidas estas considerações e visando subsidiar a seleção e organização de
conteúdos de formação operacional e teórica, passemos à análise das propriedades
gerais do desenvolvimento da criança de zero a três anos, dado que organizamos em
dois momentos: um primeiro versando sobre o desenvolvimento da criança em seu
primeiro ano de vida e, na seqüência, de seu final até o terceiro ano.

2.1 A criança em seu primeiro ano de vida

Visando a organização da temática ora apresentada, discorreremos


primeiramente acerca da dinâmica geral do desenvolvimento do bebê para,
subseqüentemente, destacar seus marcos referenciais mais decisivos.

2.1.1 Dinâmica geral do desenvolvimento da criança no primeiro ano de vida


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Ao nascer, a criança se encontra diante de novas condições de vida que são


absolutamente diferentes das condições de desenvolvimento intra-uterino. Para o
enfrentamento desta nova condição dispõe, fundamentalmente, de sua atividade nervosa
superior e dos cuidados que recebe das pessoas que estão ao seu redor, iniciando assim,
sua embrionária forma de ser social. Referindo-se à essencialidade social da existência
do bebê, Vygotski (1996) considera

(...) a relação da criança com a realidade circundante é social desde


o princípio. Deste ponto de vista podemos definir o bebê como um
ser maximamente social. Toda relação da criança com o mundo
exterior, inclusive a mais simples, é a relação refratada por meio da
relação com outra pessoa. A vida do bebê está organizada de tal
modo que em todas as situações se faz presente de maneira visível
ou invisível outra pessoa. (p. 285)

Com esta consideração procuramos desmistificar que nos dias ou meses


iniciais de vida o bebê possa ser considerado um ser meramente biológico, a quem
bastará a satisfação das necessidades vitais desta mesma ordem (biológica). Não
obstante iniciar a vida sobre uma base reflexa, muito rapidamente os reflexos
incondicionados cedem lugar aos reflexos condicionados e esses, às aprendizagens
sociais.
Ao término dos quarenta e cinco dias após o nascimento (período que
caracteriza o recém-nascido), já se evidenciam mudanças significativas na dinâmica de
funcionamento do bebê, ou seja, maior diferenciação entre o sono e a vigília, menor
avidez e maior regularidade alimentar, diminuição dos movimentos reflexos arcaicos
resultantes do desenvolvimento filogenético, etc.
Inicia-se um novo período, no qual o mundo exterior desponta como objeto de
seu interesse. Portanto, todo trabalho com bebê deve levar em conta este fato e ampliar
as possibilidades de apresentação da realidade externa enriquecendo seu estado de
vigília. Por exemplo, proporcionar-lhe acesso a diferentes espaços físicos, mostrar-lhe
objetos, falar com ele, etc. Enfim, o adulto deve estar com ele apresentando-lhe o
mundo.
Entre o quarto e quinto mês já se verificam os primeiros movimentos e sons
precisos da criança, dando mostras da superação de respostas reflexas a estímulos e da
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busca ativa a estímulos ocupacionais, aos quais começa a responder espontaneamente.


As reações sociais à presença do adulto e de outras crianças evidenciam-se, criando as
possibilidades para o surgimento de um importante procedimento de ensino: a imitação.
Na transição entre o quinto e o sexto mês verificam-se as primeiras formas
imitativas de movimentos e sons que auxiliarão o surgimento de formas de
comportamento mais complexas. Portanto, compete ao educador explorar as múltiplas
possibilidades imitativas fornecendo os modelos (gestuais e sonoros) característicos das
ações que envolvem a criança (por exemplo: abrir a boca na hora da alimentação; dirigir
a mão até objetos; emitir sons repetidos etc). É na base desse processo que, por volta do
décimo mês, os movimentos e sons aleatórios cedem lugar a formas de comportamento
e comunicação sociais.
Referindo-se à dinâmica geral do desenvolvimento do bebê no primeiro ano,
Vygotski (1996, p. 287) assinala três períodos. O primeiro, próprio ao recém nascido,
denomina período de passividade, representado pela transição entre a vida intra-uterina
e a vida social e ainda substancialmente marcado por condicionantes biológicos.
O segundo, período de interesse receptivo, no qual o mundo e ele próprio
despontam como objetos de seu interesse. O terceiro, período de interesse ativo;
momento de grande viragem qualitativa; é representado essencialmente pela
manipulação de objetos em relação com sua significação social, (por exemplo, levar um
pente à cabeça); pela busca de autonomia locomotora e pela utilização embrionária de
formas sociais de comunicação.
Reiteramos que as demandas próprias a todos esses períodos se realizam por
completo por meio dos adultos que lhe cuidam e por isso, já nos primeiros meses de
vida a criança externaliza reações de orientação até os mesmos. Tais reações, que se
iniciam por volta do terceiro mês, constituem o chamado complexo de animação
(Smirnov e outros, 1960, p. 505) pelo qual ela reage de forma emocionalmente positiva
à presença do cuidador (fixa o olhar, agita o corpo estendendo os braços e encolhendo
as pernas, esboça sorriso, etc.).
A existência do bebê sendo maximamente social e profundamente emocional
corroboram para a denominação da atividade principal deste período como atividade de
comunicação emocional direta adulto/criança (Elkonin, 1987, p.122), da qual
dependerão as mudanças mais decisivas de seu transcurso.
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Diante desta caracterização geral do desenvolvimento do bebê, passemos à


identificação de seus marcos referenciais mais decisivos com respeito aos processos
sensorial, perceptivo-motor, atencional, mnêmico, lingüístico e afetivo.

