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ENTREVISTA

Mídia,
recepção e
educação GOSTEMOS OU NÃO, o sistema dos meios de co-
municação está exercendo transformações
RESUMO concretas sobre a educação e o sistema edu-
O professor Guillermo Orozco Gómez nos conta, nesta en- cativo. É sabido que a educação não aceita
trevista, um pouco da sua trajetória e os caminhos que o “legitimar” a mídia como um elemento edu-
levaram até o Modelo das Múltiplas Mediações e da chama- cador. Desta forma, contra todas as evidênci-
da Educação para os Meios. Desafio interdisciplinar da mai- as, a relação múltipla entre os meios de co-
or envergadura, esta alfabetização crítica tem, como elemen- municação, as tecnologias de informação e a
tos fundamentais, a linguagem e os códigos dos próprios educação tem sido desconsiderada pelos
meios de comunicação. professores, pais, alunos e os próprios órgãos
governamentais responsáveis dos países da
ABSTRACT América Latina. Sem um interesse institucio-
In this interview, Guillermo Orozco Goméz tells us a little nal ou individual por desenvolver uma pe-
about his trajectory and the paths which drove him to the dagogia do uso da imagem pela educação,
Model of Multiple Mediations and to the Education for the produz-se na sociedade uma sensação geral
Media approach. de descompromisso com a questão, enquan-
to uma certa espécie de educação está, efeti-
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) vamente, sendo realizada pelas mídias co-
- Educação (Education) merciais, sem que se possa cobrar sua res-
- Recepção (Reception) ponsabilidade nesse processo. É preciso mu-
- Mídia (Media) dar a idéia generalizada de que os meios só
servem para divertir e informar, pois isso im-
pede a compreensão do fenômeno educativo
que está se desenvolvendo através dos mes-
mos. Este é o universo no qual o Professor
Guillermo Orozco Gómez, desenvolve suas
pesquisas: em busca de uma alfabetização
aos meios de comunicação, capaz de enten-
der (e ensinar) como se pode manipular com
os meios.

Revista Famecos - Há algum tempo o senhor


vem trabalhando com a perspectiva de que a
televisão é um instrumento de educação.
Como se localiza tal proposta dentro do cam-
po da Comunicação?

Guillermo Orozco - Primeiro, eu gostaria de


dizer que a relação entre os meios de comu-
nicação e a educação é uma área que me inte-
ressa muito, que tem me interessado por
Guillermo Orozco Goméz1 muitos anos. Eu tenho tratado de entender o
Universidade de Guadalajara - México que significa a relação da televisão com os

