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dossiê iphan 10 { Matrizes do Samba no Rio de Janeiro }

partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo


dossiê iphan 10 { Matrizes do Samba no Rio de Janeiro }
partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo
Sapateia ó mulata bamba
Sapateia em cima do salto
Mostra que és filha do samba
Do samba de partido-alto...

(Velho Estácio - Cartola)

Gente empenhada em
construir a ilusão
E que tem sonhos
Como a velha baiana
Que foi passista
Brincou em ala
Dizem que foi o grande
amor de um mestre-sala
O sambista é um artista ...

(Pra tudo se acabar na quarta-feira


Martinho da Vila)
P res i denta da R ep úbli ca
Departamento do Patrimônio Imaterial Centro Nacional de Folclore e
Dilma Rousseff
C OORDENAção GER AL DE iDENTIFICAÇÃ O Cultura Popular
M i n i stra da C ultura E REG ISTR O
Mônia Luciana Silvestrin Cláudia Márcia Ferreira
Marta Suplicy
C OORDENAção GER AL DE SAL VAGUAR DA
P res i denta do Iph an
Rívia Ryker Bandeira de Alencar
Jurema de Sousa Machado

D i retora do D epartamento do C oordenação de Ident ifica ção


P atr i m ôn i o Imateri al Ivana Medeiros Pacheco Cavalcante
Célia Maria Corsino
C OORDENAção DE R EGISTR O
D i retor do D epartamento de Flávia de Sá Pedreira
Arti culaç ã o e F omento C OORDENAção DE AP OIO À
Luiz Philippe Peres Torelly S US T ENTAB IL IDADE
Alessandra Rodrigues Lima
D i retor do D epartamento do
P atr i m ôn i o Mater i al e Fi scali zaç ã o C oordenação de Con hec imentos
Andrey Rosenthal Schlee T radi cionais Associados
Ana Gita de Oliveira
D i retor do D epartamento de
P lanejamento e A dmi ni stra ç ã o
Marcos José Silva Rêgo

S UP E R I N T E N D E N T E DO IPHA N no
r i o de jane i ro
Ivo Barreto

Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional
departamento do patrimônio imaterial
SEPS Quadra 713/913 sul, Bloco D, Edifício Iphan, 4º andar
Cep: 70390-135 – Brasília/DF
Telefones: (61) 2024-5401
www.iphan.gov.br
email: dpi@iphan.gov.br
Edição do Dossiê Interpretativo Edição do Dossiê Registro das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro
Equipe Técnica de Produção do Dossiê C OOR DENAÇÃ O DE EDIÇÃO partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo
Grace Elizabeth Processo n°01450.0011404/2004-25
COORDENAÇÃO Rívia Ryker Bandeira de Alencar
Nilcemar Nogueira PR OPONENTE:
Centro Cultural Cartola
PRO JETO GR ÁFICO
IDEALIZAÇÃO
Leci Brandão Victor Burton
DA DOS DO PR OC ES S O:
DIA GR AM AÇÃ O Pedido de Registro Aprovado na 54ª Reunião do Conselho
PESQUISA Inara Vieira Consultivo do Patrimônio Cultural, em 09/10/2007.
Aloy Jupiara Inscrição no Livro de Registro das Formas de Expressão em
Helena Theodoro REV ISÃO DE TEXTOS 20/11/2007.
Nilcemar Nogueira Alexandra Bertola
Rachel Valença Rosalina Gouveia

PESQUISADORES CONVIDADOS
Carlos Monte
Carlos Sandroni (A música)
Felipe Trotta (A música)
Haroldo Costa
Janaína Reis
João Batista Vargens (A poesia)
Lygia Santos
Marília Andrade (Dança)
Nei Lopes (Da tradição africana)
Roberto Moura (Notas para uma história
afro-carioca)
Sérgio Cabral (Deixa Falar, o samba e a escola)

ASSISTENTES DE PESQUISA
Alunos do curso de Gestão do Carnaval do
Instituto do Carnaval da Universidade Estácio
de Sá: Ailton Freitas Santos, Célia Antonieta
Santos Defranco, Cremilde de A. Buarque Capa

Araújo, Lilia Gutman P. Langhi, Luís Antônio Xangô da Mangueira. Acervo


Pinto Duarte, Meryanne Cardoso, Nelson Centro Cultural Cartola.
Nunes Pestana, Paulo César Pinto de Alcântara,
Regina Lúcia Gomes de Sá, Sérgio Henrique Página 2
Vieira Oliveira e Wellington Pessanha. Bateria de Escola de Samba.
Acervo Arquivo Nacional.
FOTOGRAFIAS DA VERSÃO ORIGINAL
DO DOSSIÊ Página 4
Clarice Castro Mestre Sala e Porta Bandeira.
Diego Mendes Acervo Centro Cultural
Centro Cultural Cartola Cartola.
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sumário
10 APRESENTAÇÃO 122 DETENTORES E 164 RECOMENDAÇÕES DE
PRODUTORES DA SALVAGUARDA
12 Introdução TRADIÇÃO DO SAMBA 165 Pesquisa e documentação
123 Depositários reconhecidos 168 Transmissão do saber
18 HISTÓRIA E ORIGEM DO da tradição 172 Produção, registro, promoção
SAMBA NO RIO DE JANEIRO 126 Referências na história do e apoio à organização
21 Da tradição africana samba no Rio de Janeiro
23 Notas para uma história
afro-carioca 174 notas
35 Deixa Falar, o samba e a escola 130 LUGARES
132 Grêmio Recreativo Escola
de Samba Estação Primeira 177 fontes bibliográficas
38 IDENTIFICAÇÃO de Mangueira
39 A Música 135 Grêmio Recreativo Escola de 180 anexo 1
Partido-alto Samba Portela Parecer do Relator
Samba de terreiro 138 Grêmio Recreativo Escola de
Samba-enredo Samba Império Serrano 194 anexo 2
O improviso 141 Grêmio Recreativo Escola Titulação de Patrimônio
68 A Poesia de Samba Acadêmicos do Cultural do Brasil
Partido-alto Salgueiro
Samba de terreiro 144 Grêmio Recreativo Escola
195 anexo 3
Samba-enredo de Samba Unidos de São
As 73 escolas de samba
81 A Dança Carlos/Estácio de Sá
do Rio de Janeiro
87 A Cena 148 Grêmio Recreativo Escola
A roda de Samba Vila Isabel
152 Mapa do samba no 196 anexo 4
A religiosidade
Escolas de Samba extintas
A comida Rio de Janeiro
Os instrumentos
198 anexo 5
A bandeira
As baianas Escolas de samba mirins
154 OBJETO DO REGISTRO
As velhas guardas do Rio de Janeiro
155 Matrizes do samba
O terreiro no Rio de Janeiro
Os atores 199 anexo 6
159 Situação
A transmissão do saber Aquarela brasileira
no samba
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APRESENTAÇÃO
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página 8
Carnaval de rua
no Rio de Janeiro.
Acervo Arquivo Nacional.

página 10
Foto histórica de
comunidade no
Rio de Janeiro.
Acervo Arquivo Nacional.

a Coleção Dossiê dos Bens


Culturais Registrados
destina-se a tornar amplamente
Lugares, das Formas de Expressão
e dos Saberes.
A divulgação dos processos
discriminado no início do século
XX, assim como os descendentes
de africanos que, resistentes,
conhecidos e valorizados, de Registro e dos resultados conseguiram manter essa arte
como Patrimônio Cultural do do trabalho institucional e fazer com que sua beleza e
Brasil, os Bens Registrados de contribui para a extensão do sua riqueza poética, melódica,
natureza imaterial. Os Dossiês reconhecimento desse patrimônio harmônica e rítmica encantassem
têm por base os estudos que pela sociedade e favorece sua o país e o mundo. Hoje existem
fundamentaram o Registro permanência. São apresentados vários subgêneros do chamado
do Bem Cultural e refletem nos Dossiês elementos que “samba carioca” cultivados no
as etapas de pesquisa, análise definem a identidade dos Bens carnaval ou na vida cotidiana,
e reconhecimento desse Culturais, seu universo de nas quadras e terreiros das
patrimônio. ocorrência, os grupos sociais escolas de samba, nos quintais,
O patrimônio imaterial envolvidos e as práticas e saberes a clubes e botecos, nas esquinas
brasileiro é composto pelos eles inerentes. das várias cidades brasileiras. Os
bens que contribuíram para Este 10º volume da Coleção sambistas, contudo, são unânimes
a formação da sociedade apresenta o Registro das Matrizes em identificar o partido alto,
brasileira. O compromisso do do Samba do Rio de Janeiro, o samba de terreiro e o samba
Estado brasileiro para com sua partido-alto, samba-de-terreiro enredo como as modalidades que
preservação, reconhecimento e e samba-enredo, reconhecido ancoram a tradição do samba no
valorização decorre do Registro em 20 de novembro de 2007 e Rio de Janeiro.
de um bem imaterial, previsto inscrito no Livro das Formas de
no Decreto nº 3.551/2000. São Expressão.
quatro os Livros de Registro, de O samba praticado no Rio de
acordo com a natureza do Bem Janeiro - “samba carioca” - Jurema Machado
Registrado: das Celebrações, dos foi duramente perseguido e Presidente do Iphan
Introdução
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passistas em desfile
de escola de samba
no Rio de Janeiro.
Acervo Arquivo Nacional.

O presente trabalho, realizado no


Rio de Janeiro entre janeiro e
outubro de 2006, tem por objetivo
de roda do Recôncavo e o samba
rural paulista, no panorama
musical brasileiro, o samba no
próprios sambistas no sentido da
aceitação e do reconhecimento
do gênero pelo establishment foi de
reunir em um dossiê textos teóricos Rio de Janeiro se destaca por ser importância decisiva.
e documentos que reforcem um fenômeno cultural pujante Os processos de “oficialização”
a importância para a cultura que atravessou o século XX. ou “nacionalização” do samba,
Passou de alvo de discriminação e descritos por estudiosos como
brasileira das matrizes do samba no
perseguição nas primeiras décadas Hermano Viana e Cláudia Matos,
Rio de Janeiro.1
a ritmo identificado com a não conseguiram calar as formas
O reconhecimento do samba de
própria nação, a ponto de ser um genuínas praticadas no Rio de
roda do Recôncavo Baiano como
de seus símbolos. Janeiro. Pode-se afirmar que os
Patrimônio Cultural do Brasil, Essa passagem gradual de seus primeiros cultores — pobres,
em 2004, e como Obra-Prima do gênero perseguido a símbolo negros e excluídos — foram os
Patrimônio Oral e Imaterial da nacional foi, em parte, uma principais responsáveis por essa
Humanidade, em 2005, motivou o contingência relacionada ao fato de conquista. Eles tomaram para si a
Centro Cultural Cartola a analisar que, nas décadas de 1930 e 1940, liderança do processo de afirmação
os variados estilos de samba no Rio o Rio de Janeiro era a capital gradual do samba, urdido em
de Janeiro, que se originaram nas do país. Esse fato possibilitou o diversos fatores, que vão da
reuniões musicais na casa da Tia encontro entre as elites do samba, excelência de sua expressão criativa
Ciata, no Estácio, nas escolas de como Donga e João da Baiana, e as ao capricho da indumentária e ao
samba, nos blocos, nos morros, nas elites intelectuais que orientavam emprego de palavras rebuscadas,
ruas e nos quintais. as políticas culturais do Estado, no que se poderia resumir
Não obstante existirem diversas como Villa-Lobos e Mário de modernamente por “atitude”.
práticas musicais identificadas Andrade. Mas é fundamental Como resultado, o samba
pelo termo samba, como o samba observar que a atuação dos é reconhecido como a música
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Fachada do prédio do
Centro Cultural Cartola.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

popular do Brasil por excelência. de redes de solidariedade, criação Brasil, inicialmente por meio
Ele ocorre em todo o país, artística e festa. do rádio e do disco. As escolas
num sem-número de gêneros Essas comunidades, duramente de samba atraíram mais e mais
e subgêneros por meio de atingidas pela reforma urbana da o interesse de segmentos sociais
manifestações musicais, de dança e primeira década do século, que diversos, aproximando sambistas,
de celebrações da vida, originadas as afastou do Centro, resistiram classe média, intelectuais, mídia,
do que foi semeado ao longo dos e responderam à exclusão e poder público, políticos, indústria
séculos pelas populações africanas ao preconceito, dentre outras do entretenimento e do turismo.
e afrodescendentes que aqui maneiras, através do samba e das O samba e os sambistas
viveram e vivem. escolas, expressões populares de participaram ativamente da
No começo do século XX, alto valor artístico e grande poder construção da identidade nacional
comunidades negras do Rio de de integração. O samba foi e é um brasileira. O samba virou sinônimo
Janeiro — excluídas de participação meio de comunicar experiências e de Brasil.
plena nos processos produtivos e demandas, individuais e de grupo. Esta pesquisa busca situar o
políticos formais, perseguidas e A escola de samba, nos terreiros/ valor do samba no Rio de Janeiro
impedidas de celebrar abertamente quadras e em seu momento maior, como patrimônio, mostrando seu
suas folias e sua fé — deram forma o desfile, que inicialmente se dava papel fundamental na tradição
a um novo samba, diferente dos na Praça Onze, foi e continua a cultural desta cidade e como
tipos então conhecidos, que viria ser um exercício de política social referência cultural nacional, já que
a ser chamado de samba urbano, ao levar os sambistas a reocupar as é um importante fator de afirmação
samba carioca, samba de morro ruas, em um processo de conquista da identidade brasileira, além de
ou simplesmente samba. Elas e afirmação social que, embora fonte de inspiração e de trocas
também criaram as escolas de avançando, ainda não foi concluído. interculturais para além de suas
samba, espaços de reunião, troca Em pouco tempo, o samba do fronteiras geográficas.
de experiências, estabelecimento Rio de Janeiro se espalhou pelo A pesquisa obedeceu à
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metodologia do Inventário lugar de encontro e celebração corpo convide outro componente


Nacional de Referências Culturais dos atores dos “guetos”, que da roda a ocupar o centro.
do Instituto do Patrimônio ali cantavam e dançavam seu A partir da estruturação
Histórico e Artístico Nacional samba livre, com as marcas de progressiva das escolas de samba, no
(Iphan), instituição que garantiu sua ancestralidade. Uma das final da década de 1920, criou-se
ainda a supervisão técnica e o modalidades de samba praticadas o samba-enredo, aquele em que o
apoio financeiro. nesse lugar era o samba de compositor elabora os seus versos
Na primeira etapa dos trabalhos terreiro, que cantava o amor, para apresentação no desfile. Ao
foram convocados pesquisadores as lutas, as festas, a natureza, as longo do tempo, ele adquiriu certas
que estivessem intimamente experiências da vida e a exaltação da características, como a capacidade
ligados a essa produção cultural sua escola e do próprio samba. de descrever de maneira melódica e
brasileira, capazes de defender Praticavam também o poética uma “história” — o enredo —
não o engessamento dessa cultura partido-alto, nascido das rodas que se desenrola durante o desfile.
viva e dinâmica, mas o respeito, o de batucada, no qual o grupo De sua animação e cadência depende
reconhecimento e a transmissão marcava o compasso batendo com todo o conjunto da agremiação, em
de sua tradição, nos aspectos que a palma da mão e repetindo versos termos de evolução e envolvimento
a identificam e a diferenciam de envolventes que constituíam o harmônico. O samba-enredo agrega
vertentes que, atualmente, tomaram refrão. No partido-alto o refrão se características dos dois primeiros
a forma de espetáculo. Essa repete, e os versos que se seguem, subgêneros descritos, como, por
tradição é o que sustenta os espaços improvisados, normalmente (mas exemplo, a presença marcante do
destinados à prática, socialização e não necessariamente), obedecem ao refrão e a inclusão, quase sempre
difusão do samba. tema proposto. É também o refrão nas entrelinhas, de experiências
Primeiro, no começo do que serve de estímulo para que um e sentimentos dos sambistas,
século XX, tais espaços eram participante vá ao centro da roda desafiando a fria objetividade de
originalmente chamados terreiros, sambar e com um gesto ou ginga de alguns enredos.
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O recorte contemplou as três universo do samba carioca, audiovisuais (depoimentos


formas de expressão que mais sobretudo por sua localização gravados, fotografias, filmes e
intimamente se relacionam com o geográfica em redutos tradicionais documentários em película, fita
cotidiano, com os modos de ser e de sambistas: Mangueira, Oswaldo VHS ou DVD, etc.).
de viver, com a história e a memória Cruz, Madureira, Tijuca, Vila b) Pesquisa de campo – para
dos sambistas. Em todo o universo Isabel e Estácio. São escolas que preenchimento de eventuais
do samba no Rio de Janeiro essas se organizaram no momento em lacunas verificadas no corpus
três formas de expressão — samba que essa forma de expressão, na documental, foram colhidos novos
de terreiro, partido-alto e samba- modalidade samba-enredo, estava depoimentos com reconhecidos
enredo — são as que implicam surgindo e se consolidando e que depositários da tradição e
relações de sociabilidade. Sua mantêm viva a memória dos que realizados registros das matrizes do
prática está enraizada no cotidiano participaram desse processo, do samba no Rio de Janeiro em sua
dos sambistas, na vida das pessoas, qual elas são referências. forma contemporânea.
tendo, portanto, continuidade A pesquisa foi direcionada para À medida, porém, que o
histórica. Avaliou-se que a a descrição do samba como forma trabalho avançava, ficou claro que
pesquisa necessária à instrução de expressão, o que determinou a os caminhos e fontes se cruzavam
do processo de registro deveria divisão do trabalho, basicamente, em todo momento, constituindo-
focalizar seis escolas de samba em duas frentes: -se, na realidade, não no relato
representativas da constituição a) Levantamento das fontes de seis trajetórias paralelas, mas
das matrizes pesquisadas: Estação – bibliografia (livros, dissertações em um só relato: o da trajetória
Primeira de Mangueira, Portela, e teses acadêmicas, matérias em das mutações e permanências que
Império Serrano, Acadêmicos do periódicos, folhetos e fôlderes, forjaram a estratégia de resistência
Salgueiro, Unidos de Vila Isabel etc.); discografia (gravações em do samba como forma de expressão
e Estácio de Sá, que representam discos 78 r.p.m., discos de vinil, de um importante segmento da
com a mesma importância o fitas cassete, CDs, etc.); registros população carioca.
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o compositor e cantor
Cartola com sua esposa
Zica nos anos 70.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

Paralelamente ao levantamento O samba de partido-alto, o


de dados, foram promovidos samba de terreiro e o samba
debates na Associação das Escolas de -enredo são expressões cultivadas
Samba da Cidade do Rio de Janeiro há mais de 90 anos pelas
(AESCRJ), no Museu da Imagem comunidades situadas em áreas
e do Som (MIS) e no Instituto do populares da cidade do Rio de
Carnaval da Universidade Estácio Janeiro. Não são simplesmente
de Sá, além de reuniões semanais gêneros musicais, mas formas de
da equipe de pesquisa no Centro expressão, modos de socialização
Cultural Cartola. O andamento e referenciais de pertencimento.
do projeto era discutido, de São também referências culturais
forma periódica, com o Iphan em relevantes no panorama da música
encontros no Centro Nacional produzida no Brasil. Constituído
de Folclore e Cultura Popular. O a partir dessas matrizes, em suas volume primeiro, do Instituto do
pedido de registro conta com o muitas variantes, o samba carioca é Patrimônio Histórico e Artístico
apoio da Liga Independente das uma expressão da riqueza cultural Nacional, em 20 de novembro de
Escolas de Samba do Rio. do país e, em especial, do seu 2007, conforme decisão proferida
É importante ressaltar que no legado africano, constituindo-se na 54ª Reunião do Conselho
dia 7 de outubro de 2006 realizou- em um símbolo de brasilidade em Consultivo do Patrimônio
-se no Centro Cultural Cartola todo o mundo. Cultural, realizada no dia 9 de
um encontro de velhas guardas e As matrizes do samba no Rio de outubro de 2007. A conselheira
figuras tradicionais das escolas de Janeiro foram reconhecidas como relatora do processo de registro foi
samba com o objetivo de trocar patrimônio cultural brasileiro Maria Cecília Londres Fonseca.
experiências, registrar práticas e por meio da inscrição no Livro de
consolidar o projeto. Registro das Formas de Expressão,
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HISTÓRIA E ORIGEM DO SAMBA


NO RIO DE JANEIRO
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Acervo Arquivo Nacional.

T endo como marco a localidade


denominada Pedra do Sal,
no Morro da Conceição, na Zona
cultura popular carioca definida por uma
densa experiência sociocultural que, embora
subalternizada e quase que omitida pelos
social, econômico e geográfico.
Em 1917, pela primeira vez, um
selo de disco de 78 rotações por
Portuária do Rio de Janeiro, o samba meios de informação da época, se mostraria, minuto trouxe no campo reservado
carioca se apresenta desde sua origem juntamente com os novos hábitos civilizatórios à descrição do gênero musical a
— nas primeiras décadas do século XX das elites, fundamental na redefinição palavra samba.
— como um elemento de expressão do Rio de Janeiro e na formação de sua Embora existisse antes dessa
da identidade cultural da população personalidade moderna.3 data e fosse uma palavra já então
negra. Naquele momento decisivo difundida, o ano de 1917 é que
em que o negro acabava de conquistar Com a drástica intervenção entrou para a história como o do
o direito de vender sua força de urbanística realizada pelo prefeito nascimento do novo gênero musical.
trabalho, foi determinante a formação Pereira Passos na primeira década E seus autores e criadores eram
de uma rede de solidariedade e do século XX — promovida com exatamente os participantes dessa
sustentação que resultou num o intuito confesso de “limpar” a comunidade organizada da Cidade
contato cultural enriquecedor e na cidade de tudo que significasse Nova, frequentada também por
miscigenação das várias etnias que ali pobreza, doença e atraso, dando gente de outras partes da cidade,
vieram ter e conviver. feição que se pretendia moderna atraída pela riqueza da cultura que
a uma metrópole que se queria ali florescia.
A modernização da cidade e a situação europeia —, essa população Aproximadamente uma
de transição nacional fazem com que marginalizada se reuniu na região década depois, o recém-nascido
indivíduos de diversas experiências sociais, conhecida como Cidade Nova. Em gênero sofreria uma importante
raças e culturas se encontrem nas filas da torno da casa da baiana Tia Ciata, intervenção, no Estácio, ao pé do
estiva ou nos corredores das cabeças de formou-se um poderoso núcleo de Morro de São Carlos.
porco,2 promovendo essa situação, já no fim resistência cultural, cuja produção A organização do samba em
da República Velha, a formação de uma vigorosa começou a furar o bloqueio grupos que receberam o pomposo
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Abaixo à esquerda
Ala de Ritmistas da
Unidos de Lucas (1968).
Acervo Centro
Cultural Cartola.

Abaixo à direita
Zica preparando um de
seus quitutes, em 1963.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

nome de escolas acarretou o que as matrizes do samba carioca no ritmo, na coreografia, nas
surgimento de um subgênero, o serão abordadas com minúcia, celebrações, nos ritos. As concessões
samba-enredo, composto para será possível detectar que houve feitas à participação de todas as
servir de trilha sonora aos desfiles permanência, ao longo de quase um camadas da população nas escolas de
carnavalescos, mas que transcendeu século, das principais características samba ocasionaram transformações,
essa determinação. Hoje ele é que marcaram o seu surgimento. mas ainda assim é possível identificar
cantado durante todo o ano em Apesar de sua bem-sucedida traços dessas matrizes, que
reuniões de sambistas dentro ou trajetória em direção a um patamar continuam a fazer parte do cotidiano
fora das quadras, tendo conquistado de reconhecimento como símbolo de uma parcela considerável da
absoluta hegemonia no Rio de da nação, o samba logrou conservar população com a intensidade e vigor
Janeiro como música de Carnaval. suas características mais essenciais, típicos das manifestações autênticas
Na descrição que se segue, em seja na poética, na musicalidade, da cultura popular.
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DA TRADIÇÃO
AFRICANA

Muito antes de o gênero nacional” (A Folha Nova, jornal da ou seja, na qual os dançarinos se
ganhar o alto estatuto de música Corte). E em 1889, o dicionarista chocam um com o outro, batendo
popular brasileira por excelência Beaurepaire-Rohan já o definia de peito. Da mesma forma que na
e componente fundamental da como “espécie de bailado popular”. língua tchokwe, de Angola, segundo
identidade nacional, o termo No Brasil, a tradição de danças Adriano Barbosa, o vocábulo
“samba”, na acepção de música em roda e caracterizadas pela “samba” (grafado com acento
e dança praticada em roda e ao umbigada provém certamente do agudo) é também, entre outros
ritmo de tambores, palmas, etc., já extrato banto formador de boa usos e significados, verbo usado
circulava em várias regiões do país. parte da cultura afro- na acepção de “cabriolar, brincar,
Antônio Geraldo da Cunha -brasileira, sendo observada por divertir-se (como cabrito)”. E
data de 1890 a entrada do termo na viajantes no interior de Angola o quimbundo registra o verbo
língua portuguesa, provavelmente no século XIX. Na obra Les Kongo “semba”, agradar, encantar.
usando como abonação texto Nord-Occidentaux, Marcel Soret Na Angola contemporânea,
de Aluísio Azevedo no romance observou, também entre os povos “semba” ou “varina”, em todas as
O cortiço. Mas já em 1886, José objeto de seus estudos, cantos e suas infinitas variações, é a dança
Veríssimo dava-o como “de origem danças de aparência licenciosa, mais popular da capital, Luanda,
perfeitamente assentada”. O que na verdade nada mais são que notadamente na faixa marítima
filólogo Macedo Soares, entretanto, antiquíssimos hinos à fecundidade. (Ilha de Luanda, Samba Grande e
registra essa entrada em 1884: Karl Laman, no Dictionaire Kikongo- Pequena, Ilha do Musulu, Barra
“Não acreditamos que a dignidade Français, registra o vocábulo “sàmba” do Cuanza, Cacuaco, etc.). A
do país fosse ultrajada porque nas (acento grave na primeira sílaba), dança se executa por um sapateado
fronteiras do Brasil com as Guianas com, entre outras, as seguintes de cadência rítmica ligeiramente
francesas, um mascate em hora de acepções: “pl. má-samba”, acentuada, ao som de tambores
samba, ou de libações, ousou arriar espécie de dança “où on se heurte (bumbos) e caixas de madeira ou
do respectivo mastro o pavilhão ensemble, contre la poitrine”, latinhas metálicas. A coreografia
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Baiana no cais do
Rio de Janeiro.
acervo arquivo nacional.

fundamental caracteriza-se por em 1961, listava como formas de


uma roda no centro da qual os samba “atuais e passadas”, entre
dançarinos gravitam, remexendo outras, o caxambu, o coco, o jongo,
o corpo e balançando as ancas e, o lundu, o partido-alto, o samba de
ocasionalmente, movimentando-se roda e o tambor de crioula.
para frente, dobrando o corpo e Mário de Andrade, em
executando o sapateado. sua pesquisa sobre o coco
A tradição dos povos bantos deu, nordestino, informava que, em
no Brasil, origem a toda uma família seu tempo, principalmente no
de danças aparentadas, que vai do Ceará e em Alagoas, os termos
carimbó paraense e do tambor de “coco” e “samba” muitas vezes
crioula do Maranhão — passando se confundiam, para designar a
pelo coco do litoral nordestino e mesma expressão musical.
pelos sambas do Recôncavo e do Acrescente-se, como já dissemos
médio São Francisco, na Bahia — antes, que escritores como Euclides
até o jongo ou caxambu no Sudeste da Cunha, em Os sertões, e Aluísio
brasileiro, notadamente no Vale do Azevedo, em O cortiço, descreveram o
Paraíba. Onde houve negro banto, que então se entendia como samba.
lá estão as danças de roda, com ou Inegável, então, a bem-
sem umbigada. -documentada origem africana
Todas essas danças foram do samba, a qual, em dado
incluídas por Oneida Alvarenga, momento, alguém se dispôs a
colaboradora de Mário de Andrade, negar, atribuindo ao gênero origem
no grande espectro das “danças do indígena. Indiscutível, também, sua
tipo samba”; e Edison Carneiro, origem entre os povos bantos do
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Notas para uma


história
afro-carioca

antigo Congo, que compreendia Depois de 1810, com as que alugavam seus serviços por
regiões da atual Angola. sucessivas abolições em quase a meio da mão de obra dos negros de
Resta dizer, apenas, que várias totalidade dos países escravagistas, ganho, nesse formidável universo
dessas formas rurais de samba dois grandes fluxos de escravos se do trabalho que era o bairro da
chegaram ao Rio de Janeiro, mantêm: Brasil e Cuba. Em 1821, Saúde. Tratava-se de uma subcasta
principalmente durante as excluídas as paróquias rurais, de negros livres, alforriados,
migrações ocorridas nos cerca de o Rio de Janeiro tinha 86.323 verdadeiros heróis que tinham
50 anos que se passaram entre a habitantes, dos quais 40.376 eram superado a escravatura comprando
proibição do tráfico atlântico e a escravos, a maior população escrava sua liberdade. Era o resultado do
abolição da escravatura. E, aqui urbana das Américas e do mundo, esforço de um grupo, ao qual se
chegadas, amalgamaram-se, tanto quando, por exemplo, na cidade juntavam muitos fugidos que se
ao gosto, por exemplo, de migrantes de Nova Orleans, onde também escondiam entre essa multidão
bantos do Vale do Paraíba quanto de se reunia um grande contingente, de trabalhadores, que procurava
sudaneses e também bantos vindos havia 15.000 escravos. Por volta de sobreviver e começar uma vida nova
da antiga Bahia e do seu Recôncavo, 1830, com o rápido crescimento na cidade.
tomando no meio urbano, com o populacional propiciado pelo Em 1849 já havia 10.732
passar dos anos, novas e ainda mais tráfico, pela imigração interna de negros libertos nas freguesias
variadas formas. cativos e de negros e brancos livres urbanas, deixando apreensivos
O samba é, pois, fruto de para o Rio, o número de escravos os administradores da corte,
ricas tradições africanas e afro- em toda a província aumenta temerosos, como fora a
brasileiras. E sua preservação, consideravelmente, igualando o da administração colonial, de um
como bem imaterial do patrimônio população livre. levante negro na cidade que
cultural nacional, além de ser um Entre os negros, o dado ultrapassasse o desafio permanente
imperativo constitucional, é um qualitativamente novo era o com as fugas e com os quilombos.
dever de consciência. crescimento do número de libertos Temores que haviam crescido com
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Baiana vendendo acarajé.


acervo arquivo nacional.

a revolta de iorubás e malês em peculiaridades ao longo da história com a progressiva diminuição de


Salvador em 1835, provocando popular da cidade constituindo africanos com o fim do tráfico,
duras medidas municipais contra os uma densa tradição, os princípios e com a mistura entre negros,
negros no perímetro urbano, que místicos coletivizantes e a cultura mulatos, caboclos e europeus,
repercutiam nas atitudes do poder afirmativa e musical, que depois, a principalmente portugueses, nos
imperial e de sua polícia com os partir da terceira década do novo bairros populares e nas ocupações
escravos em todo o país. século, dariam substância às festas mais duras e desprestigiadas, a
A escravidão nas Américas da capital federal e ao seu fascinante cidade tinha se tornado menos
ocasiona uma mescla sem universo de espetáculos. africana e mais crioula. A
precedente de povos e culturas À tradicional presença de população negra, entretanto,
africanas, que em alguns momentos angolanos e moçambicanos voltaria a crescer com a decadência
de inflexão, ocorridos em bantos na cidade se somava do café no Vale do Paraíba e com
determinados lugares, elabora progressivamente a presença as chegadas sistemáticas dos forros
novas sínteses, decisivas na de negros da África Ocidental, baianos. O grupo baiano iria
construção das novas sociedades principalmente das nações iorubás. situar-se nessa parte da cidade onde
nacionais que se montam depois Também negros islâmicos, que a moradia era mais barata, perto
do processo abolicionista e do passaram a migrar regularmente do cais do porto, nas freguesias
republicanismo que varrem o para o Rio, tanto cativos para serem de Santana e Santa Rita. Aí os
continente. No literalmente novo redistribuídos pelas fazendas de homens, como trabalhadores
mundo para o africano, dá-se uma açúcar ou café, como alforriados braçais, obtinham vagas nas
reordenação dos valores e símbolos baianos que vinham reorganizar docas construídas em meados do
produzidos na origem africana suas vidas na capital fugindo das século. Essas freguesias absorviam
diante da condição de escravos e do práticas repressivas que haviam se avidamente a mão de obra barata
convívio entre diversas etnias no instaurado em Salvador. de estivadores, concentrando-se os
cativeiro. No Rio, isso ganharia tais Na segunda metade do século, baianos nas ruas e nas ladeiras nas
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Baianas no Rio de Janeiro.


acervo arquivo nacional.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

vizinhanças da Pedra da Prainha, seus assentamentos inicialmente Barão de São Félix, no caminho
depois conhecida por Pedra do Sal. dissimulados dos senhores e da da Zona Portuária para a Cidade
Se nas ruas a capoeira afirmava tropa em quartos ou num barracão, Nova, instituição popular que
agressivamente a presença do enquanto as entidades de céu se constituiu numa garantia
negro, não mais apenas subalterno aberto eram cultuadas nas matas nas para o negro no Rio de Janeiro,
e mártir, a religião dos baianos cercanias da cidade. vitalizando-o para resistir e
daria uma nova dimensão ao O candomblé no Rio é tão sustentar seus novos caminhos
negro carioca e, em contato com antigo quanto as primeiras levas na cidade e no país. Suas filhas
os cultos dos bantos, fundaria sob de baianos que chegaram à capital de santo marcaram época como
o panteão dos orixás uma religião depois das revoltas de 1831-1835 as rainhas negras do Rio Antigo:
negra nacional que, no século em Salvador, e logo, além dos tia Amélia, Amélia Silvana de
seguinte, se multiplicaria em cultos familiares, casas de grande Araújo, mãe do violonista e
diversas formas regionais, tendo importância seriam fundadas na compositor Donga; Perciliana
como raiz o candomblé e como cidade. Notícias quase perdidas no Maria Constança, ou melhor, tia
matriz transformadora a macumba tempo dão conta do candomblé de Perciliana do Santo Amaro; tia
carioca. O candomblé baiano era, Bamboche ou Bamboxê na Saúde, Mônica e sua prodigiosa filha,
de certa forma, uma nova liturgia, africano chegado à Bahia na metade Carmem Teixeira da Conceição,
pois compensava, com uma nova do século XIX, que vem para o a Carmem do Xibuca, a filha de
organização ritual, as lacunas na Rio, onde funda sua casa de santo, Alabá que viveu, sábia e soberana,
cosmogonia iorubá ocasionadas voltando depois para a África, até a década de 1980 com seus
pela escravatura. Em um mesmo fazendo parte de uma minoria que mais de 110 anos; a tia Bebiana
terreiro, assentava os cultos de retorna logo depois da Abolição. dos ranchos; tia Gracinha, que foi
diversos grupos e cidades, passando Entretanto, é considerado mulher do grande Assumano Mina
a representar uma pequena o candomblé seminal a casa de do Brasil, sacerdote islâmico; tia
África, os orixás urbanos com João Alabá, de Omulu, na Rua Sadata do rancho Rei de Ouro; e
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Elizeth Cardoso e
Clóvis Bornayna
Unidos de Lucas (1968).
Acervo Centro
Cultural Cartola.