2.1.2 Marcos referenciais do desenvolvimento do bebê

Durante o primeiro ano de vida ocorre um aperfeiçoamento progressivo da


atividade do córtex cerebral; conforme exposto no capítulo 1 desta coletânea; que se faz
acompanhado pelo estabelecimento de relações mais complexas entre a criança e o meio
que a rodeia.
Nos momentos iniciais de vida inexiste uma diferenciação específica entre as
funções psíquicas (sensação, percepção, atenção, memória, etc). Tais processos operam
imbricados uns nos outros e apenas sob condições de educação, isto é, por exposição e
aprendizagem à estímulos externos, conquistam um funcionamento mais complexo e
autônomo. Portanto, o planejamento de ações que visem esta estimulação é premissa
básica para o trabalho educativo de bebês.
Não obstante a relativa incompletude que caracteriza o início da vida humana,
o recém-nascido dispõe de um aparato sensorial que lhe permite sentir a maior parte dos
cheiros, distinguir entre os sabores doce, salgado e amargo, além de excelente acuidade
tátil e auditiva (o bebê é ótimo ouvinte e muitas vezes, pouco se fala com ele!).
Diferentemente, o sentido da visão revela-se pouco desenvolvido, mas aprimora-se a
passos largos nos primeiros meses de vida.
A existência de uma estreita unidade entre os processos sensorial e motor
confere ao bebê uma característica bem precisa, qual seja, um nexo ininterrupto entre
percepção e comportamento.
Segundo Vygotski (1996, p. 297) a percepção e a ação constituem, em
princípio, um processo único no qual a ação é uma continuidade da percepção e vice-
versa. Este processo unitário se institui como expressão dos impulsos emocionais, das
necessidades experienciadas pela criança, do que se conclui que também os processos
sensório-motores vinculam-se aos processos afetivos. Cabe alertar, portanto, que a
existência (ou inexistência) da destreza desses processos carrega consigo a qualidade
das relações criança/mundo que são mediadas pelos adultos que lhe cuidam.
Como a totalidade das ações de um recém-nascido, suas habilidades motoras
são limitadas aos reflexos, constituindo-se respostas involuntárias à estimulação.
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Contando com esses reflexos simples o bebê principia sua vida, entretanto, muito
rapidamente começa a demonstrar controle voluntário sobre os movimentos de várias
partes do corpo.
O desenvolvimento motor é altamente representativo dos saltos qualitativos
que se processam no entrelaçamento dos fatores biológicos (maturacionais orgânicos) e
da estimulação social. Sob condições típicas de educação podem ser esperados os
seguintes marcos nesse desenvolvimento: sustentação da cabeça aos dois meses de
idade; rolar o corpo entre o segundo e o terceiro mês; sentar com apoio aos três meses;
sentar sozinho entre o quinto/sexto meses; engatinhar entre o sexto/sétimo mês; ficar em
pé com apoio aos seis meses; caminhar com apoio aos nove meses e ficar em pé
sozinho, aos onze meses (Huffman e outros, 2003, p. 321).
O destaque da própria mão como objeto de observação tem uma importância
extraordinária para o desenvolvimento do bebê. Ao começar a acompanhar visualmente
os movimentos de suas mãos (em torno de quatro meses) e a seguir apalpar, descobre os
objetos em suas possibilidades de apreensão, o que instiga a conquista de novos
domínios motores (dirigir-se até objetos) tendo em vista a manipulação dos mesmos.
Portanto, a proposição de ações que incentivem a observação dirigida de
objetos e a atuação com eles é imprescindível neste momento. Caberá à ele (adulto), por
meio da comunicação verbal com a criança, dar a conhecer os objetos que a rodeiam,
denominando-os, considerando seus significados e usos sociais, suas propriedades
físicas mais evidentes (tamanho, cor, textura, forma, etc). Este é o início do caminho
pelo qual a criança aprenderá a discriminar, analisar e diferenciar os objetos e
fenômenos em suas propriedades mais importantes.
Esta mediação diretiva desempenhada pelo adulto é determinante também, do
exercício da atenção do bebê que, sendo involuntária e muito inconstante, dependerá da
natureza dos estímulos apresentados. A possibilidade de manejar as coisas amplia seu
círculo de atenção, permitindo o treino de focalização e fixação a uma vasta gama de
estímulos visuais, auditivos, táteis, etc.
O desenvolvimento da memória acompanha o desenvolvimento do bebê desde
seu nascimento e sua expressão mais primitiva é o reconhecimento das pessoas e
objetos que o rodeiam. Os registros mnêmicos que se efetivam neste período não são
facilmente reconhecíveis, o que induz errôneas avaliações sobre a sua capacidade de
memorização e conseqüentemente, de aprendizagem.
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Entretanto, à medida que se efetivam os domínios da linguagem verbal esses