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receptores, em função da educação e da pe- que é imagem é apenas apoio, ilustração,
dagogia. Ou seja, é todo um campo de deba- mas não tem legitimidade para transmitir co-
te e de interesse que vincula os meios de co- nhecimento. Não há um interesse nem insti-
municação e a educação. Uma das minhas li- tucional, nem individual por desenvolver
nhas de trabalho é a “educação para a comu- uma pedagogia do uso da imagem pela edu-
nicação”. Sobre isso podemos falar depois. cação.
Outra linha procura entender as transforma-
ções que todo o sistema de meios de comuni-
cação está exercendo sobre a educação e o RF - Parte dos estudos sobre a comunicação
sistema educativo. de massa sustentam que a programação tele-
Eu acredito que há uma relação múlti- visiva não educa; muito pelo contrário, apre-
pla muito importante entre meios de comu- senta-se como fonte de alienação. Neste senti-
nicação, tecnologias de informação e educa- do, a sua perspectiva encontra alguma forma
ção, em distintos níveis. Essa relação não é de resistência. Como responder a ela?
entendida pelos ministérios da educação e
tampouco pelos educadores e pais de alu- Orozco - De fato, é fortíssima a impressão de
nos. Há um grande desencontro em distintos que os meios de comunicação não têm legiti-
níveis entre o que percebem os grupos de midade para ensinar. Isso é uma percepção
receptores e o que está acontecendo com os geral no México e, diria, também na América
meios de comunicação, particularmente a te- Latina. Em um certo sentido, há razão para
levisão. Quanto a isso, eu gostaria de dizer pensar que os MC não têm uma intenção de
que existe uma percepção errônea e generali- educar e tampouco de prestar um serviço pú-
zada, tanto no México quanto em outros paí- blico para os receptores. Os MC, enquanto
ses da América Latina, sobretudo dos profes- empresas, têm como prioridade o lucro; ou
sores de ensino básico e médio, os quais se- seja, oferecer uma mercadoria que permita
guem pensando que os meios de informação ter muito rating e a partir do rating ter muitos
servem apenas para distrair, divertir e, em ganhos. E me parece que junto com isso está
todo o caso, informar. Os meios de comuni- a idéia de que, explicitamente, os MC diriam
cação são vistos como algo que deve ficar “nós não queremos educar, não temos res-
fora da escola, fora do processo educativo ponsabilidade de educar, queremos diver-
formal. Quando se aceita que algo dos meios tir”. Por outro lado, os professores dizem “os
de comunicação entre na escola trata-se de meios são terríveis, claro que isso não é edu-
algum programa instrutivo, algum filme que cação, isso não educa”. Então, o efeito que
possa transmitir uma mensagem positiva aos isso produz na sociedade é a sensação de
estudantes ou simplesmente vídeos educati- que não se está realizando nenhum tipo de
vos, produzidos pelo Ministério da Educa- educação com os meios comerciais. Isso é um
ção, no caso do México. No país, o Ministério erro, porque se está realizando efetivamente,
de Educação produz muito material video- uma certa espécie de educação, mas nin-
gráfico para auxiliar o processo educativo guém exige a responsabilidade a ninguém.
nas escolas; continuamente está produzindo Chega-se então a pensar que os meios de co-
vídeos sobre física, química, matemática para municação não têm nada que ver com educa-
apoiar o livro texto, para ilustrar o que o pro- ção. Essa é uma idéia generalizada. Todavia,
fessor está ensinando. Por outro lado, os pro- me parece muito importante se mudar essa
fessores usam esses vídeos para apoiar seus idéia social de que os MC somente servem
esforços de ensino. Essa é a idéia que se tem para divertir e informar. Porque, justamente,
dentro do sistema educativo: de que todos os divertindo e informando estão produzindo
materiais na forma de imagem são para apoi- aprendizagens em todos os setores, mas
ar o discurso oral ou escrito, estes sim legíti- isso não se entende porque há uma defini-
mos para transmitir conhecimentos. Tudo o ção muito estreita, muito reducionista da

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educação: Educação é aquilo que é instrução, ção, cujo objetivo é o de interferir no proces-
tudo aquilo que eu quero ensinar, que a soci- so de recepção e ensinar como ler os meios
edade diz que devo ensinar às crianças, isso de comunicação. O senhor coloca essa inter-
é educação. Então, educação é aquilo que faz ferência como uma prática pedagógica neces-
a escola. Nenhuma outra instituição pode sária. Por outro lado, na década de 70, atra-
educar. Educação é aquilo que se faz seria- vés da pesquisa-ação, inúmeros estudos se
mente, com muito esforço. Aquilo que é di- destinaram a desvendar o poder ideológico
vertido não é educação. Então, eu acredito dos meios de comunicação através de um
que há uma idéia equivocada sobre educa- sistema que acabava por ensinar uma manei-
ção e que é preciso mudar essa idéia. Educa- ra crítica e também ideológica de ler o pró-
ção pode ser muito divertida, pode ser fora prio meio. Quais as afinidades ou distancia-
da escola, pode ser muito mais que somente mentos entre estas duas perspectivas de alfa-
instrução. betização?
Esses três sinônimos de educação estão
impedindo que haja uma compreensão do fe- Orozco - Eu me distancio dessa perspectiva,
nômeno educativo que se está desenvolven- mas gostaria de citá-la porque, na América
do através dos MC. Por outro lado, há uma Latina, nas décadas de 70 e 80, ela era funda-
transformação dos processos perceptivos. mental. Sua preocupação central era com o
Isso se pode constatar. As crianças são capa- potencial ideológico dos conteúdos. A lin-
zes de receber mais informações por minuto guagem, a técnica e a forma não importavam.
e de processar mais informações, de receber Não se percebia como uma problemática. O
informações através de imagens, sons e tex- problema era a ideologia que se transmitia.
tos diversos. O que está acontecendo é um Entretanto, me parece ser uma perspectiva
fenômeno onde a lógica tradicional da lin- bastante reducionista. Quanto aos distancia-
guagem escrita está se modificando por ou- mentos: primeiro, eu tratei de fazer uma edu-
tra; sobretudo do hipertexto, do digital. So- cação, uma alfabetização aos meios de comu-
bretudo as capacidades das novas gerações nicação, entendendo “alfabetização” não ape-
têm sido modificadas porque podem mais nas a partir da concepção ingênua da lingua-
rapidamente assimilar informações simulta- gem ou no sentido tradicional da leitura, mas
neamente, de diferentes meios. Entretanto, as uma alfabetização como a concebia Paulo
novas gerações podem não ser experts na ló- Freire. A partir do entendimento da seqüên-
gica da linguagem escrita, que é a exigida cia dos movimentos de câmera, das ênfases
pelos professores, na escola. Há um desen- em uma tomada - de baixo para cima, de
contro muito grande a este nível de lingua- cima para baixo -, da compreensão da lingua-
gens, de lógicas, da organização das informa- gem da representação, pode-se perceber
ções. Eu acredito que a resposta que os Mi- como é possível manipular com esse meio. É
nistérios da educação estão tendo em relação isso que entendo por alfabetização, a alfabeti-
a esse fenômeno é totalmente instrumental, zação crítica ao meio, na qual os elementos
insuficiente e equivocada. Insuficiente por- fundamentais são a linguagem e os códigos
que unicamente está atendendo a um projeto dos meios de comunicação. A partir desse
de introduzir máquinas nas escolas e isso olhar é possível saber como, por exemplo, os
não é suficiente. Seria importante desenvol- programas educativos internacionais como o
ver uma metodologia para essa interação, Vila Cézamo, tem seqüência em função dos
para que realmente se aproveite o potencial comerciais que rompem muitas vezes o pro-
dessas máquinas. cesso de aprendizagem, ou seja, eles têm de
ser cortados ou planejados para adequarem-
se ao horário publicitário programado para
RF - O senhor tem trabalhado com projetos aquele momento.
de alfabetização para os meios de comunica- Os debates que tinham os acadêmicos