a grande Tia Ciata (1854-1924), Aninha volta à capital, onde no progressivamente ganhando uma
Hilária Batista de Almeida, mãe- Santo Cristo, na Zona Portuária, identidade carioca a partir do
-pequena do candomblé de João inicia sua filha de santo Conceição convívio com os bantos, na cada vez
Alabá, lideranças fundamentais de Omulu, que abre uma nova mais influente diáspora baiana no
para uma verdadeira revolução que casa. Outras casas têm grande universo popular da cidade.
se travaria no meio negro naquela importância na cidade, como o Inicialmente sediados na
zona depois da libertação. candomblé de Cipriano Abedé ladeira da Pedra do Sal, nas casas
Provavelmente, a casa de Alabá de Ogum, na Rua do Propósito alugadas por baianos e africanos
tinha ligações com o candomblé do e depois na João Caetano, e o de para abrigar as levas de recém-
Ilê Axé Opô Afonjá de Salvador, Felisberto, na Rua Marquês de -chegados, tornam-se tradicionais
fruto de uma dissidência do Ilê Ixá Sapucaí, figuras mitológicas cujos na Zona Portuária os “zungus”,
Nassô do Engenho Velho, onde contornos pouco vislumbramos, casas coletivas ocupadas por
tinha sido feita Ciata. Notícias dão intimamente presentes na negros escravos e forros, que
conta que João Alabá o frequentava, cosmogonia negra da cidade. se diferenciavam dos cortiços,
assim como Bamboxê fora o pai Desses candomblés matriciais, só onde cada indivíduo ou família
espiritual de sua babalorixá Aninha. resta vivo na cidade o fundado por se apertava em seu cubículo,
Em 1886 mãe Aninha vem ao Rio Mãe Aninha com Conceição. Depois apenas partilhando os banheiros
em companhia de outra iniciada, de sua morte, sua sucessora, Agripina e às vezes a cozinha coletiva. Nos
Obá Saniá, encontrar-se com de Xangô, transfere o axé para o “zungus”, geralmente iniciados
Bamboxê, que já estava na cidade, subúrbio de Coelho da Rocha, por nações, famílias ou por grupos
junto com quem funda a casa no onde até hoje batem os tambores de companheiros de trabalho, as
bairro da Saúde, voltando depois chamando os orixás. O culto e tradições coletivistas negras vindas
para Salvador. Esse candomblé se depois a presença cultural daqueles da situação tribal organizavam uma
extingue com a volta de seu líder forros formam na cidade uma vida onde o aspecto comunitário e
para a África. Muito tempo depois, identidade nagô, que se particulariza a partilha dos esforços era central.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Aos poucos, tornam-se centros casa, o licencia na polícia e, numa se abrir à cidade moderna como
de encontro de negros de diversas decisão que muda a história musical uma resistente referência.
origens aproximados pela cidade, da cidade, decide realizar seu desfile O Carnaval muda a
chamando logo a atenção constante no Carnaval, em vez de sair no dia de característica do rancho, embora
dos “morcegos”, como eram por Reis, como faziam os outros ranchos, ele não deixe de se vincular às
eles chamados os guardas urbanos. em busca de maior liberdade de tradições, como na visita de
Como um dos primeiros sinais movimento e expressão. praxe à casa dos notáveis entre os
públicos da importância dos baianos Das variantes entre tradições baianos, entre os quais a notória
na vida do Rio, tia Bebiana impõe europeias — ternos, pastoris — e Tia Ciata. No Carnaval, um rancho
sua festa da lapinha no Largo de São africanas — congos, congadas, se desdobrava num “sujo”, uma
Domingos, que se torna um lugar de ticumbis, cucumbis e afoxés —, os formação gaiata e satírica; o Bem
convergência dos desfiles dos pastoris que se destacam são os ranchos. de Conta de Hilário terminaria
e ranchos existentes pela cidade na Hilário Jovino, numa entrevista ao por ironizar Ciata e seu rancho, o
época do Natal, ainda na década de Jornal do Brasil,4 conta que em 1872, Rosa Branca, que responderia com
1880. Mas o principal personagem ao chegar à cidade, já encontrara seu sujo O Macaco É Outro, na
dos primórdios dos ranchos cariocas os ranchos. Uma comunidade sequência dessa história.
foi indubitavelmente Hilário Jovino de auxílio mútuo integrada por No início, a presença de
Ferreira, um pernambucano criado migrantes, sobrevivendo por meio negros é discreta no Carnaval,
no meio nagô em Salvador, que chega do trabalho pesado na estiva e do uma vez que qualquer forma de
ao Rio de Janeiro indo morar no comércio ambulante, estruturada sua extroversão, principalmente
Morro da Conceição, nas vizinhanças em torno dos terreiros e de em manifestações coletivas, era
do Beco João Inácio, onde já saía associações festivas, se tornaria, vista com desconfiança pelas forças
um rancho com o nome de Dois de por momentos, uma aristocracia repressivas. Podemos supor uma
Ouros. Em 1893, ele funda o Rei de popular fechada com seus preceitos progressiva presença de blocos
Ouros com um chá dançante em sua e movimentos próprios para depois de brancos pobres, mestiços e
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

negros no Carnaval, fortalecendo a influência se estenderia por toda fundamental na redefinição do Rio
chamada democracia racial na base. a comunidade nos bairros em de Janeiro e na formação de sua
Com a brusca mudança no meio torno do Cais do Porto e depois personalidade moderna.
negro ocasionada pela Abolição, da Cidade Nova. Tais bairros eram A Pequena África,
que extinguira as organizações de povoados por essa gente pequena, considerando a presença afirmativa
nação ainda existentes no Rio de que seria tocada para fora do do negro na Zona Portuária
Janeiro, o grupo baiano seria uma Centro pelas reformas urbanísticas do Rio, progressivamente se
nova liderança. A vivência como que culminariam com as obras do estendendo para a Cidade Nova,
alforriados em Salvador — de prefeito Pereira Passos em 1904. é uma conquista política. A
onde trouxeram o aprendizado de Do encontro desses indivíduos territorialização de seu ambiente
ofícios urbanos, e às vezes algum de diversas experiências sociais, de vida e de trabalho onde antes
dinheiro poupado — e a experiência raças e culturas na estiva ou eram escravos, é uma conquista
de liderança e administração nas cabeças de porco, e depois confirmada, mesmo que
de muitos de seus membros em no candomblé, na capoeira ambiguamente, pela Abolição, já
candomblés, irmandades, juntas ou ou no rancho, instituições que se mantêm os preconceitos na
na organização de grupos festeiros, de marcada influência negra, subalternização, na pobreza e na
os tornariam uma elite no meio resultaria a formação das matrizes repressão policial. Sua primeira
negro carioca. Constituindo-se, fundamentais da cultura popular experiência como “homem livre”
assim, num dos únicos grupos com carioca. Uma densa experiência na Capital, embora contestada
tradições comuns, coesão e um sociocultural que, embora pela realidade de cada dia, obtida
sentido “familístico” que, vindo do subalternizada e quase que omitida na marra pelo capoeira, exigida
religioso, expande o sentimento e pelos meios de informação da pelo rito religioso, se consolida
o sentido da relação consanguínea. época, se mostraria, tanto quanto na festa comunitária ou no glamour
Formara-se, então, no bairro da os novos hábitos civilizatórios episódico nos espetáculos-negócio,
Saúde uma diáspora baiana cuja importados pelas elites, nos quais os negros afirmariam
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Os Oito Batutas, formado


por Pixinguinha, Donga,
China, Nelson Alves, José
Alves de Lima, José Monteiro
e Sizenando Santos.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

sua arte, metamorfose moderna de


antigas tradições.
Insuspeitadamente, mas logo
apropriadas por interessados,
surgem novas sínteses culturais
dessa “ralé”: instituições populares,
formas de organização de um grupo
heterogêneo e disforme reunindo
indivíduos diversos ligados apenas
pela situação comum de exclusão;
gêneros artísticos, musicais,
dramáticos, festeiros, processionais,
esportivos; novas paixões populares,
festejos, situações particulares a esta eternizando na macumba carioca, setores da sociedade que a cidade de
cidade, que seriam disseminados por que reelabora os cultos bantos sob o hoje herdou.
todo o país. Em sua plasticidade, panteão dos orixás iorubás, permite Assim, nas primeiras décadas
essa cultura popular incorporaria que uma estrutura de aldeia se do século XX no Rio, no ambiente
elementos de diversos códigos preserve na cidade, enraizada na sua confuso e excludente do pós-
culturais, sobre os quais as tradições cultura e no inconsciente coletivo -Abolição, os negros, que numa
dos negros teriam liderança e de seu povo, e no samba, tornado primeira acomodação tinham se
dariam coesão e coerência, o que música, síntese da brasilidade. bandeado para guetos nos morros
tornaria a pluralidade cultural sob a A participação do negro no do Centro ou na periferia, perto
hegemonia do negro a peculiaridade Carnaval carioca dá nova substância das estações do trem suburbano,
central dessas novas sínteses. à festa e provoca um rearranjo nas gozavam uma primeira e precária
A contribuição dos baianos se formas de participação dos diversos franquia. Legitimados por uma
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

publicidade do samba
“Pelo Telephone”.
Acervo Centro
Cultural Cartola

crescente plateia com a adesão a articulação lundu-maxixe-samba, morro e nós também não nos
de elementos da “sociedade”, sucesso absoluto no Carnaval, é interessávamos pelo pessoal da
os ranchos dos negros, que acompanhada por rumorosos e cidade, vivíamos separados”.5
inicialmente se apresentaram no emblemáticos acontecimentos. Sua A falta de signos potencialmente
Largo de São Domingos e depois na criação coletiva se dá numa reunião do utilizáveis na construção de uma
Praça Onze de Junho, no limite da rancho Rosa Branca na casa de Ciata, identidade nacional comum às
zona de prostituição, exibiam-se, presentes, além dela, Hilário Jovino, elites nacionais internacionalizadas
organizados em cordões, pelo Catete o emergente Sinhô, Donga dos Oito e, mais tarde, o próprio
e Laranjeiras. No entanto, o grande Batutas e outros. Donga registra o nacionalismo exacerbado utilizado
Carnaval, apoiado pela imprensa e samba e dá parceria ao influente por Vargas como instrumento de
pelo comércio, continuava sendo os jornalista Mauro de Almeida. governo favoreceriam as primeiras
desfiles dos préstitos, os corsos e os Na virada dos anos 20 Sinhô, organizações de sambistas que
bailes. Os negros, sempre na rua, pianista do clube Kananga do se reúnem por volta de 1928 no
limitavam-se a uma participação Japão, começa a dominar os Estácio, em Oswaldo Cruz e nos
como assistentes vigiados, sendo carnavais com suas composições, Morros da Favela e da Mangueira.
praticamente impedidos de se reunir juntamente com outros como O próprio termo “escola” de
e se divertir nas ruas e avenidas Caninha e Eduardo Souto, quando, samba refletiria as expectativas
do Centro, o que por vezes era ainda num momento de adaptação e a responsabilidade dessas
transgredido por grupos de jovens às normas da indústria cultural, as primeiras comunidades populares
favelados, como os Arengueiros músicas eram “que nem passarinho: que ganham estabilidade nessas
da Mangueira, que desafiavam a é de quem pegar”. formas de organização. Novas
sociedade e a polícia desfilando com Mas, como muitos anos sínteses profanas de matrizes
música, cachaça e “porrada”. depois diria Cartola sobre aqueles vindas das práticas religiosas, que,
A gravação do primeiro samba, tempos, “não havia mesmo de alguma forma, herdavam sua
o Pelo telefone, em 1917, completando um interesse pelo pessoal do funcionalidade social.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Em 24 de setembro de
1920, os Oito Batutas
ainda antes de Paris:
Pixinguinha, Raul
Palmieri, José Alves,
China, Jacó Palmieri,
Luiz de Oliveira, Donga,
Nélson Alves com o
empresário, José Segreto.
Acervo Centro
Cultural Cartola

Sinhô nomeava de “romances pensava nos mestres do samba Desde o final do século XVI,
pedagógicos” algumas de suas como professores de “aulas teóricas o negro escravizado trabalhou
composições, compreendendo e práticas”, sendo os sambas- surdamente na construção da
o samba como ato pedagógico e -enredo formas privilegiadas de cidade e em seu abastecimento.
lhe dando um sentido difuso de comunicação com as massas. A partir do século XIX, começou
missão. Sim, deveria aquela poesia As escolas se reúnem em seu processo de afirmação, tanto
musical destilar princípios de concursos patrocinados pelo por meio da expressão coletiva
uma filosofia prática do cotidiano festeiro e pai de santo Zé de sua cultura quanto por sua
aplicável por aqueles que estavam Espinguela. Todas recebem troféus participação das vicissitudes
numa situação de desvantagem, e se visitam, se homenageiam, nacionais, do processo político,
para os seus, para seu público desfilam na Praça Onze de Junho das guerras internas ou externas,
que se expandia para além de como um desdobramento da das transformações da cidade e do
círculos e classes na cidade. estrutura dos ranchos negros país. Na virada do novo século,
Conta-se que foi Ciata que, tendo com uma música mais quente. surge com a favela um novo modelo
organizado um pagode numa As comunidades exultam. A de exclusão — impasse de um
escola das redondezas da Praça Mangueira, onde existiam pequenos Brasil moderno. Surge também o
Onze, dá como senha para driblar núcleos separados de moradores, Carnaval, considerado um sistema
a polícia “o pagode vai ser na ganha com a escola um nexo de em que ao negro é atribuído um
escola”. Tratava-se de um termo coletividade comum. A corda, lugar. Mas a Pequena África foi
guardado por suas possibilidades marcando os limites do desfile, era, um momento definitivo e eterno
protetoras e também por, na verdade, uma proteção contra a para o Rio de Janeiro, que nasceu
consciente ou inconscientemente, polícia, e funcionava. O Pequeno e se impôs como um ambiente
anunciar sua função para o negro Carnaval acontecia separado. Mas é afirmativo e comunicativo do
desprivilegiado. Ismael Silva, outro só o começo. Ele e sua nova música negro, para quem é um símbolo
personagem crucial, como Cartola, — o samba — vão tomar a cidade. resistente e inspirador.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Baiana vendendo quitutes


no Rio de Janeiro.
Acervo Arquivo Nacional
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

DEIXA FALAR, O
SAMBA E A ESCOLA

Mário de Andrade, o grande Que desejassem desfilar, para usar críticas negativas que certamente
crítico de música e de artes plásticas um verbo que resume o que fazem fariam os adeptos do velho
e autor de magníficos ensaios, os integrantes das escolas de samba samba amaxixado. Os ritmistas
romances e poesias, registrou em nos dias de Carnaval. do bloco apresentavam-se com
um poema o seu entusiasmo pelo Coube a um grupo de jovens os tradicionais instrumentos
Carnaval dos negros do Rio de talentosos do bairro do Estácio de de percussão, o tamborim, o
Janeiro, anos antes da criação da Sá, todos negros, fazer do samba pandeiro, o reco-reco, a cuíca e
primeira escola de samba: Embaixo efetivamente música de Carnaval. outros, até perceberem que o samba
do Hotel Avenida em 1923/Na mais pujante Ao explicar a diferença entre os dois deles exigia um instrumento de
civilização do Brasil/Os negros sambando tipos de samba, o compositor Ismael marcação ainda inexistente. Isso
em cadência./Tão sublime, tão África. É Silva, um daqueles jovens, disse que levou o compositor Alcebíades
possível que ele tenha visto um o ritmo do samba antigo era apenas Barcelos a recorrer a uma lata
cucumbi ou um cordão de velhos, “tan tantan tan tantan”, enquanto grande e vazia de manteiga, fechar
duas das formas que os negros o novo, mais rico, era “bum bum uma das bocas com couro de
encontravam na época para se reunir paticumbum prugurundum”. O cabrito e concluir que aquele era
em grupos e se divertir no Carnaval. compositor Babaú, do Morro da o instrumento que faltava à bateria
Naquele ano, o samba já Mangueira, definiu a novidade do bloco. Assim nasceu o surdo,
existia como gênero musical, como “samba de sambar”. instrumento que passou a ser
mas, fortemente influenciado O grupo de sambistas do fundamental em qualquer conjunto
pelo maxixe — o primeiro gênero Estácio formou, em 12 de agosto de de ritmistas do samba.
musical urbano, criado no Rio de 1928, um bloco carnavalesco para As novidades apresentadas
Janeiro na década de 1870 —, ainda cantar, tocar e dançar os sambas pelo Deixa Falar repercutiram
não tinha um ritmo capaz de ajudar que fazia, ao qual foi dado o nome imediatamente em todas as
os foliões que quisessem cantar, de Deixa Falar, denominado assim comunidades negras do Rio de
dançar e andar ao mesmo tempo. como uma resposta antecipada às Janeiro, nos subúrbios e nas favelas,
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

que passaram a compor e a cantar escolas de samba. Tal expressão, de São Carlos (Para o Ano Sai
sambas à maneira do Estácio de Sá. tão vigorosa, contribuiu para que a Melhor); do Tuiuti (Mocidade
E não deixavam de homenagear os designação de blocos carnavalescos, Louca de São Cristóvão), etc.
sambistas do bairro, intitulando- dada aos grupos que iam nascendo, As demais vinham dos bairros
-os professores, e o próprio bloco fosse aos poucos eliminada. suburbanos, com destaque especial
carnavalesco Deixa Falar, que todos Tanto vigor inspirou o jornal para a Portela — chamada na época
diziam ser uma verdadeira escola de Mundo Sportivo a promover, em 1932, de Vai Como Pode — de Oswaldo
samba, tantas lições recolhiam lá. o primeiro desfile das escolas de Cruz; além da Recreio de Ramos,
Tantas homenagens tiveram samba na Praça Onze. Ali, em seu Lira do Amor (Bento Ribeiro);
como consequência uma curiosa entorno, localizavam-se vários Vizinha Faladeira (Saúde); Em
contradição histórica: o bloco bairros ocupados pela população Cima da Hora (Catumbi) e União
carnavalesco Deixa Falar, negra, assim como a primeira Barão da Gamboa, entre outras.
considerado a primeira escola de favela da cidade, instalada numa Antes mesmo do desfile de
samba, nunca foi escola de samba, elevação que recebeu o nome de 1932, as escolas de samba já
pois se apresentava como bloco e, no Morro da Favela e que também contribuíam para o enriquecimento
último Carnaval de sua existência, tinha a sua escola de samba. Aliás, a da música popular brasileira
o de 1932, apresentou-se como maioria esmagadora das escolas de lançando dezenas de compositores,
rancho carnavalesco, outra forma samba participantes dos primeiros cujas obras foram imediatamente
criada pelo povo carioca para se desfiles era formada por favelados. absorvidas pelos cantores
reunir no Carnaval. Àquela altura, Vinham dos Morros da Mangueira profissionais da época. Nomes
comunidades dos subúrbios e (Estação Primeira); do Salgueiro como os de Cartola da Mangueira,
dos morros, influenciadas pelos (Azul e Branco e Depois Eu Digo); Paulo da Portela, Antenor
sambistas do Estácio, criaram seus do Borel (Unidos da Tijuca); da Gargalhada do Salgueiro, Buci
blocos carnavalescos, aos quais Matriz (Aventureiros da Matriz); Moreira do Morro de São Carlos,
contemplaram com o título de da Serrinha (Prazer da Serrinha); Armando Marçal de Ramos, além
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Ala de ritmistas da
Em Cima da Hora (1969).
Acervo Centro
Cultural Cartola

dos negros. Os sambistas foram


ficando livres das perseguições
quando as autoridades começaram a
perceber que os desfiles das escolas
atraíam grande público e, melhor,
despertavam a atenção dos turistas,
contribuindo decisivamente para a
elevação da ocupação dos hotéis nos
dias de Carnaval. Três anos depois
do primeiro desfile, a Prefeitura
oficializou a apresentação das escolas,
estabeleceu subvenções para ajudá-
-las financeiramente e distribuiu
dos pioneiros do bairro do Estácio a música que descreve o enredo pequenas revistas em francês, inglês
de Sá, tornaram-se tão conhecidos apresentado no Carnaval. e espanhol com explicação sobre
quanto os compositores “da Formadas as escolas de samba, aqueles grupos carnavalescos.
cidade”, como eram chamados os o povo carioca passou a contar com A população negra e pobre do
que não vinham dos morros ou uma espécie de passaporte para Rio de Janeiro criou, assim, o que
dos subúrbios. Também saíram cantar, dançar e tocar o samba, seria dali a pouco mais de dez anos
das escolas de samba quase todos os hábitos violentamente reprimidos não só a maior atração do Carnaval
ritmistas das gravações de discos. A nas primeiras décadas do século carioca, mas também um espetáculo
contribuição das escolas no campo XX pela polícia, que agia como de dança, de música, de formas e de
da música pode ser acrescida com instrumento do preconceito cores reconhecido como uma das
um novo tipo de samba criado por das classes dominantes contra as maiores e mais belas manifestações
elas, o samba-enredo, ou seja, manifestações culturais e religiosas de cultura popular do mundo.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

IDENTIFICAÇÃO
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Foto histórica de
comunidade carioca.
Acervo Arquivo Nacional

a música

O samba no Rio de Janeiro


foi e continua a ser um
polo aglutinador dos grandes
Ao longo do século passado,
esse samba ganhou muitas
denominações, como samba
Samba, samba-chula, samba
raiado, samba-choro, samba-
-canção, samba-enredo, samba de
universos culturais tradicionais urbano, samba carioca, samba de breque, de terreiro, de quadra, de
africanos, o banto, o jeje e o nagô, morro. Depois, apenas samba. partido-alto. São tantos os estilos de
que englobam uma infinidade Atualmente, os sambistas das fazer samba que podemos pensá-lo
de variações, significados e Velhas Guardas, os baluartes das como uma espécie de metagênero,
escolas, falam muitas vezes em um grande ambiente sociomusical
realidades, diferenciados de
samba de raiz e samba tradicional. em que práticas culturais coletivas
comunidade para comunidade.
Estão falando do mesmo samba, o ocorrem a partir da música e através
Esses universos geraram diferentes
que cresceu no Rio de Janeiro. dela. Dentre as várias formas que o
estilos de samba e possibilitaram samba assume, pode-se estabelecer
As suas matrizes, representadas
seu desenvolvimento e expansão, aqui pelos gêneros partido-alto, uma distinção entre aqueles sambas
como fruto de importantes samba de terreiro e samba- feitos no contexto da indústria
trocas culturais. enredo, são um patrimônio cultural e da música profissional, e
Como afirma Lopes,6 o popular e cultural não só do Rio aqueles feitos em contextos mais ou
critério geográfico é fundamental de Janeiro, mas de todo o país. menos comunitários e informais.
para a compreensão do samba, Essa distinção não corresponde a
que ganhou, no Rio de Janeiro, fronteiras estanques, mas pode ser
modificações estruturais que o pensada como polos de um contínuo
diferenciam muito do samba com razoável zona de intercâmbio e
rural, dançado em roda, à base de fluxo intenso entre as extremidades.
pergunta (solo curto) e resposta Por esse motivo, a determinação
(refrão forte). Aqui, uma nova de áreas matriciais desse metagênero
forma de samba amadureceu. é tarefa muitas vezes espinhosa,
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

PÁGINA Ao lado
Paradigma do estácio.

que demanda certos cuidados. importantes para o reconhecimento aspecto, um pouco diferente e exige
Nesse sentido, a definição das dos três tipos, demarcadores de suas discussão em separado.
três manifestações de samba aqui respectivas classificações. Assim,
consideradas eixos de definição das estão descritas as especificidades Partido-alto
matrizes do gênero (partido-alto, no aspecto rítmico, na sonoridade, Dentre os três tipos de samba
samba de terreiro e samba-enredo) na estrutura harmônico-melódica analisados neste dossiê, o partido-
contempla exatamente o polo desse e nas formas de algumas canções -alto se destaca por determinadas
contínuo mais distante dos meios consideradas típicas de cada características singulares. Talvez
de circulação massiva de música, um dos universos abordados. É represente, mais do que os outros,
da indústria do entretenimento e mister destacar que tais práticas certa ancestralidade das matrizes
do mercado musical global. Essas socioculturais representam uma do samba, o que se evidencia de
manifestações expressam em suas determinada matriz ideológica diversas maneiras. De acordo com o
estruturas musicais fundamentais as e musical da prática do samba pesquisador, sambista e partideiro
relações de sociabilidade cultivadas que se encontra cada vez mais Nei Lopes, autor do mais completo
em ambientes sociais específicos, escassa nas práticas atuais do estudo sobre o partido-alto já
constituindo-se um patrimônio gênero. Esta constatação se realizado, intitulado Partido-alto: samba
representativo da riqueza cultural torna particularmente visível de bamba, o samba de partido-alto pode
do país. É possível perceber que ao confrontarmos as formas ser definido como uma espécie de
essa origem comum ecoa em traços de experiência musical que samba cantado em forma de desafio
estilísticos característicos, que, de partido-alto e samba de terreiro por dois ou mais contendores e que se
fato, demarcam aquilo que pode representavam em um passado não compõe de uma parte coral (refrão ou
ser entendido como uma espécie de muito distante e a situação real “primeira”) e uma parte solada com
fundação do samba carioca. em que esses tipos aparecem nos versos improvisados ou do repertório
Foram adotados como eixos ambientes de samba atualmente. tradicional, os quais podem ou não se
de análise alguns elementos O caso do samba-enredo é, nesse referir ao assunto do refrão.7
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Quanto à sua formação, o definição mais ampla do gênero do partido permanecem em um


autor destaca que o partido é o tanto no aspecto sonoro quanto papel secundário no panorama
resultado do cruzamento de diversas no rítmico. O samba pode geral de sua sonoridade, uma
práticas musicais e coreográficas que ser definido como um tipo de vez que há um grande destaque
formavam no início do século XX canção popular na qual os versos para o improviso do solista. Da
aquilo que José Ramos Tinhorão são acompanhados basicamente mesma forma, uma massa muito
chamou de um “verdadeiro por instrumentos de percussão volumosa de instrumentos se torna
laboratório de experiências (pandeiro, surdo, tamborim, cuíca, pouco desejável, pois encobriria
fragmentadas de usos e costumes repique, reco-reco, ganzá, etc.) o destaque desse personagem nos
de origem rural na cidade do Rio e cordas dedilhadas (cavaquinho, momentos das rodas. A questão
de Janeiro”.8 Entre essas práticas, banjo, violão de 6 e de 7 cordas), da sonoridade demarca, portanto,
destacam-se as chulas, o lundu, o aos quais pode ser acrescida uma uma especificidade do partido-
samba rural paulista, o samba de roda infinidade de instrumentos solistas -alto em relação aos demais tipos de
baiano e o calango, gênero de grande ou acompanhadores (metais, samba, mas não é a única.
força principalmente no interior madeiras, teclados, cordas, foles), Em termos rítmicos, o
da região Sudeste, que também de acordo com a intenção estética samba que se desenvolveu no
apresenta características de improviso e as possibilidades de execução. Rio de Janeiro se define por um
e disputa entre os versadores. No partido-alto, contudo, essa padrão polirrítmico, baseado
Todas essas misturas processadas configuração sonora se torna menos primordialmente (mas não
em solo carioca moldaram o perfil ampla, são privilegiados a marcação exclusivamente) no Paradigma do
e as características do partido desde do pandeiro e o suporte harmônico Estácio9 executado ao mesmo tempo
suas primeiras ocorrências até seus do violão e do cavaquinho. Deve- com um instrumento médio-
desdobramentos atuais. -se destacar que, sendo uma -agudo de condução (pandeiro
O partido-alto é um tipo de canção em forma de desafio, os ou ganzá) e um surdo atacado no
samba e, como tal, corresponde à instrumentos acompanhadores contratempo.10
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Esse padrão polirrítmico se Essa “levada” caracteriza-se do padrão polirrítmico consagrado


fixou, sobretudo, em torno do por substituir a continuidade do samba, baseado no paradigma
ano de 1930 através da obra de do pandeiro de condução, o do Estácio (como por exemplo, a
compositores do Largo do Estácio que resulta em uma percepção gravação do tradicional Moro na roça
(por isso o termo), substituindo mais quebrada, mais “dura”, por Clementina de Jesus). Dessa
outro referencial rítmico que interrompida, partida. Apesar de forma, para tornar a definição de
caracterizava os sambas até a repetição da “levada” representar partido mais precisa, não podemos
então. Trata-se de uma célula um elemento de continuidade, restringi-la ao referencial rítmico e
rítmica conhecida por muitos os cortes mais agudos dos ataques nem exclusivamente à sonoridade.
etnomusicólogos como 3-3-2, do pandeiro parecem “frear” a Analogamente, a alternância entre
encontrada em diversas práticas continuidade rítmica. A “levada” de solo e coro (refrão) é recurso
musicais do planeta.11 partido-alto se associa ainda a um formal recorrente em dezenas
No entanto, a especificidade andamento mais lento, favorecendo de práticas musicais, não se
rítmica do partido-alto em relação o desenvolvimento do canto tanto configurando por si só em uma
ao samba não é exatamente a adoção do coro quanto da parte versada. característica exclusiva do partido-
esporádica do ritmo 3-3-2, ainda Na gravação de Não vem (Candeia), a -alto. No entanto, o partido-alto
que esse acompanhe muitas rodas “levada” do partido aparece em toda se torna reconhecível por uma
“na palma da mão”. Sendo um a música, sendo um ótimo exemplo maneira peculiar de organizar essa
tipo de samba que se estrutura de sua utilização. alternância, demarcando, aí sim,
em uma formação basicamente Se por um lado a “levada” de sua especificidade. No partido,
mais econômica do que o padrão partido é característica desse tipo a própria noção de canção se
referencial, o partido costuma utilizar de samba, ela não é suficiente encontra no refrão, uma vez que as
como célula básica uma variante do para defini-lo, pois em vários segundas partes são improvisadas.
paradigma do Estácio, executada exemplos pode-se verificar que o É sabido que a adoção de
principalmente pelo pandeiro. acompanhamento ocorre a partir segundas partes fixas e estáveis
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

PÁGINA Ao lado
à esquerda
ilustrações de pauta.

ABAIXO
não vem (candeia).

no samba é um fenômeno popular que prescindia de segunda é a presença dessa segunda parte
que se processou a partir do parte. Em outras palavras, a música improvisada, isto é, “tirada” ou
desenvolvimento de um mercado era o refrão. Esse fato pode ser “versada” na hora, no momento
de gravações musicais, em que a evidenciado tanto na prática do da performance. Nesse sentido, o
autoria determinada se sobrepôs partido como na prática do samba improviso está relacionado a uma
à criação coletiva e consagrou a de terreiro, que com frequência habilidade de raciocínio rápido
forma canção popular como a apresenta uma primeira parte forte do versador em criar soluções
conhecemos atualmente. Assim, e cantada em coro e uma segunda poéticas convincentes respeitando
deve-se destacar que as matrizes parte de estrutura melódica mais a métrica da canção, as rimas
estéticas do que se popularizou estável, porém livre para improvisos. baseadas no refrão e, muitas vezes,
como samba foram construídas a Possivelmente o que caracteriza mas nem sempre, a sua temática.
partir de uma concepção de música com maior eficácia o partido-alto O caráter de desafio é elemento
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

PÁGINA Ao lado
piedade (tradicional)

ao lado
maria madalena da
portela (Aniceto)

ABAIXO
Partido-alto
(padeirinho).

de grande relevância, pois instaura grandes grupos estéticos capazes de Podemos notar nesses
uma determinada ambiência social serem identificados como sambas exemplos uma característica
nas rodas de partido-alto baseada de partido-alto. Um primeiro marcante dos partidos, que é a
em uma competição recheada grupo, que poderíamos chamar utilização de arpejos melódicos
de provocações, piadas, jogos de de partidos curtos, corresponde a e de graus conjuntos, tanto no
linguagem e muita criatividade. O refrões formados por dois versos, refrão quanto nos versos. A
versador ou partideiro é, portanto, de cerca de quatro compassos, cujo harmonia simples, quase sempre
figura de grande respeitabilidade improviso normalmente também girando em torno da tônica (I) e
nos circuitos de samba, sendo é curto. Neste caso encontram-se da dominante (V7), com algumas
admirado por seu pensamento ágil. exemplos como os partidos Maria passagens pelo segundo grau
Quanto à tipologia musical do Madalena da Portela (Aniceto) e Partido- menor (IIm), é o pano de fundo
partido, é possível encontrar três -alto (Padeirinho). para melodias que poderíamos
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

chamar de intuitivas, pois traçam curtos, não há muito tempo para mais extensos (normalmente de
caminhos melódicos recorrentes, desenvolvimento da ideia do oito compassos) e improvisos
quase sempre conclusivos. refrão, que é concisa e reiterada de mesmo tamanho. Os refrões
Vale destacar também que a pelo repouso na tônica, de onde apresentam, em geral, quatro
esmagadora maioria dos partidos parte o verso improvisado. Há versos, com um desenvolvimento
está no modo maior, fato que ainda uma variante formal para maior da ideia central, mas também
colabora para uma ambientação esse tipo de partido curto que Nei podem ter apenas dois versos,
festiva, uma vez que este modo é Lopes chamou de partido cortado, no aproximando-se da estrutura
geralmente associado à plenitude qual as estrofes improvisadas são concisa do partido curto. Novamente,
e à alegria, por oposição ao modo entrecortadas com frases do coro. nestes casos, a harmonia circula
menor, considerado sombrio Um segundo grupo de partidos pelos acordes básicos da tonalidade
e introspectivo. Nos partidos se identifica por comportar refrões (I, V7 e IIm), sendo a melodia
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

página ao lado Acima


recordações de um
Batuqueiro.
Xangô da Mangueira
e J. Gomes

página ao lado abaixo


moro na Roça
(tradicional)

ABAIXO
Para o bem do nosso bem
(alvaiade)

construída a partir de arpejos e Finalmente teríamos um Velha Guarda da Portela em 1986,


graus conjuntos sobre essa estrutura terceiro tipo de partido-alto que, os três versos do refrão (em 12
harmônica simples. Esses partidos dada a maior complexidade de sua compassos) se tornam quatro na
correspondem ao que pode ser estrutura formal e harmônica, repetição (aí com 16 compassos),
entendido como uma estrutura começa a se aproximar do que levando ao improviso.
típica, regular e simétrica (tanto podemos entender como samba A parte versada desse tipo de
o refrão quanto o improviso de terreiro. Sua principal samba quase sempre inclui uma
correspondendo a quatro característica é que tanto o refrão inclinação para o quarto grau
versos que se estendem por oito quanto o desenvolvimento do (IV), numa harmonia que, apesar
compassos), sendo os versadores improviso se alongam por 12 ou de intuitiva, já confere maior
separados sempre pelo refrão e este 16 compassos. Em Para o bem do desenvolvimento do que a dos
quase sempre repetido. nosso bem, de Alvaiade, gravado pela casos anteriores, em que a tônica
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

PÁGINA Ao lado
Exemplos de versos de
partido-alto.

e a dominante eram praticamente do primeiro, evidenciando que artístico e sua graça residem
os únicos acordes. Quanto à a condução harmônica tem uma na criatividade do momento,
quantidade de versos, esse tipo de importância maior na estruturação dificilmente registrável ou
partido pode ter quatro ou seis da parte versada do que exatamente reproduzível. Ainda assim,
versos no refrão, mas normalmente a definição de uma linha melódica. em diversos momentos da
o improviso se estende por seis Destaca-se nesse exemplo que os história da fonografia nacional
versos, divididos entre dois quatro improvisadores respeitaram sambistas registraram partidos
partideiros. O primeiro versador a temática do refrão, o que nem com maior ou menor grau de
elabora uma ideia para o verso e sempre ocorre. Nesse caso, o predeterminação das segundas
conduz a melodia até o quarto grau desenvolvimento da mesma temática partes e eventualmente até
(IV), e o segundo se encarrega faz a canção parecer um todo único mesmo buscando traduzir para
de estabelecer uma conclusão e o improviso parecer, de fato, uma o estúdio a espontaneidade
semântica do verso e harmônica “segunda parte”. do improviso, da roda, o que
da melodia no acorde de tônica. Essa divisão entre os três tipos de dificilmente se viabiliza ou se
O primeiro verso, de improviso, partidos, assumidamente arbitrária, torna convincente. Nesse sentido,
de Para o bem do nosso bem exemplifica tem a intenção de mapear estilos o partido se destaca no cenário
o tipo de condução harmônica e a e formas, deixando claro que não do metagênero samba como uma
divisão entre dois versadores. são fórmulas rígidas e que podem vertente umbilicalmente ligada às
Depois desse improviso, o comportar variações e mudanças. suas matrizes socioculturais, com
coro retorna com o refrão e, Com sua gama relativamente forte tendência à valorização da
em seguida, outro improviso é estreita de variações e sempre letra, do improviso, do ambiente
cantado por mais dois versadores. apoiado na performance ao vivo, o comunitário, dos padrões de
É interessante reparar que neste partido-alto é o tipo de samba sociabilidade fundados no
segundo improviso gravado a menos adequado ao mercado coletivo, no fazer musical amador,
melodia é completamente diferente musical, uma vez que seu valor compartilhado.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

PÁGINA Ao lado
serra dos meus sonhos
dourados.
Carlinhos Bem-te-vi.