registros se evidenciam e enriquecem, dado que pode ser verificado pelo movimento do
olhar da criança na direção de um objeto ou situação expressos verbalmente (por
exemplo, olhar para a porta ao ouvir “a mamãe chegou”!). Assim, a repetição como
treino de memória, deve integrar as ações educativas realizadas.
Embora o bebê já disponha, desde seu nascimento, de inúmeras formas não
verbais de comunicação, a exemplo das posturas corporais, expressões faciais, contato
visual e sonoro dentre outros; o desenvolvimento da linguagem oral atravessa várias
etapas. A primeira denominada pré-linguística, antecede o domínio da linguagem em si,
caracterizando todo o primeiro ano de vida da criança. O segundo e terceiro estágios;
sobre os quais discorremos em item posterior; compreendem respectivamente a etapa do
domínio primário do idioma e do domínio da estrutura gramatical da linguagem
(Petroski, 1980, p. 201).
Na etapa pré-linguística destacam-se três momentos: o dos ruídos, dos
murmúrios e balbucios e das pseudo-palavras. Os ruídos, dentre os quais se inclui o
choro reflexo, assentam-se nos reflexos da laringe, graças aos quais ocorre a emissão
aleatória de sons. Entre o segundo e terceiro mês a criança começa a murmurar, isto é,
produzir sons de vogais e a partir do quarto mês esses sons se fazem acompanhados de
consoantes, quanto então, inicia o balbucio.
No momento das pseudo-palavras, próprio ao segundo semestre do primeiro
ano, a criança inicia a emissão de sons compostos por uma ou várias sílabas
acompanhadas de acentuação, entonação e articulação única. Nele ocorre uma
reprodução da estrutura sonora dos fonemas sem haver, contudo, a intenção de
reprodução das palavras do idioma. As pseudo-palavras não são palavras produzidas
erroneamente mas emissão de sons de maior complexidade.
A importância das pseudo-palavras reside no fato que à sua base ocorre a
modelagem social requerida ao estabelecimento de relações entre objetos ou fenômenos,
sons e significados. É claro que todas as etapas pré-linguísticas transcorrem como bases
para o desenvolvimento lingüístico ulterior, entretanto, as pseudo-palavras, por sua
proximidade com as palavras do idioma, representam seus mais efetivos pré-requisitos.
Portanto, durante todo o primeiro ano o bebê pode e deve ser ensinado a falar,
dado porém, que não se reduz à mera repetição e emissão de palavras mas que demanda
a exposição do bebê a variadas situação de estimulação cultural tendo em vista o
enriquecimento das relações entre objetos / fenômenos, sons e significações.
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Deixamos, propositadamente, por último, o referente ao desenvolvimento das


emoções e sobre ele Vygotski (1996) considera:

O próprio afeto, ao participar no processo do desenvolvimento


psíquico como fator essencial, recorre um caminho complexo, se
modifica em cada nova etapa de formação da personalidade e toma
parte na estrutura da nova consciência própria da nova idade. Estas
profundíssimas mudanças na natureza psíquica dos afetos se põem
de manifesto em toda nova etapa. Inclusive no primeiro ano de
vida o afeto experimenta um complexo desenvolvimento. Se
compararmos a primeira etapa desse período com a última
ficaremos surpresos com a enorme mudança que ocorre na vida
afetiva do bebê (p. 299).

As emoções medeiam o desenvolvimento de todos os processos psíquicos e


seu próprio desenvolvimento subjuga-se às condições para a vivência das mesmas.
Apenas na relação ativa com o mundo e essencialmente mediada pelo adulto o bebê
emerge de suas vivências emocionais indiferenciadas, próprias à condição de recém-
nascido, dotando-as de propriedades humanas.
As primeiras reações emocionais dos recém-nascidos relacionam-se com a
satisfação ou insatisfação das necessidades orgânicas. Estas reações ainda não
dependem de sua experiência pessoal mas sim, do aparato reflexo que dispõe ao nascer.
Entretanto, já no transcurso do segundo mês de vida entram em cena novas reações que
ultrapassam os limites dessas necessidades.
Tais reações advirão das relações do bebê com o entorno físico e social,
passando a conter tonalidades emocionais resultantes de sua própria vivência do e no
mundo. Aparece então, a necessidade de relacionar-se com as pessoas que a rodeiam e o
interesse pelos objetos que se fazem presentes.
Analisando este percurso Vygotski (19996, p. 299) destaca duas modalidades
de interesse: no primeiro semestre do primeiro ano os afetos se expressam como um
interesse receptivo pelo mundo exterior, transformando-se durante o segundo semestre
em interesse ativo pelo entorno. Na base dessas mudanças ocorre, ao término do
primeiro ano, aquilo que este autor nomina como crise do primeiro ano, isto é, um
14

intenso desenvolvimento da vida afetiva caracterizado pelo aparecimento embrionário


da vontade própria.
Portanto, caberá ao processo educativo oportunizar à criança situações
favoráveis à criação de interesses sociais. É exatamente no processo no qual se trabalha
o desenvolvimento de sua motricidade, percepção, atenção, memória, linguagem, etc,
que o adulto entrará em contato com seus afetos, reconhecendo-os e conferindo-lhes
direção.
Apenas pela participação ativa do adulto em sua vida o bebê poderá não
apenas sobreviver, mas, alçar a conquista da consciência de si e do mundo que o cerca.
O germe desta conquista é o marco mais decisivo do término do primeiro ano, quando
se constitui na criança aquilo que Vygotski (1996, p. 306) denominou como proto-
nosotros, isto é, consciência embrionária do si mesmo, advinda da recente diferenciação,
pela criança, entre si mesma e o que a cerca. .

