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Contato Improvisação: Um estudo

Etnográfico*
Contact Improvisation: An Ethnography Study
Recibido: 07 de Septiembre del 2009 | Aceptado:20 de Diciembre del 2009

CAMILA NERI TORQUATO**


JOSÉ BIZERRIL Centro Universitario de Brasilia, Brasilia DF, Brasil

RESUMO
O Contato Improvisação é uma técnica corporal que nasceu
nos EUA na década de 70. Nesta dança os praticantes são
levados a concentrar-se no próprio movimento e na percepção
de como interagem no contato físico com o outro. O objetivo
deste artigo consiste em investigar uma das comunidades na
cena do Contato Improvisação em Brasília e em identificar
como a prática dessa dança participa da corporeidade dos
praticantes. A metodologia empregada é a qualitativa de
cunho etnográfico. Este método proporciona uma descrição
cultural, evoca uma realidade participativa, por meio do
diálogo com os entrevistados. Muitas das entrevistas expressam
o impacto da atividade do Contato Improvisação nos estilos
de vida dos praticantes, o que me permitiu produzir reflexões
acerca dos modos de vida no contexto da modernidade-
líquida. Os relatos, de modo geral, manifestam a busca pela
atividade como uma tentativa de resgatar o contato corporal
entre as pessoas, perdido na vida cotidiana e aprimorar a
consciência corporal. Identifiquei no grupo uma comunidade
formada por maneiras culturalmente elaboradas de atenção ao
corpo, que decorrem da prática desta técnica corporal.
Concluo destacando como a prática dessa dança colabora no
processo de subjetivação dos integrantes, contribuindo para
formas específicas de estar no mundo.
Palavras-chave: Técnica corporal; Subjetivação; Modernidade-
líquida.

ABSTRACT
The Contact Improvisation is a body technique born in the
U.S.A. in the 70s. It is based on body’s listening where the
dancers concentrates on the movement, the physical contact
perception and the interaction with others dancers. The main
objective of this paper is to research the community of
Contact Improvisation in Brasília, and to understand in which
ways dancing transforms the practitioner’s embodied selves.
The methodology used is the ethnography. This method
provides a cultural description, evokes a participatory reality
through dialogue with the interviewees. Many of the
interviews reflect the impact of the Contact Improvisation’s
activity in the practitioner’s life style, which allowed me to do
some reflections about the ways of life in liquid-modernity
contexts. The reports showed that people usually looked for
Contact Improvisation as an attempt to rescue the body
contact lost between them in everyday life. I identified at this
*José Bizerril foi o orientador do presente artigo. group a community formed by culturally developed ways of
Agradeço sua atenção e disponibilidade ao longo da attention to the body as a result of this technique practice. It
realização deste trabalho. was concluded by emphasizing how the practice of this dance
**Correspondencia: Debe ser dirigida a Camila Neri al influences the way students percepts themselves, contributing
Centro Universitario de Brasilia – UNICEUB, Brasilia – with specific forms of being in the world.
DF, Brasil. Keywords: Techniques of the body; subjectivity; liquid-modernity.
Correo electrónico: camilaneri@hotmail.com

| REVISTA SALUD & SOCIEDAD | V. 1 | No. 1 | PP. 006 – 018 | ENERO - ABRIL | 2010 | ISSN 0718-7475 |
CAMILA NERI TORQUATO, JOSÉ BIZERRIL

Introdução 2005) e a etnografia se diferenciam nos


seguintes aspectos: o pesquisador não
Ao estudar o Contato Improvisação, necessariamente precisa conviver com o
encontrei um movimento de desconstrução grupo estudado; é possível também realizar
das concepções de dança, corpo, movimento intervenções ou atendimentos no mesmo
e papel social, inaugurado por Steve Paxton período da pesquisa, na perspectiva de
(Novack, 1990). Na base desta dança há uma González Rey. Na etnografia é necessária a
intenção de promover a interação entre os participação e o convívio do etnógrafo na
corpos por meio da improvisação. Uma vida social dos nativos e as intervenções não
atividade em que não existem passos pré- ocorrem.
definidos, o movimento se baseia no contato Conforme Lane (2004), os estudos da
com o outro e no equilíbrio dinâmico desses psicologia social concentram-se em estudar o
corpos. Conteúdos estes que serviram como sujeito a partir de uma perspectiva histórico-
material de reflexão para esse artigo, já que social, considerando que não é possível
na composição dessa dança existem conhecer o comportamento humano
características que também permeiam o isolando-o ou fragmentando-o, como se este
modo de vida contemporâneo, como a existisse em si e por si. Atenta-se em
ruptura com as normas que definem os conhecer o indivíduo no contexto de suas
papéis sociais, a instabilidade nas relações, o relações, tanto naquilo que lhe é específico
desejo de contato entre as pessoas... Tudo como naquilo em que ele é manifestação
isso permite pensar essa dança como uma grupal e social. Ressaltando que essa área da
metáfora da vida. Essa pesquisa abre espaço psicologia concebe o ser humano como
para analisar e dialogar acerca de algumas sujeito da História e transformador da
questões de âmbito social presentes no própria vida e da sociedade. Deste modo,
cotidiano contemporâneo. essa pesquisa encontra-se na área da
O método e a concepção epistemológica psicologia social, uma vez que visa conhecer
empregadas nesse trabalho serviram para me como a prática do Contato Improvisação é
aproximar dos nativos; percebê-los em seu vivenciada por um grupo de alunos em
contexto social; evocar uma realidade Brasília; como essa atividade influencia em
participativa. Neste contexto o entrevistado suas vidas e o motivo que os levaram a
possui voz para legitimar suas práticas, no praticá-la.
momento em que as torna inteligíveis a
outras pessoas. Conforme recomendado 1. O corpo e suas dimensões no modo
pelo método etnográfico, ir a campo e de vida pós-moderno
praticar as mesmas atividades dos
entrevistados me permitiu acessar uma Apresento neste tópico algumas teorias
realidade bem diferente daquela que teria sociológicas do corpo e uma análise dos
observado apenas à distância. modos de vida na contemporaneidade.
O presente estudo é uma ponte entre a Pretendo promover um diálogo entre os
antropologia e a epistemologia qualitativa da estudos sobre corpo e as descrições macro-
psicologia social, uma vez que ambas as sociológicas sobre o mundo contemporâneo.
disciplinas apresentam perspectivas teóricas Escolho partir destas perspectivas teóricas
convergentes. A compatibilidade entre a porque compreendo que elas contribuem
etnografia, método típico da antropologia, e para a análise etnográfica deste trabalho.
a epistemologia qualitativa da psicologia
convergem ao desconstruirem a idéia de 1.1 Construção de identidades no mundo
neutralidade na pesquisa; ao conceberem o líquido-moderno
resultado do trabalho como conseqüência
do vínculo e do diálogo com os nativos; ao Neste trabalho, o uso do termo
realizarem entrevistas abertas e de interesse modernidade-líquida descreve a
do entrevistado. instabilidade das relações no mundo
Por outro lado, a epistemologia contemporâneo. Este tema é incluído no
qualitativa da psicologia (González Rey, artigo porque descreve uma realidade social
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CONTATO IMPROVISAÇÃO. UM ESTUDO ETNOGRÁFICO