Samba de terreiro funcionavam (e ainda funcionam) Dessa forma, temos o samba


Diferentemente do partido- também como momentos de de terreiro caracterizado mais
-alto, que se define diretamente intensas trocas culturais, realizadas, como uma prática sociomusical do
por características formais sobretudo através da música. Assim, que propriamente como um tipo
(musicais e poéticas), e do o terreiro do samba é um espaço de específico de samba, cujos elementos
samba-enredo, que se caracteriza sociabilidade, no qual os sambistas poderiam ser isolados e descritos.
principalmente por sua função, se encontram, trocam ideias, Por esse motivo, um samba só pode
o samba de terreiro parece se histórias e sambas. ser classificado como de terreiro por
definir antes pelo seu contexto, Mas o terreiro, em um uma determinada “comunidade”.
ou seja, pelo fato de ser um tipo sentido mais restrito, designa Apenas o grupo de pessoas
de samba que ocorre no terreiro. especificamente a área comum autorreconhecido como sambistas
O terreiro, amplamente de uma escola de samba. Dado o das escolas tem legitimidade para
definido, foi e é um espaço papel fundamental (propriamente designar determinado samba ou
sociocultural de grande matricial) das escolas, desde os anos grupo de sambas como sendo “de
importância para o samba. 30, na constituição do samba, o terreiro”, pois essa classificação
“Terreiro” pode ser o quintal de samba de terreiro define-se como deriva exatamente do fato de ele
Tia Ciata, do mesmo modo como aquele feito para consumo interno ter sido “apresentado” nas rodas
a palavra designa popularmente delas ou, por assim dizer, como o dos terreiros e de representar esse
a casa de candomblé, e pode se lado de dentro do samba organizado. ambiente, esse “lado de dentro”.
referir também aos fundos de A roda de samba, quando no Como resultado dessa
quintal dos subúrbios cariocas. terreiro, é, então, mais específica definição contextual, os sambas
As rodas de samba que agregavam do que outras rodas de samba, de terreiro apresentam grande
(e ainda agregam) parentes, pois está associada à estrutura das variedade estilística. Tal variedade
amigos, vizinhos num grande escolas de samba e às suas formas de é alimentada por intensas trocas
congraçamento afetivo e musical organização social e musical. culturais entre os sambistas das
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

várias escolas e, de forma ainda sambas de partido-alto: um refrão dirigindo sua capacidade criativa
mais ampla, pelo contato entre esse forte, cantado em coro, e uma para a improvisação de versos.
ambiente comunitário do fazer segunda parte que se desenvolve Muitos desses sambas de
musical e o seu polo oposto, da através de caminhos melódico- terreiro, especialmente os mais
circulação massiva de músicas pela -harmônicos que estamos antigos, se caracterizam, tal como
indústria do entretenimento. Ainda chamando aqui de “intuitivos”. no caso do samba dos primeiros
assim, é possível identificar duas Com esta palavra queremos desfiles (que discutiremos a
tendências estéticas que se fazem designar aquelas construções seguir), por ter apenas essa
presentes nesse repertório. De melódico-harmônicas consideradas primeira parte, sendo a segunda
um lado, teríamos aqueles sambas “fáceis” o bastante para que o totalmente livre para os versadores.
que, dada sua estrutura musical, partideiro possa se concentrar no Ocorre que, de um modo geral,
se confundiriam com os próprios aspecto verbal da sua performance, essa primeira parte é mais longa do
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

que as encontradas nos partidos de definitivas para aquela canção. A Podemos destacar nesse
estrutura típica, correspondendo, estrutura da canção, no entanto, exemplo a total liberdade de
quase sempre, a 16 compassos e seis permanece nesses casos aberta ao temáticas entre o refrão e a
ou mais versos. Um bom exemplo improviso: sempre será possível segunda parte. Enquanto a
é o samba Serra dos meus sonhos acrescentar novos versos no local primeira enaltece a escola e seus
dourados, de Carlinhos Bem-te-Vi, apropriado, desde que a ocasião espaços, a segunda parte valoriza
composto na década de 1940 no se apresente. É como se o samba a “viola” e ignora os versos do
terreiro da antiga escola de samba guardasse uma espécie de potencial de refrão dirigidos à Serrinha. Essa
Prazer da Serrinha. improviso, que podemos identificar característica, que aparece também
Em alguns casos, sobretudo nesta segunda parte desse mesmo em alguns partidos, pode ser
depois de gravadas em disco, as samba, gravado em 1982 por Dona pensada como sendo recorrente em
segundas partes se fixaram como Ivone Lara. sambas improvisados, nos quais o
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

PÁGINA Ao lado
serra dos meus sonhos
dourados (parte 2).
Carlinhos Bem-te-vi.

improviso nem sempre é construído toda a composição, numa estratégia musical e poética simplesmente não
a partir da temática do refrão. que se assemelha ao estilo de se presta a essa prática. São sambas
Se, portanto, é possível interpretação do samba-enredo. autorais no sentido estrito da palavra,
identificar sambas de terreiro que Um bom exemplo é o samba Velho em que o autor se faz presente em
correspondem a uma estrutura Estácio, de Cartola: toda a canção, conferindo-lhe um
aberta ao improviso, existe também estilo, um recado.
um grupo desses sambas em que Muito velho, pobre velho No que se refere às temáticas
a estrutura composicional é mais Vem subindo a ladeira dos sambas de terreiro, uma das
fechada, isto é, na qual a parte Com a bengala na mão preferidas é a exaltação da própria
principal do processo de elaboração escola, de suas cores, símbolos e
estética da segunda parte do É o velho, velho Estácio integrantes. Os elogios à escola
samba acontece previamente, e Vem visitar a Mangueira feitos no ambiente dos terreiros, e
não na hora da performance. Essas E trazer recordação integrando o repertório referencial
composições têm garantida a daquele grupo de pessoas, adquirem
unidade temática de sua letra, e Professor chegaste a tempo grande importância, pois, em
comumente apresentam estrutura Pra dizer neste momento torno desse conjunto de canções,
harmônica mais sofisticada. Em Como podemos vencer os sambistas constroem elos de
algumas delas, torna-se até difícil amizade e de identidade coletiva.
encontrar aquilo que poderíamos Me sinto mais animado Nesses exemplos, é muito comum
chamar de refrão, uma vez que os A Mangueira a seus cuidados a narrativa de feitos, glórias,
versos estão de tal forma integrados Vai à cidade descer figuras e histórias que compõem o
que a divisão entre primeira e quadro de valores compartilhados
segunda partes soa um pouco Sobre esses sambas dificilmente da agremiação. Vale destacar que
artificial. Nesses casos, o canto pode-se desenvolver um improviso, muitos sambas compostos dessa
coletivo, com frequência, percorre uma vez que sua configuração forma se tornaram “clássicos” do
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

PÁGINA Ao lado
modificado.
Padeirinho.

repertório de diversas escolas, como Nesse sentido, o refrão tem agregadas pela escola de samba. Até
este, Capital do samba, de José Ramos. grande importância na estrutura determinado momento do século
dos sambas de terreiro. O refrão XX, os compositores de sambas de
Chegou a capital do samba se define pela repetição e, mais terreiro foram figuras respeitadas
Dando boa noite com alegria do que isso, pela participação na hierarquia interna das escolas,
Viemos apresentar o que do canto coletivo, apresentando “baluartes” de cada agremiação,
Mangueira tem características expressivas que quase sempre ocupando cargos
Mocidade, samba e harmonia favorecem a entrada do coro. importantes no poder e na
Nossas baianas com seus colares No exemplo acima, é possível estruturação das escolas. Apesar de
e guias identificar um pequeno refrão (Até esse poder ter se dissolvido entre
Até parece que estou na Bahia parece que estou na Bahia), que ocorre outros protagonistas das escolas, é
Até parece que estou na Bahia ao final de ambas as partes. Este através dos sambas de terreiro que
Da cidade alta da Mangueira refrão representa dois momentos a coletividade fala e se faz ouvir,
Avisto a Vila tenho saudades de de canto coletivo que pontuam elaborando suas interpretações
alguém a declaração de amor à escola, e narrativas. Esse lado de dentro
Até parece que eu estou em São garantindo que, nesses pontos, o das organizações carnavalescas
Salvador máximo de pessoas estará cantando se torna visível (audível) através
Avistando o que a Bahia tem junto. Em outros casos, como o do conjunto de seus sambas de
É minha maior alegria de Agoniza mas não morre, a música terreiro, que expressam sua visão
Até parece que estou na Bahia inteira se transforma em mensagem de mundo, seu pensamento, suas
Até parece que estou na Bahia da comunidade, representada pelo ideias e sua identidade.
canto coletivo. Devemos destacar, no entanto,
Esse compartilhamento O samba de terreiro representa que esse lado interno não é nem
de símbolos se evidencia nos uma identidade compartilhada nunca foi um ambiente fechado,
momentos do canto coletivo. por determinado grupo de pessoas mas sim um espaço com muitas
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

frestas, entradas e saídas, que mais ampla. O samba Modificado, Ver se não tenho razão
permitem aos sambas circular por de Padeirinho, composto Já não se fala mais no sincopado
outras rodas, outros terreiros e até provavelmente na década de 1960, Desde quando o desafinado
mesmo pelo mercado de música. reflete bem esse movimento: Aqui teve grande aceitação
Analogamente, os movimentos E até eu também gostei daquilo
musicais e as mudanças na Vejo o samba tão modificado
sociedade vazam para o lado de Que eu também fui obrigado a Neste samba, o compositor
dentro das escolas e, por meio fazer modificação reflete sobre o advento da bossa
dos sambas de terreiro, são Espero que ninguém não me nova, um fenômeno que atingia à
interpretados e elaborados pela censure época o mercado de música de um
comunidade, que assim evidencia O que eu quero é que todos modo geral e o samba de forma
suas críticas sobre a sociedade procurem particular. Destaca-se neste samba
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

PÁGINA Ao lado
chega de demanda.
Cartola.

um perfil estético totalmente se transformam em quadras e a sambista, pode-se afirmar com


avesso à prática da improvisação. denominação “samba de terreiro” alguma segurança que o terreiro
Seus dez versos estendem-se perde sua força, consequência da como espaço simbólico se mantém
por uma melodia sinuosa de 32 queda de prestígio dos próprios no imaginário de parte significativa
compassos, percorrendo caminho sambistas no poder interno das do repertório do samba,
harmônico altamente inesperado, escolas. Esse processo, já bastante especialmente cultivado naqueles
como se sua estrutura melódico- documentado e comentado pela sambistas que nutrem maior zelo
-harmônica fosse uma espécie de bibliografia, que ficou conhecido pela trajetória do gênero e pela
paródia dos tortuosos sambas da como “profissionalização” das referência às suas matrizes.
estética bossa-novista. escolas e do desfile, ocorreu no
Esse percurso sinuoso não mesmo período (por volta da década Samba-enredo
impede, entretanto, que o de 1960) em que passaram a atuar O samba-enredo, mais do que
compositor expresse em seus no mercado de música cantores simplesmente um tipo de temática
versos e música um comentário especializados em samba, que vão ou finalidade para o samba, se
possivelmente compartilhado por buscar, no repertório dos sambas consolidou ao longo de sua história
seus colegas de dentro das escolas de terreiro, canções para serem como uma estética específica de
sobre as transformações da música lançadas comercialmente. Observa- samba. Baseada na estrutura do
veiculada na mídia. Essa função -se então que o samba que ocorria desfile carnavalesco, essa estética
propriamente comunitária dos nos terreiros se desloca para outras associa a sonoridade pujante da
sambas de terreiro talvez seja seu rodas, para o mercado, ou mesmo bateria da escola de samba com
mais alto valor cultural. dentro da estrutura das escolas, para uma forma de canção que se
À medida que as escolas vão espaços de menor destaque. caracteriza, sobretudo, por sua
sofrendo, cada vez de forma Se, na prática, os terreiros narratividade, que aos poucos se
mais célere, transformações reais não representam mais esse tornou imperativa na composição
em sua estrutura, os terreiros polo comunitário do fazer musical de sambas destinados aos desfiles.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

É preciso distinguir, portanto, o final dos anos 40; e os sambas- seja Chega de demanda, de Cartola. O
entre os sambas cantados nos enredo propriamente ditos, que samba foi composto possivelmente
primeiros desfiles, na década desde então associam uma função antes mesmo da criação da
de 1930, que não tinham, na determinada no desfile a uma Mangueira, quando Cartola saía no
maioria dos casos, qualquer forma musical específica. Bloco dos Arengueiros;12 segundo
relação com o enredo; os sambas No início dos desfiles das o site oficial da escola, foi cantado
relacionados ao enredo, mas escolas de samba, os sambas no Carnaval de 1929.
compostos musicalmente de uma cantados não se relacionavam com Embora os dados disponíveis
maneira que não se diferenciava qualquer enredo, assim como o sejam muito limitados, parece
de outros sambas dos mesmos próprio desfile da escola não era provável que muitas escolas que
compositores, que prevaleceram condicionado por um. Talvez o saíram nos carnavais de 1930 a
por volta do final dos anos 30 até mais famoso samba desse período 1933 não apresentassem enredo.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

PÁGINA Ao lado
não quero mais amar
ninguém.
Carlos Cachaça 1ª parte,
Cartola 2ª parte.

O primeiro desfile competitivo porém, oito não tinham enredo a música. Em 1933, o enredo da
sobre o qual há registros escritos ou eles não foram percebidos pelos Mangueira foi “Uma segunda-feira
contemporâneos é o de 1932,13 e jornalistas presentes.17 do Bonfim na Bahia”. Mas um dos
em tais registros não há qualquer Chega de demanda é uma melodia sambas cantados, segundo o site da
alusão a enredo. Também não há tal de 16 compassos, correspondendo escola, foi Fita meus olhos, de Cartola,
alusão nos testemunhos orais sobre ao refrão de quatro versos, parte que não tem nenhuma relação
a competição de sambas promovida do samba que era fixa, cantada em com a Bahia. Na década de 1930,
por Zé Espinguela em 1929.14 coro pelas pastoras e repetida uma as escolas desfilavam com dois ou
No que se refere ao Carnaval vez. Em seguida, o versador cantava, três sambas, mas “a repercussão
de 1933, há duas informações em solo, o que seria uma segunda alcançada por Fita meus olhos indica
sobre o assunto. O jornal Correio parte improvisada, também de 16 que ele foi o samba principal”.18
da Manhã pretendia realizar, na compassos, mas sem repetir. Há um consenso entre os
quinta-feira anterior ao Carnaval, Essa estrutura — 16 compassos historiadores do samba, segundo
uma noite das escolas de samba, repetidos pelo coro, mais 16 o qual é nos anos 40 que se
para a qual chegou a publicar um compassos não repetidos e intensifica a tendência a um crescente
regulamento. O evento acabou por improvisados por um solista — era planejamento e controle prévio
não se realizar, mas o regulamento, reiterada por inteiro várias vezes sobre o que vai acontecer no desfile,
publicado por Cabral,15 rezava em durante a performance de cada samba. tudo submetido a um “enredo”
seu item 5: “Não é obrigatório A partir de 1934, o enredo propriamente dito, que amarra os
o enredo”. O desfile de fato continua aparecendo sempre elementos da escola, incluindo todas
aconteceu, organizado pelo jornal como quesito de julgamento, e as partes cantadas. Liga-se a isso,
concorrente O Globo no domingo obviamente todas as escolas passam por exemplo, a decisão da Portela,
de Carnaval, e tinha o enredo a apresentar um. Mas o enredo tomada em 1942, de impedir o desfile
entre seus quesitos de julgamento.16 não determinava ainda todos os de integrantes que não estivessem
Das 31 escolas que concorreram, elementos do desfile, entre os quais vestidos de azul e branco;19 e também
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo
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PÁGINA Ao lado
tiradentes.
Mano Decio, Penteado e
Estanislau Silva.

o crescente desprestígio das segundas de Egídio de Castro e Silva, que “clássico”, herdado dos bambas do
partes improvisadas, como se fazia em assistiu a um ensaio da Mangueira Estácio de Sá, criadores da Deixa
Chega de demanda. em 1939: Falar, referência para todos os
Os testemunhos disponíveis Os sambas compõem-se de duas partes: demais fundadores de escolas nos
não permitem saber até que ano, a coral, chamada “primeira”, é feita com primeiros anos dos desfiles: 16
exatamente, os desfiles tiveram grande antecedência para ser cantada, compassos repetidos do coral, mais
as segundas partes integralmente afinal, por um conjunto bem-ensaiado e 16 compassos sem repetir do solista.
improvisadas. Em 1935, cogitou- homogêneo. A segunda, que é a parte solista, A única diferença estrutural em
-se mesmo incluir os versadores pode ter o texto definitivo inventado até a relação a Chega de demanda é o fato de
entre os quesitos do julgamento, última hora e substituído, nos ensaios, por a segunda parte ter sido previamente
mas segundo noticiou a imprensa, uma improvisação.22 composta. Mesmo assim, em Não
“os argumentos apresentados [...] quero mais amar a ninguém também é
pela [escola] Vizinha Faladeira Sem esquecer, porém, que a possível mostrar a fluidez da segunda
foram tão fortes, que fizeram cair proibição já mencionada indica parte, que ficou clara no trecho
o item dos versadores”.20 Sabemos que, em 1946, pelo menos algumas de Egídio de Castro e Silva citado
que em 1946 a presença de versos escolas ainda deviam improvisar acima. Segundo Cabral, o samba
improvisados foi oficialmente versos no dia do desfile. Um samba foi gravado por Araci de Almeida
proibida nos desfiles.21 Mas é do qual se sabe com certeza que foi com outra segunda, composta por
provável que o processo tenha cantado no desfile de 1936 e que José Gonçalves, e só veio a recobrar
sido paulatino e que algumas já possuía, então, uma segunda fonograficamente a contribuição de
escolas já tivessem, antes daquela parte composta é Não quero mais amar Cartola na gravação feita em 1973
data, introduzido o hábito de a ninguém, de Carlos Cachaça - autor por Paulinho da Viola.
desfilar com as segundas partes da primeira parte - e Cartola - Independentemente da
previamente compostas. Nesse autor da segunda. infindável discussão sobre qual
sentido aponta o depoimento O samba é composto no molde teria sido o primeiro samba-
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-enredo que se tenha prendido às do solista diminui, tornando-se não apenas pelas pastoras, mas pelo
características da letra e da relação o samba do desfile cada vez mais conjunto da escola e, idealmente,
do samba com o resto do desfile, coletivo, na mesma medida em pela multidão que a assiste.
pode-se observar, do ponto de vista que todo o desfile se torna um Esse processo pode ser
musical, um processo paulatino empreendimento coletivo, ajustado exemplificado pelos sambas do
de abandono da estrutura de e cronometrado em detalhes cada Império Serrano entre 1948 e
(16 x 2) + 16 compassos, com vez mais mínimos (a descrição de 1951. No samba Castro Alves (Mano
primeira e segunda, para uma Maria Laura Viveiros de Castro Décio, Molequinho e Cumprido,
estrutura que poderíamos em Carnaval carioca, dos bastidores ao 1948), a letra já está totalmente
caracterizar como de “melodia desfile é eloquente). Assim, o samba no espírito do samba-enredo tal
infinita”, na qual desaparece a inteiro, e não apenas o refrão, se qual o conhecemos hoje, mas a
alternância coro/solista. A parte destina cada vez mais a ser cantado música representa uma espécie de
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transição entre os sambas do Estácio Penteado) tem na primeira parte 32 estrofe solista), cuja importância
e o samba-enredo propriamente compassos, mais oito da repetição relativa vai diminuindo.
dito. Este é dividido em duas do último verso (são oito versos). O aumento da importância da
partes, uma de caráter mais coral A segunda parte tem apenas 16 primeira parte na forma do samba-
(correspondendo ao refrão, ou compassos (quatro versos). Todos -enredo é acompanhado por um
primeira) e outra de caráter mais esses sambas apresentam também progressivo deslocamento da ênfase
solista (correspondendo ao verso, um trecho em “laralaiá”, de 16 do “samba”, num sentido mais
ou segunda). A principal diferença compassos. O samba do Império musical, para o “enredo”, ou seja,
musical em relação a Chega de demanda Serrano em 1951 é Sessenta e um anos para uma intenção mais explícita
ou a Não quero mais amar a ninguém é que de República, de Silas de Oliveira. de narrar esse enredo. Se em um
a primeira parte tem 24 compassos Silas é considerado uma grande primeiro momento o samba-
(correspondentes a seis versos) e influência na configuração do -enredo foi basicamente um samba
não 16. A segunda parte continua samba-enredo,23 e este samba de terreiro, porém adequado ao
com 16 compassos e quatro versos. confirma totalmente isso. Pelo enredo, com o passar dos anos o
No ano seguinte, Exaltação a Tiradentes, menos entre os sambas do Império, enredo vai se impondo ao samba
também do Império (Mano Décio, este é o primeiro com melodia e, como consequência, o caráter
Penteado e Estanislau Silva), infinita mesmo, isto é, sem narrativo vai alterando a forma
apresenta uma primeira parte de nenhuma distinção entre primeira e a própria extensão das músicas
24 compassos, que se transformam e segunda parte, e com pouquíssima apresentadas para o Carnaval.
em 32 devido à repetição do último redundância melódica. Os É quando começam a aparecer
verso (de um total de cinco). A anteriores (1948, 1949 e 1950) alguns sambas que, em prol da
segunda parte já cresce para 24 ainda têm uma primeira parte (seria narratividade do enredo, passam a
compassos ou seis versos. o velho refrão), que vai ficando buscar a todo custo “cobrir” todas
Em 1950, o samba Batalha cada vez maior; e uma segunda as etapas descritas pelo desfile da
naval do Riachuelo (Mano Décio e parte (que seria o velho verso ou escola. Apelidados de “lençóis”,
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esses sambas encarnam de forma com seus 50 compassos e 22 com 128 compassos e 30 versos,
ideal a noção de melodia infinita, versos. Um ano antes, Cartola e confirmando a tendência de
pois seus vários versos (30, 40, Carlos Cachaça compõem para narrar todas as etapas do enredo
às vezes quase 50) são entoados a Mangueira Vale do São Francisco, de um desfile já em crescente
um a um, em sequência, sem cuja primeira parte apresenta processo de profissionalização.
repetições melódicas por dezenas 32 compassos, mais quatro Há consenso entre os
de compassos. Mais uma vez aqui da repetição do último verso pesquisadores de que é na virada
se destaca o nome de Silas de (são dez); e a segunda parte,24 da década de 1940 para a de 1950
Oliveira, autor de um “lençol” compassos (oito versos). No ano que o samba-enredo, tal como
que se tornou um grande clássico seguinte, a mesma escola sai com se conhece hoje, adquire suas
do repertório do samba-enredo: Apoteose aos mestres, de Alfredo características mais marcantes.
Aquarela brasileira (transcrição Português e Nélson Sargento, Nos anos seguintes, a tendência de
integral no Anexo 6), apresentado com 32 compassos em cada composição de sambas-
pelo Império Serrano em 1964, parte (12 mais dez versos). Em -enredo cada vez mais integrados
com 36 versos e 136 (!) compassos, todos esses casos, porém, as duas à narrativa se intensifica, gerando
sem nenhuma repetição. A única partes continuam perfeitamente sambas extensos praticamente sem
repetição ocorre no “laiá laiá”, que distinguíveis; a primeira de nenhuma repetição.
funciona como uma introdução de caráter coral, destinadas às Em um terceiro momento,
oito compassos repetidos. pastoras, e a segunda, de caráter já entrando na década de
O processo não é, em solista, destinada a um cantor 1970, observa-se uma aguda
absoluto, exclusivo do Império. de sexo masculino.24 Vinte anos transformação em todo o contexto
Na Portela, o samba de 1949, mais tarde, a mesma Mangueira do desfile carnavalesco carioca,
Despertar de um gigante, também é desfilaria com o samba Mercadores e que atinge as práticas internas de
representativo dos novos tempos suas tradições (Hélio Turco, Darcy, samba de terreiro e do partido-
do samba no desfile de Carnaval, Batista e Jurandir), um “lençol” -alto, as estruturas de poder das
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escolas e a própria organização do foi se tornando mais acentuada chamados “grupos de acesso”,
Carnaval, além, evidentemente, nas últimas décadas. Essa exemplos de belos sambas-
da estética do samba-enredo. aceleração representa um agudo -enredo, resultado da inspiração
Aos poucos, os compositores afastamento das características de compositores afetivamente
abandonaram a obrigatoriedade musicais do samba, uma vez que ligados às agremiações.
de descrever integralmente o andamentos exageradamente
enredo e se voltaram de novo rápidos mascaram as nuances O improviso
para a composição de sambas com rítmicas da levada da bateria, Pode-se afirmar com certa
refrão. A intenção era conquistar reduzem o potencial de tranquilidade que, musicalmente,
o novo “público” dos desfiles interpretação dos cantores e as matrizes do samba de alguma
carnavalescos, apoiado em padrões escondem a riqueza dos caminhos forma passam pela questão
já consagrados de estruturas melódicos e harmônicos, do improviso. Estreitamente
musicais. É quando, em muitos além de trazerem significativas identificado com o polo amador
casos, a forma vira fôrma e engessa consequências coreográficas. e comunitário do fazer musical
parte da liberdade criativa dos Todo esse processo representa sambista, e ao mesmo tempo pouco
sambistas, afastando sua criação um afastamento das matrizes do adaptável ao polo oposto desse
estética das motivações originais samba-enredo, que se tornou contínuo, o improviso demarca
do fazer-samba-enredo, ligado à prática cada vez mais voltada para uma forma de atuação musical que
comunidade, ao canto coletivo, o comércio do Carnaval e menos revela muito sobre o pensamento
à narratividade de uma história para a atividade cultural relevante musical do samba.
contada em grupo. no contexto das escolas. Ainda Podemos observar que o samba
Outro aspecto bastante assim, é possível encontrar, de terreiro era um samba com
discutido sobre a performance do de forma pontual nas escolas espaço para improvisação e que os
samba-enredo diz respeito à dos grupos de elite e de forma sambas cantados nos desfiles das
aceleração do seu andamento, que mais sistemática nas escolas dos escolas tiveram parte improvisada
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(o que corresponderia à segunda É partido-alto Partideiro chapa quente


parte, ou estrofe solada, por Mas é pra quem sabe improvisar Esse bom ambiente é o seu lugar
oposição ao refrão coral) até os (Que samba é esse, de Jorginho e J.
anos 40. Gomes) E manda bonito
Da mesma forma, o partido- no ouvido da gente
alto é um estilo de samba cuja Samba de partido-alto
força expressiva e capacidade É sapateado Samba diferente
de comunicação se encontram pro povo cantar
fundamentalmente no momento Hoje em dia mais ninguém (Partideiro chapa quente, de Dudu
do “verso de improviso”, esperado, faz o sapateado Nobre e Luizinho SP)
e até mesmo comemorado,
durante a performance. Porque não é fácil, Musicalmente, o improviso se
É possível verificar que os é meio encrencado caracteriza pela criação de versos
sambistas identificados com (Partido-alto, de Aniceto) a partir de uma base harmônica e
as matrizes musicais do samba melódica predeterminada. Como
nutrem muito respeito pela arte Partideiro chapa quente resultado, as melodias construídas
do improviso, que adquire grande nos versos de diversos sambas são
status perante a comunidade. Esse Na roda de samba muito parecidas entre si. Esse
respeito aparece com recorrência chega pra abalar fato, ao invés de diminuir o valor
em alguns sambas, que exaltam a estético e a riqueza musical dessa
arte do partido. É olho por olho prática de samba, é fator de alta
é dente por dente relevância para o desenvolvimento
Que samba é esse da parte improvisada, uma vez que
Que acabou de chegar Não quebra a corrente o reconhecimento de um caminho
não dá pra enganar melódico previsível e muitas vezes
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

já ouvido representa um apoio nosso entender diz respeito tanto à versos e melodias previamente
seguro para o versador. Diversos métrica poética quanto à adequação conhecidos, “pés-de-cantiga”, que
improvisos são finalizados através musical à quantidade de compassos funcionam para uma infinidade de
de um caminho descendente determinada para o improviso: temas e momentos. O pesquisador
por graus conjuntos ou arpejos O improviso tem o tempo. O verso tem e escritor Nei Lopes lista alguns
pelo acorde de dominante, o seu tempo pra poder entrar no partido. exemplos, dentre os quais podemos
configurando uma espécie de jargão [...] Repentista é uma coisa e partido-alto destacar os versos Vou me embora,
melódico-harmônico que norteia a é outra. Partido-alto é dentro da melodia. vou me embora/ que me dão para levar,
estruturação do trecho versado. Hoje tem pouca gente. Tem uns que versam encontrados em registros de
As melodias intuitivas, além aí, cantam, mas não têm aquele ritmo, pesquisadores como Americano
de facilitarem a percepção e aquelas caídas bonitas pra enfeitar, porque do Brazil (Brasil Central, 1925),
valorizarem a letra, representam tem que enfeitar o partido. As florezinhas, Santos Neves (Espírito Santo, 1949)
uma memória coletiva tudo tem um molho. Hoje eu mesmo não me e Mário de Andrade (Pernambuco,
compartilhada, fortalecendo o meto mais, eu já faço os versos prontos.25 1929) e em diversos exemplos de
caráter comunitário dos eventos partido-alto.26
das rodas e do próprio momento Sobre esses “versos prontos”, Como vimos, a improvisação
do improviso. Ao mesmo tempo é importante destacar que o de versos foi proibida nos
em que essa coletividade ecoa improviso nem sempre é uma desfiles competitivos em 1946.
em melodias quase-conhecidas, criação exatamente espontânea Analogamente, o declínio da
o saber-fazer individual do e feita no momento. Em muitos prática do samba de terreiro e a
versador é altamente valorizado casos, os versadores se utilizam de forma bissexta com que o partido-
nos circuitos de partido. Xangô da um recurso chamado de “muleta” -alto hoje circula pelos ambientes
Mangueira, respeitado partideiro ou “trampolim”, que consiste de samba (de um lado a outro do
da cena sambista, destaca o valor em aplicar, de acordo com as contínuo mercadológico) são pistas
da rítmica dos versos, que no possibilidades temáticas e musicais, de uma relativa perda de referências
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do samba carioca, cada vez mais em 1982, e desde então cantado em Coro:
envolvido com o mercado musical inúmeras rodas de samba por todo Mas quem disse que eu te esqueço
em suas várias esferas (Carnaval, o país. No final desse registro, os Mas quem disse que eu mereço
indústria fonográfica, showbiz de dois intérpretes, aproveitando a
grande e pequeno porte). rima do refrão-título do samba e a D. Ivone:
Porém (ai, porém!), a recorrente melodia descendente, Vai pra missa seu menino,
criatividade de sambistas acrescentam uma deliciosa não esqueça reze um terço
improvisadores parece driblar as “fuleira”, com a qual finalizamos
próprias restrições mercadológicas esta pequena descrição: Coro:
às práticas mais identificadas com Mas quem disse que eu te esqueço
as matrizes do gênero. Um recurso Coro: Mas quem disse que eu mereço
frequentemente utilizado em Mas quem disse que eu te esqueço
gravações comerciais de sambistas Mas quem disse que eu mereço Zeca:
herdeiros desse ambiente é o E é isso que eu recebo em troca
que se convencionou chamar de D. Ivone: de tanto apreço
“fuleira”,27 pequenos improvisos O pagode está bom por
estrategicamente incluídos ao final enquanto é o começo Coro:
das gravações de determinados Mas quem disse que eu te esqueço
discos. Um exemplo bastante Coro: Mas quem disse que eu mereço
ilustrativo é a gravação, por Dona Mas quem disse que eu te esqueço
Ivone Lara e Zeca Pagodinho, do Mas quem disse que eu mereço D. Ivone:
samba Mas quem disse que eu te esqueço, Pagodinho cai no
da grande sambista em parceria Zeca: samba que nem menino travesso
com Hermínio Bello de Carvalho, É que ela foi embora e nem
sucesso na voz de Paulinho da Viola deixou seu endereço
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Coro: De um modo geral, pode-se