2.2 A criança em seu segundo e terceiro anos de vida

Da mesma forma que em relação ao desenvolvimento do bebê, apresentaremos


em dois sub-itens as questões referentes à dinâmica geral do desenvolvimento da
criança em seu segundo e terceiro anos de vida, bem como os marcos referenciais mais
decisivos em relação aos processos sensorial, perceptivo-motor, atencional, mnêmico,
lingüístico e afetivo, inserindo agora, o processo de pensamento.

2.2.1 Dinâmica geral do desenvolvimento na primeira infância

Vigotski (1996), em análise da transição entre o término do primeiro ano e o que


denomina como infância precoce7, que compreende do primeiro ao terceiro anos de
vida, aponta que a maior característica desse momento pode ser representada pela
unidade dialética do ser e não ser, cerne da já referida crise do primeiro ano. Considera
nessa unidade as formas de expressão de três processos, quais sejam, motor, linguagem
e afetos, apresentando-a da seguinte forma:

A criança em sua infância precoce já anda: fazendo-o mal e com


esforço, mas andar é a forma principal de seu movimento no espaço
(...); {referindo-se à linguagem, L. M.}... Nos deparamos de novo com
7
Como sinônimo de infância precoce adotaremos a expressão primeira infância.
15

um processo no qual não podemos determinar se a criança é falante ou


não, quando a criança fala e não fala (...); {e referindo-se aos afetos e
vontade, L. M.}... aparecem os primeiros atos de protesto, de oposição,
de contraposição aos demais (...). Na idade crítica essas reações se
manifestam com grande intensidade e agudeza principalmente em
casos de uma educação incorreta (...) (p. 319).

Na seqüência, o autor destaca que as aquisições do primeiro ano ampliam


imensamente as possibilidades de ação da criança em seu contexto físico e social, dado
que exige novas formas de mediações educativas por parte do adulto.
A nova condição de atuação e desenvolvimento da criança na primeira infância
acarreta transformações essenciais em duas direções: no âmbito das relações da criança
com a realidade externa objetiva e no âmbito das relações com as pessoas. O
entrelaçamento das ações desses âmbitos que é absolutamente mediado pelo
desenvolvimento da linguagem, representa, para Vigotski, a questão central desta etapa
do desenvolvimento infantil.
O comportamento da criança nesta etapa adquire uma característica bastante
específica, qual seja: determina-se inteiramente pela situação presente. As ações da
criança se estruturam em unidade com as condições sob as quais ocorrem, e em função
delas, se aproxima, manipula, experimenta ou se esquiva e rejeita aquilo que se lhe é
apresentado. Assim sendo:

Eis aqui a dependência da criança apenas da situação presente. A


criança na infância precoce, diferentemente de idades posteriores,
não acrescenta à dada situação conhecimentos prévios sobre outras
coisas, não se sente atraída por nada que esteja atrás dos bastidores
da situação (...) Devido a isso fica evidente o grande papel que
desempenham as próprias coisas, os objetos concretos postos na
situação (Vigotski, 1996, p. 342).

Dessa condicionabilidade concreta dos comportamentos à situação resultam as


(re)descobertas dos objetos por parte da criança que, paulatinamente, vão deixando de
ser meros estímulos sensoriais e se convertendo em meios para a satisfação de
16

necessidades, ou, em instrumentos. Nesse sentido é que Elkonim (1987, p. 122)