a que corresponde o estilo de vida do grupo momento em que se extraviam as referências


pesquisado e servirá para a análise empírica e os pilares de sustentação da subjetividade
do último tópico. Utilizo modernidade- moderna. O amparo sólido das instituições,
líquida para descrever o contexto da vida a proteção do estado e o cuidado das
urbana nas sociedades globalizadas. Ao famílias neste contexto se encontram
analisar esta situação, Bauman (2003) fragmentados, enquanto que o mercado se
identifica na nova configuração do posiciona para suprir este espaço de
capitalismo os problemas com os quais nos fragilidade.
confrontamos hoje. A atual condição do A geração nascida nas últimas décadas do
sistema capitalista requer a necessidade de se século XX ficou marcada por uma mudança
adequar ao ritmo dos mercados, gerando o no modo como se concebe subjetividade,
medo de ficar defasado e de tornar-se que deixou de ser caracterizada por uma
dispensável. As pessoas se deparam com a interioridade psíquica para tornar-se uma
insegurança e a existência se torna cheia de exterioridade corporal e performática
incertezas. Segundo Bauman (2005) as (Bauman, 2007; Le Breton, 2003; Sibilia,
identidades culturais sofrem um processo de 2008), em cujo contexto, para mudar a vida,
transformação contínua, suscitando basta modificar o corpo.
angústias para muita gente que vivencia essa O corpo dessas pessoas tende a ser fonte
realidade. Diferenciado da modernidade- de uma eterna produção de ansiedade,
sólida, em que os projetos de vida eram devido à ausência de mecanismos sociais
estáveis como o casamento, o trabalho, a seguros para aliviá-lo. Deste modo, os
religião, na modernidade-líquida esses cuidados em torno do corpo tornam-se fonte
projetos não mais garantem segurança, de lucro para o comércio. De acordo com
configurando-se em relações fluidas, Rolnik (2007), é como se em cada
instáveis. propaganda feita pela mídia, tivesse também
Na conjuntura contemporânea de vida, uma dose de humilhação ao consumidor,
ocorreu o declínio das estruturas sociais que gerando, então, uma ansiedade decorrente
viabilizam as identidades sociais estáveis e de um sentimento de inadequação. Sendo a
certa coerência do sujeito (Hall, 1954/1994), promessa de eliminar ou reduzir tal
as pessoas vivenciam a idéia de um ansiedade, também uma oferta do mercado
indivíduo fragmentado. O sujeito líquido- bastante sedutora. Deste modo, toda
moderno é resultado de um modo de vida propaganda em torno dos desejos pessoais
individualista, pautada pela lógica de não prioriza saciá-los, mas estimulá-los, para
consumo (Bauman, 2007), que modifica assim a economia ser movimentada.
tanto sua relação com o corpo, como sua O sentido de sujeito, para aqueles que
relação com os outros. vivenciam a modernidade-líquida, é um
A desobrigação de permanecer em uma projeto a ser atingido, cuja via para torná-lo
comunidade seguindo aqueles modelos realidade decorre das condições de
prescritos pela tradição, mas também o consumo. Isto acontece em paralelo às
declínio das instituições sociais modernas desarticulações das formas de organização
permite que a pessoa idealize o modo como coletiva. Assim, ser indivíduo consiste em
almeja formar a própria identidade, ser responsável pelos próprios méritos e
transformando-a em um projeto em fracassos. Sem um norte orientador, o
permanente construção (Bauman, 2005). É indivíduo sai em busca das mais diversas
identificada, neste contexto, a construção de experiências para garantir a sua
identidades instáveis que se modificam individualidade.
conforme os desejos do indivíduo e os
múltiplos agenciamentos sociais. Estas 1.2 Técnicas corporais e subjetivação
características são descritas por Rolnik
(2007) como desterritorialização. Conforme Le Breton (2006), os
Sibilia (2008) em reflexão acerca do comportamentos são encadeados em uma
processo de subjetivação contemporâneo lógica social que atribui sentido a cada ação.
percebe uma fragilidade instaurada no São estes sentidos, construídos no interior
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de cada grupo, onde se legitimam as técnicas desnecessária a racionalização da atividade