Mas quem disse que eu te esqueço dizer que nos principais tipos de
Mas quem disse que eu mereço samba produzidos nas escolas — o
partido-alto, o samba de terreiro
Zeca: e o samba-enredo — vislumbram,
Eu fiquei assim parado que nem respectivamente, a versatilidade,
boneco de gesso a poesia a musicalidade e a capacidade
narrativa do compositor que é
Coro: considerado “bamba” por sua
Mas quem disse que eu te esqueço comunidade, principalmente
Mas quem disse que eu mereço quando consegue aliar em seu
repertório essas três vertentes,
D. Ivone: que se fazem imprescindíveis em
O Hermínio fez a rima Pode-se afirmar que a música três espaços definidos: a roda, o
e mereço com apreço das escolas de samba tem um terreiro e a avenida.
caráter funcional. É elaborada
Coro: com um objetivo específico e, Partido-alto
Mas quem disse que eu te esqueço como tal, obedece a certo padrão A palavra é datada do século XIX
Mas quem disse que eu mereço estrutural (versos e melodia), que e, provavelmente, a composição
sofre modificações ao longo do substantivo/adjetivo relaciona-
Zeca: século XX, adaptando-se a novas se semanticamente a um tipo de
Tô pagando os meus pecados do realidades, principalmente àquelas samba composto por um grupo
meu erro eu reconheço relacionadas ao espaço e ao tempo, seleto de pessoas, de competência
balizamentos para o canto coletivo e indiscutível. O partido-alto teve
para a dança. origem nas rodas de batucada.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Caracteriza-se pela comunhão centro da roda, admirado pelos • sextilha, estrofe de seis versos,
entre os participantes. Embalados demais participantes. Quando um com flexibilidade rímica.
por um refrão, os versos se poeta cria um verso rico, criativo,
sucedem, repetidos por todos, é aplaudido pelo grupo, que O verso monorrímico
acompanhando o mote proposto reconhece o mérito do partideiro. remonta a priscas eras. O poeta
pelo estribilho, sem obedecer Nem sempre a roda de latino Ênio (238-169 a.C.) já
a um rígido esquema métrico, partido-alto é armada dentro da utilizava esse recurso, conforme
respeitando, porém, alguns quadra da escola. Acontece, na demonstrou o acadêmico Celso
padrões rítmicos. Caso os versos maioria das vezes, no entorno Cunha em uma de suas brilhantes
se afastem do tema central ou da sede, de madrugada, após ou aulas na Faculdade de Letras
sejam usados clichês, diz-se que o durante os ensaios. Está presente, da Universidade Federal do Rio
partideiro é fraco, pois a virtude invariavelmente, nas reuniões de de Janeiro:
se concentra na capacidade do sambistas nos quintais sombreados
versador de improvisar e dar dos subúrbios. Haec omnia vidi inflammari
prosseguimento à peleja poético- Geralmente os partidos Priamo vi vitam evitari
musical. Desse modo, a roda tradicionais seguem quatro jogos Iovis aram sanguine turpari!
está viva, mantida por palavras, rímicos, a saber:
meneios e pelo compasso, marcado Também a poesia árabe,
na palma da mão. • versos monorrímicos, que que forte influência exerceu no
O partido, como também repetem a mesma rima; cancioneiro medieval português,
é conhecido o partido-alto, é • versos em duque, estrofe de tem como padrão clássico a rima
cantado/dançado em círculo. quatro versos, dois dísticos, em única, de tal forma que os poemas
Como nas antigas batucadas, rimas emparelhadas; são conhecidos não pelo seu título e
algumas vezes um dos pares é • versos em quadra, estrofe de quatro sim por sua rima.
convidado a entrar e a sambar no versos, com rimas alternadas; Candeia e Euclenes compuseram
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

um partido, cujo refrão obedece a de bamba o mesmo jogo de rimas Não basta o afeto simples e sagrado
uma só rima: usado pelo poeta catarinense: Com que das desventuras
me protejo.
Vai pro lado de lá Na minha casa
Vai pro lado de lá todo mundo é bamba Aniceto do Império,
Vai pro lado de lá, Todo mundo bebe partideiro de quatro costados,
Vai sambar todo mundo samba utiliza versos em rimas alternadas,
Me leva pro lado de lá mas prefere os heptassílabos aos
Na minha casa decassílabos bilaquianos:
Os dísticos são a menor não tem bola pra vizinha
estrofe da versificação portuguesa. Não se fala do alheio Quando falar em partido
Trata-se de quadras, em rimas nem se liga pra Candinha Quando louvar partideiro
emparelhadas, seguindo o esquema Tem que ter João da Baiana
rímico: aa-bb. Método de A quadra, na poesia culta, E o velho Donga trigueiro
construção poética muito a gosto aparece combinando as rimas de
dos simbolistas, como se pode maneira alternada, conforme Otto Enrique Trepte, o
constatar no fragmento de Cruz os cânones do parnasianismo Casquinha da Velha Guarda
e Sousa: brasileiro, que teve entre os mais da Portela, faz o seu protesto,
expressivos representantes Olavo defendendo o compositor de samba,
Filho meu, de nome escrito Bilac, cujo fragmento de um soneto alvo de críticas de preconceituosos
Da minh’alma no infinito se apresenta: jornalistas, em rimas alternadas:
Escrito a estrelas e sangue
No farol da lua langue... Ao coração que sofre, separado Pode dizer que
Do teu, no exílio em que a meu samba é sambinha
Martinho da Vila utiliza em Casa chorar me vejo, Pode me meter o malho
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Enquanto você diz que Qual nunca mais o verei, Acertei no milhar do carneiro
meu samba é sambinha Não tão inteiros sujeitos, Mas o tal bicheiro
Encontra matéria Um ao outro dando a lei: Não quis me pagar
para o seu trabalho No Paço o rei ao vassalo Fui direto na delegacia
Na Igreja o vassalo ao rei! Mas a loteria
A sextilha já é percebida no Não paga milhar
barroco brasileiro, perpassando Casimiro de Abreu usa o
por diversas fases até chegar aos dias esquema aabccb, evidenciando a Pelos exemplos mencionados,
de hoje. Gregório de Matos usava o versatilidade rímica da sextilha: verifica-se que na roda de
esquema aabbcc: partido--alto há um amálgama
Simpatia — são dois galhos da cultura negra e da cultura
O namorado, todo almiscarado Banhados de bons orvalhos europeia. O ritmo e a dança, de
Já de amor obrigado, Nas mangueiras do jardim; claras raízes africanas, se mesclam
Faz à dama um poema Bem longe às vezes nascidos, com formas de versificação
em um bilhete. Mas que se juntam crescidos portuguesa. Surge assim, uma
E que se abraçam por fim. expressão artística de caráter
Covarde o faz, e tímido o remete: brasileiro, com um sabor bem
Se lhe responde branda, A sextilha é uma composição carioca, que se perpetua a cada
alegre o gosta, explorada no partido-alto por encontro, pincelando com poesia
E, se tirana, estima-lhe a resposta. alguns poucos autores, por ser uma e sensualidade as rimas e os passos
forma mais sofisticada. Conforme improvisados, que lembram uma
Gonçalves Dias prefere rimar a estrofe acima, de Casimiro de linha de passes, do futebol, em
somente os versos pares: Abreu, um poeta da Mangueira, que o inábil, o sem-talento, não
Padeirinho, rima seguindo a tem vez. É coisa para “bamba”, é
Mimoso tempo d’outrora fórmula rímica aabccb: coisa de craque.
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Samba de terreiro ao menos um samba de terreiro Maria eu lhe peço por favor
O samba de terreiro é também durante o ano. Volta pra casa meu amor
conhecido como samba de quadra. Avalia-se a qualidade de um Eu vivo sozinho
A sinonímia é estabelecida a partir samba de terreiro, considerando- Eu sinto falta do teu carinho
da transformação dos terreiros de -se a recepção da letra e da [...]
terra batida das escolas em quadras melodia pelo corpo feminino
de cimento ou piso frio. da escola. É um samba para ser Os temas mais recorrentes no
O samba de terreiro tem por cantado em bom tom e, para tal, samba de terreiro são a mulher e a
finalidade primordial possibilitar o a melodia deve ser envolvente escola de samba, quase sempre uma
canto coletivo, principalmente das e comunicativa. Algumas vezes proposta de exaltação. Percebem-
pastoras, e os volteios sinuosos de versos singelos se tornam a base -se, também, nessa modalidade
seus pares, conduzidos pelo diretor para uma rica melodia, o que faz de samba, versos esmerados,
de harmonia. o samba “crescer” - assim dizem impregnados de puro lirismo.
Geralmente, o samba de os sambistas - no terreiro ou Eis alguns sambas de terreiro,
terreiro é cantado nos ensaios na quadra. Foi o que aconteceu representantes das três vertentes
das escolas de samba e, na fase com o samba Maria, de Jorge apontadas:
pré-carnavalesca, é executado nos Meira, também conhecido por
intervalos das muitas vezes que Jorge Porém, grande sucesso nos Doce melodia
se repete o samba-enredo a ser ensaios da Portela no início dos (Bubu)
apresentado no Carnaval vindouro. anos 70 do século passado, tanto
Em algumas escolas, até a no clube Imperial, na estrada do Quando vem rompendo o dia
década de 1980, só era permitido Portela, em Madureira, quanto no Eu me levanto começo logo a
que o compositor participasse da Mourisco, sede do Botafogo, na cantar
competição de escolha do samba- Zona Sul do Rio de Janeiro. Essa doce melodia que me faz
-enredo, caso tivesse lançado lembrar
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Daquelas lindas noites de luar Tens o teu nome gravado em Samba-enredo


Eu tinha um alguém sempre a ouro nos anais Nos primeiros anos de
me esperar Através dos carnavais existência, tendo como matriz os
Desde o dia em que ela foi embora ranchos carnavalescos, as escolas de
Eu guardo esta canção na memória Luz da inspiração samba não apresentavam em seus
(solfejo) (Candeia) desfiles um samba-enredo. Um
refrão era entoado pelas pastoras
Eu tinha a esperança que um dia Sinto-me em delírio luz (nome extraído dos pastoris
Ela voltasse pra minha da inspiração natalinos), e os mestres de canto,
companhia Acordes musicais posicionados à frente e atrás do
Deus deu resignação Invadiram o meu ser contingente formado por dezenas
Ao meu pobre coração Sem querer de pessoas, improvisavam os versos,
Não suporto mais tua ausência Me elevam ao infinito submetidos ao tema do estribilho.
Já pedi a Deus paciência da paz Já na década de 1930, quando
(solfejo) Sinto-me no vazio a flutuar a própria noção de “enredo” era
Eu já não sei quem sou incipiente, há exemplos esporádicos
Portela querida A mente se une à alma de composições de caráter quase
(Trio ABC) A calma reflete o amor narrativo, em que o autor aceita o
desafio de discorrer com a possível
Minha Portela querida Nos braços da inspiração objetividade sobre um tema exterior
És razão da minha própria vida A vida transformei à sua inspiração.
Se algum dia eu me separar de ti De escravo pra rei Eis uma diferença marcante
Muito vou sentir E o samba que criei do samba-enredo em relação às
Portela tudo em ti é glória Tão divino ficou outras modalidades aqui descritas.
Na derrota ou mesmo na vitória Agora sei quem sou Enquanto no samba de terreiro e
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

no samba de partido-alto o sambista Talvez nunca pensaram À glória elevar


canta o que lhe ocorre ou o que lhe De ouvir os seus nomes Evocaram esses vultos
apraz, obedecendo tão somente à Num samba algum dia Prestando tributo
sua inspiração, no samba-enredo, Sorrindo a cantar
feito sob encomenda, a criatividade E se estes versos rudes
está subordinada a um tema Que nascem e que morrem Observa-se que o samba não
predeterminado. No cimo do outeiro canta descritivamente o enredo
Nos primeiros tempos os Pudessem ser cantados da escola: os “grandes” poetas
próprios compositores ou pessoas Ou mesmo falados imortais são mero pretexto para
de seu convívio escolhiam o tema Pelo mundo inteiro que os “pequenos poetas” do “cimo
da composição, cujo modo de Mesmo assim como são do outeiro” manifestem o “desejo
abordagem era coerente com essa Sem perfeição incontido” de elevar o samba à
escolha. Bom exemplo é o samba Sem riquezas mil glória. E é pertinente observar o
Homenagem, que o compositor Essas mais ricas rimas esmero da linguagem, a escolha
Carlos Moreira de Castro, o São provas de estima de palavras e expressões pouco
Carlos Cachaça, fez para a Estação De um povo varonil usuais no cotidiano de pessoas
Primeira de Mangueira em 1933: iletradas, como se, para abordar
E os pequenos poetas temas eruditos, fosse indispensável
Recordar Castro Alves Que vivem cantando certo rebuscamento que se tornaria
Olavo Bilac e Gonçalves Dias Na verde colina durante muitas décadas a marca
E outros imortais Cenário encantador registrada do gênero.
Que glorificaram nossa poesia Desse panorama Foi somente na década de 1940
Quando eles escreveram Que tanto fascina que se generalizou a prática de as
Matizando amores Num desejo incontido escolas de samba apresentarem
Poemas cantaram Do samba querido samba e enredo coerentes. Era
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

ainda, em geral, um samba objetivo, antes vestidos à vontade, começam completos, e caracteriza-se por sua
curto e singelo, resquício do tempo a se apresentar caprichosamente extensão, razão por que se tornaria
dos sambas de uma só parte, a fantasiados ou envergando impecáveis conhecido como lençol. Um clássico
serviço de um enredo simples e ternos brancos e sapatos de duas do gênero é O grande presidente, samba
linear. Bom exemplo disso é a cores, o samba-enredo também que o compositor Padeirinho
Exaltação a Tiradentes, apresentada acompanha a tendência e começa a fez para a Estação Primeira de
pelo Império Serrano em 1949, de cobrir-se de enfeites. Mangueira no Carnaval de 1956:
autoria de Mano Décio da Viola, Tal mudança não se deu
Penteado e Estanislau Silva: por acaso. A estratégia popular No ano de 1883
de resistência à exclusão e à No dia 19 de abril
Joaquim José da Silva Xavier perseguição leva os primeiros Nascia Getúlio Dorneles Vargas
Morreu a 21 de abril sambistas a tentar acabar com Que mais tarde seria
Pela Independência do Brasil as diferenças entre eles e seus O governo do nosso Brasil
Foi traído e não traiu jamais possíveis espectadores de outras Ele foi eleito deputado
A Inconfidência de Minas Gerais classes sociais. Adotaram uma Para defender as causas do
linguagem mais rebuscada ao nosso país
Joaquim José da Silva Xavier discorrer sobre temas quase sempre E na revolução de 30
Era o nome de Tiradentes alheios ao seu cotidiano, levando ele aqui chegava
Foi sacrificado pela nossa liberdade ao extremo a tendência já observada Como substituto de
Este grande herói pelo intuitivo Carlos Cachaça na Washington Luís
Pra sempre há de ser lembrado década de 1930. É assim que nos E do ano de 1930 pra cá
anos 50 populariza-se um tipo de Foi ele o presidente mais popular
Mas à medida que o desfile das samba--enredo que desenvolve Sempre em contato com o povo
escolas de samba vai se tornando mais um tema histórico de maneira Construiu um Brasil novo
sofisticado, à medida que os sambistas, detalhada, com datas e nomes Trabalhando sem cessar
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Como prova, Até então houvera identidade de o espaço do samba de terreiro;


em Volta Redonda, discurso: enredo e samba-enredo, não só nas quadras, mas até nas
a cidade do aço, se não eram feitos pela mesma rodas de samba mais tradicionais,
Existe a grande Siderúrgica pessoa, emanavam de membros na posição de único gênero
Nacional da comunidade, com o mesmo sobrevivente como música de
Tendo o seu nome elevado grau de instrução e experiência Carnaval, acusado de haver
Em grande espaço de vida idêntica. A partir deste matado, por exemplo, a marchinha
Na sua evolução industrial momento, o carnavalesco impõe ao carnavalesca, tão popular nos
Candeias, a cidade petroleira, compositor seu discurso. E este terá bailes de salão e nas ruas.
Trabalha para o progresso fabril de fazer prodígios de criatividade Hoje o samba-enredo ocupa
Orgulho da indústria brasileira para apropriar-se adequadamente todos os espaços da música
Na história do progresso do desse discurso, tornando-o eficaz carnavalesca e do samba de meio de
Brasil ao desfile e à comunicação com o ano. E por mais que se critique essa
Salve o estadista público. A trajetória do samba- padronização, é fato que foi por sua
Idealista e realizador enredo desde então até nossos dias qualidade que o samba-enredo se
Getúlio Vargas aponta a vitória da criatividade e da impôs à indústria fonográfica e aos
O grande presidente de valor poesia sobre todas as limitações que meios de comunicação.
se impuseram à criatividade Na fase dos gloriosos lençóis,
A década de 1960 introduz dos compositores. consolidou-se o caráter épico da
uma importante transformação, a E se pode falar em vitoria, composição. Pode-se observar
aparição da figura do carnavalesco porque se verifica facilmente a em vários sambas-enredo desse
profissional, em geral um artista hegemonia do samba-enredo período a presença de proposição
plástico de formação universitária, não apenas como a modalidade e invocação, bem nos moldes da
responsável pela escolha e mais cantada e divulgada hoje epopeia clássica: o poeta anuncia
desenvolvimento do enredo. em dia, mas também a que ocupa o que vai cantar e pede inspiração
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

para a tarefa. Nos primeiros Viola vadia de vida boa semântico do luxo, da riqueza,
versos, por exemplo, do antológico A Beija-Flor cantando voa da alegria, da festa, como se com
samba Os cinco bailes da história do Rio, Na literatura de cordel isso fosse possível “virar a tristeza
que o Império Serrano cantou em (exemplo de proposição no início) pelo avesso”, para utilizar a feliz
1965, temos: expressão de Bala e Celso Trindade,
Amor, amor, amor autores de Traços e troças, samba-
Carnaval, doce ilusão, A mulher em festival -enredo do Salgueiro em 1983.
Dê-me um pouco de magia Traz a Portela Assim, ao encher de luz, brilho
De perfume e fantasia (exemplo de proposição no início) e colorido o seu discurso, seja
E também de sedução pela adjetivação abundante, seja
Quero sentir nas asas do infinito Olha o saci-pererê pela organização do vocabulário
Minha imaginação Cobra-grande e caipora em torno fundamentalmente da
Eu e meu amigo Orfeu Deslumbrando todo mundo ideia de esplendor; ao querer
Sedentos de orgia e desvario Mocidade mostra agora. para a sua festa lua cheia, céu
Cantaremos em sonho (exemplo de proposição no final) estrelado, avenida colorida,
noite de esplendor e magia, o
Os cinco bailes da história do Rio. Tais características, próprias compositor estaria, de certa forma,
Proposição e invocação se do gênero épico, ao qual o samba- se compensando de um cotidiano
conservam ao longo de décadas, -enredo classicamente se filia, ao qual falta quase tudo. E desse
não mais em formulação tão clássica convivem com outras já apontadas cotidiano se permitirá sempre
como a observada acima, mas ainda por muitos estudiosos, como, por falar nas entrelinhas dos versos
perfeitamente detectável, às vezes exemplo, a adjetivação abundante, enfeitados que cria ou mescla
até encerrando a composição, o recurso ao lugar-comum ou sonho e realidade, como é o caso
ao invés de iniciá-la. Vejamos chavão e principalmente a escolha de David Correia e J. Rodrigues,
exemplos disso: marcante de palavras do campo no seu Incrível, fantástico, extraordinário
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(Portela, 1979). Se no meio do Joguem fora a roupa do dia a dia Este último verso é a confissão
samba afirma: E tomem banho de que não se pode responder pela
no chuveiro da ilusão alegria nos demais dias do ano:
O povo vai viver doce ilusão mais um testemunho de que, aqui
Se extasiando no jardim Ou em, Teu cabelo não nega, e ali, de modo nem sempre direto
da sedução (só dá Lalá), de autoria de Gibi, e discursivo, é de sua vida, de seu
Serjão e Zé Catimba (Imperatriz contexto, de suas mágoas e sonhos
No refrão final não se esquece Leopoldinense, 1981): que ele procura falar todo o tempo,
de alertar: nas brechas que a objetividade
Eu vou me embora desafiadora dos enredos modernos
Segura, baiana, Vou no trem da alegria lhe deixa. A crítica velada vem às
Ioiô e iaiá, Ser feliz um dia vezes singelamente inserida no
Na quarta-feira E mais adiante: enredo, caso de Mais vale um jegue que
Tudo vai se acabar me carregue que um camelo que me derrube...
Quem dera lá no Ceará, de Eduardo Medrado,
Ou no samba-enredo O paraíso da Que a vida fosse assim Waltinho Honorato, João Estevam
loucura, de Mara, Luciano e Walter e César Som Livre (Imperatriz
de Oliveira, que a Beija-Flor Ou ainda no famoso Bum bum Leopoldinense, 1995). Ao discorrer
cantou em 1979: paticumbum prugurundum, com que o sobre um complexo enredo
Império Serrano se sagrou campeão patrocinado, os compositores
Esqueçam os problemas da vida em 1982, de autoria de Beto Sem lançam muito a propósito do que
O trem, o dinheiro Braço e Aloísio Machado: o enredo narrava — mas também
e a bronca do patrão como veemente protesto ao que
Não pensem em suas marmitas É carnaval, é folia acontecia à sua própria experiência
E no alto preço do feijão Neste dia ninguém chora. de criadores:
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Mais vale a simplicidade à imposta limitação de tempo de Disputa-se a possibilidade de ganhar


A buscar mil novidades desfile contribuiu para que os muito dinheiro, tendo o samba
E criar complicação sambas acelerassem seu andamento. gravado e executado amplamente.
Mais ou menos na mesma Em contrapartida, nas
A perdida simplicidade era o que ocasião, os desfiles passaram a ser pequenas escolas, sem gravação nem
no final da década de 1960 levou cronometrados e, desse modo, as repercussão na mídia, continuam
Martinho da Vila a introduzir uma letras foram se reduzindo, a fim de a surgir entre 15 e 20 composições
nova estrutura nos sambas-enredo atender às exigências de tempo, no que disputam, como outrora
da Unidos de Vila Isabel, o que estúdio e na Avenida. Modismos acontecia nas grandes escolas,
traria mais agilidade aos desfiles. apareceram e se foram. O samba- apenas a glória de ser cantada no
Os sambas se tornaram mais curtos -enredo permanece, apesar das desfile; sem gravação, sem lucro
e um estribilho bem comunicativo críticas de pessimistas e saudosistas. e sem mídia. O samba-enredo é
proporcionava uma maior interação Essa gravação já chegou a garantir considerado uma forma de expressão
entre desfilantes e espectadores. aos compositores ganhos bastante de uma camada da população pouco
Em 1968, viria a público o elevados no momento de maior ouvida, que conseguiu, através dele,
primeiro disco long-play com sambas- expressão da indústria fonográfica, fazer chegar sua voz ao conjunto
-enredo, produzido por Norival sendo um dos best sellers anuais das da sociedade. Atentar para ele,
Reis, Expedito Alves e Nilton Silva, gravadoras. Já foi responsabilizada como manifestação cultural, mais
sob a chancela do selo Relevo, pela ganância de alguns em concorrer do que como índice da indústria
intitulado Festival dos sambas. Afinal de tornando as parcerias maiores, fonográfica pode levar a conclusões
contas, era a época dos festivais. verdadeiras sociedades comerciais, e interessantes e surpreendentes.
O fato de as escolas, a partir os investimentos mais pesados para os
de 1970, terem o compromisso concorrentes. Nas principais escolas
de apresentar o samba-enredo de samba, o número de composições
para a gravação do disco, aliada inscritas chega a quase cem por ano.
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Sambistas.
Acervo Centro
Cultural Cartola
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a dança

A dança do samba no Rio de O pesquisador e jornalista José ou fracionados e formações


Janeiro conjuga e atualiza heranças Carlos Rego, no trabalho de maior coreográficas tomadas” “do
afro-brasileiras nas rodas de fôlego já realizado nessa área, o candomblé da Bahia; do caxambu
partido-alto e samba de terreiro ou livro Dança do samba, exercício do prazer, fluminense; dos xangôs de
nos ensaios e desfiles das escolas de registrou 172 passos diferentes de Pernambuco, Alagoas e Paraíba;
samba no Carnaval. samba. Mas ele próprio frisa: das congadas de Minas Gerais;
Pode-se dizer que o samba é a da jardineira e candombes do
Um sapateado em quatro tempos, Rio Grande do Sul; do jongo
expressão maior da liberdade do nem sempre o exercício da dança do
corpo do sambista. É a resposta do Espírito Santo e Minas; do
samba obedece a regras. Realizada só, bailado guerreiro moçambicano
livre de sua alma à “provocação” em dupla, trio ou grandes grupos, suas de Goiás; do batuque e samba
do ritmo e à energia vibrante dos fugas, contrafugas, meneios, síncopes, caipira paulista; ou do tambor
instrumentos de percussão. Ainda contratempos múltiplos ou alternados, são de mina do Maranhão”, além
que estudos coreológicos possam determinados pela emoção interior de cada “do lundu e do maxixe cariocas”
traçar e registrar seus passos mais um. Basta ver um grupo de 5 ou 6 passistas — mapeando a intensa troca
característicos, a liberdade de sob a mesma ambientação, iguais fontes de cultural que as migrações
criação é o dado que fundamenta música e ritmo, para verificar-se que promoveram no país.
o ato de sambar. O movimento cada um dará ao corpo uma solução O samba no Rio é, portanto,
de pés, tornozelos, joelhos, coxas, coreográfica própria. o retrato vivo de um mosaico
cintura, braços, mãos, pescoço — Sobre origens e influências, de influências de danças afro-
enfim, do corpo como um todo em que pesem as adaptações, -brasileiras, com raízes étnicas
—, na cadência do samba, é sempre reelaborações e criações e regionais diversas, mas um
um momento único. Ao dançar, o ocorridas no Rio de Janeiro, substrato comum. Segundo o
sambista não se repete, ele se recria Rego identifica na dança do pesquisador Haroldo Costa em,
em cada gingado. samba “desenhos inteiros As escolas de Lan (2002):
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A música e a dança dos negros sempre Nas rodas de samba improvisadas, uma umbigada — o dançarino requebra e
foram sociais, comunitárias, e assim com ritmo marcado por palmas e alguns saracoteia sozinho, enquanto os demais se
prosseguem. Jamais são usadas para instrumentos, é que se pode apreciar a incumbem do canto (uma frase de coro, uma
deleite pessoal, se nisto não houver um desenvoltura de uma passista criando sua frase de solo) e da música (prato e faca,
aproveitamento coletivo. Quando se diz coreografia luminosa, que vem do ar e chocalho, pandeiro). Os passos do samba
que nós, negros, fazemos de tudo um motivo desliza pelas pernas até os pés. O equilíbrio perderam o nome na Guanabara, em vez de
de canto e dança, apela-se menos a um é desafiado nos contratempos, a elegância é uma única pessoa dançar, habitualmente
estereótipo do que para uma constatação confirmada nos breques, a malemolência é dançam, em separado, um homem e uma
sociológica, porque nossos ancestrais na África solta na síncope. mulher, que passam a vez a pessoas do mesmo
assim faziam: na colheita do inhame, na sexo; o convite à dança já não é exatamente
chegada da chuva, nos ritos de puberdade e Edison Carneiro, em Folguedos a umbigada, mas o dançarino continua
nos funerais. [...] tradicionais (1982), apontou uma a executar uma verdadeira reverência,
ligação matricial do samba dançado sambando, “dizendo no pé”, diante da pessoa
Uma das fortes características das danças no Rio com o samba de roda escolhida, até tocar perna com perna...
de procedência africana é o trabalho que os pés baiano, no qual ressalta, como
desenvolvem continuamente, sendo utilizados traço característico, a umbigada — A umbigada não é um traço
até mesmo como instrumento de percussão. Do nome dado ao movimento de dois exclusivo do samba de roda baiano,
tambor de crioula do Maranhão, chega-se a corpos que se aproximam num aparecendo em manifestações
dizer que “é afinado a fogo, tocado a murro salto, a ponto de as barrigas quase como o jongo, o coco e o lundu. A
e dançado a coice e chão”. Descendente em se tocarem: herança de movimentos da capoeira
linha direta do lundu e dos batuques africanos, também é lembrada por sambistas
o samba dançado não poderia fugir à regra. O samba de roda conhecido na Bahia tradicionais no Rio de Janeiro. Em
Sua linguagem está nos pés, desenhando no contribuiu com o passo distintivo do samba. depoimento a Ricardo Cravo Albin,
chão a rica sintaxe de uma gramática que nem Espécie de baile ao ar livre, de que todo no livro As vozes desassombradas do Museu
a todos é dado aprender. mundo pode participar, se convidado por (MIS, 1970), João da Baiana afirma:
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O samba-duro já era batucada. A abriga em seu repertório gestual e passos de Paula do Salgueiro, uma
batucada era capoeiragem. Nós tirávamos os coreográfico traços inspirados nas das mais conhecidas passistas das
cantos. Um saía para tirar o outro. Se fosse danças dos orixás. grandes escolas de samba nos anos
a “liso”, era só umbigada, mas, se fosse para Segundo Rego, “mensageiro 60 e 70; comparou o opanijé,
pegar “duro”, já era capoeiragem. por excelência, Exu apresenta-se coreografia de Omulu/Olabuaê
numa dança serpenteada, as mãos (três passos para um lado, com
Cartola diz o seguinte em ora levantadas para o Orun (céu), os braços erguidos, seguidos
entrevista publicada no livro Cartola, ora para o Ayê (terra), os quais por três passos para o outro
tempos idos, de Marília Barboza e ele interliga. A comissão de frente lado, de novo com os braços
Arthur de Oliveira Filho (1998): nas escolas, em especial a partir erguidos, terminando com a ida
dos anos 60, executa inúmeros de à frente) com o movimento das
Samba-duro e batucada é a mesma seus passos”. alas num desfile; e afirmou que
coisa. A gente fazia isso a qualquer hora, em Rego observou ainda como a “coreografia de Oxaguian dá a
qualquer dia. Juntava umas 20 pessoas — a coreografia em forma de postura às baianas, excetuando-se
homens e mulheres — e a gente começava a “cobrinha”, usada por alas “para a rodada do corpo, propriedade
cantar [...] Aí um — o que versava — ficava avançar, sinuosamente, na pista”, do samba”, entre outros exemplos
no meio da roda e tirava um outro qualquer. lembra o aguerê de Oxumaré, da ligação entre a dança do samba
Aí dançando e gingando, mandava a perna. O uma dança serpenteada, em forma e os ritos do candomblé.
outro que se virasse para não cair. de S; apontou a semelhança do Mas não apenas a raiz africana
jicá e do treme-treme (passos que desenhou os passos do samba no
Resultado de fusões e sínteses, ele descreve), dada a feminilidade Rio. Em especial nessa criação
a dança do samba no Rio, com que os caracteriza, com a carioca que é o desfile da escola
sua forte raiz africana, plantada coreografia de Oxum; identificou de samba, essa dança também
nos terreiros das tias baianas na “a graça do jogo cênico dos recebeu contribuições de tradições
Pedra do Sal e na Praça Onze, braços” da dança de Iansã nos europeias. Diz Carneiro:
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[...] A ginga de marcha da escola gingado da passista, o requebrado atributos da dança do samba,
condensa não apenas os meneios do samba de da cabrocha, mas a corte de uma palavras a ela relacionadas
roda, mas também de outros desfiles populares, dança de salão, de um minueto, pelos próprios sambistas, em
reis do Congo, ranchos de Reis e do Carnaval. com suas mesuras e meneios. Por depoimentos ou nas letras de
isso se diz que o mestre-sala corteja suas composições.
Os ranchos de Reis, que desde cedo a porta-bandeira. No samba de partido-
perderam a sua inspiração religiosa na Essa riqueza coreográfica, -alto, apesar de o foco estar na
Guanabara, tornando-se profanos e mistura de influências diversas, improvisação dos versos, a dança é
carnavalescos, são os responsáveis pela pulsa hoje em quadras, quintais, parte essencial da cena, começando
configuração da escola em marcha. As clubes, botecos e ruas no Rio. pelo fato de os participantes da
escolas carregavam, outrora, nos desfiles Onde se canta o samba, se dança o roda acompanharem o ritmo
de Carnaval, figuras de animais, agora samba. Essa dança passou e passa batendo palmas ou os pés no chão.
substituídas por alegorias. O baliza, sempre por modificações, principalmente A dança se dá em torno e para
a cortejar a porta-bandeira em mesuras sob pressão da indústria do dentro da roda, espaço-matriz
de extrema delicadeza, gesticulando com o espetáculo, mas suas matrizes se do samba. O requebrar; o girar
lenço, o leque ou a espada, mudou apenas de mantêm vivas e fortes, seja nas em torno de si próprio e o rodar
nome [...] rodas de samba das feijoadas das da saia, no caso das mulheres; o
escolas de samba, nas suas quadras ligeiro curvar das costas enquanto
Na escola, o casal de mestre-sala nos subúrbios, seja nas casas de as palmas esquentam o desafio; as
e porta-bandeira, nos primeiros shows da Lapa que abrem suas mãos na cintura, com os braços em
anos do século passado, conhecida portas para o chamado samba de arco; o passo miúdo, miudinho,
como porta-estandarte, é o centro raiz, reunindo jovens da Zona Sul e movimento ligeiro dos pés num ir e
dessa influência europeia, com velhos partideiros. vir, deslizando, quase hipnótico; o
sua dança que, embora executada Equilíbrio, ritmo, agilidade, leve tocar de pernas de um sambista
ao som do samba, não busca o malícia e graça são alguns dos em outro, como num convite
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para participar, tudo isso compõe identificar cinco grupos com da saudação e da apresentação se
o quadro; são fundamentos que desenhos coreográficos e gestual mantém no regulamento, mas
caracterizam essas rodas. Como já próprios: a comissão de frente, as esses gestos tradicionais e que
observado anteriormente, parte alas, os passistas, as baianas e o casal fundamentam a existência da
desse gestual e movimentos também de mestre-sala e porta-bandeira. comissão estão agora misturados a
está presente em manifestações A comissão de frente, que a passos que resumem ou explicam
aparentadas do samba, como o escola de samba herdou dos antigos o enredo, o tema da escola. Nos
jongo e o batuque. ranchos, era tradicionalmente últimos anos, tripés e pequenos
Como o samba-enredo é uma constituída pelas Velhas Guardas carros alegóricos passaram a ser
variante do gênero criado para ou integrantes mais antigos e usados por esses bailarinos em
a exibição da escola de samba na representativos da agremiação. algumas comissões.
avenida, as danças relacionadas Formada em linha, vestida com As alas são o “corpo” da escola
diretamente a ele se dão em elegância, saudava o público (com o na Avenida, aquilo que chamam
cortejo, isto é, com os sambistas chapéu, por exemplo) e apresentava de “chão” da escola. O “chão” é
evoluindo de um ponto (a a escola (a mão direita sobre o peito, forte quando ele canta e samba com
concentração, início do desfile) depois estendida em direção à escola garra e emoção. Cada ala tem um
a outro (a área de dispersão, no como um sinal típico de respeito). figurino próprio, representando
final). Mas não é só na avenida e Ela sofreu forte modificação um aspecto do enredo. A dança
em cortejo que o samba-enredo é a partir dos anos 70, processo do componente é livre, alegre,
dançado. Nos ensaios nas quadras intensificado nas décadas de empolgante, mas deve respeitar as
ou em reuniões de sambistas, 1990/2000, quando passou a regras de evolução. Por exemplo, os
em torno de uma simples mesa ser composta por bailarinos ou integrantes de uma ala não devem
ou numa roda, o samba-enredo integrantes mais jovens das escolas se misturar aos de outra; uma ala
também anima e faz dançar. coreografados por bailarinos não pode retornar na pista, só pode
No desfile das escolas, podemos profissionais. A obrigatoriedade ir para frente; os componentes
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de uma ala não podem “abrir da bateria e do carro de som, representar um aspecto do enredo,
buracos”, devendo manter a coesão. um ponto privilegiado para que perdendo assim os elementos
Nos últimos anos, as escolas cada passista vibre e demonstre o típicos. A dança é caracterizada pelo
têm apresentado mais e mais alas domínio de sua arte. A expressão giro, para os dois lados, que provoca
coreografadas (também chamadas “samba no pé” não é um clichê belo efeito visual quando toda a ala
teatralizadas ou de passo marcado). vazio de significados, mas uma o faz ao mesmo tempo, em geral
Não é uma novidade nas agremiações verdade primeira da dança do nos refrãos. A ala das baianas era
— já nos anos 60 a coreografia samba. O compositor Ernesto dos composta pelas mulheres mais velhas
foi objeto de polêmica quando o Santos, o Donga, em entrevista da comunidade, mas nos últimos
Salgueiro representou um minueto ao jornalista e professor Muniz anos foi aberta à participação das
em plena Avenida, no enredo Sodré, em Samba, o dono do corpo, mais jovens.
sobre Chica da Silva. Os críticos lembrando de sua infância, O mestre-sala e a porta-
argumentaram que a coreografia tira afirma: [...] Dançava um de cada vez, -bandeira apresentam e defendem
a espontaneidade dos componentes com entusiasmo, fazendo samba nos pés. o pavilhão da escola, bailando num
e “esfriam” o desfile. Em 2004, a Os passistas, nas escolas, provam a cortejar, mais do que sambando,
apresentação de um carro alegórico cada desfile esse fundamento. como já se observou. É como o
intitulado DNA, totalmente Consideradas entre as mais voleio de um beija-flor em torno da rosa.
coreografado pela Unidos da Tijuca, tradicionais alas das escolas, Ele se aproxima, toca e sai. Volta a se
ampliou a discussão. as baianas representam as tias aproximar, beija e sai. Nunca as ações
A ala de passistas reúne, no quituteiras dos primeiros anos serão idênticas. E a rosa, ao contrário do
desfile, os mestres — jovens e do samba, com suas roupas que se pensa, ao sabor do vento das asas do
mais velhos — desse ofício que é o características: saia ampla e pássaro, não permanece passiva. Ela dança,
samba no pé. Essa ala não existia rodada, pano da costa, colares e disse a porta-bandeira Vilma do
nos primeiros anos das escolas. balangandãs. Atualmente, suas Nascimento, em entrevista a José
Atualmente, costuma vir atrás fantasias podem ser adaptadas para Carlos Rego.
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a cena