caracteriza como atividade principal deste período a atividade objetal manipulatória.
Em constante contato com os adultos e sob sua direção a criança amplia
sobremaneira sua atuação no mundo. Se no transcurso do primeiro ano o outro (pessoas)
ocupava o primeiro plano de suas percepções e os objetos um segundo plano, agora,
gradativamente esta situação se inverte. Este momento representa grande oportunidade
para que se ensine à criança maneiras corretas de se atuar com objetos.
Na etapa inicial de aprendizagem das ações com objetos, própria ao início do
segundo ano de vida, as ações manipulatórias executadas pela criança marcam uma
transição entre o objetivo de exploração das propriedades sensoriais dos objetos (típica
do primeiro ano de vida) e o objetivo de descoberta de suas funções sociais, isto é, para
que e sob quais circunstâncias são utilizados. Por isso, nesta etapa, elas tendem a
reproduzir muito fielmente os atos que lhes são ensinados pelo adulto, utilizando
estritamente os mesmos objetos nas mesmas situações em que recebeu o modelo, ou
seja, a criança ainda não generaliza ações objetais. Importa-lhe, fundamentalmente, a
funcionalidade do objeto, dado que culmina numa característica bastante sutil de suas
ações: para que servem os objetos se sobrepõe totalmente às maneiras pelas quais são
utilizados (o para que prevalece sobre o como).
Um mesmo objeto não pode representar distintas coisas nem as ações com eles
podem depender das circunstâncias. Isso diferencia radicalmente a natureza das
brincadeiras não fictícias, típicas da primeira infância, do jogo simbólico, próprio à
idade pré-escolar (três a seis anos), não obstante as primeiras serem preparatórias para
os segundos.
Detivemo-nos até este momento à relação criança-objeto. Entretanto, a mesma
não ocorre num “vazio social”, isto é, todo esse processo recebe, incessantemente, as
influências das relações da criança com outras pessoas, em especial, dos adultos, dos
quais ainda é absolutamente dependente. É o adulto que lhe confere o objeto ou o retira,
que o nomina e significa, enfim, que promove a conversão das coisas em instrumentos,
em objetivações humanas.
Em análise da unidade criança-objeto social - criança-adulto social e referindo-
se à atividade objetal manipulatória como aquela que encerra as possibilidades mais
efetivas de desenvolvimento na primeira infância, Elkonim (1987) afirma:
17

Claro que o domínio dessas ações é impossível sem a participação


dos adultos que as mostram às crianças, as realizam junto com elas.
O adulto atua apenas como parte, ainda que a mais importante da
situação das ações objetais. (p. 116).

Essa dinâmica criança-objeto / criança-adulto constitutiva da atividade objetal


manipulatória tanto se assenta nas conquistas advindas do desenvolvimento da
linguagem quanto é, nesse período, a principal via desse mesmo desenvolvimento.
Portanto, a proposição de atividade educativas enriquecedoras da atividade objetal
manipulatória deve priorizar, na primeira metade do segundo ano, ações facilitadoras da
compreensão, pela criança, da linguagem dos adultos.
Ainda que a verbalização própria restrinja-se a poucas palavras; que ocupam
inclusive o lugar de orações inteiras; sob condições de estimulação a compreensão das
mesmas pela criança pode ser bastante ampla. Neste sentido, é fundamental a associação
entre palavras e objetos (ou imagens), a exposição da criança a um vocabulário rico e
acima de tudo, que o adulto dirija-se à criança sempre, com a máxima clareza, no que se
inclui uma dicção correta.
A partir da segunda metade do segundo ano e ao longo de todo o terceiro; além
da continuidade compreensiva; as ações educativas devem incentivar maximamente a
aquisição, pela criança, da verbalização própria.
Este percurso deve privilegiar, num primeiro momento, o nome das pessoas (no
que se inclui o da própria criança) e dos objetos e na seqüência, das ações; de modo que
ao término do segundo ano a criança compreenda a linguagem presente em seu entorno
e verbalize orações compostas por duas ou três palavras.
Enfim, durante todo o segundo e terceiro anos de vida a atividade objetal
manipulatória acompanhada de intenso desenvolvimento da linguagem é o esteio sobre
o qual se desenvolvem todos os processos psíquicos da criança.

2.2.2 Marcos referenciais do desenvolvimento na primeira infância

Conforme demonstrado anteriormente, as aquisições do primeiro ano mudam


essencialmente as relações da criança com o meio. A relativa autonomia recém
conquistada, ampliando as possibilidades de atuação com as pessoas e com os objetos,
18

inclusive pela mediação da linguagem, conferem-lhe amplas possibilidades para a


complexificação de suas ações.
A descoberta do espaço locomotor, a liberação dos membros superiores
propiciada pela postura ereta ao caminhar (dado que ocorre entre o décimo terceiro /
décimo quarto mês) se fazem acompanhados do desenvolvimento de inúmeras
habilidades. Mas para que essas aquisições se efetivem é fundamental a construção
social de capacidades psicomotoras pois elas desempenham um papel diretivo nessa
evolução.
Exemplificando o papel dessa construção social, saibamos que entre os índios
Zinanteco do sul do México o desenvolvimento motor rápido é desestimulado. Espera-
se que os bebês não caminhem antes de aprender a evitar as fogueiras para o preparo
dos alimentos e os teares, dado que poderia por em risco sua sobrevivência. Por outro
lado, as crianças africanas sentam-se, ficam em pé e andam de uma a vários meses mais
cedo do que crianças norte-americanas pois são ativamente treinadas para tanto
(Huffman e outros, 2003, p. 322).
Portanto, apesar da aparente naturalidade do desenvolvimento motor ele é, tanto
quanto os demais processos, condicionado pelas condições sociais de desenvolvimento
da crinça. O acesso e a manipulação de objetos sociais devem assim, operar a serviço
dos mais diversos domínios psicomotores, a começar por aqueles requeridos à sua
correta utilização.
A estreita unidade entre as funções motoras e as funções sensoriais é
característica marcante da primeira infância. Em todo esse período a percepção
encontra-se unida à ação, sendo praticamente impossível inferí-las em separado. Em
seus trabalhos Vigotski considerou que o desenvolvimento da percepção é, na primeira
infância, a base sobre a qual se consolida o desenvolvimento das demais funções,
considerando-na predominante nas crianças pequenas.