do corpo. Uma técnica corporal é definida para que o movimento ocorra.
por Mauss (1950/2003), “como as maneiras Conforme Merleau-Ponty (2004) toda
pelas quais os homens, de sociedade a ação humana é permeada pelos sentidos,
sociedade, de forma tradicional, sabem estes compõem o modo como percebemos o
servir-se de seu corpo” (p. 401). mundo. A consciência, segundo o autor, é o
Ao aprendermos uma determinada corpo se projetando no mundo. Csordas
técnica do corpo, aprendemos também uma (2008) complementa dizendo que a
nova maneira de se servir dos sentidos que corporeidade pode ser entendida como a
são moldados pelo ensino da atividade. experiência perceptiva do sujeito. Observar a
Assim, ao aprender uma dança, por experiência corporificada1 de um grupo serve
exemplo, a pessoa aprende uma nova para analisar como funciona a dinâmica da
maneira de escutar, de tocar, de olhar, etc. participação humana em uma cultura.
Existem formas de participação
Percepções de cores, gostos, sons, grau de culturalmente elaboradas que envolvem a
afinamento do toque, limite da dor, etc. A atenção a e com o próprio corpo e com o de
percepção dos inúmeros estímulos que o
corpo consegue recolher a cada instante é outros, incluindo a presença de outras
função do pertencimento social do ator e pessoas. O autor denomina-as modos
de seu modo particular de inserção no somáticos de atenção. Este conceito será útil
sistema cultural (Le Breton, 2006, p. 56). para analisar as experiências do grupo de
contatistas (Contatista é uma categoria
Desse modo, a sociologia do corpo
nativa para praticantes de Contato
demonstra como a corporeidade é formada
Improvisação) pesquisados neste artigo.
na relação com o outro.
As aulas de CI - Contato Improvisação -
podem ser pensadas como um espaço de
1.3 Experiências sinestésicas e
subjetivação, sensibilizam o aprendiz aos
conhecimento
sentidos do corpo. Ensinam-no como
“ouvir” o próprio movimento e o do outro,
A experiência vivenciada configura-se em um
como tocar o parceiro, que caminho seguir,
saber prático. Segundo Bizerril (2007), esse
como improvisar, cair, parar, como buscar a
tipo de aprendizado passa por duas etapas.
harmonia (Na perspectiva de meus
Na primeira, em que o indivíduo não sabe
entrevistados, o termo harmonia refere-se a
como executar a ação; ele controla, calcula,
uma qualidade do contato: relação agradável
analisa, de forma consciente para só depois
para os que dela participam), na dança e nas
executar o movimento. Na segunda etapa,
relações fora dela, consigo e com os outros.
quando o sujeito já o incorporou ao hábito,
passa a executar de modo espontâneo. A
2. O Método Etnográfico
habilidade perceptiva é fundamental na
primeira etapa, para que entenda como irá
Para realizar esse trabalho utilizo a
praticar a técnica. Consegue, então, reagir de
epistemologia qualitativa e o método
modo criativo e apresentar decisões rápidas,
etnográfico2, que me pareceu a ferramenta
sem a necessidade de raciocinar a respeito.
No início, o estudo encontra-se na mente,
mas, após o domínio da arte, o saber 1
Corporificação é uma tradução possível do termo inglês
encontra-se no corpo. embodiment que se refere à inscrição da cultura no corpo do
nativo e se relaciona diretamente ao debate sobre o habitus, as
Numa linha de raciocínio análoga, técnicas corporais e sua relação com os processos de
Michel Serres (2004) aponta como o corpo subjetivação, bem como à dimensão vivida, não-textual, da
se torna suporte da intuição e da memória cultura.
2
No início do século xx, de acordo com González Rey (2002),
no momento de uma atividade física. Os o trabalho etnográfico de Malinowski e de outros autores
sentidos orientam o caminho da pessoa. O ajudou a sistematizar o modelo etnográfico e dar força para a
pesquisa qualitativa se estruturar. A etnografia, dessa forma,
aparelho sensorial permite que uma ação aparece como uma importante tradição qualitativa, que
ocorra de forma adequada, sendo emergiu da pesquisa antropológica. Existe, portanto, uma
compatibilidade teórica entre pesquisa qualitativa e
etnografia.