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dentro do planejamento do Vila Cézamo era com Piaget e segue com Vigotsky e com ou-
que eles tinham que adequar toda a sua pro- tros teóricos-pedagogos. Para eles é impor-
posta educativa à programação publicitária. tante construir uma situação de aprendiza-
Isto era muito difícil e um grande desafio, já gem, na qual os estudantes entrem e possam
que os programas televisivos têm que estar desenvolver e construir sua própria aprendi-
de acordo com a publicidade, porque preci- zagem. Parece-me que é isso que temos que
sam vender. Mas como comunico essa idéia fazer para os meios. Por um lado, há o desa-
ao receptor, como ensino essa idéia? Tudo fio de explicitar o específico dessa proposta
isso entraria dentro da alfabetização crítica te- construtivista para a educação midiática.
levisiva. Mas a perspectiva que estou desen- Esse é um desafio no qual há que se traba-
volvendo é uma pedagogia de fazer evidente lhar. Eu comecei a trabalhar neste sentido,
o que não é evidente aos receptores; ou seja, mas não tenho tudo acabado. A minha pro-
não é impor uma nova ideologia, mas sim- posta é tentar fazer isso evidente e estou tra-
plesmente facilitar uma situação de aprendi- tando de fundamentá-la. Essa proposta é pro-
zagem onde nós, receptores, tornemos evi- dutiva para alcançar os objetivos de modifi-
dente o que não é evidente. car a percepção que se têm dos meios de co-
municação. Por outro lado, também busco
desenvolver uma metodologia com exercíci-
RF - O juízo de valores viria por parte dos os específicos, exercícios lúdicos, com toda a
receptores? Essa seria a diferença? filosofia do jogo, pois o jogo me parece ser o
matiz com o qual podemos fazer esse tipo
Orozco - Sim. A mim me parece que os esfor- de educação, justamente porque os meios
ços de educação crítica, leitura crítica dos de comunicação entram nesse nível lúdico
meios dos anos 70 e 80 eram esforços ideoló- do jogo e para educar, para desenvolver
gicos, mas não pedagógicos. Essa é a minha uma visão mais crítica, precisamos explo-
aprendizagem histórica. Porque não tinham rar este recurso.
uma pedagogia para ensinar a ver televisão, O que estou fazendo é tratar de pensar,
então, tinham boa intenção, uma percepção imaginar jogos que permitam facilitar aos ou-
muito crítica dos meios e queriam comunicar tros o entendimento de princípios fundamen-
isso, mas não tinham uma metodologia pe- tais, como, por exemplo, o de que tudo o que
dagógica para ensinar. Assim, o que resulta- vemos nos meios audiovisuais é uma repre-
va ao final era apenas um doutrinamento dis- sentação. Mas ensinar a uma criança de 10
tinto com outra ideologia. A mim pareceu anos que o que ela assiste nos meios não é a
que o problema da educação para os meios realidade, que isso é apenas uma representa-
não era um problema ideológico, mas um ção, é algo muito abstrato. Há um jogo que
problema metodológico: como fazê-lo? De consiste em oferecer uma folha de papel a
fato, esse problema metodológico está em co- uma criança, para que se ela a use como se
nexão com um problema epistemológico: fosse a sua câmera. É interessante que se faça
como conhecer as distintas linguagens dos evidente à criança um olhar a partir de sua
meios? Como fazer sentido de diferentes lin- própria lente da câmera e assim, chegar por
guagens, como produzir conhecimentos de si mesmo a uma construção abstrata. Trata-se
distintas linguagens e como produzir conhe- de um processo concreto de que aquilo é
cimento crítico da nossa interação com esses uma representação, porque temos todos que
meios? E esse é o desafio na ordem metodo- selecionar “pedacinhos da realidade”. Es-
lógica e epistemológica e não na ordem ideo- ses são os tipos de jogos que deveremos
lógica. desenvolver os educadores para os meios,
A minha proposta seria a de aprendiza- exercícios que permitam evidenciar o prin-
gem construtivista. Ou seja, tomando toda cípio de que a realidade representada nos
essa corrente do construtivismo que arranca meios está aí e que a criança tome a decisão