(...) as funções mais importantes, as mais necessárias a princípio, as


que servem de fundamento a outras, se desenvolvem antes. Não deve
surpreender, portanto, que o desenvolvimento das funções psíquicas
da criança comece pelo desenvolvimento da percepção (...) as
funções, como as partes do corpo, não se desenvolvem de maneira
proporcional e uniforme, cada idade tem sua função predominante
(Vygotski, 1996, p. 345).
19

Considerando-na central, o autor destaca duas particularidades na percepção da


criança pequena. A primeira refere-se ao seu caráter apaixonado, isto é, à
predominância afetiva da percepção. Nesta idade, a percepção não representa uma
relação reflexa primária com os estímulos circundantes mas sim, uma relação por meio
do afeto. A segunda, que mantém íntima relação com a primeira, diz respeito ao fato de
que ela se encontra em condições sumamente propícias de desenvolvimento.
A qualidade do conteúdo da percepção infantil resulta das experiências
educativas às quais é exposta. Neste período, tais experiências devem contemplar a
percepção de espaço, forma, tamanho, propriedades (cor, textura, volume, etc) e, em
especial, o treino de observação. Para tanto, é muito importante que as ações
constitutivas destas experiências estejam inseridas em atividades práticas com
finalidades claramente definidas para a criança.
No bojo do tratamento dispensado à percepção incluem-se, também, os
processos de atenção e memória. Conforme assinalado em relação ao bebê, em
princípio, a atenção é um processo involuntário e subjugado às propriedades dos
estímulos externos. Porém, ao longo do segundo ano, graças à possibilidade de andar e,
não somente manipular objetos mas também, executar ações simples por meio deles, a
atenção da criança começa a deslocar-se dos estímulos em si (cor, brilho, sons,
novidade, etc) na direção das operações constitutivas das ações humanas.
Embora ainda bastante inconstante, a atenção da criança nesse momento já
possui um tempo de fixação maior, visivelmente presente na execução de tarefas
simples que lhes sejam solicitadas. Assim, as habilidades para focalização e fixação de
estímulos atencionais formam-se sob decisiva influência dos adultos. Ao término do
segundo ano e ao longo do terceiro ocorre a formação embrionária da atenção
voluntária, porém, ainda sob interferência sistemática do adulto nas ações que realiza,
isto é, o adulto dirige sua atenção.
Desta forma, a educação da atenção na primeira infância deve incluir
solicitações à criança de execução de pequenas tarefas relacionadas aos cuidados
pessoais de higiene, à organização de objetos no espaço, aos procedimentos implícitos
na utilização de distintos objetos e sobretudo, explorar maximamente os recursos da
literatura infantil e das artes cênicas.
A complexificação dos processos motor, perceptivo e atencional propiciam
mudanças qualitativas na capacidade de memorização da criança. O marco mais
20

decisivo dessa evolução na primeira infância refere-se à ampliação do tempo para o


reconhecimento e recordação. Segundo Smirnov e outros (19860):

(...) no início {refererindo-se ao primeiro ano de vida, L. M.} o tempo


máximo que pode haver entre a primeira percepção e a segunda para
que esta seja reconhecida como igual à primeira é muito pequeno, se
reduz a dias. Aos dois anos aumenta até semanas, ao terceiro ano até
meses (...). A recordação de pessoas e objetos ausentes aparece depois
que é possível reconhecê-los (...). De uma maneira progressiva o
período latente de recordação aumenta. No segundo ano de vida se
limita a alguns dias, no terceiro, a algumas semanas (...) (p. 227).

O aumento das possibilidades para reconhecimentos e recordações fornece


novos conteúdos mnêmicos que são, também, substancialmente influenciados pelas
aquisições da linguagem. Quanto maior a compreensão da linguagem dos adultos e os
domínios da fala própria, mais completa e determinada será a capacidade de
memorização da criança, uma vez que o signo verbal é um importante recurso nesse
processo.
Durante a primeira infância a memória é involuntária e sem um fim
determinado. Ou seja, a criança não evoca seus conteúdos por um ato volitivo e nem
memoriza com o objetivo de recordar posteriormente. Fixa na memória aquilo que tem
significação num dado momento, que se relaciona com a satisfação de suas
necessidades ou interesses e sobretudo, aquilo que possui um forte conteúdo emocional.
A conversão, ainda que futura, da memória involuntária em memória voluntária
não ocorre na ausência de condições educativas que tenham esta finalidade ao longo de
todo percurso de desenvolvimento da criança, uma vez que as experiências de
associação, a repetição e o treino são os requisitos primários para esta aquisição.
O grau de desenvolvimento alcançado pelas funções perceptivo-motoras,
atencional e mnêmica, aliado às aquisições da linguagem, promove mudanças radicais
no pensamento da criança, que neste período corresponde à sua atividade prática, ou
seja, nessa fase pensar é agir!
Assim, é precisamente por meio da atividade objetal manipulatória que a criança
inicia a formação das operações racionais constitutivas do pensamento, e isso, na
concretude de suas ações práticas. No início da primeira infância predomina o
21