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CONTATO IMPROVISAÇÃO. UM ESTUDO ETNOGRÁFICO

mais apropriada para estudar o ethos - O método etnográfico, oriundo da


segundo Geertz (1978) o conceito ethos antropologia, foi utilizado nesta pesquisa no
define os valores sociais de uma cultura campo da psicologia. Deste modo, esse
específica. É o conjunto de disposições e trabalho é uma ponte entre a epistemologia
motivações, caracteriza-se pelo modo de ser e qualitativa - discutida por González Rey
agir de um grupo - da dança Contato (2005) que é um teórico da psicologia - e a
Improvisação em um grupo de Brasília. etnografia; conforme já mencionado na
González Rey (2005) pensa a pesquisa introdução. É importante ressaltar que
qualitativa como uma possibilidade para a muitos estudos da antropologia têm servido
psicologia de realizar estudos a partir da à psicologia como um aporte teórico para
desconstrução da idéia de uma apropriação reflexões do cotidiano do ser humano. Cito
neutra e linear da realidade, isto é, ele a seguir alguns, dentre os tantos exemplos de
rompe com uma concepção de ciência trabalhos realizados por pesquisadores das
psicológica ancorada exclusivamente nos ciências sociais no Brasil, que apresentam
parâmetros de cientificidade da pesquisa este tipo de perspectiva, como Benedetti
experimental nas ciências naturais. Sendo (2005) que em seu artigo problematizou o
assim, em sua proposta de uma tema da fabricação do corpo feminino em
epistemologia qualitativa, define o travestis; há também a pesquisa de Giordani
conhecimento como um processo (2006) que se atentou a pensar a auto-
construtivo e interpretativo. Para o autor, a imagem corporal na anorexia nervosa; Pérez
investigação qualitativa ocorre por meio do (2006), que refletiu a partir de uma
diálogo entre pesquisador e pesquisado, e, etnografia, como o ato de tatuar-se, nos dias
dessa interação, legitima-se a singularidade atuais, está imbuído de um desejo de
de cada entrevista, na medida em que se construir uma identidade. Bizerril (2007),
torna inteligível o objeto estudado. que em seu doutorado discute questões
Nas situações em que o entrevistado se sobre corpo, modo de vida e subjetivação.
encontra diante de perguntas abertas, em Estes quatro autores têm em comum com o
que ele possa falar à vontade sobre assuntos presente artigo a reflexão que formulam
de seu interesse, abre possibilidades para um acerca das relações entre corpo e identidade.
envolvimento maior com a situação de Já é possível encontrar produção
entrevista. Este contexto permite reflexões e bibliográfica que assinala a ocorrência de
elaborações tanto para o entrevistado quanto diálogo interdisciplinar entre essas duas
para o pesquisador, o fruto desse ciências: a antropologia e a psicologia. É
engajamento repercutirá na análise empírica viável utilizar-se do método etnográfico no
deste tipo de pesquisa. É essa a premissa campo da psicologia, como se pode ver nos
fundamental da epistemologia qualitativa; artigos de Sato & Souza (2001) que
abrir espaço para novas interpretações sobre discutiram a qualidade da abordagem
o fenômeno estudado. etnográfica no estudo da vida de pessoas em
Segundo González Rey (2005), o locais de trabalho; Toassi, Stolf & Oliveira
conhecimento passa a ser legitimado quando (2006) que abordaram as significações
cria espaços de compreensão sobre o que é profissionais de ser bombeiro em meio às
estudado e o torna útil para novas produções inserções tecnológicas no trabalho; Moreira
de conhecimento. Tal fenômeno é & Cavalcante Junior (2008) que na pesquisa
denominado, pelo o autor, de zonas de qualitativa em psicologia apresentaram a
sentido. Representa espaços de contribuição da etnografia para
inteligibilidade produzidos durante o estudo compreender culturalmente o fenômeno da
científico. Estes espaços geram novas psicopatologia. Embora não seja comum,
possibilidades de ação sobre a realidade, ainda, tal abordagem metodológica no
tanto durante a pesquisa com os sujeitos campo da psicologia, é legítima enquanto
pesquisados; como após a mesma, através um método de construção de conhecimento.
das representações teóricas. O método etnográfico, utilizado neste
estudo, pressupõe um horizonte
epistemológico qualitativo. Sua aplicação
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requer trabalho de campo, observação importante ressaltar que a experiência


participante, registro das observações em um corporal do pesquisador, mais do que relatar
diário, interpretação e análise teórica do a sua vivência subjetiva, pretende resgatar a
conteúdo observado. Faz parte também a experiência coletiva compartilhada na
convivência do pesquisador com os nativos a cultura (Bizerril, 2004).
fim de melhor ter acesso à cultura estudada. Ao etnografar, o pesquisador mantém
Nesse sentido, o etnógrafo precisa dominar a um intenso envolvimento intersubjetivo com
língua dos nativos, conhecer as teorias as pessoas pesquisadas. É no encontro entre
relevantes à sua pesquisa, estabelecer laços culturas onde surgem perguntas que jamais
de reciprocidade que lhe dá acesso às poderiam ser formuladas sem a presença do
concepções, práticas e experiências dos outro. Desse modo, o pesquisador nunca
nativos (Bizerril, 2004). será o único autor deste tipo de trabalho, já
A escrita etnográfica é uma tentativa de que esses indivíduos fazem também parte do
traduzir a experiência para a forma de texto. resultado da pesquisa. Por isso, conforme
No entanto, essa prática é complicada uma Bizerril (2004), sendo a etnografia
vez que a escrita jamais será um mero reflexo conseqüência de uma troca, é importante
da realidade. É preciso considerar as que o pesquisador tenha uma atenção
múltiplas subjetividades existentes num especial à ética daquilo que escreve.
único campo. Existe também a subjetividade
do próprio pesquisador, além da 3. O Contato Improvisação
subjetividade dos leitores. Por isso,
etnografia é apenas uma interpretação 3.1 A Dança
intertextual, jamais uma verdade.
Nesse método de pesquisa, existe uma O Contato Improvisação nasceu no início
preocupação em como desenvolver sínteses dos anos setenta nos EUA. Steve Paxton
de uma cultura e ao mesmo tempo descrever (Novack, 1990) foi o principal idealizador
a dinamicidade de uma realidade variável e desta técnica. Ele praticou ginástica olímpica
em transformação. Nesse sentido, Barth e dança na adolescência. Trabalhou com
(2000) sugere que se realize uma escrita teatro improvisado, arte visual, da dança
crítica da percepção que os nativos têm de moderna e experimental. Praticou também
suas motivações, conceitos e significados, Aikido, arte marcial japonesa. Todas essas
sem, no entanto atribuir aos resultados uma experiências o inspiraram a pesquisar as
validade hegemônica às representações possibilidades do movimento do corpo,
nativas. dando início ao que hoje conhecemos como
Tomando como referência a Contato Improvisação. Segundo Novack
argumentação de Bizerril (2004), a (1990), antropóloga que etnografou todo o
antropologia fenomenológica mostra como a percurso do Contato Improvisação por meio
experiência corporal do pesquisador pode de sua tese de doutorado, Paxton estava
ser um recurso para entrar no mundo do interessado em saber como na dança
nativo e promover outros tipos de improvisada promoveria a interação entre os
conhecimento, que não só por meio da corpos e a participação igualitária entre eles.
visão. O corpo, nesse caso, não é usado para Nesta dança a pessoa é ensinada a reagir
construir um sistema de classificações, mas, ao senso de desorientação e a guiar os
como um meio de adentrar na cultura. O movimentos do corpo a partir da atenção
conhecimento por meio da experiência voltada para as sensações corporais. O foco
corporal facilita o entendimento das práticas se encontra na sensação física do toque, da
do campo, abre a subjetividade do pressão e do peso depositado no corpo do
pesquisador ao universo cultural do nativo outro.
tornando a escrita etnográfica mais rica em Inspirada na experiência física proposta
detalhes, já que a ação é também um tipo de pelo zen budismo, a pessoa é incentivada a
comunicação, e aproxima o pesquisador dos exercitar um estado de consciência presente
sujeitos do campo, facilitando, desta forma, no aqui e agora, ao invés de imersa em
sua compreensão destas práticas. É recordações ou expectativas acerca do
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CONTATO IMPROVISAÇÃO. UM ESTUDO ETNOGRÁFICO