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que queira... eu não posso impor minha ideo- RF - Para isso dar certo, o professor também
logia, mas se tenho que lhe dizer aqui há precisa estar “alfabetizado” em relação aos
isso, aqui há isso, se ela me perguntar qual é meios. Afinal, se é negativo um professor não
o melhor, darei minha opinião, mas não vou acolher as informações dos meios, também
impor-lhe. deve ser negativo o professor que acolha tais
informações sem críticas. Então, também se-
ria necessário, uma alfabetização dos profes-
RF - O senhor construiu o Modelo das Múlti- sores...
plas Mediações. Tal modelo também serviria
para captar quais mediações poderiam ter Orozco - Quanto a este ponto específico eu
uma influência no processo de educação e teria uma opinião diferente. Porque eu não
que ajudariam as crianças a entender o pro- acho que a condição para que o professor
cesso de recepção. Como estão se desenvol- possa exercitar uma mediação pedagógica é
vendo os estudos – e possíveis resultados – que ele esteja “alfabetizado”. Eu acho que o
neste campo? que se necessita é que o professor esteja con-
vencido de que ele pode modificar o que a
Orozco - A idéia das Múltiplas Mediações criança vê ou escuta na televisão. O maestro
partiu da comprovação empírica de que o não tem que estar alfabetizado. Durante 30
professor, na escola, exerce uma mediação anos pensamos que teríamos que formar os
negativa ou positiva. Ele exerce uma media- reprodutores, mas para mim, isso foi um fra-
ção negativa quando exclui o tema dos meios casso total. Eu acho que o professor precisa
de comunicação das salas de aula, porque estar convencido de que se ele intervir haverá
perde a oportunidade de reorientar a visão um efeito, se ele não intervir haverá um efei-
que as crianças têm do que escutam, etc. Ou to bem diferente, e que ele tem que intervir
seja, a mediação do professor, que seria uma da maneira que for. O que temos que formar
mediação pedagógica, está ausente. No en- no professor é o entendimento de que a cri-
tanto, a mediação pedagógica é muito impor- ança pode aprender qualquer linguagem,
tante porque seguimos em contato mental não apenas com o livro, mas em qualquer
com os meios de comunicação mesmo quan- meio, em qualquer situação, dentro e fora da
do acaba o contato físico com os mesmos. Daí escola e de que ele terá maior relevância na
que, se estamos em contato mental com os medida em que for orientar todos as aprendi-
meios e as crianças também estão - o que está zagens. Ele será mais relevante para a educa-
provado, uma vez que as crianças falam e ção dessa criança e então tem que aproveitar
trocam significados acerca do que viram e es- qualquer situação interna ou externa para
cutaram no dia anterior -, se enfim, as crian- orientar, no sentido ideológico que seja.
ças estão em contado, estão reproduzindo
significados, o professor pode intervir. A des-
culpa do professor ao se abster é que a televi- RF - O modelo das múltiplas mediações exis-
são é algo que tem a ver com a família, é algo te há mais de 10 anos e há muito tempo o
que está na casa da criança, e esta concepção senhor aponta o papel da tecnologia enquan-
está isto está errada. A criança leva a televi- to mediação. Martín-Barbero, em De los Medi-
são à escola e o professor tem a oportunida- os a las Mediaciones (1987) ressaltou a impor-
de de intervir e reorientar sua recepção, con- tância da cultura como mediação, mas no dé-
vocando a criança para que fale sobre o que cimo aniversário do livro, pareceu evidenciar
viu e para dar a sua própria opinião. Isso já é um regresso aos meios. Hoje, tanto a produ-
melhor do que nada. As crianças precisam de ção do senhor quanto a de Martín-Barbero
um outro referente distinto daquele dos pró- parecem confluir em alguns aspectos, pois
prios meios de comunicação e o professor ambos reconhecem a tecnologia como media-
pode possibilitar esse referente. ção, evidenciando o papel da educação e o