Em virtude da diversidade bastante remoto, em paralelismo samba ser samba, é anterior a ele.
de manifestações e de cenários com traços específicos do Rio de Como característica mais evidente,
no samba do Rio de Janeiro, Janeiro e da contemporaneidade. ele diz, está o clima doméstico,
não é possível falar de uma cena A roda, as manifestações familiar.
única, um contexto só, isolado, de religiosidade, a comida, os Segundo Moura, esse espírito
em que as formas de expressão instrumentos, as bandeiras e as familiar, que fez e faz a roda girar
relatadas neste dossiê aconteçam. cores, as baianas, as velhas guardas, o samba, vem de dentro de casa.
Assim, é necessária a descrição os terreiros (atualmente quadras) e Ele retorna às moradias festivas das
de elementos que constituem as as formas de transmissão do saber tias baianas na Praça Onze para
diversas cenas do samba carioca, no samba do Rio de Janeiro são explicar como a casa “propicia a
como se originaram e como se elementos e personagens comuns às formação da roda”, dando então
apresentam atualmente. três formas de expressão. vida ao samba. E destaca o “papel
No caso do samba-enredo, a desempenhado pela roda como
descrição é bastante complexa, A roda elemento fundamental na geração,
incluindo elementos presentes Em No princípio, era a roda: um preservação e divulgação do gênero
nos ensaios nas quadras e nos estudo sobre samba, partido-alto e outros musical que mais identifica o
desfiles das escolas de samba, pagodes (2004), o pesquisador nosso país entre todos os que são
onde esse gênero ganha a sua e jornalista Roberto Moura originários do Brasil”.
principal razão de ser. Já nos traçou as diferenças entre samba A roda, portanto, é um ritual
sambas de terreiro e de partido- (gênero), escola de samba (sua que “preserva e atualiza o que está
alto as cenas são bem mais institucionalização) e roda de em sua origem”.
despojadas e diversas. samba (a ambiência que permitiu A alma doméstica,
É importante observar a o nascimento do gênero). A roda, comunitária, da roda foi
permanência de traços marcantes segundo Moura, é o início de tudo incorporada naturalmente aos
da cultura negra e de um passado - estava presente antes mesmo de o terreiros das escolas de samba,
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

fundadas a partir do final da A roda era o seguinte: cada um tem dos sambistas cariocas, mas
década de 1920. Mas o apelo que ter uma música, estar fazendo um deslocada de lugares tradicionais
comercial, a modernização e o samba no partido. Chegava lá, começava a de manifestação. Rodas de
crescimento das escolas, como cantar. Chamava dois ou três e tocava um samba tradicional ou “de raiz”,
verificado a partir dos anos 70, pagodezinho, aí batia pra gente e a gente como os próprios sambistas se
alteraram esse clima familiar das começava... junto com ele. Aí quando ele referem a ele, acontecem, por
quadras, pelo menos nas grandes já ‘tava bem batido, é, bem batido, a gente exemplo, em bares e centros
agremiações. Este é um dos levava pro instrumento. Aí já começava a culturais na Lapa, no Centro,
motivos apontados por sambistas bater no instrumento... atraindo jovens de todas as classes
para a redução do espaço para as (Xangô da Mangueira) sociais, que querem ver, ouvir e
rodas de samba tradicionais nas prestigiar mestres como Xangô
quadras. Moura, em sua análise, O partido-alto, eu acompanho desde da Mangueira e Tantinho.Mas,
vê dois caminhos se desenhando: garoto [...] É através dos sambas no Morro nas quadras das escolas, já é mais
um, o da escola, “mais pragmático de Mangueira, nas tendinhas, na própria difícil ouvir o partido-alto e o
e mercantil”; outro, o da roda, quadra, onde a gente sempre batia uma roda samba de terreiro:
“mais utópico e criador”. antes de começar o samba, aquelas coisas, e
Ancestral, a roda aparece em rolava o partido-alto. E a minha relação com Na Mangueira não tem mais. Não
diversas expressões do samba por o partido-alto é desde muito garoto, que eu... tem nem samba de terreiro, quanto mais
todo o país, como no samba de No morro se cantava muito partido-alto, partido--alto. Então, na Mangueira não
roda do Recôncavo Baiano. No Rio nas tendinhas, nas biroscas e eu andando pelo tem mais porque a Mangueira não está
de Janeiro, a roda foi elemento morro, sempre ‘tive presente. preocupada em formar garotos partideiros,
fundamental na criação e difusão (Tantinho) garotos compositores que façam samba de
do novo gênero, e o seu valor está terreiro. Eu já me ofereci pra fazermos
vivo na história e no cotidiano dos Sinal de sua força cultural, uma oficina.
sambistas tradicionais. a roda permanece na cena (Tantinho)
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Imagem em altar de quadra


de escola de samba.
Acervo Centro
Cultural Cartola

Fica claro que a roda é o que toca no rádio, samba-enredo dos anos
principal meio de transmissão do anteriores [...] As pessoas me mostram as
saber-fazer no samba tradicional, letras, mas vai cantar onde? Só em roda de
e que a diminuição do número de samba! O Moacyr Luz está dando oportunidade
espaços comunitários para a sua para a garotada. Tem muito compositor
manifestação é visto pelos sambistas fazendo muita coisa bonita. Minha harmonia é
como algo preocupante. diferente, tem uma juventude que onde eu vou,
eles vão atrás.
Aprendi vivendo mesmo aqui em (Wilson Moreira)
Mangueira, como eu disse, assistindo os outros
cantar e depois comecei já cedo a praticar A roda, assim, renova e resiste
também... Já interferia nas rodas, mas que eles como elemento da cena do samba
não deixavam a gente mais novo cantar. Os carioca, um de seus fundamentos.
mais velhos não gostavam que os mais novos
cantassem, mas eu arrumei uma maneira de A religiosidade
desenvolver isso: me colei no Xangô. Colei Samba e religião foram durante
no Xangô e no Zagaia [...] É raro hoje você muito tempo — e são até hoje —
encontrar roda de partido-alto, mas quando elementos indissociáveis. E embora
tem, eu brinco, dou meu recado. os sambistas, afeitos ao caráter
(Tantinho) criptográfico de sua cultura, que
durante anos precisou se disfarçar
Tem muito samba de terreiro por aí, e para sobreviver, às vezes o neguem, o
muita gente cantando. Mas nas escolas de fato é que não faltam elementos para
samba sumiram. As escolas acham que não comprovar que festa e fé andaram
é negócio. Preferem samba de comunicação, quase sempre de mãos dadas.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Sobre isso, Marília Barboza da de rua do terreiro de seu Júlio, dizia: com as coisas do culto. Na sala o baile, onde
Silva e Arthur de Oliveira Filho “Naquela época samba e macumba era se tocava os sambas de partido entre os mais
(1998), afirmam: tudo a mesma coisa”. velhos, e mesmo música instrumental quando
apareciam os músicos profissionais negros,
No fim dos anos 20, novamente a Tal ligação remonta, portanto, muitos da primeira geração dos filhos dos
palavra samba teve a sua significação ao período do nascimento do baianos, que frequentavam a casa. No terreiro
alterada, outra vez em virtude de gênero, em que samba e religião o samba raiado e às vezes as rodas de batuque
ser empregada por uma classe social dividiam o espaço físico e a atenção entre os mais moços.
diferente. Agora eram os descendentes de de seus cultores. Disso é prova a
escravos, reunidos nas chamadas escolas descrição feita, por Roberto Moura Seja por identidade seja por
de samba, para os quais a palavra ainda (1983), da casa da Tia Ciata: conveniência ou estratégia de
continuava designando a dança de roda de sobrevivência, as esferas do samba
umbigada, de ritmo muito semelhante ao A casa que alugava era bastante grande, e da religião se misturavam desde
das cerimônias religiosas das macumbas. se fosse um pouquinho maior o senhorio fazia antes de o samba carioca ser
Samba para eles constituía um ritmo, uma logo albergue, ou até uma cabeça de porco chamado por tal nome e antes de
coreografia, um gênero, enfim, muito para arranjar mais dinheiro. Uma sala de existirem as escolas de samba.
próximo ao dos pontos de invocação dos visitas ampla, onde nos dias de festa ficava o Não é descabido lembrar que
orixás afro-brasileiros. Os sambistas baile. A casa se encompridava para o fundo, na passagem do século XIX para
primeiros, na esmagadora maioria, eram um corredor escuro onde se enfileiravam três o XX as agremiações carnavalescas
também pais ou mães de santo famosos e quartos grandes com uma pequena área por consideravam a Folia de Reis, festa
temidos: Elói Antero Dias, José Espinguela, onde entrava luz através de uma claraboia; do calendário da religião católica e de
Alfredo Costa, Tia Fé, seu Júlio, Juvenal no fundo uma sala de refeições, a cozinha forte apelo popular e folclórico, uma
Lopes, dona Ester de Oswaldo Cruz. Os grande onde se trabalhava, e a despensa. Atrás data importante a ser comemorada.
terreiros de samba eram também terreiros um quintal com um centro de terra batida Tal prática é mencionada pelo
de macumba. Cartola, que foi cambono para se dançar e um barracão de madeira jornalista Sérgio Cabral (1996):
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

A Mangueira era um canteiro de quanto àquela que seria a principal até o culto aos orixás. Foi lá que nasceu
manifestações de cultura popular. Com uma do grupo. Após o surgimento a Portela, da energia de Seu Napoleão
população formada, principalmente, por pessoas das escolas de samba, firmou-se Nascimento, que era o pai do Natal. No
vindas do interior dos estados do Rio de Janeiro e a tradição de que cada uma das Estácio, foi da energia de Tancredo da
de Minas Gerais, a cantoria e a dança do jongo consideradas “grandes” (a saber, Silva, grande pai de santo de omolokô. Na
faziam parte da rotina de seus moradores. Entre Mangueira, Portela, Império Mangueira, Dona Maria da Fé, estimulada
o Natal e o Dia de Reis, conjuntos de pastorinhas Serrano e Salgueiro) liderava a por Elói Antero Dias para que criassem
percorriam o morro. festa num dos domingos do mês uma escola de samba. Antes de fundar o
de outubro. Em entrevistas de Império Serrano, Sr. Elói fundou o Deixa
No calendário do samba sambistas antigos, há relatos dos Malhar, no Baixo Tijuca, onde é hoje a
carioca ao longo de quase todo preparativos para essa importante Rua Almirante Cândido Brasil. O Elói
o século, a Festa da Penha, no “embaixada”, quase uma Antero Dias, que assessorava Getúlio
mês de outubro, representava “obrigação”, no sentido religioso Vargas com alguns outros pais de santo, foi
uma importante ocasião do termo. incentivado por Getúlio a criar uma escola
de congraçamento e até de Fato marcante é terem as de samba para competir com Paulo da
competição. Compor para a Festa escolas de samba se formado em Portela, que tinha entrado para o partido
da Penha, local de reunião em geral em torno de lideranças comunista, querendo provar que o samba
que o trabalho dos compositores religiosas fortes, como era um gênero musical de sociabilidade.
populares tinha espaço para mencionado anteriormente. Quem me contou esta história foi o João
divulgação, era quase obrigatório. Saldanha quando perguntado por que ele
Segundo testemunho de vários É um fenômeno que tem uma era portelense. O Império Serrano foi uma
sambistas e cronistas carnavalescos, explicação na energia que vem das casas escola sindicalista. O Salgueiro também
era na Penha que se lançavam os de omolokô, da tradição religiosa de base contou com a liderança do Calça Larga e
sambas novos. As mulheres se africana, que juntou o culto às almas, dos pais de santo para a criação da escola.
trajavam de baianas e havia disputa da gira de Preto Velho e Caboclo e vai (Rubem Confete)
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Imagem em altar de quadra


de escola de samba.
Acervo Centro
Cultural Cartola

E na bateria, sem dúvida em honra a São Sebastião uma


o elemento mais marcante, o alvorada, em que a bateria tem
“coração” das escolas, essa relação é papel destacado, tocando nos
observável. A influência religiosa se primeiros segundos do raiar do dia
estendeu às características rítmicas 20 de janeiro, data consagrada a seu
de cada escola. Luís Fernando Vieira padroeiro. Após queima de fogos,
(1998), que coletou e publicou em é servido aos ritmistas um copo de
livro os sambas da Estação Primeira chocolate, e o samba prossegue até
de Mangueira, menciona um manhã alta.
testemunho dessa relação: No Império Serrano a procissão
motorizada em honra a São Jorge,
A bateria, sempre acompanhando a padroeiro da escola, acontece no
marcação do ponto do santo da escola, Oxóssi domingo subsequente ao dia 23 de
(São Sebastião), trazia como principal abril e dura o dia inteiro. O relato
característica a pancada do surdo grande abaixo, retirado do site da escola,
(maracanã), dada desde o primeiro desfile testemunha claramente a importância
pelo marcador Lúcio Pato. da festa para a vida da agremiação:

A relação entre festa e fé A imagem de São Jorge, padroeiro do


ainda se apresenta viva e pujante Império Serrano, foi doada à escola no dia
na maioria das comunidades de 23 de abril de 1965 pelo líder comunitário
samba do Rio, sobretudo nas mais do bairro do Caju Sr. Sebastião Francisco
tradicionais. A festa em honra do Machado, por influência do ex-presidente
padroeiro é o mais vivo exemplo Jamil Salomão Maruff. A partir dessa
disso. A Mangueira promove data nossa agremiação realiza anualmente
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Imagem em altar de quadra


de escola de samba.
Acervo Centro
Cultural Cartola

a procissão motorizada em honra ao Dali a carreata segue até Ramos, onde frequentemente homenageados nos
Padroeiro, que vem se tornando uma das originalmente se homenageava o grande sambas. Em Segredos guardados, orixás
mais significativas tradições da comunidade. sambista Amaury Jório. Atualmente é a Velha na alma brasileira, Reginaldo Prandi
A cada ano, no domingo seguinte a 23 de Guarda da Imperatriz Leopoldinense, afilhada (2005) afirma que a presença de orixás
abril, a imagem desce do seu nicho para o do Império Serrano e escola do coração do e de muitos elementos do candomblé e da
centro da quadra e é posta no alto de um fundador da Associação das Escolas de Samba, umbanda em letras de músicas, divulgadas no
carro do Corpo de Bombeiros, cedido pelo quem faz as honras da casa. rádio desde o seu surgimento, têm servido, ao
Quartel de Campinho, e escoltada por Após esta grande confraternização, lado de outros meios culturais, para divulgar
batedores motorizados do 9º Batalhão da a procissão segue para a Serrinha, onde a as religiões afro-brasileiras. A análise do
Polícia Militar, seguindo pelas ruas com imagem do padroeiro recebe as homenagens do pesquisador abrange toda a música
sirenes ligadas, foguetório e buzinas de carros povo no berço do Império Serrano, com muito popular brasileira, mas o samba tem
que a seguem. samba e muita cerveja. destaque (Nomes importantes da história do
Cerca de vinte ônibus cedidos De volta à quadra, a imagem é recebida samba estão ligados às primeiras gravações de
gentilmente por empresários do setor de com aplausos dos devotos, e a confraternização músicas que falam de terreiro, dos orixás e dos
transportes são postos à disposição dos que se segue não tem hora para terminar. espíritos caboclos, do feitiço, da macumba e do
imperianos e devotos que não dispõem de Eclética como o próprio Império Serrano, candomblé da Bahia, constantemente referido
condução própria. a festa congrega todas as religiões e mesmo nas letras), já a partir dos anos 20.
Na Igreja de São Jorge, em Quintino, os sem religião, todas as facções políticas, As escolas de samba, a partir
os imperianos e devotos são abençoados pelo todas as idades. Os inimigos mais ferrenhos das décadas de 1960/1970,
pároco. A próxima parada é na Esquina se abraçam, todos se unem para homenagear quando os temas da história
F. S., na Rua Piauí, onde ocorre grande o Padroeiro, de quem nos vem a garra e o oficial deixaram de ser o costume
confraternização com queima de fogos. Mais orgulho de ser imperianos! nos enredos, apresentaram uma
adiante, no Centro Espírita Caminheiros da série de sambas sobre as tradições
Verdade, em Todos os Santos, novas orações e Religião e samba se confundem. religiosas afro-brasileiras, como os
passes aguardam os fiéis. Festas religiosas, santos e orixás são exemplos a seguir:
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Já coloquei na pedreira (Lendas do Abaeté, Mangueira, 1973) E no palácio houve a festa do pilão
Cerveja preta para o Rei Xangô Epeu ê babá salve os Orixás
Cerveja branca também Oh, meu pai Ogum na sua fé É o verde esperança
coloquei na mata Saravá Nanã e Oxumaré Com o branco que é a paz
A noite inteira seu Ogum Xangô, Oxóssi, Oxalá e Iemanjá (A coroa do perdão na terra de Oyó,
bebericou Filha de Oxum pra nos ajudar Império da Tijuca, 1997)
(Samba, suor e cerveja, o combustível da Vem nos dar axé
ilusão, Império Serrano, 1985) Nos erês dos orixás A referência aos santos e às
(Mãe Menininha do Gantois, Mocidade tradições da Igreja Católica nos
Salve Ogum D’Ylê 1976) enredos das escolas, muitas vezes
Na imaginação de um guardião gerou polêmica, pois a igreja
É lindo ver a tua imagem Saravá os deuses da Bahia sempre foi mais resistente a essa
Encantando a multidão Nesse quilombo tem magia aproximação que a umbanda.
(No mundo da lua, Grande Rio, 1993) Xangô é nosso pai, é nosso rei Mas é inegável que na origem das
Ô Zaziê, Ô Zaziá escolas de samba encontra-se não
Oke-oke Oxóssi O Zaziê, Maiongolé, Marangolá apenas a marca da religiosidade
Faz nossa gente sambar Ô Zaziê, Ô Zaziá afro-brasileira como vimos, no
Oke-oke Natal Salgueiro é Maiongolê, Marangolá toque dos surdos/tambores, mas
Portela é canto no ar (Templo negro em tempo de consciência também a forte influência da
(Contos de areia, Portela, 1984) negra, Salgueiro 1989) religião do colonizador português,
que se manifesta, entre outros
Janaína agô, agoiá E de regresso a Ifã indícios, no próprio caráter
Janaína agô, agoiá Oxalufã olhou pra trás processional de deslocamento das
Samba curima Sentiu a fé, no amor a criação escolas, típico das festas religiosas
Com a força de Iemanjá do Rio de Janeiro colonial.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Feijoada.
Acervo Centro
Cultural Cartola

A comida africana dos escravos e libertos,


Tinha gente de todo lugar representando possibilidade de
No pagode do Vavá renovação, fim das enfermidades e
distribuição de dons e graças a todos.
Domingo lá na casa do Vavá Desde os tempos de Tia Ciata,
Teve um tremendo pagode em cujo quintal muito se criou e
Que você não pode imaginar consumiu comida e arte, sabor e
saber musical se misturaram nas
Provei do famoso feijão da comunidades do samba carioca.
Vicentina Não há reunião de sambistas sem o
Só quem é da Portela prazer do preparo e da degustação
É que sabe que a coisa é divina de iguarias feitas pelas tias baianas.
As escolas de samba foram
Paulinho da Viola em seu toda a comunidade. Comer, no criadas em torno dessas reuniões
Pagode do Vavá retrata uma cena samba, equivale a viver, preservar, festivas, bem como muitas
típica do samba e destaca um comunicar e reforçar memórias associações são regadas a petiscos,
elemento que, nesta cena, não individuais e coletivas. cervejas, almoços e jantares. A
pode faltar: a comida. Martha Abreu (1999), em seu comida engendra a criação. O
A comida nas festas de samba do trabalho sobre religiosidade popular próprio samba registra essa ligação
Rio de Janeiro reproduz e atualiza no Rio de Janeiro do século XIX, íntima, como o Quitandeiro, de
a dinâmica do comer/beber da situa como as festas populares na Monarco e Paulo da Portela:
tradição africana. Transcendendo cidade, já então, se identificavam
a simples ação biológica de nutrir com comilança e fartura, ao resgatar Quitandeiro leva cheiro e tomate
o corpo, constitui-se numa significados litúrgicos das festas do Pra casa do Chocolate que hoje
maneira de renovar a energia de Divino Espírito Santo e da origem vai ter macarrão
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Prepara a barriga macacada significado para a vida dos deuses, comunidade de sambistas para
Que a boia está enfezada e o sua manutenção e a renovação outra, apesar de a feijoada ser o
pagode fica bom do axé — elemento vitalizador prato mais tradicional hoje nas
das propriedades e domínios da grandes reuniões de samba.
Seja na tradição banto de natureza —, quando o sagrado Segundo Lody (1998), em Santo
Angola/Congo, como na tradição se aproxima do homem pela também come, a feijoada é dedicada a
nagô da Nigéria, cozinhar é boca. Por isso, ele fica nas mãos Ogum e a Omolu, servida para toda
considerado um ato sagrado, e os das conhecidas “tias baianas”, as a comunidade, sendo seu preparo de
alimentos são tratados de forma senhoras da tradição. A cozinha é alto significado ritual, representando
ritualística. Pela ligação de pais e o lugar onde as “tias” transformam a união do trabalho e da fé, tanto na
mães de santo com o samba, era morte em vida, usando os Bahia como no Rio de Janeiro. Nesse
natural que os rigores e as delícias temperos, a água, o azeite e o fogo. sentido, um mapa do samba no Rio
gastronômicas da vasta culinária dos Para as baianas quituteiras que de Janeiro, revelará também uma
terreiros de candomblé, caboclo e ainda se relacionam com a tradição verdadeira cartografia culinária.
umbanda ajudassem a determinar afro-brasileira, a cozinha é um Ao falar das ruas onde nasceu a
a identidade dos espaços onde o espaço de criação, de manutenção Portela, João Baptista Vargens, em
samba floresceu. da saúde da comunidade e de seu livro A velha guarda da Portela (2001),
Noites inteiras são destinadas ao celebração de seus orixás, que revela como a cozinha pontua e
preparo dos alimentos que fazem representam a energia da vida. perpetua o encontro dos sambistas
parte das festas, sendo que pessoas O preparo dos pratos pode ser do bairro de Oswaldo Cruz:
especiais em cada comunidade de acompanhado de cantigas, palmas,
samba têm a responsabilidade de toques e samba. • Rua Dutra e Melo – quintal
preparar as carnes dos animais, os Pode-se observar a diferença e do Manacéa, reunião da Velha
cereais, os legumes, as frutas. a variedade de pratos produzidos Guarda nos anos 1970, regada
O espaço da cozinha é de alto de uma escola para outra, de uma a muito miudinho e muita
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

galinha com quiabo feitos por atualmente a Velha Guarda Show Nascimento, a Tia Vicentina, virou
Dona Neném, tudo devidamente se encontra em eventos especiais. um símbolo desse modo de ser que
registrado por Leon Hirzsman As grandes especialidades do é o samba carioca. Irmã de Natalino
em seu documentário Partido-alto. espaço são macarrão com galinha José do Nascimento, o Natal, bicheiro
• Rua Adelaide Badajós – local e feijoada. e patrono da Portela, ela desfilou anos
da feira das quartas, ponto de na ala das baianas e sempre ajudou
encontro da “confraria” da Biroscas, botequins, quintais, no barracão da agremiação. Dona de
Velha Guarda para a compra do clubes, qualquer lugar onde poderosos dotes culinários, Vicentina
peixe e para a famosa cervejinha sambistas se reúnam tem de ter exerceu em sua plenitude a arte de
e o tira-gosto. comida e bebida. O ZiCartola, receber, preparar e servir: a canja, o
• Rua Antônio Badajós – onde célebre casa de Dona Zica e mulato-velho, o bobó de camarão, o
moraram a pastora Doca e seu Cartola, na Rua da Carioca 53, mocotó, o macarrão com galinha e
Altair. Local que se tornou no Centro do Rio, que funcionou especialmente o feijão da Vicentina.
famoso pelas sopas de legumes e entre 1963 e 1965, reuniu sambistas Mas também era famosa por sua voz,
de ervilhas, regadas a um pagode de diferentes gerações — como e participou como pastora da gravação
de primeira e onde a Velha Zé Kéti, Nelson Cavaquinho, do histórico disco Portela passado de glória,
Guarda passou a se reunir na Nelson Sargento, Elton Medeiros, em 1970, em tributo aos baluartes da
segunda metade dos anos 70. Paulinho da Viola —, alimentando escola. A sua famosa feijoada durou
• Quintal do Argemiro – numa parcerias e abrindo o apetite até o início dos anos 80.
vila, perto do boteco e da musical da cidade. A casa inspirou
padaria. Ponto de encontro na eventos como o Opinião e o Rosa Ah, tinha aquelas tias. Tinha a Vicentina,
década de 1980 para beber e de Ouro, marcos na ampliação dos tinha a dona Iara. Elas faziam feijoada,
saborear corvina ensopada. espaços do samba no Rio. faziam arroz à minhota, macarronada às
• Rua Júlio Fragoso – local do Eternizada por Paulinho da Viola vezes. Tinha também a Alzira Moleque. O
famoso Cafofo da Surica, onde no samba de 1972, Vicentina do apelido era Moleque porque onde (sic) ela
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

PÁGINA Ao lado à esquerda


Timbau,
Acervo Centro
Cultural Cartola.

PÁGINA Ao lado ao centro


caixa.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

PÁGINA Ao lado à direita


reco-reco.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

chegava infernizava tudo. Onde (sic) ela semelhantes se espalharam por que chamam “samba de raiz” ou
chegava, chegava alegria. escolas como o Império Serrano, “samba tradicional” — o samba de
(Monarco) a Mangueira, a Estácio de Sá, a terreiro. Na Portela, notava-se já
Beija-Flor, o Salgueiro. Os nomes nas primeiras edições da Feijoada
Eu e Nei Lopes sempre falamos em escolhidos indicam o espírito que o prato principal não era o
comida. Nunca fumei, tomava umas cervejas e que guia essas reuniões: Feijoada samba-enredo, quase totalmente
batidas. Mas comia muita feijoada [...] Não Imperial, Caldeirão de Raiz, ausente da roda. Quem ia lá e,
existe samba de terreiro sem feijoada... Tinha Família Mangueirense. principalmente, quem cantava,
cozido também. Feijão, carne-seca, costela, queria outra iguaria. O que se viu e
(Wilson Moreira) lombo, linguiça, pé de porco, ouviu foi a Velha Guarda reocupar
rabo, orelha, couve, arroz, farofa, o terreiro, voltando ao centro das
As feijoadas nas quadras das fatias de laranja; panelas de barro, atenções e trazendo consigo sambas
escolas ocupam atualmente um lugar conchas, garfos, guardanapos de e sambistas tradicionais que tinham
especial no calendário dos sambistas papel, pratos fartos e fumegantes; perdido espaço e voz na engrenagem
cariocas. Foi em 2003 que a cerveja, caipirinha e refrigerantes. comercial que domina as escolas,
Portela decidiu reviver as feijoadas Mesinhas espalhadas por toda preferencialmente voltadas para
da Vicentina e trouxe de volta a a quadra. Ao fundo, a roda de o desfile de Carnaval. É preciso
Feijoada da Família Portelense, sambistas com a prata da casa e observar, no entanto, que essa
roda de samba no primeiro sábado os convidados especiais, bambas postura de retomada da quadra
de cada mês, que tem à frente a das coirmãs que visitam a anfitriã e o destaque dado aos sambas de
Velha Guarda de Oswaldo Cruz. naquela tarde. terreiro nas feijoadas variam de
Sucesso instantâneo, a feijoada, que Mais do que se deliciar com os escola para escola, pois cada uma
começou com 300 participantes, temperos, o feijão e as carnes, esses tentou imprimir uma marca própria
em pouco tempo já reunia mais encontros reabriram nas quadras a seu encontro e o aspecto comercial
de seis mil pessoas. Iniciativas um espaço para a celebração do evidentemente não está ausente.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Os instrumentos de bar, cervejinha do lado. Aí, eu defino o À complexa simplicidade


É na palma das mãos e na sambista assim, nesse esquema. (Rody) rítmica das palmas das mãos e do
sola dos pés, em um bater firme bater e arrastar dos pés pode se
e cadenciado, que o samba ou Formada uma roda, seja em uma seguir um solo de prato-e-faca
qualquer variante do gênero começa. laje de favela ou em torno de uma ou caixa de fósforo — a cozinha
O corpo do sambista é, assim, o mesa de bar no subúrbio, se não do sambista reaparece aqui,
primeiro instrumento de percussão. houver um pandeiro, um tamborim, agora cedendo seus utensílios
“Já nasce sambando” ou “Já as mãos é que vão marcar o ritmo para a execução da música. As
nasce sabendo”, “Está no sangue”, do samba, dando sustentação à comunidades do samba, em toda
“É de família”: são frases comuns voz-guia. Dos pés, que machucam o parte (no Rio de Janeiro e pelo
na cena do samba e exprimem chão como um surdo de marcação, Brasil), desde cedo se apropriaram
não a defesa de um determinismo subirão ondas de alegria intensa. de objetos do cotidiano.
biológico, mas uma noção bem- Afirma Muniz Sodré, em Samba, Uma das mais conhecidas
-assentada do poder da transmissão o dono do corpo (1998): fotografias de Silas de Oliveira,
familiar e comunitária dos saberes considerado um dos maiores
do samba. E essa transmissão se Como todo ritmo já é uma síntese (de compositores de samba-enredo da
dá desde muito cedo, através desse tempos), o ritmo negro é uma síntese de sínteses história do Rio, registra o momento
instrumento musical do sambista (sonoras), que atesta a integração do elemento de prazer em que ele batuca numa
que é o seu próprio corpo. humano na temporalidade mítica. Todo som caixinha de fósforo, erguida à altura
que o indivíduo humano emite reafirma a sua do peito, como um instrumento
O samba já vem, já vem... o samba já condição de ser singular, todo ritmo a que ele musical precioso. Essa foto
vem adoutrinado dentro da pessoa. Quem é adere leva-o a reviver um saber coletivo sobre emblemática ilustra a capa do livro
sambista já traz no sangue. Isso é o espírito o tempo, onde não há lugar para a angústia, Silas de Oliveira, do jongo ao samba-enredo
do sambista [...] Sambista é aquele cara que pois o que advém é a alegria transbordante da (1981), de Marília Barboza da Silva e
só vive batucando. É... batucando em mesa atividade, do movimento induzido. Arthur L. de Oliveira Silva. Em outra
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

acima
Cuíca.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

abaixo à esquerda
agogô.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

abaixo à direita
repique.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

fotografia, igualmente simbólica,


é Cartola — o mestre da Estação
Primeira de Mangueira — quem tira
música de tão simples instrumento.
E, como já informado, foi de
um latão de manteiga que surgiu o
surdo, instrumento-síntese do novo
samba gerado nas ruas do Estácio
nas primeiras décadas do século
passado, incorporado desde então à
prática musical da cidade e do país.
“O surdo é o trilho do samba”,
diz mestre Odilon, batucando no
tampo de uma mesa de madeira, tradição africana — saídos dos patrocínio de mínimos conjuntos
e demonstrando, sem o auxílio de terreiros de práticas religiosas — que regionais — violão, cavaquinho,
qualquer instrumento musical, as construiu a cena musical do samba. pandeiro, flauta — para animar
diferenças das batidas das baterias Em entrevista concedida em seus encontros musicais, lançavam
das escolas do Rio de Janeiro. dezembro de 2005, o jornalista mão de instrumental próprio ao
A invenção e reinvenção de e pesquisador José Carlos Rego, culto da umbanda, do candomblé
instrumentos de origens diversas autor de um clássico, A dança do ou do jongo, para sua recreação.
em busca de novas sonoridades samba, explicou que, na década de Isso se dava, em geral, ao final das
é parte do exercício criativo dos 1920, nos primórdios do samba sessões religiosas que avançavam
sambistas, do seu patrimônio. no Rio de Janeiro, os moradores pela madrugada. No encerramento
Mas foi a grande herança de do gueto das favelas ou das vilas delas, para relaxar, servia-se comida
instrumentos de percussão da operárias, sem recursos para o e sobrevinha a cantoria e o batuque
dossiê iphan 10 { Matrizes do Samba no Rio de Janeiro } 101
partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

à esquerda
Pandeiro.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

à direita
atabaque.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

— daí ter sido tão comum a presença angola ou keto, de acordo com os na existência de fundamentos
de pais de santo na liderança dos orixás que neles baixavam. Como (essências, pedras, guias, imagens)
primeiros grupamentos de samba, se sabe, as vestes, alimentos, cantos religiosos implantados ou exibidos
como Zé Espinguela, na Estação de invocação, estilos de dança, em cada terreiro de samba.
Primeira de Mangueira, ou Elói guias (colares) e saudações de cada Dessa forma é que diferenciações
Antero Dias, na Prazer da Serrinha/ orixá têm identidades próprias. E, ancestrais permaneceram na
Império Serrano. da mesma forma, suas batidas de bateria das escolas ou blocos
Foi dessas primeiras batucadas, tambores, denominados toques, carnavalescos, retidas na memória
rodas e festas que saíram têm sua propriedade individual. coletiva dos grupos responsáveis
instrumentos que alegrariam Isto é, há toques de Oxum, de pelo ritmo. A partir daí é que
partidos-altos, sambas de terreiro Oxalá, de Ogum, etc. síncopas,28 a repetição de certos
e desfiles das escolas. A escolha Por extensão, os ogãs — desenhos harmônicos ou o
dos instrumentos que serão usados responsáveis pelo setor de ritmo privilégio deste ou daquele naipe
varia de acordo com a situação: nos terreiros de santo — foram de instrumentos, ou mesmo a
uma roda com poucos sambistas ou impregnando as baterias do samba ausência parcial de um deles,
um ensaio de ritmistas na quadra da sua habitual frequência, com começaram a estabelecer os estilos,
de uma escola. as características de suas casas conforme detalhou o pesquisador.
De acordo com Rego, a de santo. Dessa forma surgiram Assim, na matriarcal Estácio
identidade de cada bateria está as famílias de ritmo das diversas de Sá, o perfil da bateria está nos
relacionada à sua origem e, comunidades de sambistas e de sons produzidos pela caixa de
portanto, aos terreiros de santo. suas escolas de samba, o que guerra, com afinação de tarol.
Nesses terreiros o culto aos acabou resultando, também, no Não muito distante e quase
símbolos da “africanidade” pensamento dominante de que tão antiga quanto a Estácio, na
estabeleceu diferenciados toques cada bateria bate para determinado Acadêmicos do Salgueiro a tônica
de atabaques, votivos às nações jeje, orixá. Isso igualmente se confirma de diferenciação vai para o tarol.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Surdos.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

surdo de terceira marcação, atabaques angolanos, a maior parte,


seus agogôs, da mesma forma, e sudaneses. Essa diferença tonal é
realizam solos e variações que que permite o perfeito equilíbrio
entoam melodia. Na Mocidade entre eles nas execuções. Os ganzás,
Independente de Padre Miguel xequerés, chocalhos, cabaças,
destaca-se a grande quantidade agogôs, pandeiros, afora variadas
dos metais e peças miúdas, improvisações, como o prato e a
coroando a levada de seu ritmo, frigideira, são elementos de brilho
que alcança o apogeu no risco das ao núcleo de ritmo. E nesse canal
paradinhas: a síncopa. de efeitos destaca-se, por certo,
Segundo José Carlos Rego a cuíca, com a potencialidade de
informou, são os naipes de transitar dos sons mais agudos aos
instrumentos que, acordados, irão mais graves.
Na Estação Primeira de Mangueira, oferecer escala de andamento e Para compor uma bateria não
não há surdo de resposta. Todos ritmo à execução de melodia e letra se exige mais do que doze tipos de
os existentes batem a um só tempo. da composição do samba. instrumentos de percussão. Aliás,
O vazio na resposta do surdo de A organização de tais naipes exclusivamente de percussão, já
segunda é coberto pelo tarol. vai dos mais agudos à frente, os que nela o único sopro é o apito de
Na Portela, a firmeza das médios se entrelaçando ao centro, comando, utilizado pelos mestres
marcações tem contrapontos até o posicionamento dos graves de bateria. São do pesquisador
de cuícas e tamborins despidos na parte de trás. Os instrumentos José Carlos Rego as descrições dos
de floreios. Esses batem retos, funcionam através da percussão instrumentos, apresentadas a seguir.
para o conjunto da bateria, em couro e/ou náilon, a fricção
sem desenhos floreados. Já no da madeira e o tinir de metais. Surdo – estabelece o compasso
Império Serrano, criador do A base matricial tem origem nos binário — se mais rápido ou lento —
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

à esquerda
Xequerê.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

à direita
chocalho.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

abaixo
tamborins.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

e fixa o andamento da bateria.