futuro. A consciência voltada para o exercícios e as jam3, por isso, no momento


presente permite o praticante perceber e das aulas faz parte do roteiro aprender a cair.
reagir de modo mais atento e posicionar o Exemplifico a prática de cair com um
corpo de forma mais adequada e eficiente. excerto de uma aula registrada em meu
diário de campo: o professor sugeriu uma
Segundo Bizerril (2003), O Contato aula de rua que foi realizada nas áreas
Improvisação estimula o desenvolvimento e residenciais numa dessas quadras esportivas
a renovação do vocabulário corporal do da Asa Norte, bairro do Plano Piloto. Num
dançarino, é uma intensiva exploração de clima de mistério, seguimos a orientação de
novas possibilidades para mover-se. O tato levar patins quando a maioria dos alunos
serve ao praticante como uma leitura da não tinha a mínima noção de como andar.
intenção, direção, eixo gravitacional e Foi o momento em que o professor num
possibilidades de ação instruídas pelos riso contido nos mencionou o tema da aula:
parceiros. No processo de aprendizagem do queda e equilíbrio. A brincadeira baseava-se
Contato Improvisação o praticante adquire em equilibrar o corpo sobre um par de
habilidades em como executar tipos patins. Para dificultar, montamos um time
particulares de movimento, desenvolve de basquete sobre rodas para pôr em teste
também um domínio de como interagir com nossa consciência corporal. Não preciso
a outra pessoa. mencionar a quantidade de quedas ao longo
do jogo.
3.2 O campo Enquanto algumas escolas de dança
incentivam a aprendizagem pelo desgaste
No segundo semestre de 2008 passei a físico com formação de calos nos pés ou
freqüentar as aulas de Contato Improvisação hematomas pelo corpo devido ao
com o professor Giovane Aguiar. As aulas treinamento exaustivo que prioriza a
duravam duas horas, aconteciam duas vezes estética, no Contato Improvisação a ênfase
por semana, no turno da noite. A turma está em desenvolver a capacidade de “escuta”
consistia em treze praticantes, dez mulheres do corpo. Creio que por isso o CI acaba
e três homens. As idades variam dos vinte sendo tão atrativo para aqueles que não
aos quarenta. Pertencentes à classe média; fazem parte do circuito da dança e procuram
residentes no Plano Piloto - região central de nesta modalidade um tipo de “terapia” para
Brasília, correspondente ao plano original da trabalharem a percepção que têm sobre si. A
cidade, dos anos 60, atualmente habitada prática desta dança consiste em exercitar a
fundamentalmente por população de classe atenção sobre os movimentos próprios e o
média - cursam ou já terminaram o nível dos outros, o que acaba possibilitando ao
superior; eram na maioria brancas. praticante novas formas de servir-se dos
Geralmente chegavam por indicação de sentidos do corpo, influenciando nas
algum conhecido. relações que estabelecem com as outras
pessoas.
3.3 As Aulas Percebo entre alguns praticantes a
motivação pela dança ser a de encontrar nas
A dança tende a explorar movimentos em aulas um espaço para o autoconhecimento.
espirais, que são movimentos arredondados Os praticantes que não fazem parte dos
em oposição aos movimentos rígidos e circuitos da dança geralmente têm seus
lineares, a fim de economizar energia e interesses voltados para melhorar o modo
aproveitar toda a força que chega ao
indivíduo através do parceiro, e dessa 3
O termo JAM significa Jazz After Midnight, usado por
maneira dar continuidade à ação gerada pelo músicos de Jazz quando se uniam para praticar a
outro. É comum o desequilíbrios durante os improvisação na música, com seus instrumentos musicais. O
Contato Improvisação tomou esta expressão emprestada para
se referir aos eventos desta dança, momentos que não se
configuram enquanto aula, mas como sessões livres para
improvisação, destinados àqueles que já conhecem os
princípios básicos desta dança, e reúne os “contatistas” para
explorar possibilidades novas de movimento.