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surgimento de um novo tipo de construção na. Creio que Freire tem sido impactante por
de pensamento, que Martín-Barbero denomi- ter uma proposta que nasce na América Lati-
na um novo sensorium. Como se dá essa con- na, como acontece com Martín-Barbero. Creio
fluência, já que parece que, por caminhos di- que o que mais impactou Martín-Barbero não
ferentes, ambos estão trabalhando os mesmos foi o pedagógico de Freire, mas sua concep-
pontos. ção filosófica e na abordagem latino-america-
na e isso ele conseguiu perceber com a sua
Orozco - Não sei como responder isso, mas tese e a retoma alguns anos depois, publican-
eu tenho a impressão de que por distintos do pela primeira vez, depois de um bom
caminhos chegamos a algumas coincidências. tempo, nesse pequeno livro. Eu e Martín-
Eu acredito que Martín-Barbero por muito Barbeiro já conversamos um pouco sobre
tempo não esteve motivado para falar do isso. Para mim, Paulo Freire foi fundamen-
educativo relacionado aos meios porque ele tal, posso dividir minha vida (produção in-
não tinha um interesse particular no que ele telectual) em antes de conhecer Paulo Frei-
chama corrigir a “mirada” (o olhar) dos re- re e depois.
ceptores (...). Ele reconheceu projetos e expe-
riências de educação para os meios, mas fi-
nalmente, a partir de Walter Benjamin ele se RF - Em relação ao Modelo das Múltiplas
deu conta de que a capacidade da tecnologia Mediações o senhor citou duas fontes: Martin
não é somente de facilitar processos, tornar Serrano, que trabalhava com a noção de me-
mais eficiente algo, mas também a de modifi- diação enquanto meio, e Martín-Barbero, a
car a percepção. Benjamin fala do sensorium partir da noção de interação, mas voltando-se
(termo latim) que é um pouco do que se sen- mais para a cultura. É interessante que o se-
te, do que se percebe. Quando Martín-Barbe- nhor, quando constrói o modelo das múlti-
ro se deu conta do sensorium, creio que ele plas mediações parece tentar englobar as
passou a se interessar pelo educativo. O inte- duas noções. Existe uma diferença significati-
resse educativo fica claro no livro La Educaci- va e entre eles a ponto de serem inconciliá-
ón desde la Comunicación. veis ou o senhor construiu o modelo justa-
Martín-Barbero fez sua tese de doutora- mente numa tentativa de agregá-los?
do sobre o significado e outras coisas, mas o
primeiro capítulo foi sobre Paulo Freire. Pau- Orozco - Sim, são diferentes. Mas acredito
lo Freire tem sido o motivador de muitos, que é preciso entender o contexto de cada
inclusive o meu, que me fez pensar de outra um deles. O de Martin Serrano, como um
maneira sobre o mundo. E aparentemente contexto no qual o que importava era o meio
isso também ocorreu com Martín-Barbero, de comunicação, no qual estava ocorrendo
que dedicou um capítulo a entender a pro- um grande desenvolvimento tecnológico, os
posta filosófica, eu diria neofilosófica, de meios de comunicação podiam chegar a
Paulo Freire. A partir de Freire ele começa a qualquer lugar, representavam um contexto
pensar a relação da educação e o impacto muito mais de descobrimento. Os MC ti-
que a educação - como um sensorium de for- nham um papel muito importante. Já Martín-
mação - está tendo através das novas tecnolo- Barbero é mais filósofo, menos analista dos
gias. É interessante ver no pequeno livro cita- acontecimentos. Ele não se deslumbra tanto
do acima, que é de 2002, porque mostra com a tecnologia, mas sim pelos processos
como estava aparentemente adormecida essa profundos que vão desenvolvendo-se e
parte educativa. Freire por um momento lhe que permitem desenvolver essa tecnologia.
inspirou, mas lhe inspirou mais do que pelo Então, eu acredito que são dois lugares
pedagógico e educativo, por essa filosofia, muito diferentes de pensar a comunicação.
pela epistemologia de entender o ser huma- Eu nunca tive a intenção de fazer uma sín-
no e por ser uma visão muito latino-america- tese deles. Mas me pareceu que em nível