Os surdos de base são de três tipos:

• Surdo de primeira: o maior


deles, chamado de surdão,
surdo-mor ou maracanã (aqueles
utilizados na Mangueira), que
estabelece a marcação inicial. Sua
afinação é do couro mais tenso;
• Surdo de segunda: é um pouco
menor e de afinação com o couro
um tanto mais frouxo. Também é
chamado de surdo de resposta;
• Surdo de terceira: é igualmente afinação mais tensa. Responsável metal ou náilon, percutida por
designado por surdo de corte. pelo alerta ou arranque duas baquetas ao mesmo tempo.
Sua batida se dá no contratempo sinalizador, ele chama e dá De fácil execução, exige perícia na
entre os de primeira e de partida aos demais instrumentos, cadência, já que sua função inicial
segunda. Foi o último a ganhar imprimindo agilidade e brilho à era rufar e acompanhar a marcha
funcionalidade, já nos anos ligação entre os marcadores. nos grupamentos militares.
40, sendo o menor dos três
percussivos graves. Tarol – instrumento de origem Caixa de guerra – numa batida
europeia, bem assimilado pelo de duas baquetas, o som que
Repinique – também chamado samba. É uma caixa redonda, percute preenche o vazio entre as
de repique ou surdo repicador. de cerca de vinte centímetros de marcações, produzindo o chamado
É de porte médio, comprido e de largura, atravessada por cordas de miolo do ritmo. Sua largura é
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Chocalhos.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

página ao lado à esquerda


Surdos.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

página ao lado à direita


tarol.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

quase duas vezes maior que o tarol. Pandeiro – originário do Oriente produzem agradáveis sons
Daí produzir um som menos Médio, formado por um aro metálicos.
agudo e mais claro. Não dispõe de redondo no qual se estica o couro
corda sobre o couro e exige maior ou plástico, podendo conter guizos Agogôs – instrumento do
domínio do executante para não ou pratinelas (pequenas rodelas panteão dos deuses iorubanos,
fugir à cadência. Como o tarol, o de metal incrustadas em fendas). foi assimilado pelo samba nos
som é médio. O pandeiro é um dos símbolos do primórdios. Formado por
Carnaval. Nos pequenos conjuntos uma, duas ou mais campânulas
Tamborim – da família dos sons de ritmo, sua importância cresce. interligadas, percutidas por varetas
agudos, de pequena dimensão. Nas grandes baterias, diminui. de metal ou de madeira de lei. De
Pode ser retangular, quadrado, É das raras peças em que se pode som agudo com variantes médios.
oitavado ou redondo, sendo esta reproduzir o ritmo integral do No conjunto da bateria, os agogôs
última forma a mais aceita nos samba, desde as marcações a aparecem como elemento de
últimos anos. Percutido por uma todo universo de variações. Seu brilho, tempero.
baqueta rígida ou três flexíveis, o impacto visual é enorme, sendo
tamborim sinaliza mais alto que muito utilizado pelos passistas Chocalho – de origem marajoara,
todos os instrumentos. Daí, por malabaristas. Das peças leves é a que em madeira; ou africana, em
sua leveza, ser manipulado para o mais exige virtuosismo. metal, compõe o grupo das peças
brilho dos desenhos e sinalizações leves e agudas. É formado por
harmônicas do ritmo. Quando Pratinelas – placas de metal, um, dois ou mais recipientes
batidos chapados funcionam redondas e furadas, interligadas ocos, onde se colocam grãos,
para a bateria como o ancestral por arame ou madeira esferas ou pedregulhos. Quando
tamburão,29 que era percutido com pontiagudos. Construídas na sacudidos no ritmo, vão ocupar
a palma da mão e encorpava o som vertical ou horizontal, emitem vazios entre as peças pesadas, num
do batuque. sons agudos e, quando sacudidas, agradável contraponto.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Pratos – não é estranha ao grupo mais férteis e inventivas, tanto em “Quilombo dos Palmares”, pela
de metais das baterias a presença tamanho, comprimento ou largura, Acadêmicos do Salgueiro.
de pratos metálicos, de grande todos em tons médios e agudos.
função nas bandas marciais ou nas Cuíca – é um tambor de fricção,
orquestras sinfônicas. Calixto dos Atabaques – embora seja um feito de um cilindro de metal (mas
Anjos, no Império Serrano; Gallo, instrumento com múltiplas formas também de madeira), que tem um
na Portela e Manuel Quirino, na — vão do diminuto caxambu a dos lados coberto por couro, ao
Mocidade Independente de Padre um tipo de tambor de mina do qual está ligada uma vareta fina.
Miguel, considerados os Reis dos Maranhão, que, de tão grande, Toca-se friccionando com um
Pratos, foram responsáveis pelos exige que o tocador monte nele pano úmido a vareta, que faz o
solos com o instrumento. O e use um cordão a título de freio couro vibrar. Em algumas regiões
brilho e o tempero acrescentados no pescoço para se equilibrar —, o do país, é chamado puíta
ao conjunto são de grande beleza. atabaque, originado na África, só e roncador.
Em pequenos conjuntos, os pratos em ocasiões especiais se incorpora
de louça, raspados pela faca, eram à bateria das escolas, em geral Em uma roda de samba de
muito apreciados. quando as agremiações desfilam terreiro, a cena é mais simples,
com enredos sobre personagens sendo formada por instrumentos
Reco-reco – o que os ganzás em ou tradições afro-brasileiras. de percussão — surdo, pandeiro,
bambu ou madeira deram aos Percutido com as mãos, seu som reco-reco, etc.; e cordas —
grupos de choro, os reco-recos é abafado. Quando ferido com a cavaquinho, violões de seis ou
serrilhados em ferro ou resultantes baqueta (aquidavi, no candomblé) sete cordas. No partido-alto, o
do arame sob tensão fortaleceram soa agudo. Para o atabaque ser acompanhamento é ainda mais
de brilho o ritmo das baterias. usado em desfile, é necessário econômico: pandeiro e violão ou
As variedades de modelos que um arranjo, como se deu na cavaquinho apoiam o canto; a voz é
surgiram ao longo dos anos são das célebre apresentação do enredo o principal instrumento.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Cumprimento à bandeira
de escola de samba.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

página ao lado à direita


tarol. mapa da posição dos
instrumentos na bateria
de escola de samba.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

A bandeira agilidade nas evoluções. A escola vermelho e branco da bandeira


Tendo marcado presença nas havia alterado o ritmo do samba, se relacionam às do orixá Xangô,
ruas do Rio com os ranchos, na tornando-o mais rápido, com a senhor da pedreira e protetor
virada do século XIX para o XX, introdução do surdo de marcação, da escola; em seu emblema,
o estandarte, simbolicamente um instrumento que favoreceu a instrumentos musicais do samba
substituto dos ancestrais e signo conjugação canto/dança/evolução como tambor, caixa, pandeiro,
de comando, passou às escolas de para os sambistas. Heitor dos chocalho, baqueta. No Império
samba e deu vida ao bailado do Prazeres foi reconhecido como o Serrano, o símbolo é a coroa;
mestre-sala e da porta-bandeira. sambista que “trouxe a primeira as cores, o verde e o branco,
Foi na escola de samba de bandeira”, já que levava a da da esperança e da paz. O azul e
Ismael Silva, segundo relata Ivette Deixa Falar para as agremiações branco da bandeira da Portela
dos Prazeres, que aconteceu carnavalescas que frequentava. foi inspirado no manto de Nossa
a substituição do estandarte No início dos desfiles, a Senhora da Conceição, e a águia
pela bandeira. A inovação foi bandeira era também um quesito a é o símbolo maior da escola de
introduzida pelo pai de Ivette, ser avaliado pela qualidade de sua Oswaldo Cruz. Na Mangueira, o
Heitor dos Prazeres, um dos concepção e pela capacidade do verde e o rosa vieram do rancho
bambas da primeira hora do samba grupo de protegê-la e apresentá- Arrepiados, da infância de
no Largo do Estácio. Naquela la. Mas o seu significado e Cartola, vivida em Laranjeiras; no
época, “as baianas” eram homens importância foram além desse centro do pavilhão da
fantasiados; Heitor, utilizando o aspecto funcional. A bandeira, Estação Primeira brilha um surdo
pano da costa, parte tradicional suas cores e os símbolos bordados de marcação.
da indumentária de baiana que no tecido são um forte elemento A bandeira é tão poderosa
vestia, mostrou como a forma da de identidade das comunidades de no imaginário e na cena do
bandeira possibilitava à porta- sambistas no Rio. samba carioca como elemento de
estandarte uma maior liberdade e No Salgueiro, as cores identidade de grupo que inspira
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

a escolha das cores de roupas do (Jorginho do Império, levam as cores de sua escola.
dia a dia; de objetos pessoais — Império Serrano) A cena do samba no Rio não
colares, pulseiras, brincos, lenços, existe sem as bandeiras e sem o
gravatas, bolsas —; da pintura de Eu só tinha, durante muitos anos, orgulho, expresso de diversas
muros e paredes de casas. E até roupa vermelha e branca. As cores alegram formas — pelas suas cores.
do glacê que cobre bolos em festas o meu coração, me fazem bem, me fazem Isso é dito, ou melhor, cantado
de aniversários. bonito! Até sapato, cueca, lenço. Tudo em sambas, como mostram
era nas cores da escola, até minha sunga esses exemplos:
Salgueiro é minha escola, e a sua de praia. Sempre me alegrou muito ouvir
bandeira para mim é sagrada. [...] Onde eu “Olha o Salgueiro aí passando!” O meu azul veio lá do infinito
vou me arrepio ao beijar a bandeira. Vale (Dauro do Salgueiro) O meu canto é mais bonito
muito para mim. A minha Velha Guarda Salve Oswaldo Cruz e Madureira
não vai para lugar nenhum sem a bandeira, O abandono progressivo das Me chamam celeiro de bamba
que para mim é o maior símbolo da escola. cores tradicionais pelas escolas nos A majestade do samba
Quando ela começa a rodar arrepia! desfiles — sob o argumento de que Da velha guarda formosa e faceira
(Dauro do Salgueiro) o espetáculo ganha quanto mais (Tributo à vaidade, Carlinhos
colorido for, prevalecendo o visual Madureira, Café da Portela e Iran
Não é que eu goste especialmente de sobre a identidade e a história — Silva – Portela, 1991)
verde e branco, mas na nossa primeira não se repetiu no cotidiano das
reunião de diretoria do Império, recém- comunidades de sambistas. Pelo Desperta Seu China!
eleita, propus a meus companheiros de chapa menos entre os que defendem as Acorda Noel!
que durante os três anos de nosso mandato a matrizes tradicionais do samba, Pra ver a nossa escola
gente só vestisse essas cores, nenhuma outra. como as velhas guardas, e que desse branco azul do céu
Porque são as cores que identificam a escola e fazem questão de vestir sempre suas E o Zé Ferreira vem saudando
hoje nós a representamos. melhores roupas, isto é, aquelas que a multidão
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Pode me chamar de Vila Salgueiro, vermelho Sonho ou realidade


que orgulho é o meu Brazão! Balança o coração da gente Uma dádiva do céu
(Muito prazer! Isabel de Bragança e Guerreiro, é de bambas um celeiro Vi no Morro da Mangueira
Drumond Rosa da Silva, mas pode me chamar Apenas uma escola diferente Sambar de porta-bandeira
de Vila, Vilani Silva, Evandro Bocão (Salgueiro, minha paixão, minha raiz, A Princesa Isabel
e André Diniz – Unidos de Vila 50 anos de glória, Leonel, Luizinho (Dom Obá II – Rei dos esfarrapados, príncipe
Isabel, 1994) Professor, Serginho 20, Sidney do povo, Marcelo D´Aguiã, Bizuca,
Sã, Claudinho e Quinho – Gilson Vermini e Valter Veneno –
Amor vem agora Salgueiro, 2005) Mangueira, 2000)
Ver o esplendor do luar
A noite é linda senhora Abre as portas, oh folia Quero ser a pioneira
Que o poeta vai acordar Venho dar vazão à minha euforia A erguer minha bandeira
A musa se vestiu de verde e branco E plantar minha raiz
Desperta Cartola E o pranto se fez canto Desse mundo louco
Vem pra avenida Na razão do dia a dia De tudo um pouco
Se a Mangueira é uma porta aberta (Mãe baiana mãe, Aluísio Machado Eu vou levar, pra 2001
Você é a razão da sua vida e Beto sem Braço – Império (Ziriguidum 2001, Gibi, Tiãozinho e
Você plantou, viu germinar Serrano, 1983) Arsênio – Mocidade Independente
E a semente cresceu formosa de Padre Miguel, 1985)
Deu Mangueira verde de A bandeira assume mesmo
manga-rosa uma função de “documento de A bandeira é um elemento
(Verde que te quero rosa... Semente viva identidade”, dialogando com fundamental nas visitas que as
do samba, Heraldo Farias, Geraldo o passado e o futuro do grupo, escolas fazem umas às outras —
das Neves e Flavinho Machado – como notamos nesses dois verdadeiras “embaixadas”, sinais de
Mangueira, 1983) outros exemplos: amizade e aliança — e ao se receber
dossiê iphan 10 { Matrizes do Samba no Rio de Janeiro } 110
partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

convidados de fora do mundo do dança do mestre-sala e da porta- rainha dentro da sua escola de samba, então
samba. Cerimônia realizada até os -bandeira”, situa alguns dos ela está carregando o pavilhão da sua escola,
dias de hoje, nas quadras, é uma deveres do casal em relação à então ela tem que se sentir uma rainha. Era o
tradição antiga, como se pode bandeira, a partir de relato do que eu me sentia. Eu botava o pé na Avenida
observar no relato do folclorista mestre-sala Carlinhos Brilhante: e digo: agora é comigo, eu sou uma rainha.
Brasílio Itiberê, publicado em maio (Vilma Nascimento)
de 1949, no jornal Quilombo: O casal de mestre-sala e porta-bandeira
é o primeiro guardião, são eles que carregam o Atualmente, durante os
A Escola de samba do Morro da pavilhão da agremiação. ensaios nas quadras, para
Mangueira, formada em círculo à beira da Ao chegarem visitas ilustres na sua permitir que mestre-sala e porta-
ponte, aguardava os hóspedes ilustres da escola, o casal de mestre-sala e porta- bandeira, seguidos de baianas
planície. Um silvo agudo e sincopado varou -bandeira tem que estar presente para e passistas, possam apresentar
a noite turva. E as percussões começaram recebê-los com seu pavilhão. a bandeira, os diretores de
a bater de mansinho, como para despertar Nunca deixar seu pavilhão com qualquer harmonia abrem espaço no
sem susto o ímpeto adormecido das vozes pessoa. Procurar um guardião que poderá ser o meio da multidão, criando uma
ancestrais. [...] próprio mestre-sala ou um diretor de harmonia. grande roda bem em frente
A um último silvo, a escola abre um Ao chegar em outra agremiação estar sempre à bateria e ao palanque dos
semicírculo e se destaca do grupo um casal de cabeça erguida, postura elegante, aguardando puxadores, que se alonga até
de bailarinos, o baliza e a porta-estandarte, ser recebido e portando sua bandeira. as extremidades à direita e à
figuras centrais das escolas de samba. [...] quando eu comecei era assim: uma esquerda. Normalmente são dois
E começa então a escalada do morro. boa porta-bandeira tinha uma elegância casais que se apresentam. Começa
espetacular, um porte; a porta-bandeira o primeiro casal, que baila na
Eliane Santos de Souza rodava pros dois lados, tinha um sorriso, quadra, apresentando a bandeira
(2003), em sua dissertação de só vivia sorrindo, a porta-bandeira tinha para a bateria, para o puxador e
mestrado “Uma semiologia da que estar com aquela alegria porque ela é a para o presidente e convidados.
dossiê iphan 10 { Matrizes do Samba no Rio de Janeiro } 111
partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Baiana em desfile
carnavalesco.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

O mestre-sala desenvolve
harmonicamente passos que
simulam um cortejar e proteger a
dama e a bandeira, representando
o orgulho do grupo pela
instituição que representam. Em
seguida, apresenta-se o segundo
casal, que, depois de percorrer
toda a quadra, volta ao centro
para dançar com o primeiro
casal; é o encontro das bandeiras,
um ritual de celebração da
identidade dos sambistas.
As baianas lado esquerdo, já que, segundo
[...] a minha escola de samba é a União As baianas simbolizam os mitos, estão à esquerda de
da Ilha, a verdade é essa, a gente não pode as cabeças coroadas pelos Olorum — senhor de todos os
negar isso para ninguém, porque eu tenho cabelos brancos e representam espaços para os iorubás.
aqui dentro, é a minha escola, azul, vermelha a sabedoria das tias da antiga Com a modificação do espaço
e branca... Eu agora estou fazendo trabalhos Praça Onze e do Estácio, berço e do papel, no samba do Rio de
em outras escolas [...] Eu sou União da Ilha, do samba, onde Tia Ciata, Janeiro, as baianas rodam para a
mas na Grande Rio eu ‘tô lá, igual ao Zico Tia Bebiana e muitas outras direita e para a esquerda. A visão
no Flamengo. Ele foi pro Japão mostrar o dançavam e louvavam os orixás. que algumas expressam do seu
trabalho dele, mas ele é flamenguista. E eu De acordo com a tradição papel atual, como Dona Ivone
sou União da Ilha, mas eu ‘tô na Grande Rio. africana dos terreiros, as baianas Lara do Império Serrano ou Tia
(Mestre Odilon) rodavam, inicialmente, para o Jurema do Salgueiro, é que o
dossiê iphan 10 { Matrizes do Samba no Rio de Janeiro } 112
partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

alas de baianas em desfile


carnavalesco.
acervo centro
cultural cartola.

página ao lado à esquerda


Velha Guarda da Mangueira.
acervo centro
cultural cartola.

página ao lado à direita


Velha Guarda da Portela.
acervo centro
cultural cartola.

samba — como uma oração — exige adéquem ao tema do desfile, dos sambas que vão “pegar” na
entrega total. necessitando para isso eliminar comunidade.
As baianas do samba carioca elementos que as caracterizam, São mães e avós dos
usam, nos desfiles, indumentárias como o pano da costa. sambistas, portanto, personagens
inspiradas nas das baianas No cotidiano, as tias fundamentais na transmissão do
tradicionais: turbantes, ojás, baianas da atualidade ajudam a saber do samba, de geração para
panos da costa, saias rodadas cuidar da roda, da quadra, da geração. Parteiras, bordadeiras,
e tabuleiros. Parte dessa tradição escola. Organizam a limpeza, educadoras, líderes comunitárias,
está se perdendo, na medida fazem as comidas e preparam elas aglutinam, apaziguam e
em que as escolas e carnavalescos as celebrações. Formam o organizam o cotidiano das
optam por criar para as alas coral feminino, sendo para os comunidades do samba carioca.
das baianas fantasias que se compositores um termômetro
dossiê iphan 10 { Matrizes do Samba no Rio de Janeiro } 113
partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

As velhas guardas poderem resistir às agressões de radialista Almirante batizou um


Embora as sociedades modernas diversas naturezas. Desse modo, novo grupo musical — O Pessoal
de grande parte do mundo nos espaços em que a presença da Velha Guarda — do qual faziam
ocidental desprezem os anciãos, negra é marcante, percebe-se uma parte Pixinguinha, Raul de Barros,
marginalizando-os da dinâmica deferência àqueles que conduzem Benedito Lacerda e orquestra. Eles
do processo produtivo, em muitas as marcas, sintetizando um mundo rememoravam canções de Ernesto
regiões da África, do Oriente e bem particular. Nazareth, Chiquinha Gonzaga,
entre algumas tribos indígenas das É bem provável que Catulo da Paixão Cearense, entre
Américas, o idoso é reverenciado Pixinguinha, Donga, João outros notáveis. Apresentavam-
por ser detentor da sabedoria, da Baiana e outros “bambas” -se em programas de rádio, com
acumulada empiricamente, herança tenham criado, na década de retumbante sucesso.
de gerações passadas. É sabido, 1920, o Conjunto da Guarda- Diante da aceitação do público,
também, que nas sociedades -Velha, movidos pela certeza que lotava os auditórios das
ágrafas valoriza-se o testemunho da importância do trabalho de emissoras de rádio para aplaudir
que circula oralmente, histórias seu grupo para a fixação e o aqueles senhores, em 1954,
que tecem a história, a vida, desdobramento de uma forma de Almirante organizou, em São
consolidando as tradições, pilares ser, de estar e de se manifestar. Paulo, o I Festival da Velha Guarda,
de uma civilização. Além de divulgar as músicas de que se repetiu no ano seguinte. Do
Muitos africanos perpetuaram autoria de seus componentes, contingente carioca faziam parte,
sua cultura dando ouvidos ao o Conjunto da Guarda-Velha entre outros, Pixinguinha e Donga.
que seus ancestrais contavam e acompanhava regularmente Ainda em 1955, a Velha
cantavam. Assim sendo, mesmo cantores renomados, tais como Guarda gravou, sob a chancela da
transportados para bem longe de Carmem Miranda, Mário Reis e Sinter, seu primeiro LP, batizado
seu habitat, preservaram símbolos Sílvio Caldas. com o nome do grupo. No
de suma importância para Mais tarde, em 1947, o mesmo ano, segue-se outro LP
dossiê iphan 10 { Matrizes do Samba no Rio de Janeiro } 114
partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

— Carnaval da Velha Guarda. Estava recolhiam e ofereciam a todos,


consagrada a expressão, com a democraticamente, o perfume de
bênção de alguns dos patriarcas suas flores. Cultivadas com amor
da música popular brasileira. e dedicação, naquele momento
Nas escolas de samba mais maior dos folguedos de Momo,
antigas, fundadas na década de elas migravam de seus canteiros
1920, organizaram-se, por volta particulares para o grande jardim
dos anos 50/60, alas da Velha público, a Avenida.
Guarda, reunindo sambistas Há seis anos pertencendo à
que participaram dos primeiros Ala de Compositores da Portela,
momentos de suas agremiações. o jovem Paulinho da Viola, em
No dia do desfile, dividiam-se 1970, reuniu alguns sambistas
entre os participantes da comissão portelenses para registrarem
de frente e do contingente que algumas de suas composições em Para atender às várias
encerrava a apresentação. Ou seja, fita magnética. Cerca de trinta solicitações, o grupo se viu obrigado
eram as balizas que apresentavam músicas foram fixadas e, no mesmo a se reunir semanalmente no quintal
a escola ao público, com garbo ano, foi gravado um LP — Passado de Manacéa, figura emblemática
e elegância, e se despediam da de glória — no estúdio Havay, atrás do bairro. Depois passeou por
plateia, acenando o chapéu, com da Central do Brasil. Naquele outros quintais: da Doca, do
respeito e reverência. Sempre momento foi criada A Velha Guarda Argemiro, até chegar ao Cafofo
respeitados por suas comunidades, da Portela Show, cujas apresentações da Surica, ponto de encontro nos
esses senhores eram considerados encantaram e encantam Oswaldo dias atuais. Ali, além de passarem
os baluartes. Jardineiros e floristas Cruz e Madureira, o Rio de Janeiro, as músicas que fazem parte de seu
a um só tempo, semearam, o Brasil e os vários países que vasto repertório, discutem sobre
regaram e, naquele instante, tiveram a oportunidade de visitar. as tarefas cotidianas e exercitam
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Velha Guarda da Mangueira.


acervo centro
cultural cartola.

página ao lado
Velha Guarda da Portela.
acervo centro
cultural cartola.

o lúdico, expresso nas letras e identificado, o grupo se tornou parte de nossas O terreiro
melodias dos sambas de Oswaldo vidas. Não tem importância que muitos já O terreiro, nome dado às
Cruz, que têm particularidades não tenham morrido [...] e basta ouvir uma fita casas de candomblé em todo
percebidas pelos incautos, somente gravada que a emoção os traz de volta, morrer o país, local de transmissão
pelos iniciados, como é o caso de passa a ser só um detalhe. Eles compunham de conhecimentos, rituais de
Martinho da Vila, citado no livro A sem essa preocupação, já sabendo de antemão iniciação e integração, foi
velha guarda da Portela, de João Baptista que suas músicas permaneceriam. incorporado ao espaço do samba.
W. Vargens e Carlos Monte (2001): Terreiro é uma expressão que
As Velhas Guardas tradicionais remete à ideia de comunidade,
Uma das características da Portela é o e os seus grupos-show, organizados de grupo familiar extensivo.
estilo do samba: uma determinada linguagem, para apresentações, têm papel Simbolicamente, pode ser
uma determinada forma, uma determinada fundamental na preservação do entendido como o quintal dos
pulsação. Isso deu à Portela um samba que se acervo musical e da memória de sambistas, o terreno de ensaios
preocupa muito com a poesia, com o lirismo, escolas como Mangueira, Império das agremiações carnavalescas
com as frases de efeito. Serrano, Salgueiro, Portela. A e outros lugares onde se cria,
partir da iniciativa da escola de canta e dança o samba. Com
Sobre a Velha Guarda da Oswaldo Cruz, nos anos 70, elas se a adesão das classes médias, a
Portela manifesta-se, também, organizaram, em torno de sambistas modernização das agremiações
no prefácio do livro citado no dos núcleos fundadores ou da e o crescimento dos desfiles,
parágrafo anterior, a jornalista geração posterior, tornando-se um o terreiro das escolas virou
Lílian Newlands, que acompanhou espaço de resistência, gravaram discos quadra, cimentada. Mas o ideal
de perto sua trajetória: em que registram sambas de terreiro, do terreiro ligado ao grupo
partidos-altos e sambas-enredo, e se fundador das escolas permaneceu,
Hoje sei que, em algum lugar do reuniram na Associação das Velhas como canta Monarco em Samba,
passado, em algum momento que jamais será Guardas do Rio de Janeiro. velho amigo:
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Samba de quadra.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

Samba, Os atores
Velho amigo e companheiro, Desde sua origem, há mais
Alegria dos nossos terreiros de um século, o samba carioca se
Há muitos anos atrás. identifica com a camada pobre da
É este o mesmo samba verdadeiro população, sobretudo a de origem
Que partiu para o estrangeiro negra. Num primeiro momento
E penetrou nas camadas sociais. reprimido pelos poderes
Samba do Estácio e Ismael constituídos por ser identificado
De Cartola e Mestre Paulo à baderna e à malandragem,
Bide, Mano Rubem e Noel o samba era praticado pela
Estácio, Mangueira e Portela população marginalizada
Tijuca, Favela econômica e socialmente. Com o
Os professores do morro passar dos anos, e em decorrência
Nos mesmos ideais musical dos sambistas. Primeiro, da grande preocupação dos
Fizeram a grande alegria em torno das rodas de samba, próprios sambistas de “limpar”
Dos carnavais. por gerar o canto em conjunto o samba, trabalhadores se
Foi aí que o samba evoluiu e a dança coletiva, e, depois, organizaram para aprimorar
Como representante maior para além dos limites das suas performances e associar-
Da cultura do Brasil. escolas. Hoje, qualquer quintal se às classes mais favorecidas.
de subúrbio onde sambistas se Daí decorreram, por exemplo,
Nas comunidades do samba, o reúnam para celebrar revive em o acesso dos compositores
terreiro ou quadra, por permitir espírito o terreiro original. populares à indústria fonográfica
e estimular a participação e o crescente sucesso dos desfiles
comunitária, propiciou a criação e apresentações de sambistas no
e a circulação da produção Carnaval e fora dele.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Antes tratados como Klabin, mas até como passistas, tal A mídia, ao se apropriar do
curiosidade, recebendo da como a famosa Gigi da Mangueira, samba como um dos assuntos mais
imprensa adjetivos como oriunda de um dos mais caros e presentes, sobretudo no período
“bizarro”, os sambistas foram aos elitistas educandários da cidade. pré-carnavalesco e carnavalesco,
poucos conquistando o respeito Cabe notar que, a partir da acaba por desempenhar também o
e a admiração da sociedade, oficialização do desfile das escolas papel de ator na cena aqui descrita.
que aderiu ao novo gênero em de samba, ocorrida na década de Mídia, mercado e Estado são,
suas várias modalidades. Nesse 1930, também o Estado se torna sem dúvida, parte importante
momento, o espectro de atores se um importante ator: suas políticas da trajetória do samba e do
amplia, chegando às classes média — mais ou menos permissivas, mais reconhecimento de suas
e alta, que abraçaram com ardor ou menos estatizantes, ao sabor das matrizes no Rio de Janeiro.
crescente as práticas do samba. Nas vontades e conveniências — acabam Deve ser igualmente lembrada
décadas de 1940 e 50 compositores por ter repercussão sobre o que a participação, hoje bem mais
e intérpretes de samba podiam se faz, não logrando, contudo, moderada, dos banqueiros do
ser pessoas abastadas, como o modificar estruturalmente os ritos jogo do bicho. Não só pela origem
cantor Mário Reis, de uma das do samba. popular, em geral, e por serem
mais tradicionais famílias do Rio É inegável, no entanto, que o cultores sinceros do samba, mas
de Janeiro, que se notabilizou, impacto dessas políticas no mercado também pela busca da legitimidade
sobretudo, como intérprete de se faz sentir de forma clara. Embora social que os postos de mando nas
samba. Também nas escolas de ainda tímidos, alguns estudos dão escolas de samba lhes conferiam,
samba se torna comum, a partir conta do impacto do samba e das eles tiveram papel preponderante
da década de 1960, a participação escolas de samba na economia da na ascensão das escolas de samba,
de pessoas da sociedade, e não cidade, evidenciando o mercado pelos recursos financeiros que lhes
apenas como destaques, em ricas como um dos importantes atores do doavam e ainda pela capacidade
fantasias, caso da socialite Becky samba na atualidade. de liderança e organização que
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Escolas de samba mirins.


Acervo Centro
Cultural Cartola.