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como interagem com outras pessoas e para tocar em ninguém, e aqui de repente é o
sensibilizar a atenção depositada no próprio momento que você encosta em alguém e
isso é bom, isso faz parte do motivo de
corpo, na postura e na forma como o todo mundo estar aqui, faz bem para o
movimentam. Este interesse por parte dos corpo estar em contato com outros corpos.
praticantes corresponde ao habitus das
camadas médias e altas das sociedades Segundo Bauman (2004), na atualidade
globalizadas, para quem os corpos são objeto as relações humanas são motivo de temor e
de investimento estético e fonte de prazeres insegurança. Por isso muitos preferem os
(Le Breton, 2006). relacionamentos “em rede”, deste modo
Nas aulas de Contato Improvisação, os evitam qualquer tipo de comprometimento
alunos não somente recebem instruções de com o outro, já que na internet existe a
como dançar, mas também, em certa facilidade tanto para conectar-se como para
medida, recebem algumas recomendações de desconectar-se com outras pessoas, basta
como viver. Não se trata de uma reflexão para isso apenas pressionar um botão.
filosófica formal, é algo muito mais da Características tipicamente distanciadas
ordem de uma “estética da existência”, para estabelecidas por meios virtuais, sem
usar o termo de Foucault (1994/2004). vínculos e de curto prazo. De acordo com Le
As propostas reflexivas que a dança Breton (2003), este é um reflexo do
promove estão presentes nas aulas, sempre empobrecimento da vida coletiva, marcada
há um espaço dedicado a conversas com este por uma “comunidade” de imagens em que
teor. Os alunos passam boa parte do tempo a relação não se estabelece pelo convívio,
com a atenção voltada ao próprio mas pelas impressões rápidas e descartáveis.
comportamento. Observam o modo como
realizam cada exercício: a respiração, a 4.2 O ethos terapêutico no grupo
postura, a flexibilidade e a intenção
compõem os movimentos que aos poucos Catarina, 43 anos, aluna há um mês, estava
vão ganhando forma conforme as conversas empenhada em se conhecer melhor.
que instruem os processos de subjetivação de Procurou as aulas de Contato Improvisação
cada ouvinte. para melhorar o modo como se relaciona
com as outras pessoas:
4. Conversando com os praticantes: a
análise empírica Eu estou fazendo terapia, eu falei para a
minha psicóloga que eu tenho dificuldade
de contato com as pessoas, então comecei a
4.1 Os Contatistas e os modos líquido- procurar uma dança para me soltar mais.
modernos de vida Liguei para uma amiga minha, a Amanda,
que faz dança contemporânea. Ela me deu
o telefone da Sarah, que me indicou o
Em muitos dos relatos, a crítica ao
Contato. Eu queria uma dança que
distanciamento nas relações diárias foi o pudesse ter contato físico, que não fosse
motivo pelo qual os praticantes buscaram as uma dança estética, queria uma coisa mais
aulas de Contato Improvisação. integrada... Na primeira aula de Contato
Comentaram encontrar nesta dança um Improvisação já me apaixonei. Foi uma
aula de quedas. Cair numa pessoa que eu
lugar para a aproximação física com outras não conheço mexeu muito comigo, com
pessoas, sem que isso fosse um problema, minha auto-estima e com meu preconceito.
como ilustrado pelo fragmento da entrevista Mexe com os nossos padrões por conta do
de Mateus4, 32 anos: preconceito do toque. Quando alguém na
rua tocava em mim eu levava um susto.
Agora estou mais descontraída. As pessoas
A proximidade na dança é legal, é bom esse
falam que eu estou mais expressiva, mais
contato. Na sociedade se a gente encosta
solta. Comecei a aceitar mais o meu corpo.
em alguém, pede desculpas. Você não pode
Isso está mexendo na minha vida como um
todo. O professor é muito cativante. Eu
4
É importante ressaltar que os nomes dos alunos peguei uns ensinamentos da aula para
entrevistados são todos fictícios, exceto o do professor minha vida: eu faço das quedas um passo
Giovane. de dança. Eu levo muito a sério as coisas
que eu faço. A gente tem que ser flexível.

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CONTATO IMPROVISAÇÃO. UM ESTUDO ETNOGRÁFICO

Às vezes eu digo que o chão está duro, e às “escuta” do corpo, não se restringe apenas a
vezes sou eu que estou dura. Estou uma técnica de como dançar. A dinâmica
aprendendo a ser mais flexível... Como as
pessoas perdem oportunidade na vida por dos exercícios é explicada de maneira
serem tão rígidas! E eu falo isso para mim. metafórica, ao mesmo tempo em que o
professor ensina como dançar, remete os
É perceptível entre os praticantes do CI a alunos a recomendações que servem para a
vontade de estabelecer um contato mais vida quotidiana, assim como mencionou a
próximo com as outras pessoas, uma vez que aluna Catarina:
na vida cotidiana sentem-se solitários.
Também é nítida a vontade desses alunos No dia da aula sobre quedas teve um
em trabalhar nas atividades de aula a exercício que a gente caía, e ninguém te
segurava. E na vida é assim. Às vezes você
percepção que fazem de si. Tecendo um cai e ninguém te segura. Na vida é o
breve paralelo com o trabalho de Leila seguinte, às vezes você dá e às vezes você
Amaral (2000) sobre o movimento Nova recebe. Às vezes você apóia o outro. Eu não
Era, a autora identifica entre os sabia lidar com isso. Agora estou refletindo
freqüentadores deste movimento o melhor. Às vezes a gente tem que apoiar o
outro e eu só queria receber.
compromisso de estabelecer uma relação de
bem-estar: na vida quotidiana, na Talvez devido às características descritas
comunidade e no planeta. Bem como no acima seja o motivo desta atividade ser tão
workshop de variadas combinações atraente a pessoas que não fazem parte do
terapêuticas, etnografado pela autora, circuito profissional da dança, justamente
reconheço em alguns praticantes da dança por não se tratar de performances para
elementos comuns àqueles descritos por ela. espetáculo. Conforme as conversas com os
Muitos alunos do Contato Improvisação entrevistados relataram interessar-se pela
empenham-se em encontrar através da atividade por sensibilizar o corpo para a
dança, uma terapia que os desperte para a consciência corporal, melhorar a relação
saúde da mente e do corpo. Há um ethos psi, com outras pessoas, perceber as emoções e
característico na fala da maioria de meus trabalhá-las durante os exercícios.
entrevistados, que encara a sua prática como É importante ressaltar, no entanto, que
terapêutica. Embora não se trate apesar de sensibilizar os alunos para a
necessariamente de um público New Age ou atenção ao corpo, o Contato Improvisação
Nova Era, os praticantes do CI partilham se diferencia das terapias corporais, cuja
deste tipo de olhar psi. Em ambos os espaços proposta é, de forma geral, segundo Lowen
é possível reconhecer uma busca por (1977), trabalhar os conflitos emocionais
transformar a consciência a fim de restaurar somatizados no corpo. No Contato
a saúde individual. Arthur, 36 anos, ao Improvisação o foco não é esse, embora não
conceder sua entrevista, ilustra como tal impeça de exercer, de forma indireta, um
construção é presente no imaginário de resultado terapêutico sobre o indivíduo.
muitos alunos.
4.3 Os modos somáticos de atenção
O contato traz uma forma nova de você
lidar no seu dia-a-dia. Dá uma percepção
maior do que é você, do que é o seu corpo A forma como o professor concebe a dança
e do espaço que você ocupa... Vejo que eu também influencia o modo como os alunos
fui conseguindo um relaxamento. Hoje percebem essa atividade. Giovane, 45 anos,
percebo as tensões. O contato traz uma o professor da turma que acompanhei,
qualidade de vida para você.
sofreu uma queimadura quando criança que
Apesar de Steve Paxton diferenciar o bloqueou a sensibilidade tátil em uma parte
Contato Improvisação de encontros de sua pele. A prática do Contato
terapêuticos (Novack, 1990), essa dança Improvisação o ajudou a resgatar essa
apresenta algumas características sensibilidade perdida.
semelhantes àqueles espaços. Os exercícios
do Contato conduzem os dançarinos a uma