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mais intermediário, mais empírico, se pode- nhecia o Martín-Barbero porque ele começou
ria falar de distintas mediações, e que havia a ter reconhecimento na América Latina
uma mediação própria do meio, que eu cha- quando eu estava nos EUA. Nunca soube da
mei de “videotecnológica”. De qualquer for- sua existência até quando eu estava por ter-
ma, não se tratava de sintetizar a perspectiva minar minha tese de doutorado. Eu voltava
de Serrano. Nunca pensei assim, pelo menos. ao México, três meses antes de finalizar a tese
Eu sigo pensando a mediação videotecnoló- e foi quando uma amiga me deu o livro De
gica como um processo mais técnico do que los Medios a las Mediaciones. Claro que se tives-
ideológico, pois creio que essa parte ideoló- se lido isso antes teria sido mais fácil. O meu
gica está em muitos lados, não só ai. problema é que eu não encontrava sustenta-
ção suficiente para convencer as pessoas de
Harvard de que o que eu estava dizendo ti-
RF - Que outras correntes inspiraram o de- nha algum sentido. Eu precisava me apoiar
senvolvimento do modelo das Múltiplas Me- em outros, e assim me apoiei nos Estudos
diações? Culturais sem que eles, entretanto, tenham
me convencido totalmente. Porque sempre
Orozco - Os Estudos Culturais, Freire e, de- pensei que os MC tinham um lugar particu-
pois, a Corrente neoclassista da educação. lar e que nunca poderia entender isso das
Quando estudava comunicação descobri identidades, da cultura... isso era muito com-
Freire. Trabalhei com Comunicação e Educa- plicado e eu era mais simples.
ção Popular em favelas de Guadalajara, a
partir daí, me dei conta de que o problema
era pedagógico e metodológico. Porque sen- RF - De que maneira os pesquisadores inte-
tia que era demasiado ideológico, que eu “ti- ressados em trabalhar com o seu modelo po-
nha a verdade”, que a minha verdade teria dem apropriar-se das categorias e das media-
que ser a verdade de todos, como os meus ções que o senhor sugere para realizar um
colegas, que achavam que eles tinham a ver- estudo?
dade. Daí percebi que havia alguma coisa er-
rada. Então, decidi estudar pedagogia. Senti Orozco - Eu acredito que a forma como eu
que deveria seguir estudando, combinando venho me apropriando da idéia de media-
pedagogia com televisão, para poder fazer ções estabelece um referente que me permite
um programa educativo efetivo, hesitoso, ver coisas e começar a arrecadar dados empí-
como o Vila Cézamo. ricos, dos quais vão surgindo outras categori-
Quando cheguei a Harvard, me dei con- as distintas da original que não a contradi-
ta que o problema era outro, não era fazer zem, mas a completam. Eu diria que essa se-
uma programação efetiva, mas dar as ferra- ria uma maneira. Tomar como referente de
mentas para que as pessoas pudessem en- início alguma mediação, com a idéia de que
frentar criticamente o encontro com os MC há muitas mediações e, empiricamente, con-
não educativos, não instrutivos, que eram a firmar se há de fato outras, e quais seriam.
maioria. Então, me pareceu que havia que
desenvolver uma pedagogia de ver televisão.
Mas em Harvard, que era uma escola de edu- RF - A partir dos inúmeros trabalhos realiza-
cação, ainda não uma escola de comunicação, dos com o Modelo das Múltiplas Mediações,
a única corrente de comunicação existente lá quais são as maiores transformações na socie-
era a produção de Vila Cézamo, então, pro- dade que o senhor acredita serem ocasiona-
curei uma corrente para sustentar meus estu- das pelos meios de comunicação?
dos e encontrei os Estudos Culturais, concre-
tamente, Stuart Hall e todos os que estavam Orozco - Eu creio que como resultado desse
produzindo muitos conhecimentos. Não co- crescimento de diferentes meios e tecnologi-