exercício-analítico sintético sobre a base dos objetos reais (desagrega suas partes,
procura uni-las e explorá-las por todos os sentidos, etc).
Essas experiências corroboram para a elaboração das primeiras comparações e
generalizações pois propiciam a descoberta e o estabelecimento de relações e conexões
correspondentes a dados objetos e fenômenos reais. Para tanto, a mediação do adulto
fornecendo modelos concretos de análise / síntese, comparação e generalização,
acompanhados de sua representação verbal, são requisitos indispensáveis para tais
elaborações.
Ao término do terceiro ano, a criança, graças às apropriações promovidas pelos
adultos, já conquistou os domínios elementares sobre tais operações (análise / síntese,
comparação e generalização) ainda que as mesmas encontrem-se estreitamente ligadas
às fontes sensoriais das quais procedem e lhes servem de apoio. Sobre esse realismo
infantil, Vygotski (1996) afirma:

(...) poderíamos dizer que a criança dessa idade carece de toda


imaginação, quer dizer, que nem em sua mente nem em sua
imaginação pode figurar-se uma situação distinta daquela que se lhe
apresenta diretamente. Se analisarmos a relação da criança com a
realidade exterior veremos que é um ser realista em alto grau, que se
diferencia da criança de maior idade por sua dependência da
situação, por estar plenamente sujeita ao poder das coisas que tem
diante de si naquele momento (p. 346).

Esta análise é reiterativa da inexistência de ficção nas atividades, inclusive


lúdicas, próprias às crianças pequenas, bem como evidencia os equívocos presentes em
teorias que postulam uma alta capacidade imaginativa nelas. A imaginação pressupõe
um distanciamento mental provisório da realidade, do qual resultam idéias,
representações imagens, ações, etc que independem das condições concretas
imediatamente existentes, mas que a elas retornam possibilitando sua transformação.
A imaginação, como o pensamento, é uma função psicológica superior. Dela
resulta a possibilidade de criação de novas imagens sensoriais na consciência por meio
da transformação mental de impressões recebidas da realidade. Os anos iniciais de vida
são preparatórios para a imaginação, no rigoroso significado desse processo. O uso
ampliado que as crianças pequenas fazem da fantasia não é resultado de uma eventual
22

“capacidade imaginativa natural e superior”, outrossim, resultam do conhecimento


ainda limitado que têm da realidade e das leis objetivas que regem o mundo.
Consideramos não demais apontar que tanto para o desenvolvimento do
pensamento quanto da imaginação o papel da linguagem é determinante e diante desta
observação, retomemos a exposição acerca de seu desenvolvimento. Conforme
apresentamos em item anterior desse texto, à etapa pré-linguística seguem-se as etapas
do domínio primário do idioma, característico do segundo ano de vida; e do domínio da
estrutura gramatical da linguagem, presente a partir do início do terceiro ano.
O transcurso do segundo ano é acentuadamente marcado por inúmeras
aquisições, dentre elas, destaca-se o domínio do idioma. O uso das palavras, que na
etapa anterior designavam praticamente um único objeto, complexificam-se muito. Sob
sistemática influência dos adultos, a criança avança em direção aos domínios da
linguagem não apenas ampliando o vocabulário que decodifica e as palavras que
pronuncia.
O salto qualitativo mais importante e que se inicia nesta etapa reside na
representação da imagem sensorial do mundo construída pela criança, sob a forma de
palavras. Elas passam a ter, além da função comunicativa, o status de signos, que são os
recursos essenciais do pensamento. Por isso, quando a criança adquire os domínios do
idioma não está apenas adquirindo o meio básico de comunicação social mas também,
enriquecendo sua atividade cognitiva.
É devido a esse enriquecimento que avança em direção ao domínio da estrutura
gramatical da linguagem. Nesta etapa se faz presente a construção de orações, em
princípio composta por poucas palavras e sem conectores entre si, mas que já se
colocam a serviço da expressão do pensamento da criança.
Porém, para que a criança adquira o referido domínio não lhe basta, meramente,
o contato social com a linguagem. É imprescindível a sua exposição a ações educativas
que lhe favoreçam a compreensão e o uso da linguagem em seus aspectos fonéticos,
léxicos e gramaticais. Que objetivem a correta articulação dos sons constitutivos das
palavras (dicção), que impulsionem a formação de um amplo vocabulário; que ensinem
a ordenação e a articulação das palavras nas orações. As aquisições que devem ter início
nesta etapa são importantes requisitos para a futura aprendizagem da leitura e escrita.
Diante do exposto, esperamos ter evidenciado porque a promoção do
desenvolvimento da linguagem deve ocupar lugar de grande destaque na atenção
23

educativa dispensada à criança na primeira infância, levanto-se prioritariamente em


conta, que:

A linguagem infantil não é uma atividade pessoal da criança (...)


consideramos a linguagem individual como parte do diálogo, de
colaboração, de comunicação. Nenhuma questão (gramática, orações
de duas palavras, etc) pode se explicar fora dele. Toda palavra infantil,
por primitiva que seja, é parte de um todo (...) (Vygotski, 1996, p.
356).