Página ao lado
Ensaio de escolas de
samba mirins.
Acervo Centro
Cultural Cartola

imprimiam a essas agremiações. Qualquer criança


Sem esses atores, outros bate um pandeiro
teriam sido talvez os rumos dessas e toca um cavaquinho,
matrizes. Mas eles não se comparam acompanha o canto de um
em importância aos verdadeiros passarinho
mentores e mantenedores do samba sem errar o compasso,
carioca: o povo, as comunidades de quem não acreditar
morros e subúrbios, os pintores de poderemos provar,
parede, como Nelson Sargento, os pode crer,
pequenos funcionários públicos, nós não somos de enganar
como Silas de Oliveira, as donas melodia mora lá
de casa, como Dona Neuma, as no Prazer da Serrinha.
enfermeiras, como Dona Ivone
Lara. E mais: bombeiros, lavadores A transmissão do Em recente entrevista a
de carros, trabalhadores da estiva, saber no samba estudantes de jornalismo, o
e muitos outros, que, ao longo O samba de Hélio dos Santos, cantor e compositor Jorginho
dos anos, conseguiram captar a o tio Hélio, e Rubens da Silva, do Império, 62 anos, filho de
adesão e a simpatia de advogados, chamado Prazer da Serrinha, gravado Mano Décio da Viola, um dos
fiscais de renda, professores, por Dona Ivone Lara em seu maiores compositores do Império
médicos, jornalistas. Se hoje o LP de estreia (1978), intitulado Serrano e do samba carioca, assim
samba é de todos — como gostam Samba, minha verdade, samba minha raiz, respondeu, quando indagaram qual
de afirmar, não sem razão — deve- descreve com fidelidade como o seu primeiro contato com essa
-se a essa heroica arraia-miúda sua se passa a herança musical da escola de samba:
permanência, sua transmissão e sua comunidade de sambistas:
importância.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

O samba e o Império Serrano fizeram tempo, a cultura afro-brasileira ensinou, no partido-alto, a versar versos. [...]
parte da minha vida desde a própria hora em é marcada pelo respeito aos mais Conclusão: lá mesmo, quando saí de lá, já saí
que nasci. Aprendi a dançar exatamente como velhos, aqueles que sabem mais e, já sabendo versar, improvisar e aprendendo.
aprendi a andar, sem ninguém me ensinar. portanto, têm mais a dar. Primeiro eu fui versando os versos dos outros...
Aprendi a cantar os sambas da escola junto aprendendo. Aí depois comecei a fazer.
com as primeiras palavras. O samba era parte Aprendi a tocar pandeiro e a versar pela (Xangô da Mangueira)
do mundo, do meu mundo. experiência vivida, pelo que via na casa de
Cartola, quando num dia versaram para Vendo os outros tocando, escutando...
Nas comunidades, a transmissão mim e eu tive que responder. Numa outra Esse é bom, vamos lá.
do samba se dá pela oralidade e ocasião, numa festa do Neguinho da Beija- (Pery Aimoré)
pela vivência. O aspecto presencial -Flor, alguém mandou um verso para mim
é fundamental. Desde pequenas, e eu respondi, sendo então aceita no meio [...] fomos até a Mangueira, lá na
as crianças das comunidades como partideira. Candelária, ver o Xangô e o Chico Porrão,
acompanham seus pais, irmãos (Leci Brandão) pouca gente conhece o Chico Porrão. A gente
e vizinhos às quadras das escolas sentava na cerca e ficava olhando Xangô
de samba. Como é sabido, é O samba de Rocha Miranda era... era e Chico Porrão. Cansamos de fazer isso.
forte a marca da oralidade na uma escola pequena, e o diretor da escola Não tinha nada para fazer... foi mais um
cultura popular: a transmissão chamava-se Lilico. A gente tratava ele de aprendizado.
do conhecimento se dá longe Lilico Papai (risos). Lilico Papai. E ele era (Pery Aimoré)
dos compêndios e do ensino um sujeito muito prestativo. [...] Aí depois
formal. Por isso, a expressão o Lilico me chamou e começou a me passar a Vi o mestre Fuleiro trabalhar. Vi o
escola de samba se reveste de forte sabatina: essa aqui, samba assim, batucada... Tijolo da Portela trabalhar, vi todos eles
significado, porque é, de fato, um Ele me ensinou de tudo que tinha direito. trabalharem. Eu não vou aprender? Que há?
espaço privilegiado de transmissão De tudo que tinha direito ele me ensinou Comigo é ali...
de saberes e fazeres. Ao mesmo [...] E aí eu vi, era o partido-alto. E ele me (Pery Aimoré)
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Cenas comuns que se desfile das escolas de samba lhes é Pequenos passistas são treinados
presenciam nas quadras de escolas facultada a partir dos sete anos de e observados, para que, na hora
são meninos brincando com as idade, em alas de adultos ou em certa, assumam a responsabilidade
peças da bateria antes do início alas exclusivas para crianças, que de substituição de postos.
do ensaio, tocando a seu modo, não são obrigatórias de acordo A observação cotidiana revela
tentando imitar os mais velhos; com o regulamento do desfile, mas um processo de sucessão comum
meninas sambando ao lado de existem em todas as agremiações; nas escolas. O mestre-sala é filho,
suas avós, mães e tias, copiando um indício da importância sobrinho, primo de mestre-sala; o
seus passos. As coreografias atribuída pelos sambistas à diretor de bateria é filho, genro,
desenvolvidas demonstram uma integração infantil. cunhado de diretor de bateria,
total integração da criança no Algumas agremiações, e assim por diante. As grandes
universo do samba. Normalmente por perceberem o risco de famílias de sambistas vão passando
são levadas para as quadras, enfraquecimento de suas tradições, para seus descendentes o legado
mesmo à noite, já que as famílias mantêm espaços específicos para do samba e das escolas; o culto
não têm com quem deixá-las. as crianças: baterias mirins são à ancestralidade se mantém com
Elas participam das atividades, criadas para fruição e também pujança. Copiar o gesto dos pais é a
decorando com grande facilidade para garantir às crianças um norma para as crianças.
as letras e as melodias dos sambas. horário de uso exclusivo das É importante observar que
Nas rodas de samba, nas festas peças; “escolinhas” de mestre-sala não apenas a dança, o canto e
ou nos ensaios, nas quadras das e porta-bandeira se destinam a o ritmo são transmitidos de pai
escolas ou nos quintais das casas descobrir, dentre os numerosos para filho. Também a riqueza de
dos sambistas, divertem-se ao interessados, os mais bem- ritos que compõem o cotidiano
mesmo tempo em que assimilam a dotados, a quem será dada a do samba vai sendo interiorizada
cultura do samba. oportunidade de ocupar seu pelas crianças em contato com
A participação das crianças no espaço em tão importante função. os mais velhos. A noção de
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Integrante de escola
de samba mirim.
Acervo Centro
Cultural Cartola

pertencimento, o envolvimento da pioneira escola de samba mirim


emocional, o sentimento de Império do Futuro, vinculada ao
raiz e tradição, inexistentes, Império Serrano, tornou-
por exemplo, no esporte, são -se comum a criação de escolas
transmitidos naturalmente no seu especificamente destinadas às
viver cotidiano. Isso porque para crianças. Ainda não é consenso que
as famílias do samba ele não é só este seja o melhor caminho, pois
um lazer, mas uma forma de vida o caráter segregacionista da ação é
e organização em comunidade. discutível. Também se discute se
O samba festeja os nascimentos, tais agremiações têm condições de
anima os aniversários, celebra proporcionar aos futuros sambistas
casamentos e consola nas a necessária proximidade com a
separações; o samba — no toque prática cotidiana do samba, em que
do surdo — lamenta nos enterros a questão institucional é o dado
dos “bambas”, mas na mesma menos relevante.
despedida ele também exalta as Durante a pesquisa foi possível
vidas bem-vividas.30 O samba reúne observar que a transmissão do
e aproxima no vagão do trem, na conhecimento de pais para filhos
volta do trabalho, ou no campo de é considerada um dos traços mais
futebol, no dia de folga. Ele ocupa relevantes para a permanência
toda a casa, o quintal, a cozinha, do samba, em qualquer de
a sala, a laje. É no dia a dia dessas suas modalidades. Para as
famílias do samba que o saber-fazer comunidades estudadas, trata-se
passa de uma geração a outra. de um valor cultural dotado de
Desde 1984, ano de fundação grande importância.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Detentores e Produtores da
da Tradição
Tradição do do Samba
Samba
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

página ao lado
Carnaval de rua.
Acervo Arquivo Nacional.

Depositários
reconhecidos da
tradição

• Aluízio Machado (Alcides Aluízio Janeiro, em 13/10/1935). • Dona Ivone Lara (Ivone Lara da
Machado, compositor e cantor, • David Correa (David Antônio Costa, cantora e compositora,
Império Serrano, nascido em Corrêa, compositor, Portela, Império Serrano, nascida no Rio
Campos, RJ, em 13/4/1939). nascido no Rio de Janeiro, em de Janeiro, em 13/4/1921).
• Aurinho da Ilha (Áureo 5/6/1937). • Ed Miranda (Ed Miranda Rosa,
Campagnag de Sousa, compositor • David do Pandeiro (David de presidente da Associação das
e cantor, União da Ilha, Araújo, compositor, cantor e Galerias das Velhas Guardas das
nascido no Rio de Janeiro, em ritmista, Portela, nascido no Rio Escolas de Samba do Estado do
12/3/1931). de Janeiro, em 28/12/1936). Rio, Mangueira, nascido no Rio
• Baianinho (Eládio Gomes dos • Délcio Carvalho (Délcio de Janeiro, em 12/12/1916).
Santos, compositor, cantor e Carvalho, compositor e cantor, • Edeor de Paula (Edeor José de
ritmista, Em Cima da Hora, Império Serrano, nascido em Paula, compositor, Em Cima da
nascido em Salvador, BA, em Campos, RJ, em 9/3/1939). Hora, nascido no Rio de Janeiro,
3/9/1936). • Delegado (Hésio Laurindo da em 16/12/1932).
• Careca (Arandi Cardoso dos Silva, mestre-sala, Mangueira, • Elton Medeiros (Elton Antônio
Santos, passista, Império nascido no Rio de Janeiro, em Medeiros, cantor e compositor,
Serrano, nascido no Rio de 29/12/1921). Unidos de Lucas, nascido no Rio
Janeiro em 5/8/1944). • Djalma Sabiá (Djalma de Oliveira de Janeiro, em 22/7/1930).
• Casquinha (Otto Enrique Costa, compositor e pesquisador, • Eunice (Eunice Fernandes da
Trepte, compositor e cantor, Salgueiro, nascido no Rio de Silva, pastora, Portela, nascida
Portela, nascido no Rio de Janeiro, em 13/5/1925). em 16/5/1920).
Janeiro, em 1º/12/1922). • Dodô (Maria das Dores • Hélio Turco (Hélio Rodrigues
• Dauro do Salgueiro (Dauro Rodrigues, porta-bandeira, Neves, compositor, Mangueira,
Ribeiro, compositor e cantor, Portela, nascida em Barra Mansa, nascido no Rio de Janeiro, em
Salgueiro, nascido no Rio de RJ, em 3/1/1920). 15/11/1935).
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

• Jorginho do Império (Jorge Ferreira, cantor, compositor e passista, Salgueiro, nascida no


Antônio Carlos, cantor e escritor, Vila Isabel, nascido em Rio de Janeiro, em 18/8/1948).
compositor, Império Serrano, Duas Barras, RJ, em 12/2/1938). • Nei Lopes (Nei Brás Lopes,
nascido no Rio de Janeiro, em • Mauro Diniz (Mauro Diniz, compositor, cantor, escritor e
13/2/1944). compositor e cantor, Portela, pesquisador, nascido no Rio de
• Laíla (Luiz Fernando Ribeiro do nascido no Rio de Janeiro, em Janeiro, em 9/5/1942).
Carmo, compositor, diretor de 3/10/1952). • Nelson Sargento (Nelson Matos,
harmonia, diretor de Carnaval, • Molequinho (Sebastião de compositor e cantor, Mangueira,
Beija-Flor, nascido no Rio de Oliveira, fundador e ex- nascido no Rio de Janeiro, em
Janeiro, em 1944). -presidente do Império Serrano, 25/7/1924).
• Leci Brandão (Leci Brandão da nascido no Rio de Janeiro, em • Niltinho Tristeza (Nilton de
Silva, compositora e cantora, 23/10/1920). Souza, cantor e compositor,
Mangueira, nascida no Rio de • Monarco (Hildemar Diniz, da Imperatriz Leopoldinense,
Janeiro, em 12/9/1944). compositor e cantor, Portela, nascido no Rio de Janeiro,
• Manuel Dionísio (Manuel dos nascido no Rio de Janeiro, em em15/10/1936).
Anjos Dionísio, fundador da 17/8/1933). • Noca (Osvaldo Alves Pereira,
Escola de Mestre-Sala, Porta- • Nanana (Lorenildes de Lima, compositor e cantor, Portela,
-Bandeira e Porta-Estandarte, passista, Mangueira, nascida no nascido em Leopoldina, MG, em
nascido em Além-Paraíba, MG, Rio de Janeiro, em 4/4/1943). 12/12/1932).
em 1937). • Nadinho da Ilha (Aguinaldo • Odilon (Odilon Costa, mestre
• Marçalzinho (Armando de Souza Caldeira, compositor, cantor, de bateria, União da Ilha/Grande
Marçal, percussionista e mestre percussionista, Unidos da Tijuca, Rio, nascido no Rio de Janeiro,
de bateria, Portela, nascido no nascido no Rio de Janeiro, em em 16/7/1957).
Rio de Janeiro, em 17/12/1956). 11/6/1934). • Olegária dos Anjos (Olegária
• Martinho da Vila (Martinho José • Narcisa (Narcisa Macedo, dos Anjos, destaque, Império
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Serrano, nascida no Rio de compositor, cantor e Santos Conceição, cantora,


Janeiro, em 2/8/1932). pesquisador, Mangueira, nascido nascida em Mendes, RJ, em
• Paulinho da Viola (Paulo no Rio de Janeiro, em 1947). 5/5/1911).
César Batista de Faria, cantor, • Tia Alice (baiana, da Estácio de • Wilson das Neves (Wilson das
compositor, instrumentista, Sá, nascida no Rio de Janeiro, em Neves, baterista e compositor,
Portela, nascido no Rio de 31/12/1928). Império Serrano, nascido no Rio
Janeiro, em 12/11/1942). • Tia Nilda (baiana, da Mocidade de Janeiro, em 14/6/1936).
• Rubem Confete (Rubem dos Independente de Padre Miguel, • Wilson Moreira (Wilson Moreira
Santos, compositor, radialista, nascida no Rio de Janeiro, em Serra, compositor e cantor,
jornalista e pesquisador, 7/4/1942). Portela, nascido no Rio de
nascido no Rio de Janeiro, em • Tião Miquimba (Sebastião Janeiro, em 12/12/1936).
7/12/1936). Estevão, ritmista, da Mocidade • Zeca da Cuíca (José de Oliveira,
• Sérgio Jamelão (Sérgio Amaral Independente de Padre Miguel, ritmista, da Estácio de Sá,nascido
da Silva, passista, mestre-sala, nascido no Espírito Santo, em em Macuco, município de Nova
diretor de harmonia, Império 21/1/1934). Friburgo, RJ, em 11/6/1934).
Serrano, nascido no Rio de • Velhas Guardas das Escolas de • Zé Luiz (José Luiz Costa
Janeiro em 1944). Samba do Rio de Janeiro. Ferreira, compositor e cantor,
• Soninha Capeta (Sônia • Vilma (Vilma Nascimento, porta- Império Serrano, nascido no Rio
Mascarenhas, passista, Beija- -bandeira, Portela/Tradição, de Janeiro, em 1944).
-Flor, nascida no Rio de Janeiro, nascida no Rio de Janeiro, em
em 4/3/1963). 1º/6/1938).
• Surica (Iranete Ferreira Barcelos, • Vitamina (Joel de Paula Soares,
pastora, Portela, nascida no Rio passista, Salgueiro, nascido no
de Janeiro, em 17/11/1940). Rio de Janeiro, em 9/10/1941).
• Tantinho (Devani Ferreira, - Vó Maria (Maria das Dores
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Chapéus para o carnaval.


foto: Márcio Vianna.
Acervo Iphan.

Referências
na história do
samba no Rio de
Janeiro

• Ademir Gargalhada
• Alberto Lonato
• Alcides Gregório
• Alvaiade
• Anescar
• Aniceto do Império
• Antenor Gargalhada
• Antônio Caetano
• Antônio Rufino
• Argemiro
• Armando Marçal
• Aroldo Melodia
• Ataulfo Alves
• Babaú
• Baiaco
• Beto Sem Braço
• Bicho Novo
• Bide
• Brancura
• Buci Moreira
• Calça Larga
• Calixto
• Candeia
• Carlos Cachaça
• Cartola
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

• Catoni • Luís Carlos da Vila • Roberto Ribeiro


• Cláudio Bernardo da Costa • Manacéa • Seu China
• Clementina de Jesus • Mano Décio da Viola • Silas de Oliveira
• Darcy da Mangueira • Mano Edgar • Sinhô
• Didi • Mestre André • Tia Ciata
• Doca • Mestre Fuleiro • Tia Eulália
• Dona Esther • Mestre Marçal • Tia Vicentina
• Dona Maria Romana • Mestre Waldomiro • Tijolo
• Donga • Mocinha • Toco
• Élcio PV • Natal • Vovó Maria Joana Rezadeira
• Elói Antero Dias • Nega Pelé • Xangô da Mangueira
• Geraldo Babão • Neide (Olivério Ferreira)
• Geraldo Pereira • Nelson Cavaquinho • Walter Alfaiate
• Guilherme de Brito • Neném do Buzunga • Wilson Batista
• Heitor dos Prazeres • Neuma • Zé Espinguela
• Isabel Valença • Nilton Campolino • Zé Keti
• Ismael Silva • Noel Canelinha • Zica
• Jamelão • Noel Rosa de Oliveira
(José Bispo Clementino • Osmar do Cavaco
dos Santos) • Padeirinho
• Jair do Cavaquinho • Pato Rouco
• João da Baiana • Paula do Salgueiro
• João Nogueira • Paulo Brazão
• Jovelina Pérola Negra • Paulo da Portela
• Jurandir da Mangueira • Preto Rico
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lugares
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Ritmistas.
Acervo Arquivo Nacional.

D esde as primeiras décadas do


século XX, o samba não se
limitou a um lugar, a um espaço
embarquem em rodas de sambas
que acontecem dentro de cada
vagão. O trem parte da Central
de novos espaços consagrados
ao samba tradicional, “de raiz”,
como dizem os próprios sambistas,
único de manifestação. Ainda que o do Brasil, no Centro do Rio de pode ser apontado como uma
terreiro da escola de samba — hoje, Janeiro e vai até Oswaldo Cruz, estratégia dessas comunidades
quadra — seja considerado um onde todos são recebidos com diante da redução dos momentos
espaço privilegiado, fundamental mais samba. para a sua fruição nos espaços
para a sua criação e transmissão, o Em torno de jaqueiras, originais. Se na quadra da escola
samba se deu e se dá em qualquer mangueiras, tamarineiras, o samba-enredo hoje domina, no
lugar, em qualquer hora, bastando em quintais do subúrbio, o bar Candongueiro, em Pendotiba
que os sambistas se reúnam. Foi samba carioca é celebrado e se (Niterói), o partido-alto impera.
assim que ele se espalhou pela renova (não sem tensões). O Não há sambista que não se sinta
cidade, e é assim que ele ainda se bloco carnavalesco Cacique de em casa no Candongueiro. Para o
manifesta hoje. Ramos, por exemplo, teve papel Samba do Trabalhador, no Clube
Foi dentro dos trens que fundamental no amadurecimento Renascença, no Andaraí, também
o samba chegou à “roça” de de uma nova geração de sambistas, convergem velhos e novos adeptos
Oswaldo Cruz e Madureira, nas últimas décadas do século do samba de linha mais tradicional.
levado pelos “bambas” do passado, animado pelo espírito A renovação do bairro da
Estácio.O fato que é relembrado de reunião, troca e invenção, tão Lapa, com a abertura de bares
todo ano, no Dia Nacional do importante na formação do samba e centros culturais que dão
Samba — 2 de dezembro —, com o no Rio de Janeiro. No Pagode espaço e destaque aos sambistas
Pagode do Trem. Nesse dia, uma de Tia Doca, em Madureira, é a tradicionais, criou nos últimos
composição inteira é reservada tradição dos “bambas” da Portela anos um circuito alternativo
para que sambistas tradicionais, que atrai e se destaca. para apresentação de sambas de
amantes do samba e até turistas O surgimento ou consolidação terreiro e de partido-alto.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

A geografia do samba no não vai cantar outra vez! Tá parado!” Aí alternativo do Terreirão do Samba,
Rio de Janeiro se transforma, acabou. Então nego ficou de mal comigo... situado ao lado da passarela, que se
em todo momento, com ganhos (Xangô da Mangueira) institui o ponto de encontro dos
de um lado e perdas de outro. sambistas, com preços acessíveis
Nas perdas, a tensão, muitas Do outro lado, a e opções de alimentação mais
vezes, está presente. E “perda” modernização das escolas ergueu amigáveis do que as cadeias de
não significa necessariamente na cidade novos espaços, não fast food que abastecem a Passarela
o fechamento físico de espaços focados necessariamente nas do Samba. Com as barraquinhas
tradicionais, mas o aumento matrizes, mas no espetáculo. exploradas por populares que
da concorrência com a entrada Não é o espaço físico em si que participam de concorrência
na cena de outros gêneros de define esses atributos, mas os seus pública, já se formou uma cadeia
música, como o funk: usos. No caso do Sambódromo, de referências pessoais e de
inaugurado em 1984 e onde agremiações, mapeando os espaços
Resultado: ele chegou, parou o samba acontecem os desfiles dos grupos e facilitando a participação dos
e pediu para cantar essa música. Agora até principais, o preço dos ingressos sambistas numa festa que lhes é hoje
proibiram as escolas que cantassem essas afastou a população de baixa hostil em muitos aspectos.
músicas que eles têm. E na Mangueira ele renda das arquibancadas, mas a Em 2005, foi entregue às
chegou e aí eu: “Pára!”, e ele “Ah, mas decisão recente de se realizarem escolas a Cidade do Samba,
Xangô!”, “Pára! Eu já mandei parar. ensaios técnicos gratuitos, nos construída na Zona Portuária,
Não leva a mal mas eu sou o diretor e fins de semana de dezembro até com modernos galpões onde são
enquanto eu estiver aqui não canta porque fevereiro, revitalizou a Avenida. confeccionadas fantasias e alegorias
isso aí não é samba, isso aí é...” Tem um Durante o Carnaval, o povo, para os desfiles. Desde então,
nome... esqueci o nome. “Isso aí não é afastado do Sambódromo pelos paralelamente a apresentações de
samba e isso aqui se chama escola de samba altos preços ali cobrados, não samba destinadas a turistas, com
Estação Primeira de Mangueira. Então se afasta do samba. É no espaço preços elevados que impedem a
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Enfeites carnavalescos.
foto: Márcio Vianna.
Acervo Iphan.

participação popular, o sambista


instituiu no entorno seu espaço de
criatividade e de lazer, moldando o
novo espaço à sua maneira.
Mas o samba das escolas
não se resume ao espetáculo
do Sambódromo, como pode
imaginar quem lê a cobertura
dos jornais. Dezenas de
agremiações, de menor porte,
mas de fundamental importância
para a vida cotidiana de bairros
do Rio de Janeiro — no lazer, na
criação musical e na associação Carnaval e do samba cariocas. Mangueira, Estácio, Tijuca, Vila
comunitária —, mantêm vivo Diante dessa quantidade e Isabel, Madureira e Oswaldo
o chamado “samba no pé”, diversidade de agremiações que Cruz. As escolhidas mostraram
em atividades nas quadras ao cultivam o samba no Rio de em sua trajetória, iniciada no
longo do ano e nos seus desfiles Janeiro, foram escolhidas para momento em que essas formas
carnavalescos. Essas agremiações, descrição neste dossiê, conforme de expressão se consolidaram,
que ocupam a Estrada Intendente já explicitado na introdução, uma preocupação com as matrizes
Magalhães, em Campinho, seis escolas que se vinculam a culturais e não apenas com os
subúrbio da cidade, se comunidades de forte tradição aspectos performáticos do samba,
apresentavam, até o início desta de samba, sobretudo por sua mantendo viva a memória dos que
década, na Avenida Rio Branco, localização geográfica em redutos participaram desse processo, do
no Centro, tradicional espaço do tradicionais de sambistas: qual elas são referências.
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Grêmio
recreativo
escola de samba
Estação Primeira
de Mangueira

Após a Proclamação da Mangueira, espólio do português Entre os anos de 1910 e 1913, quando
República, com a saída da família Francisco de Paula Negreiros Saião o samba não tinha nenhum valor e nem se
imperial do Brasil, a Quinta da Lobato, o visconde de Niterói, que pensava em escolas de samba, a Mangueira
Boa Vista, jardim do imperador, recebera as terras de presente do já despontava como pioneira dos carnavais
tornou-se um matagal abandonado, imperador. O primeiro morador do cariocas. Naquela época, já existiam aqui
sendo aos poucos invadida pela morro foi o cabo ferrador Cândido dois fortes e aguerridos cordões: Guerreiros
população errante, que lá ia Tomás da Silva, o Mestre Candinho. da Montanha e Trunfos da Mangueira.
construindo suas casas. Por Em 1916, chegaram outras O primeiro tinha sua sede na casa da Tia
abrigar, na mesma área, o quartel famílias de ex-escravos, Chiquinha Portuguesa e o segundo na
do 9º Regimento de Cavalaria, ali transferidas do Morro de Santo casa do Leopoldo da Santinha, ambas no
moravam também diversas famílias Antônio, que havia sofrido um Buraco Quente. Os cordões eram mais
de soldados. incêndio. Lá já encontraram antigos e maiores que os ranchos, tanto em
Em 1908, o prefeito da cidade barracos para alugar, construídos pessoas como em instrumental. Tinham uma
do Rio de Janeiro, Serzedelo por outro português, Tomás comissão de frente de índios. Os componentes
Correia, resolveu demolir os Martins, arrendatário das terras do carregavam bichos vivos: cobras, lagartos,
barracos e expulsar os invasores. Os visconde. Quem ia mensalmente bichos de pena. A coreografia era indígena.
soldados expulsos, juntamente com aos barracos cobrar os aluguéis O estandarte era um pau bem grosso, de uns
os demais moradores, solicitaram era o afilhado de Tomás, um dois metros de alto, que só podia ser carregado
ao comandante do Regimento rapazinho de 14 anos, que nascera por homens bem fortes. Eu saía fantasiado
autorização para levar o material ali mesmo, no dia 3 de agosto de caboclo Caramuru, de saiote branco de
das demolições e, com ele, levantar de 1902. Esse adolescente, que morim, com uma cruz encarnada no peito,
novas moradas em outro lugar. já exercia tal tarefa desde os oito outra nas costas e um capacete de três penas.
O pedido foi atendido, e o local anos de idade, era Carlos Moreira Levava nas mãos um arco, um escudo e um
escolhido pelos “retirantes” foi de Castro, que ficaria conhecido machadinho. Pouco antes da primeira guerra,
o lado quase vazio do Morro da como Carlos Cachaça. de 1914, apareceram os ranchos. Aqui
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tivemos três: o Pingo do Amor, o Príncipe das Escola de Samba Estação Primeira Cartola foi também o primeiro
Matas, do seu Zé das Pastorinhas, e o Pérolas de Mangueira, reunindo, em torno mestre de harmonia, o ensaiador
do Egito, da Tia Fé.31 de si, todos os demais blocos da do coro de pastoras, e dividia com
comunidade. Assim, em 28 de abril Carlos Cachaça o título de melhor
Para uma comunidade pobre de 1928, na Travessa Saião Lobato, compositor da comunidade.
como aquela, era praticamente número 21, Euclides Roberto dos Saturnino, pai da Dona Neuma,
impossível manter um rancho Santos (morador desse endereço), foi o primeiro presidente. Massu,
durante muito tempo, dado o luxo Pedro Caim, Abelardo Bolinha, o primeiro mestre-sala. Zé
das fantasias e o alto custo dos Saturnino Gonçalves (Satur, o pai Espinguela, o primeiro realizador
instrumentos de sopro e de corda. de Neuma — mais tarde conhecida de um concurso entre escolas
Por isso, começaram a aparecer como a Dona Neuma, uma das de samba, no dia 20 de janeiro
os blocos, as células de onde figuras mais importantes em toda de 1929, dia de São Sebastião,
surgiriam as escolas de samba. A história da escola), José Gomes da padroeiro da cidade.
Mangueira tinha o Bloco da Tia Costa (Zé Espinguela), Marcelino A escola uniu e une moradores
Fé, o Bloco da Tia Tomásia, o José Claudino (Massu) e Angenor das diversas localidades do Morro
Bloco do Mestre Candinho. de Oliveira (Cartola) fundaram a da Mangueira: Chalé, Tengo-
Em 1925, Carlos Cachaça, Estação Primeira. As cores verde e -Tengo, Santo Antônio, Faria,
Cartola, Saturnino, Arturzinho, Zé rosa — inspiradas no rancho de sua Pedra, Joaquina, Pindura Saia,
Espinguela, Massu, Antônio, Chico infância, o Arrepiados, do bairro Red Indian, Telégrafo, Candelária,
Porrão, Homem Bom e Fiúca de Laranjeiras — e o nome da escola Buraco Quente e outros. De lá,
fundaram o Bloco dos Arengueiros, foram escolhidos por Cartola: veio uma grande linhagem de
que, como o próprio nome sugere, poetas do samba no Rio de Janeiro
reunia a rapaziada que era boa de Eu resolvi chamar de Estação Primeira, além de Cartola e Carlos Cachaça,
samba e de briga. Esse bloco, três porque era a primeira estação de trem, a partir Nelson Cavaquinho, Geraldo
anos depois, se transformou na da Central do Brasil, onde havia samba.32 Pereira, Padeirinho, Pelado, Preto
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Mestre Sala e Porta


Bandeira da mangueira
(Desfile na Marquês de
Sapucaí, 2008).
Foto: Wigder forta,
Acervo da Liga
Independente das Escolas
de Samba - liesa.

Rico, Jorge Zagaia, Jurandir,


Xangô da Mangueira, Nelson
Sargento. Foram eles que ajudaram
a construir, com a sua música, a
imagem de uma “nação verde-e-
-rosa”, encravada no subúrbio,
mas aberta para toda a cidade e
para o país.
A Mangueira venceu 17 vezes
o desfile do Carnaval. Entre os
sambas-enredos que viraram
clássicos do gênero estão Vale do
São Francisco (1948, de Cartola
e Carlos Cachaça); As quatro
estações do ano (1955, de Alfredo
Português, Jamelão e Nelson
Sargento); O grande presidente (1956,
de Padeirinho); Casa grande e senzala
(1966, de Jorge Zagaia, Leléo e
Comprido); O mundo encantado de
Monteiro Lobato (1967, de Hélio
Turco, Darci, Jurandir, Batista e
Luiz) e Cem anos de liberdade, realidade
ou ilusão (1988, de Hélio Turco,
Jurandir e Alvinho).
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Grêmio
Recreativo
Escola de Samba
Portela

O Grêmio Recreativo Escola famílias de baixa renda, a maioria de conhecido no mundo do samba
de Samba Portela é uma das mais origem negra, que tinham deixado como Paulo da Portela, é a figura
antigas e tradicionais agremiações o centro da cidade ou o interior do central inspiradora das numerosas
da cidade do Rio de Janeiro e Estado do Rio e de estados vizinhos conquistas da Portela. Nascido em
a que conquistou mais vitórias em busca de lugar para morar. 1901 e criado na Zona Portuária
no Carnaval, contando 21 A Portela, cujas cores são o do Rio de Janeiro, mudou-se
campeonatos. Foi fundada em 11 azul e branco, tem como seus com sua mãe e os irmãos para
de abril de 1923, no subúrbio de santos protetores Nossa Senhora Oswaldo Cruz por volta de 1920.
Oswaldo Cruz, inicialmente com da Conceição e São Jorge, Distinguiu-se, desde cedo, pelo
o nome de Bloco Carnavalesco respectivamente Oxum e Ogum. exercício sereno da liderança
Vai Como Pode, depois Conjunto Como símbolo da escola, surgiu sobre seus companheiros e pela
Oswaldo Cruz e finalmente Portela. a figura da águia, o pássaro preocupação constante em buscar
Nos primeiros anos de existência soberano que voa mais alto do que o reconhecimento do samba, pela
da Portela, a região de Oswaldo todos os demais. sociedade, como um divertimento
Cruz ainda guardava recente Sua fundação se deve a um sadio de cidadãos humildes, nem
memória do tempo em que nela punhado de jovens entusiastas por isso, menos dignos.
existia o Engenho Portela, de do Carnaval e do samba, sob a O exercício dessa missão não
propriedade dos descendentes do liderança dos cariocas, Paulo ofuscou as qualidades do exímio
português Miguel Gonçalves Portela Benjamim de Oliveira e Antônio sambista e inspirado compositor
e que veio a dar nome à estrada e à Caetano e do mineiro Antônio de sambas antológicos como Cidade
própria agremiação. Subúrbio da Rufino dos Reis, natural de São mulher, Orgulho e hipocrisia, Cocorocó,
Central, o bairro cresceu em torno José das Três Ilhas, localidade Quitandeiro, Linda borboleta, e tantos
da estação de trem, que a partir do próxima a Juiz de Fora. outros. Falecido em 1949, é venerado
fim do século XIX e no início do O primeiro deles, Paulo pelos portelenses, que até hoje o
século XX trouxe para aquela “roça” Benjamim de Oliveira, que ficou chamam de “nosso professor”.
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Falar da Portela é falar também primeira a apresentar alegorias para Histórico” Lopes, Manacéa,
de Natalino José do Nascimento, melhor demonstrar visualmente o Mijinha, Aniceto, Alvaiade,
o Natal da Portela, liderança enredo; a usar a corda para limitar Chatim, Armando Santos,
carismática que dedicou toda a sua a área de exibição dos sambistas; a Chico Santana, Alberto Lonato,
energia para conduzir a escola a levar uma comissão de frente; a dar Argemiro. E mais tarde, a partir da
partir do final da década de 1940 e destaque aos passistas e a utilizar década de 1960, Candeia, Valdir 59,
até a sua morte, em 1976. Foi nesse novos materiais em seus carros e Jorge Bubu, Valter Rosa, Picolino,
período que a agremiação alcançou tripés, como espelhos, por exemplo. Zé Keti, Jair do Cavaquinho, Carlos
as suas maiores glórias, inclusive Sua bateria introduziu o uso de Elias e tantos outros.
o famoso heptacampeonato, de instrumentos como a caixa surda e A memória musical desses
1941 a 1948. E foi também, sob o reco-reco, no tempo de mestre pioneiros inspirou Paulinho da
a direção de Natal que a Portela Betinho, e os atabaques e agogôs, por Viola a registrar — num movimento
expandiu-se a partir da sua antiga iniciativa de mestre Oscar Bigode. pioneiro — as obras e vozes desses
sede, a Portelinha, e passou a Ao longo de sua história, “bambas” em um disco magistral,
realizar seus ensaios nos clubes a Portela sempre se distinguiu gravado em 1970, sob o título de
Imperial e Mourisco, em Madureira pela extrema qualidade de sua Portela passado de glória.
e Botafogo, respectivamente. Lá música, recheada de citações à A iniciativa de Paulinho resultou
permaneceram até a inauguração natureza, delicada no trato da na formação do Grupo Musical
da atual sede, em 1972, conhecida figura feminina, marcada pelo rico Velha Guarda da Portela, que há
como Portelão, situada na Rua Clara fraseado musical e pela harmonia 36 anos ininterruptos se apresenta,
Nunes 81, limite entre os subúrbios rebuscada. Entre os grandes privilegiando as criações musicais
de Oswaldo Cruz e Madureira. compositores portelenses estão, de seus antecessores. Ao longo
A Portela é reconhecida por além dos três fundadores Paulo, desse período a formação do grupo
muitas inovações que introduziu Caetano e Rufino, as figuras só foi alterada pelo falecimento
nos desfiles carnavalescos. Foi a de Ventura, Alcides “Malandro de componentes, sob liderança
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Desfile da Portela na
Marquês de Sapucaí (2008).
foto: wigder frota,
Acervo da Liga
Independente das Escolas
de Samba - liesa.

exercida, no início, por Manacéa e,


mais recentemente, por Monarco.
Da Portela surgiram as escolas
de samba Tradição e Quilombo,
cujas fundações são resultado do
que é chamado pelos sambistas de
modernização do Carnaval e que
provoca reações e resistências,
principalmente nas escolas mais
tradicionais, como é o caso da
própria Portela.
A Quilombo foi fundada por
Candeia (Antônio Candeia Filho),
em 1975. Nascido em 1935, em
Oswaldo Cruz, filho de portelenses,
coautor de seis sambas-enredos da
Portela (os de 1953, 55, 56, 57,
59 e 65) e de Samba da antiga, Dia de
graça e Luz da inspiração, o partideiro
liderou com a Quilombo um
movimento de resistência e reação
à descaracterização das escolas de
samba. Sobre o tema, escreveu o
livro Escola de samba, árvore que esqueceu
a raiz.
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Bateria da Império Serrano.


foto: Diego Mendes,
Acervo Centro
Cultural Cartola.