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CAMILA NERI TORQUATO, JOSÉ BIZERRIL

Aos sete anos eu sofri um acidente e fiquei cultura através de outros mecanismos além
com seqüelas de queimadura... O Contato do discurso. Nesse processo de aprendizado
foi a ferramenta que me ajudou a
desenvolver a sensibilidade e a percepção coletivo de prestar atenção com e ao corpo, a
na minha pele. Hoje para mim, o Contato turma de CI desenvolve uma comunidade
é uma técnica de formação para o corpo que é formada pelo contato corporal que se
que permite você se conhecer melhor. estabelece com os outros praticantes; uma
comunidade cuja comunicação é realizada
As aulas do Giovane apresentam uma
através do corpo e que exerce influência em
característica própria. A ênfase na percepção
outros setores da vida deles.
do corpo é uma marca que o identifica e que
Citro (2006), ao analisar o trabalho de
seus alunos passam a adquirir. Na entrevista
Merleau-Ponty sobre a fenomenologia da
de Sarah, 24 anos, (relatada abaixo),
percepção, explica como a experiência vivida
evidencia como a atividade do Contato
torna-se transmissível a um outro justamente
Improvisação, neste grupo, não se limita à
por não ser dependente de um texto,
dança, mas também ao desejo de
intrinsecamente dependente de categorias e
desenvolver uma consciência corporal.
classificações. Dessa forma, a ordenação da
O que você está vivendo influencia na
percepção é realizada pela experiência
dança e a dança influencia no que você está coletiva, no contexto da prática, e por isso é
vivendo. A dança me ajuda a ficar aberta, transmissível. A transformação de si
na relação com os outros. A aula do acontece por meio de uma ação sobre os
Giovane tem umas coisas de consciência corpos, e não pelos discursos. De maneira
corporal. É um espaço que dá liberdade
para dançar sem pensar. Flui... Percebo semelhante, Bizerril (2007), no contexto de
quando estou bem, isso tem conseqüência sua etnografia sobre taoísmo no Brasil,
na dança. argumenta que o treinamento corporifica a
experiência coletiva e conduz o sujeito a uma
De acordo com Merleau-Ponty (2004), determinada visão de mundo (Bizerril,
toda experiência humana passa primeiro 2007).
pelos sentidos para depois ser organizada por Deste modo, concluo que a comunidade
uma síntese intelectual. Percebi nos relatos formada pelos praticantes de CI forma-se na
dos praticantes a atenção às percepções experiência compartilhada do contato
sensoriais no momento das aulas. Csordas corporal. A comunicação se dá pelas
(2008) define este tipo de experiência como percepções sensoriais. É na pele onde a
os modos somáticos de atenção para explicar as experiência é organizada, por meio dela,
maneiras culturalmente elaboradas de estar todo o corpo responde de forma intuitiva e
atento ao corpo em ambientes que incluem rápida às demandas de peso, eixo e
a presença corporificada5 de outros. Nesse equilíbrio da dança. No Contato
sentido, a atenção ao corpo envolve um Improvisação a experiência torna-se coletiva
engajamento sensório e um objeto. É no nível do habitus6, na medida em que a
compartilhado em um meio intersubjetivo técnica se inscreve nas possibilidades
com os outros e também inclui a atenção aos corporais dos praticantes. Ainda que
corpos dos outros. compartilhada narrativamente, a
Analisando num contexto geral, os comunidade de contatistas se forma
praticantes, cada qual em sua busca, primordialmente por meio de habilidades
vinculam-se no tema da atenção somática. As corporais e modos somáticos de atenção
aulas de Contato Improvisação do professor específicos. A experiência é compartilhada
Giovane orientam a uma sensibilização do no nível sensório-motor.
modo de perceber o corpo. Merleau-Ponty
(2004), explica que toda percepção é pré-
discursiva, mas esta qualidade não implica 6
Habitus se forma no envolvimento do agente num domínio
que ela seja pré-cultural, se inscreve na prático já estruturado, e uma vez formado funciona como
princípio que gera e organiza novas práticas (BOURDIEU,
1980, 2000 apud ORTEGA, 2008). O habitus articula o corpo
5
É a experiência perceptiva e o modo de presença e e a sociedade por serem ambos uma estrutura estruturada e
engajamento do indivíduo no mundo (Csordas, 2008). estruturante (ORTEGA, 2008).