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as, se está modificando a capacidade de per- como espaço de comunicação, cultura e toda
cepção, principalmente das gerações mais jo- essa parte, mas creio que a televisão, para
vens. Também se está modificando nossa ca- eles, que era o meio de comunicação por ex-
pacidade de construir conhecimento através celência, foi trocada por outras tecnologias
de diferentes linguagens, não somente a lin- nos estudos de comunicação. No Brasil há,
guagem oral e escrita, mas também a lingua- de fato, um interesse por investigar. Nos es-
gem visual e digital, e as crianças são um tudantes de outros países não vejo o mesmo
exemplo disso. Creio que há uma capacidade interesse por investigar: há a proposta de ra-
de constituir entendimento a partir de dife- pidamente fazer uma dissertação e tirar o tí-
rentes linguagens. O problema é que não tulo, o diploma. Isso me faz ter um carinho e
existe uma pedagogia que nos permita alcan- uma atenção muito especial pelo Brasil .
çar este efeito e por isso nos causa um mal
estar, pois não sabemos como agarrá-lo,
como ensiná-lo. Também creio que as manei- Notas
ras com as quais nos divertirmos também fo-
ram modificadas, para melhor e para pior. O * Entrevista realizada por Rene Goellner (doutorando em Co-
que aconteceria nas grandes cidades se não municação e Informação), Luciana Dornelles (Mestre em
tivéssemos acesso aos videogames, filmes, Comunicação e Informação) e Luiz Filipe Duarte (doutoran-
vídeos, televisão, música, rádio? Ficaríamos do em Comunicação e Informação) durante o seminário
loucos. Como nesses centros não podemos “Tel-evidencias... Metodologias cualitativas de investigación
ter outros tipos de diversão, os meios de co- em comunicación, audiências y médios audiovisuales” reali-
municação nos ajudam a suportar a cotidiani- zado em novembro de 2003 na cidade de Porto Alegre/ RS –
dade. Brasil – para estudantes de cursos de pós-graduação da
Temos que ver ambos os lados. Na PUCRS, UFRGS e UNISINOS, instituições promotoras do
América latina, até há uns cinco anos, os aca- evento.
dêmicos só pensavam negativamente dos
meios. E era uma contradição, pois estáva- 1 O Professor Guillermo Orozco Gómez é formado em Comu-
mos emocionados com os meios, buscáva- nicação pelo ITESO (Guadalajara), especialista em pedago-
mos os meios, por isso estudávamos comuni- gia da Comunicação pela Universidade de Colônia (Alema-
cação; mas às vezes tínhamos um preconceito nha) e Mestre e Doutor em Educação pela universidade de
ideológico de que estava errado, que tínha- Harvard (EUA), professor e investigador do Departamento
mos que entrar em guerra com os meios. En- dos Estudos da Comunicação Social da Universidade de
fim, crescemos numa esquizofrenia. Guadalajara (México).
Foi coordenador do grupo de trabalho sobre Análises da
Recepção da ALAIC e catedrático da UNESCO em Bogotá e
RF - O senhor gostaria de acrescentar alguma Barcelona.
coisa antes de encerrarmos?

Orozco - Sim... sempre que venho ao Brasil


encontro uma experiência muito refrescante,
porque no Brasil se está fazendo Estudos de
Recepção, há interesse por tudo isso, e no
México não há. Parece-me que se o interesse
pelos estudos da recepção permanecerem
será por vocês, estudantes brasileiros. Na
América Latina, existem estudos deste tipo
isolados, mas, atualmente, não há tanto inte-
resse pela recepção. Há muito interesse em
outros temas, como Cidadania e a cidade

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