Assim, Vigotski considera que a gênese do desenvolvimento da linguagem


infantil radica nas relações de colaboração e apropriação que a criança mantém com os
adultos. Isso a conduz a novos patamares de domínios sobre si e sobre seu entorno,
determinantes de importantes mudanças na estrutura de sua consciência.
Na base das aquisições advindas da atividade objetal manipulatória se processa,
na primeira infância, um grande salto qualitativo em comparação à consciência do bebê.
Como conseqüência do desenvolvimento das novas propriedades motoras, cognitivas,
afetivas e sociais a crianças se torna mais autônoma e sua percepção, acerca do mundo e
de si mesma, mais acurada. Graças a isso, caminha a passos largos na direção da
evolução da consciência como proto-nossotros para a consciência como si-mesmo.
Segundo Vigotski (1996, p. 347) este é um processo que apenas se inicia na
primeira infância, mas que já evidencia o término do segundo ano e o curso do terceiro
ano como estágio do eu, no qual a criança se reconhece por alteridade em relação aos
outros. Este momento, também identificado como personalismo infantil encerra intensas
manifestações afetivo-volitivas.
Os afetos da criança, embora sempre presentes, tornam-se mais intensos e
evidentes, dado que lhe confere novo posicionamento nas relações sociais. O lugar que
ocupa nessas relações também se transforma e a receptividade, muitas vezes passiva,
presente no primeiro ano, cede espaço para a atividade auto-afirmativa típica do
término da primeira infância.
Sob condições educativas que não reconheçam tais transformações e que não
interfiram coerentemente nesse processo, ocorre a nominada crise dos três anos8. Urge
ao educador saber que a criança está principiando a construção de sua auto-imagem e de

8
Ver capítulo 3 desta coletânea, no qual este processo é abordado.
24

sua identidade pessoal e esta construção contém os elementos embrionários da futura


formação de sua personalidade.

Considerações finais

Ao longo deste texto procuramos, à luz da Teoria Histórico Cultural de Vigotski,


demonstrar quão decisivo é o entorno social para a formação dos atributos humanos nos
indivíduos. Destacamos o quanto essa construção é tarefa de todo um processo
educativo, principiando no ato de nascimento de cada pessoa.
Colocamos em questão a atenção institucional dispensada à criança de zero a
três anos nas creches, assinalando a grande complexidade presente nesse período do
desenvolvimento, bem como sua essencial dependência das condições em que se
processa.
Advogamos que as creches não são outra coisa senão, escolas. Como tal,
demandam uma organização político pedagógica calcada em preceitos científicos
sólidos, na base dos quais se evidencia a imensa responsabilidade presente no trabalho
dispensado à criança pequena.
Nesta direção, elegemos o aspecto pedagógico referente à seleção e organização
de conteúdos de ensino destinados à criança de zero a três anos como foco de análise,
propondo a distinta natureza dos mesmos. Ou seja, propondo-os como conteúdos de
formação operacional e de formação teórica, substratos para a superação da
preponderância dos processos psicofísicos naturais, isto é, das funções psicológicas
elementares, em direção à estruturação das funções psicológicas superiores, que
representam, de fato, as marcas da humanidade em cada indivíduo particular.
A referida estruturação não é resultado de ocorrências sociais fortuitas, casuais e
espontâneas. Aos seres humanos não basta a mera pertença à espécie biológica nem o
contato com a sociedade pelas suas bordas. Para que se constituam como tal (seres
humanos) precisam apropriar-se da vasta gama de produtos materiais e intelectuais
produzida pelo trabalho dos homens ao longo da história.
No âmbito da educação escolar, a promoção desta apropriação incide no acesso à
cultura que, quanto mais representativa das máximas conquistas humanas for, mais
humanizante será. Tal como asseverado por Vigotski na proposição do método inverso,
se pretendemos conhecer verdadeiramente as premissas que regem o desenvolvimento
25

de qualquer fenômeno, temos que ter como parâmetro de análise a máxima expressão
por ele já assumida.
Assim sendo, o critério de validação para a humanidade, no que se inclui a tarefa
humanizadora da educação infantil, não pode ser o mais simples, o mínimo, outrossim,
o mais complexo, o máximo!

Referências Bibliográficas:

Elkonin, D. Sobre El problema de la periodización del desarrollo psíquico en la


infancia. In: Davídov, V. & Shuare, M. La psicologia evolutiva e pedagógica en la
URSS. URSS: Editorial Progresso, 1987.
Huffman, K., Vernoy, M. e Vernoy, J. Psicologia. São Paulo: Atlas, 2003.
Petrovski, A. Psicologia general: manual didáctico para los institutos de pedagogia.
Moscú: Editorial Progreso, 1985.
Saviani, D. Perspectiva Marxiana do Problema Subjetividade-Intersubjetividade. In:
Duarte, N. (org.) Crítica ao Fetichismo da Individualidade. Campinas: Autores
Associados, 2004.
Smirnov, A.A., Leontiev, A.N., Rubinstein, S.L. & Tieplov, B.M. Psicologia. México:
Editorial Gryjalbo, 1960.
Vygotsky, L.S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
Vygotski, L.S. Obras Escogidas.Tomo IV. Madri: Visor, 1996.

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