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CONTATO IMPROVISAÇÃO. UM ESTUDO ETNOGRÁFICO

Considerações Finais desenvolvimento da percepção do corpo e


como essa atividade específica transforma os
Baseada nas etnografias de Novack (1990), padrões habituais dos praticantes, no que diz
Bizerril (2003) e em minha pesquisa de respeito à propriocepção, movimento,
campo, encontrei na técnica do Contato postura e contato com outros corpos.
Improvisação uma expressão do ethos da Segundo o professor Giovane, o Contato
contracultura que se caracteriza por uma Improvisação consiste numa técnica que
desconstrução da normatização dos corpos, antes de ser artística, trabalha a consciência
por uma valorização do movimento corporal. É um espaço de sensibilização do
“espontâneo” ou “autêntico” como tato, dançada em silêncio, permite o
expressão do sujeito. conhecimento da estrutura física daquele
Tomando como base autores que que dança. Muitos de seus alunos não fazem
discutem os processos contemporâneos de parte do circuito profissional de dança,
subjetivação (Bauman, 2004; Le Breton, sendo que alguns chegaram por indicação de
2003; Rolnik, 2007; Sibilia, 2008) identifico terapeutas. As aulas foram um contexto
no Contato Improvisação em Brasília a propício para perceber o próprio corpo e as
reunião de pessoas cujas características emoções relacionadas a ele. Segundo relatos
sociológicas justificam a suposição de que dos entrevistados, a prática da atividade
participam em alguma medida desses auxiliou na percepção da dinâmica de
processos. Os praticantes, majoritariamente movimentação corporal do praticante, o que
de classe média, com alto nível de permitiu construir reflexões sobre a forma
escolaridade e acesso às tecnologias virtuais como se posiciona na vida, contribuindo
de informação compõem um grupo de para um autoconhecimento e repercutindo
pessoas com o ideal de construir uma na qualidade das relações sociais que
identidade autônoma, típica da estabelece, fora do contexto da dança.
modernidade líquida descrita por Bauman Tanto entre os alunos, como com o
(2007). professor pude perceber que o ensino da
As motivações dos entrevistados para a técnica do Contato Improvisação voltava-se
prática da dança são diversificadas. Muitos mais para uma educação da “escuta” do
comentaram o desejo de estabelecer contato corpo do que ao ensino de uma dança
corporal com outras pessoas, uma vez que no estética, o que acaba atraindo pessoas com
cotidiano as relações com outras pessoas lhes uma demanda terapeutizante. Por outro
pareciam distanciadas e frias. Outro tema lado, essa técnica não se enquadra como
enfatizado nas entrevistas foi o desejo de uma terapia, visto que não há uma
trabalhar o autoconhecimento por meio das codificação direta da relação dos exercícios
técnicas abordadas nas aulas de atenção ao físicos com a saúde emocional dos
corpo. praticantes. A atividade pode ter como
Concluo este trabalho destacando como conseqüência secundária tal efeito, mas
as motivações dos praticantes estão segundo o professor Giovane, uma vez
relacionadas com a dinâmica da vida sistematizado essas relações, a técnica deixa
contemporânea, que produz necessidades de de existir, deixa de ser improvisação. O
formar vínculos e de construir uma efeito terapêutico psi da técnica seria como
identidade singular e “autêntica”. Segundo um efeito indireto da transformação da
Bauman (2007), essa dinâmica da vida consciência de si no plano corporal. Haveria
“líquido-moderna”, repercute em uma uma distinção entre a perspectiva do
tensão no sujeito, pois vivencia um professor e alguns dos praticantes
paradoxo, ao mesmo tempo em que deseja informados tanto pelas psicoterapias
construir uma relação, teme as convencionais quanto pela lógica terapêutica
conseqüências que a mesma lhe pode trazer; New Age.
ao mesmo tempo em que deseja liberdade Identifiquei no grupo pesquisado uma
para explorar novidades, teme se prejudicar. sub-cultura baseada em modos somáticos de
Nas aulas de Contato Improvisação atenção (Csordas, 2008) específicos. A prática
percebi como a técnica consiste de um
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CAMILA NERI TORQUATO, JOSÉ BIZERRIL

do Contato Improvisação constitui-se por específica. Em alguma medida, a análise ecoa


uma educação que elabora uma maneira de determinados aspectos das descrições macro
estar atento ao corpo, compartilhada em um da sociedade pós-moderna, sem ser esgotada
meio intersubjetivo através do contato físico por estas descrições. Inserir a psicologia em
com os outros praticantes. A técnica produz pesquisas e discussões sociais é produtivo,
um corpo sagaz que permite ao indivíduo para compreender melhor o sujeito inserido
reagir a eventos, de forma espontânea, sem em diferentes contextos.
ter que analisar como. Nesse contexto,
defino o grupo de praticantes como uma Referencias
comunidade estabelecida por meio da
experiência vivenciada pelo contato Amaral, L. (2000). Carnaval da alma. Petrópolis:
corporal, cuja comunicação se estabelece, Vozes.
sobretudo pelas percepções sensoriais. Barth, F. (2000). O guru, o iniciador e outras
A vivência se torna coletiva pela variações. Rio de Janeiro: Contra Capa.
Bauman, Z. (2004). Comunidade. Rio de
experiência sensório-motora entre as pessoas
Janeiro: Jorge Zahar.
da dança. Nesse sentido, Merleau-Ponty Bauman, Z. (2004). Amor líquido sobre a
(2004) explica que a percepção se insere na fragilidade dos laços humanos. Rio de
cultura, se organiza por meio das atividades Janeiro: Jorge Zahar.
vivenciadas em grupo. É na experiência em Bauman, Z. (2005) Identidade. Rio de Janeiro:
grupo o momento em que se transmite a Jorge Zahar.
cultura e se forma a comunidade. Bauman, Z. (2007). Vida Líquida. Rio de Janeiro:
O ensino de qualquer técnica corporal Jorge Zahar.
implica um processo de subjetivação, pois Benedetti, M. (2005). Entre curvas e
ensina simultaneamente formas específicas sinuosidades: a fabricação do feminino no
corpo das travestis. Em: Toda feita: o corpo
de estar no mundo. No caso do Contato
e o gênero das travestis (pp.51-88). Rio de
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experiências sinestésicas, em desenvolver a o contato e improvisação. Cadernos de
consciência corporal, o que, no dança: revista de estudos antropológicos da
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autoconhecimento, e melhora a sua Bizerril, J. (2004). O vínculo etnográfico:
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vida consiste de uma categoria nativa, não é qualitativa. Universitas ciências da saúde,
um conceito teórico. Refere-se à melhora na 2(02), 153-166.
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