cúmulo de desprezar na hora do Foi na casa da Dona Eulália,


desfile o samba Conferência de São irmã de Molequinho, na Rua
Francisco, de Silas de Oliveira e Balaiada, no coração do Morro
Grêmio Mano Décio da Viola, que fora da Serrinha, que a ideia de
ensaiado com antecedência e feito Molequinho se tornou realidade:
Recreativo especialmente para “contar” o saiu reunindo num caderno as
Escola de Samba enredo apresentado pela escola, assinaturas dos que o apoiavam. O
o que na época era novidade. símbolo — uma coroa — e o risco
Império Serrano “Seu” Alfredo resolveu na hora da bandeira surgiram das mãos
do desfile que seria cantado um hábeis de Mestre Caetano. O nome
antigo samba de terreiro, No alto da foi sugerido por Molequinho
colina. O resultado foi uma péssima e aceito por unanimidade, mas
colocação da escola, uma das na escolha das cores ele foi voto
O Grêmio Recreativo Escola favoritas naquele ano. vencido. Era, enfim, a democracia
de Samba Império Serrano foi Foi grande o desapontamento que chegava. Prevaleceu a sugestão
fundado em Madureira, em 1947, dos sambistas. Um deles, Sebastião do compositor Antenor, pintando
mais precisamente no Morro da de Oliveira, o Molequinho, seus de verde e branco o Morro da
Serrinha, graças a uma dissidência irmãos, compadres e amigos Serrinha, o subúrbio de Madureira
da escola de samba Prazer da resolveram fundar uma escola e o Carnaval carioca. As cores
Serrinha. Sua história está ligada de samba que fosse totalmente verde e branco foram escolhidas
ao desejo de justiça, democracia inovadora. E, principalmente, por representarem a esperança e a
e participação. No Prazer da deveria ser uma escola onde todos paz, respectivamente.
Serrinha havia um dono, Alfredo tivessem o direito de opinar e ser Para a formação da nova
Costa, que mandava e desmandava. ouvido. Nascia assim, em 23 de escola foi fundamental o apoio
No Carnaval de 1946, chegou ao março de 1947, o Império Serrano. e a experiência de Elói Antero
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Dias, líder comunitário de grande a primeira escola a trazer todos chegou a disputar o segundo
importância para a consolidação os seus componentes fantasiados grupo, em 1979 —, a escola foi
da cultura afro-brasileira em e também a ter o casal de mestre- à Avenida com o antológico
nossa cidade. Como seu genro, -sala e porta-bandeira no meio samba-enredo Bum bum paticumbum
João de Oliveira, conhecido da escola, e não à frente, como prugurundum, de Beto Sem Braço e
como João Gradim, irmão de era costume. Inovações que se Aluísio Machado, que contava a
Molequinho e Dona Eulália, foi tornaram regra de todas as outras história dos antigos carnavais e é
o primeiro presidente da nova escolas até hoje. um dos mais populares de todos
agremiação. Mano Elói, como Depois da boa estreia, a escola os tempos. Nos anos 90, a escola
era chamado, não poupou manteve a dianteira, conquistando amargou alguns rebaixamentos,
esforços para que o Império os campeonatos de 1949, 50 e 51. oscilando entre o Grupo de Acesso
Serrano se impusesse, desde o Nas décadas de 1950 e 60, a escola e o Especial. Em 2000, a escola
primeiro momento, como algo se notabilizou por compositores venceu no Grupo de Acesso,
novo e diferente. de samba-enredo que renovaram com o enredo “Os canhões de
Os primeiros dirigentes da o gênero, em especial, Silas de Guararapes”, uma homenagem
escola eram trabalhadores do Oliveira, autor de nada menos que ao Estado de Pernambuco. O
cais do porto do Rio de Janeiro 14 sambas cantados na Avenida. Império ganhou nota dez em
e traziam a experiência da Outros autores de destaque foram todos os quesitos e voltou para o
militância sindical. A capacidade Mano Décio da Viola e Dona Grupo Especial.
de organização fez a diferença Ivone Lara, primeira mulher a se O Império Serrano nasceu sob
na gestão da escola. Como na destacar no ramo. o signo da liberdade de expressão,
época ainda não havia segundo Um dos maiores sucessos da de opinião. E esta luta continua.
nem terceiro grupo, o Império história da escola ocorreu em Nunca teve um patrono, e sua
Serrano começou concorrendo 1982. Depois de terminar a década diretoria é escolhida em eleições
com as melhores e ganhando. Foi de 1970 em baixa — quando livres. Muitos de seus problemas
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grêmio
recreativo
escola DE SAMBA
Acadêmicos
do Salgueiro

advêm exatamente dessa estrutura O Morro do Salgueiro foi Dominó, o Grêmio Recreativo
— a democracia tem seu preço. ocupado no início do século XX Sport Club Azul e Branco e o
Em seus 59 anos de existência, por ex-escravos e migrantes, gente Cabaré do Calça Larga —; e da
foi campeã do Carnaval por nove pobre do interior e de outros religiosidade — no Cruzeiro, no
vezes, sendo quatro consecutivas. Estados. O nome Salgueiro veio terreiro de Seu Oscar Monteiro,
É a terceira colocada em número do português Domingos Alves na Tenda Espírita Divino Espírito
de campeonatos conquistados, Salgueiro, comerciante, dono Santo, de Paulino de Oliveira e na
perdendo apenas para Mangueira de uma fábrica de conservas e de casa das benzedeiras.
e Portela, ambas com mais anos barracos no morro. Ao mesmo São padroeiros do morro:
de trajetória. Já recebeu dez vice- tempo em que iam erguendo suas São Sebastião, reverenciado em
-campeonatos e nove terceiras moradias humildes, os primeiros 20 de janeiro; e o orixá Xangô
colocações, o que a caracteriza salgueirenses davam nomes às (correspondente, no sincretismo
como uma das grandes escolas localidades do morro: Sossego, religioso, a São Jerônimo,
de samba do Rio de Janeiro. Seu Campo, Pedacinho do Céu, comemorado pela igreja católica no
reduto é o Morro da Serrinha, Canto do Vovô, Caminho Largo, dia 30 de setembro, mesma data em
no limite entre os bairros de Trapicheiro, Portugal Pequeno, que Xangô é celebrado nos cultos
Madureira e Vaz Lobo. Ali, além Sempre Tem, Anjo da Guarda, afro-brasileiros). A fé no santo e
do samba, se cultua o jongo e se Terreirão, Grota, Rua Cinco, no orixá explica a predileção dos
preserva de maneira exemplar a Carvalho da Cruz. moradores do Salgueiro pelas cores
tradição cultural de matriz afro- A vida começou a se organizar vermelho e branco.
-brasileira do Rio de Janeiro. Por em torno das tendinhas e vendas — O morro abrigou blocos como o
suas características de preservação de Ana Bororó, Neca da Baiana, Flor dos Camiseiros, o Capricho do
e culto à tradição, o Império Casemiro Calça Larga, Anacleto Salgueiro, o Príncipe da Floresta, o
Serrano é conhecido como o Português —; dos grêmios — o Unidos da Grota. Em um concurso
Quilombo do Samba. Grêmio Recreativo Cultivista organizado no morro, na década de
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1930, por Dona Alice da Tendinha, e Império Serrano. Foi em 1953 A nova escola, a Acadêmicos
daqueles blocos surgiram as escolas que Geraldo Babão propôs a união do Salgueiro, foi fundada em 5
de samba Unidos do Salgueiro (azul de forças: de março de 1953, por sambistas
e rosa), Azul e Branco e Depois Eu da Depois Eu Digo e da Azul
Digo (branco e verde). Vamos balançar a roseira, e Branco, que escolheram o
A Azul e Branco tinha Antenor Dar um susto na Portela, vermelho e o branco como cores
Gargalhada, Eduardo Teixeira, no Império, na Mangueira. da bandeira. Poucos anos depois,
Paolino Santoro, o Italianinho do a Unidos do Salgueiro acabou, e a
Salgueiro. Na Unidos do Salgueiro, Se houver opinião, Acadêmicos do Salgueiro recebeu
fusão dos blocos Capricho do o Salgueiro apresenta os seus componentes.
Salgueiro e Terreiro Grande, estava uma só união, Com enredos inspirados em
Joaquim Casemiro, o Calça Larga, personagens e na cultura afro-
uma das lideranças do morro. Vamos apresentar -brasileira, em vez dos temas
A Depois Eu Digo reunia Pedro um ritmo de bateria históricos tradicionais, resultado
Ceciliano, o Peru, Paulino de Pro povo nos classificar principalmente do trabalho do
Oliveira e Mané Macaco. em bacharel, cenógrafo e carnavalesco Fernando
Apesar do brilho dos Bacharel em harmonia. Pamplona, o Salgueiro marcou
compositores locais - Geraldo uma mudança nos desfiles.
Babão, Noel Rosa de Oliveira, Na roda de gente bamba, “Quilombo dos Palmares” (1960),
Guará, Duduca, Abelardo, Bala, Frequentadores do samba “Chica da Silva” (1963), “Chico-
Anescar, Antenor Gargalhada, Vão conhecer o Salgueiro Rei” (1964) e “Bahia de todos
Djalma Sabiá -, as agremiações Como primeiro em melodia. os deuses” (1969) são alguns
do morro não se saíam bem dos temas do Salgueiro nesse
nos desfiles de Carnaval, então A cidade exclamará em voz alta: período. “Chica da Silva” levou
dominados por Mangueira, Portela - Chegou, chegou a Academia! a sambista Isabel Valença a ser
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ala das Baianas do


Salgueiro.
foto: diego mendes,
Acervo Centro
Cultural Cartola.

consagrada. Após grande polêmica


na cidade, Isabel, fantasiada como
Chica, participou do concurso
de fantasias de luxo do Theatro
Municipal do Rio de Janeiro e o
venceu. Foi a primeira mulher
negra a ganhar o prêmio.
Em 1965, Joãosinho Trinta,
um jovem bailarino do Theatro
Municipal foi trabalhar com
Fernando Pamplona no Salgueiro.
Nas décadas de 1970 e 1980,
Joãosinho faria uma revolução nos
desfiles das escolas (primeiro no
Salgueiro, depois na Beija-Flor),
criando superalegorias que seriam
acusadas de esconder os sambistas,
fazendo prevalecer o visual sobre o
samba no pé.
O Salgueiro venceu oito carnavais
do Rio de Janeiro, os de 1960, 1963,
1965, 1969, 1971, 1974, 1975 e 1993.
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20, por Acelino dos Santos (Bicho defender a fusão das agremiações
Novo), Miquimba, Chiquinho, em uma só: a Unidos de São
Grêmio Geleia, Rubem, Xangô e Carlos. Entre os seus fundadores
recreativo Gaudêncio, levava as cores verde estão Miro, Caldez, Cândido
e rosa e tinha como símbolo um Canário, José Botelho, Manuel
escola de samba ramo e uma baiana. A Recreio Bagulho, Maurício Gomes da Silva,
Unidos de de São Carlos — inicialmente Sidney Conceição, Walter Herrice,
chamada Vê Se Pode — nasceu em Zacharias do Estácio, entre outros.
São Carlos/ 1929, na localidade denominada Foram adotadas as cores azul e
Estácio de Sá Atrás do Zinco, e suas cores eram branco e, como símbolo, duas
o verde e o branco. A Paraíso das mãos entrelaçadas.
Morenas, bem mais recente, foi Dez anos depois, em 1965,
fundada em 1947, com as cores as cores foram mudadas para o
O Grêmio Recreativo Escola azul e rosa, no Larguinho. vermelho e branco por serem as
de Samba Estácio de Sá foi criado Naquela época, com pequena do América Futebol Clube (time
em 27 de fevereiro de 1955, com subvenção e sem apoio financeiro de futebol adorado por moradores
o nome de Unidos de São Carlos. externo, a única fonte de do morro) e da Deixa Falar,
A agremiação surgiu da fusão sobrevivência era o Livro de Ouro considerada pelos sambistas a
de três escolas do Morro da São — prática comum entre as escolas primeira escola de samba.
Carlos: a Cada Ano Sai Melhor, para arrecadar recursos com os Assim, o berço das escolas de
a Paraíso das Morenas e a Recreio comerciantes. As dificuldades samba foi o Estácio, na época de
de São Carlos. deixaram as escolas do Morro de Ismael Silva, Bide, Marçal, Mano
A Cada Ano Sai Melhor, São Carlos fora dos desfiles de Rubens, Nilton Bastos. O grande
fundada na Rua da Capela, no 1953 e 1954, o que levou sambistas valor do bairro do Estácio para o
Beco da Padeira, em fins dos anos do bairro do Estácio de Sá a samba carioca foi imortalizado pelos
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

próprios sambistas, como mostra O Sair do Estácio é que é qualidade de seus sambas-enredos.
“x” do problema, de Noel Rosa: O “x” do problema Em 1975, com Festa do Círio de
Nazaré, foi responsável por grande
Nasci no Estácio, Você tem vontade polêmica. Argumentando que seria
fui educada na roda de bamba que eu abandone difícil conciliar festa religiosa e
Fui diplomada O Largo do Estácio Carnaval, o pároco da Basílica e
na escola de samba Pra ser a rainha o organizador da festa de Nazaré
Sou independente, de um grande palácio enviaram carta ao governador do
conforme se vê E dar um banquete Estado do Rio de Janeiro pedindo
Nasci no Estácio, uma vez por semana o veto do enredo. O desfile
o samba é a corda Nasci no Estácio aconteceu, e o samba se tornou um
Eu sou a caçamba Não posso mudar clássico, de tal modo que voltou a
E não acredito minha massa de sangue ser cantado em desfile, em 2004,
que haja muamba Você pode crer, pela Unidos de Viradouro.
Que possa fazer palmeira do Mangue Em 1980, a São Carlos declarou
eu gostar de você Não vive na areia de Copacabana em desfile a sua filiação, com o
enredo “Deixa falar”. Mas não
Eu sou diretora A São Carlos pode ser foi bem-sucedida e caiu para o
da escola do Estácio de Sá considerada, desse modo, herdeira segundo grupo.
E felicidade maior natural dos “bambas” da Estácio
neste mundo não há e da Deixa Falar. Depois de um Deixa Falar
Já fui convidada início de muitas dificuldades, a (Elinto Pires e Sidney da Conceição)
para ser estrela escola passou a apresentar bons
Do nosso cinema desfiles no Carnaval, na década Vai levantar poeira
Ser estrela é bem fácil de 1970, principalmente devido à Oi! Deixa o couro comer
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Fachada do GRES Estácio


de Sá.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

O Estácio virou tema


Seu passado é um poema
Agora é que eu quero ver

É o samba, iaiá
É o samba, ioiô
Mostrando pro mundo inteiro
O seu berço verdadeiro
Onde nasceu e se criou
É samba de roda
Batucada e candomblé
Tem capoeira e gafieira dando olé

Foi Ismael
O criador da primeira escola
Ao som do surdo e da viola
Fez o nosso povo cantar
Poesia e fantasia
Num carrossel de ilusão
Viemos mostrar agora
O velho Estado de outrora
Revivendo a tradição

Deixa Falar, ô... ô...


Deixa Falar
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Relembrando aquele tempo mas em 1992, com o enredo -se da poltrona onde passa a maior parte do
Que não pode mais voltar “Pauliceia desvairada — 70 anos tempo e gritou para quem estava na sala:
de modernismo”, a escola festejou - Não disse? Eu sabia!
Ao tentar escapar da imagem de a Semana de Arte Moderna de
escola “ioiô” (aquela que num ano 1922, levantou a arquibancada e Sentou-se novamente, comprimiu as
“sobe” para o grupo das escolas conquistou o primeiro e único mãos junto ao peito e deixou todo mundo
mais fortes, concorre, perde e título de campeã. A grandiosidade assustado, pensando que ela estivesse passando
“cai” novamente para o grupo dessa conquista pode ser percebida mal. Tia Atanásia só estava rezando,
das escolas mais fracas), em 25 de em reportagem do jornal O Dia, de agradecendo a Deus a notícia que esperava há
março de 1983 os dirigentes da 8 de março de 1992: quase um século.
escola decidiram mudar seu nome
para Estácio de Sá. A justificativa Aos 92 anos, Atanásia de Oliveira só Bicho Novo, um dos mais
foi dada pelo então presidente desce do alto do Morro de São Carlos quando tradicionais mestres-salas do
da escola, Antônio Gentil: “São é levada ao médico. As pernas estão fracas Carnaval do Rio, também deixou
Carlos é hoje uma empresa que e a última vez que pôs os pés na quadra da suas impressões sobre aquela
não vende bem, sendo necessário escola foi há mais de 15 anos. Os olhos já vitória, em depoimento ao Museu
vestir nova embalagem, colocar um não enxergam direito o vermelho e branco da da Imagem e do Som (MIS), em 4
novo rótulo para vender de novo. bandeira. O coração, entretanto, bate forte. de abril do mesmo ano.
Além disso, Estácio é status”. A E nunca bateu com tanta intensidade como
decisão foi cercada de polêmica e na tarde de Quarta-feira de Cinzas, quando Eu me resguardei, cheguei em casa no
rejeitada por alguns dos sambistas ouviu o locutor da Riotur anunciar na tevê: dia e tomei um calmantezinho, estava com o
mais antigos, sendo até contestada - A campeã é a Estácio! meu coração sossegado. Fiquei quieto no meu
na justiça, mas prevaleceu. canto e estou escutando: 10, 10, e aquilo
Os efeitos da mudança não Os olhos miúdos de Tia Atanásia estava me moendo. Quando a Mangueira
se fizeram sentir de imediato, brilharam. Ela cerrou os punhos, levantou- foi embora, acreditei que a minha escola ia
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Grêmio
recreativo
escola de samba
Unidos de
Vila Isabel

ser campeã. Antes disso, lá na Avenida, a Fundada em 4 de abril de 1946, da Lei do Ventre Livre; a data da
Manchete me perguntou e eu disse: se não a Unidos de Vila Isabel é a escola de assinatura deu nome ao Boulevard
houver sabotagem, a minha escola é campeã. samba do bairro de Vila Isabel e do Vinte e Oito de Setembro.
Quando entrei e vi a plateia, meus olhos complexo do Morro dos Macacos. A ideia de se criar uma escola
encheram d’água e eu chorei escondido, para Bairro planejado, com sua de samba no bairro foi de Antônio
os meus companheiros não verem. Tirei o avenida larga, vilas operárias Fernandes da Silveira, o Seu China.
chapéu para ver a plateia e meu presidente e fábricas, a vila boêmia e Oriundo do Morro do Salgueiro,
de ala não gostou, mas eu tinha que ver. carnavalesca foi um centro na Tijuca, onde nasceu e cresceu,
E chorei. Na hora da apuração eu não irradiador de tendências musicais, Seu China se mudara para a Vila
aguentei e fui embora. Quando cheguei aqui ponto de encontro da classe média no começo da década de 1940. A
já estava cheio de gente. que procurava os sambistas dos inspiração para a fundação da escola
morros para beber diretamente veio no Carnaval de 1946, quando
A Estácio de Sá, que nos na fonte de onde jorrou o samba Seu China ouviu uma batucada e
últimos anos caiu para o Grupo urbano e carioca. Nos anos 40, foi ver o que era. Desfilava na rua
de Acesso A e depois para o B, já era a Vila de Noel Rosa, que um dos muitos blocos do bairro, o
desde 2005 reedita enredos e morrera na década anterior, mas Acadêmicos da Vila, que primava
leva à Avenida sambas bastante ainda não era a da Unidos de pela organização, com todos os
conhecidos do público, como Arte Vila Isabel. componentes fantasiados. A Vila
negra na legendária Bahia (de 1976, Antiga sede da Fazenda dos não podia ficar sem uma escola. De
recordado em 2005) e Quem é Macacos, a região foi urbanizada, espírito folião, Seu China propôs
você? (de 1983, levado ao público em um projeto arrojado e a criação de uma agremiação para
novamente em 2006). Em 2007, afrancesado, pelo Barão de desfilar na Praça Onze.
a escola retornou ao Grupo Drumond. O nome dado ao bairro Ela reuniu componentes de
Especial com “Tititi do Sapoti”, foi uma homenagem à princesa blocos como o Acadêmicos de Vila
samba de 1987. Isabel, por causa da assinatura Isabel, o Vermelho e Branco,33
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Fachada do GRES Vila Isabel.


Acervo Centro
Cultural Cartola
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

o Dona Maria Tataia. Assinaram No Carnaval de 1947, em seu Comerciantes assinavam o livro de ouro,
a ata de fundação da nova escola primeiro desfile, a Vila apresentou estudantes redigiam atas e enredos, donas
Seu China, Ailton Cleber, o enredo “A escrava rainha” (ou de casa ajudavam nas fantasias. A escola e o
Antônio Rodrigues (Tuninho “De escrava a rainha”), samba de bairro eram uma coisa só.34
Carpinteiro), Ari Barbosa, Cesso Paulo Brazão, tendo Tião Arroz e
da Silva, Joaquim José Rodrigues Raquel Amaral como mestre-sala e A ala de compositores da
(Quinzinho), Osmar Mariano, porta-bandeira, e Osmar Mariano Unidos de Vila Isabel se constituiu
Paulo Gomes de Aquino (Paulo como mestre de bateria. em torno da poderosa figura de
Brazão) e Servan Heitor Do Morro dos Macacos - Paulo Brazão. Ele é, até hoje, o
de Carvalho. Pedreira, Caminho Central, maior vencedor de sambas-enredo
Seu China foi o primeiro Terreirinho, Bambuzal, Pau da na escola. Ganhou os concursos
presidente, e o quintal de sua casa, na Bandeira -, a escola partiu para de 1947, 1948, 1949, 1950, 1952,
Rua Senador Nabuco 248, na subida unir o bairro. 1954, 1956, 1957, 1959, 1961,
do Morro dos Macacos, foi por anos, 1963, 1964, 1965, 1973 e 1976.
até a segunda metade da década de Muitas atas da Unidos de Vila Isabel A seu lado na ala de compositores
1950, o terreiro de ensaios. foram redigidas no porão da Rua Conselheiro brilharam (e brilham) nomes
As cores branco e azul foram Autran 27, onde vivia seu Eurico, mais como Tião Graúna, Djalma Sapo,
escolhidas por Seu China e conhecido fora da escola como Moreira. Ele Simplício, Rodolpho de Souza,
repetem as da escola de samba Azul levava os rascunhos das reuniões e passava-os Gemeu, Irany Olho Verde,
e Branco, do Salgueiro, que ele ao futuro médico que morava no andar de Martinho da Vila e Luiz Carlos
integrara. Mas há uma inversão. cima para que ele pusesse, em bom português, da Vila.
No caso da Vila, o branco “vem as importantes decisões tomadas na casa de Até meados dos anos 60, a
na frente” do azul, o que indica seu China. Acontecia ali pelos começos dos história da Vila, assim como a do
a predominância da primeira cor anos 50, quando cada morador do bairro conjunto das escolas e dos sambistas,
sobre a outra. tinha um compromisso afetivo com a escola. é um retrato de grandes dificuldades.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Em entrevista ao jornal Correio da que, pode-se dizer, abriu as portas kimbundu, uma das línguas da
Manhã, em 1971, Seu China lembrava: para outras escolas, no movimento República Popular de Angola. A
que culminaria nos anos 70 com palavra kizomba significa encontro
Naquele tempo, para botar Carnaval as vitórias da Beija-Flor (1976 a de pessoas que se identificam numa
na rua, a subvenção era de 300 cruzeiros. A 1978), Mocidade Independente de festa de confraternização”. Assim
solução era o “Livro de Ouro”: eu percorria o Padre Miguel (1979) e Imperatriz começava a sinopse de “Kizomba, a
comércio de Vila Isabel pedindo assinaturas e Leopoldinense (1980 e 1981), e festa da raça”, o enredo que a escola
doações, qualquer quantia servia. As fantasias redefiniria o mapa do poder no levou para a Avenida no Carnaval
eram bonitas, não como atualmente, porque samba no Rio de Janeiro. do centenário da Abolição da
o dinheiro era pouco. O que mais marcou O ano-chave na história da Vila escravatura. Assinada por Martinho,
naquela época a Unidos de Vila Isabel foi o foi 1967, ano de Carnaval das ilusões, a sinopse deu origem a um samba
coro de baiano, que são as baianas e a bateria, o primeiro samba-enredo assinado (de Rodolpho de Souza, Jonas
o patrimônio da Escola.35 por Martinho da Vila, em parceria Rodrigues e Luiz Carlos da Vila)
com Gemeu, recém-chegado da e a um desfile apontado como um
Em 1965, vice-campeã do Aprendizes da Boca do Mato. O dos mais emocionantes da história
segundo grupo, com o enredo tema, o imaginário infantil, fugia do Carnaval carioca. Sem quadra,
“Epopeia do Theatro Municipal”, a da tradição de enredos históricos. mergulhada em crise financeira,
Vila subiu para o grupo principal. As fantasias eram coloridas, não se ensaiando na rua, a Vila saiu da
No ano seguinte, foi a quarta prendendo ao branco e ao azul; e posição de “escola que poderia
colocada e quebrou a hegemonia o samba-enredo fugia do modelo cair” para a que marcou a história,
das quatro grandes, como eram canônico. De novo, a escola ficou ao cantar a afirmação da herança
então conhecidas a Mangueira, a em quarto lugar. E ganhou uma africana, num libelo libertário:
Portela, o Império Serrano e o liderança inconteste, a de Martinho.
Salgueiro, que se revezavam nas A vez da Vila chegou em 1988. Nossa sede é nossa sede/de que o
primeiras colocações. Um marco “Kizomba é uma palavra do apartheid se destrua, dizia o samba.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

mapa do samba
no rio de janeiro.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Escolas de Samba 37. Lins Imperial Locais de Referência


38. Mocidade de Vicente de Carvalho
1. Acadêmicos da Abolição 39. Mocidade Independente de 1. Pedra do Sal e Morro da Conceição
2. Acadêmicos da Barra da Tijuca Inhaúma 2. Morro da Favela
3. Acadêmicos da Rocinha 40. Mocidade Independente de 3. Praça Onze
4. Acadêmicos de Santa Cruz Padre Miguel 4. Largo do Estácio
5. Acadêmicos de Vigário Geral 41. Mocidade Unida de Jacarepaguá 5. Igreja da Penha
6. Acadêmicos do Cubango 42. Mocidade Unida do Santa Marta 6. Avenida Rio Branco
7. Acadêmicos do Dendê 43. Paraíso do Tuiuti 7. Avenida Presidente Vargas
8. Acadêmicos do Engenho da Rainha 44. Portela 8. Sambódromo
9. Acadêmicos do Grande Rio 45. Porto da Pedra 9. Terreirão do Samba
10. Acadêmicos do Salgueiro 46. Renascer de Jacarepaguá 10. Cidade do Samba
11. Acadêmicos do Sossego 47. Rosa de Ouro 11. Centro Cultural Cartola
12. Alegria da Zona Sul 48. São Clemente
13. Arame de Ricardo 49. Sereno de Campo Grande
14. Arranco 50. Tradição Rodas de Samba
15. Arrastão de Cascadura 51. União da Ilha do Governador
16. Beija-Flor de Nilópolis 52. União de Jacarepaguá 1. Bip Bip
17. Boêmios de Inhaúma 53. União de Vaz Lobo 2. Cacique de Ramos
18. Boi da Ilha do Governador 54. União do Parque Curicica 3. Candogueiro
19. Canários das Laranjeiras 55. Unidos da Ponte 4. Carioca da Gema
20. Caprichosos de Pilares 56. Unidos da Tijuca 5. Casa Brasil Mestiço
21. Corações Unidos do Amarelinho 57. Unidos da Vila Kennedy 6. Casa da Mãe Joana
22. Delírio da Zona Oeste 58. Unidos da Vila Santa Teresa 7. Centro Cultural Carioca
23. Difícil é o Nome 59. Unidos da Vila Rica 8. Centro Cultural Memórias do Rio
24. Em Cima da Hora 60. Unidos de Cosmos 9. Clube Democráticos
25. Estação Primeira de Mangueira 61. Unidos de Lucas 10. Clube Renascença
26. Estácio de Sá 62. Unidos de Manguinhos 11. Escravos da Mauá / Circuito-Mauá
27. Flor da Mina do Andaraí 63. Unidos de Padre Miguel 12. Pagode da Tia Ciça
28. Gato do Bonsucesso 64. Unidos de Vila Isabel 13. Pagode da Tia Doca
29. Imperatriz Leopoldinense 65. Unidos do Anil 14. Pagode da Tia Eliza
30. Imperial 66. Unidos do Cabral 15. Pagode do Carlinhos Doutor
31. Império da Tijuca 67. Unidos do Cabuçu 16. Samba do Trabalhador
32. Império Serrano 68. Unidos do Jacarezinho 17. Trapiche Gamboa
33. Independente da Praça da Bandeira 69. Unidos do Sacramento
34. Infantes da Piedade 70. Unidos Uraiti
35. Inocentes de Belford Roxo 71. Unidos do Viradouro
36. Leão de Nova Iguaçu 72. Vizinha Faladeira
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

objeto do registro
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Roda de Samba.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

sete cordas, etc., conforme sejam matrizes tradicionais do samba na


criadas, apresentadas e transmitidas cidade - as suas raízes, estruturas
pelos depositários dessas tradições. básicas, fundamentos. Mas elas
Esses depositários são as velhas continuam intensas no cotidiano
matrizes do guardas, os mestres, os baluartes, das comunidades de sambistas
os “bambas” e seus herdeiros identificadas com a preservação
samba no rio com notório saber dos ofícios do e transmissão de sua memória e
de janeiro partido-alto, do samba de terreiro essência, como é o caso das velhas
e do samba-enredo, reconhecidos guardas, das pequenas agremiações
pelas próprias comunidades de que lutam para sobreviver e desfilar,
sambistas como memória viva do das rodas de samba tradicionais
samba no Rio que se espalham por toda a região
de Janeiro. metropolitana, em quintais,

P artido-alto, samba de terreiro


e samba-enredo são formas de
expressão e manifestação musical e
Atualmente, o universo
do samba no Rio de Janeiro é
múltiplo e complexo. O desfile das
clubes, bares, dos subúrbios à
Zona Sul. O samba é importante
elemento de identidade e expressão
coreográfica do samba promovidas grandes escolas de samba ganhou na vida dessas pessoas, um valor
no Rio de Janeiro, com a utilização o título de maior espetáculo da cultural reconhecido, que se deseja
de instrumentos de percussão, Terra, com forte apelo visual, promover e destacar cada vez mais.
pandeiro, surdo, tamborim, reunindo milhares de espectadores O samba é, assim, uma cultura
reco-reco, cuíca, agogô e outros, e desfilantes a cada noite de pulsante no Rio de Janeiro,
variando de acordo com a situação. Carnaval no Sambódromo. impregnando o cotidiano da cidade
Ocorrem acompanhados, ou não, As pressões da indústria do e dos sambistas. E isso graças à
de instrumentos de cordas, como espetáculo contribuíram para riqueza poética, melódica e rítmica,
cavaquinho, violão de seis ou a perda de visibilidade das pela energia radiante de sua dança
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

- que começa no simples bater das amores, tudo isso se encontra no mundo do sobre o poder da criação.” E ainda diz mais:
palmas das mãos. E, ainda, pela samba. O samba é lazer e é também trabalho, “Não precisa se estar feliz, nem aflito. Nem
alegria festiva de suas cenas, com tudo se mistura e se confunde. se refugiar em lugar bonito, em busca de
suas rodas, feijoadas, procissões de (Aloísio Machado) inspiração. Ela surge do nada, pelos mais
homenagem a padroeiros, encontros diversos motivos. Ela surge.” Essa resposta do
de bandeiras e velhas guardas ou, O samba faz parte da minha vida. Eu João Nogueira, para mim, é a reposta legal.
simplesmente, em aniversários e nasci no samba e no samba hei de morrer. (Adilson Bispo)
casamentos animados por ele. Trago no sangue o micróbio do samba.
Este é o valor excepcional do (Surica) O samba no Rio reúne,
samba no Rio de Janeiro. Para integra, alia.
essas comunidades, mais do que O samba é a essência da minha vida,
fazer parte de suas vidas, o samba é porque eu nasci, sempre convivi no meio do Olha, pra te dizer a verdade eu não
a sua vida. samba. Me considero raiz do samba, porque tenho partido político... essas coisas [...]
família de samba e convivendo no meio de eu não tenho partido, o meu partido é o
No Império Serrano fui mestre-sala, fui bambas... quem convive no meio de bamba partido-alto.
passista e saí na bateria com o Seu Alcides tem aquela licença do samba. O samba é tudo (Monarco)
Gregório dando vassourada na minha cabeça para mim.
porque eu estava batendo errado, no tempo (Rody) Antigamente, todo mundo fazia
em que o Império desfilava na Vila da Penha um bocado de coisas. Eu tomei conta do
e desfilava em Madureira. Mas foi como O samba é um bonito modo de viver. barracão, fui porteiro do barracão, fui vigia
compositor que me tornei mais conhecido (Nelson Sargento) (vigia mesmo) dentro do barracão, trabalhei
aqui. Fui várias vezes campeão e ganhei na quadra como segurança, mas não era só
cinco Estandartes de Ouro. O samba não O João Nogueira diz o seguinte: segurança, era departamento de segurança,
foi importante na minha vida, não, ele foi “Ninguém faz samba só porque prefere. com uma rapaziada boa, fui do Conselho
a minha vida. Amigos, parceiros, família, Que força nenhuma do mundo interfere umas quatro ou cinco gestões de presidentes,
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

saí na bateria (firme, legal). tocando tamborim. Mas tem garoto que tem Porque desde pequenininha, com meus
(Pery Aimoré) talento pra compor, pra... E é tão bonito, três anos, quatro, com a minha mãe e meu
um garoto do local, ter um garoto do local pai, me vestiam cada ano com um tipo de
Era difícil mesmo botar a escola na que crie, que seja um bom compositor, sabe lá fantasia. Era de odalisca, pirata, baiana,
rua, não era fácil [...] Saía quase junto do se... não surge mais um Cartola, que Cartola então aquilo foi me incentivando.
Carnaval. Era dificílimo... olha, eu vou te é igual a Pelé, só surgiu um e acabou, mas Que a minha mãe era porta-bandeira de
contar, fazia de coração se voltasse de novo, surgem bons garotos... surgem compositores rancho, e eu tinha um tio, o pai do Benício,
para fazer com o maior gosto, maior prazer. bons, garotos que têm talento. que era mestre-sala de rancho, e a minha
Passar o que passei dentro do barracão, eu e (Tantinho) mãe também saía na ala das baianas da
os outros. “Vai à padaria comprar cinco, seis União de Vaz Lobo, e meu pai se vestia de
bisnagas”. Bisnaga não era desse tamanho Eu não tenho a escola só como baiana, que, naquela época, homem se vestia
aí. “Compra uma mortadela” [...] “com entretenimento. Tenho a escola como uma de baiana pra brincar o Carnaval de rua.
uma cerveja preta.” A cerveja preta enche... cultura, como um estudo. Então isso tudo foi me incentivando.
A gente cortava direitinho... [...] A noite (Djalma Sabiá) E, quando a minha mãe ia para a União de
inteira pela Vila Isabel. Vaz Lobo, me levava. Então eu fui gostando,
(Pery Aimoré) A transmissão dos fui gostando... e aonde que eu morava, na
conhecimentos no samba é Rua D. Clara, tinha um bloco, era o Unidos
Ele é reconhecido como um apontada como uma atividade de de D. Clara, e eu era...., com sete anos eu
saber de alto valor. grande relevância, que se dá no já dava no pé, aí de repente me vi envolvida
dia a dia. A prática do samba liga o com a bandeira, de repente. Aí comecei a sair
Tem que formar garoto novo, novos sambista a um grupo, o seu grupo. lá como porta-estandarte. Aí com
talentos. Garoto de bateria tudo bem, O sentimento de pertencimento nove anos, me vi envolvida com a União de
normal, bateria é normal. Todo garoto que a uma comunidade é parte Vaz Lobo.
é do morro, ele... O início dele é na bateria, importante do universo (Vilma Nascimento)
como eu fui no início... Foi na bateria dos sambistas.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Meus avós do interior tocavam lundu Rio de Janeiro ultrapassou as por situar o samba como a maior expressão
e jongo, minha tia mostrava as músicas e fronteiras do Estado e do país, musical do mundo fora da linha editorial. O
danças, em Paraíba do Sul. O que eu tenho inspira, atrai e apaixona. Por esse que quer dizer isto? Todos os gêneros musicais
são coisas deles. Está em minha mente. motivo, a comunidade de sambistas contaram sempre com a preocupação dos
(Wilson Moreira) defendeu o registro das matrizes editores de mostrar, defender e vender as suas
do samba no Rio de Janeiro como partituras. Com o samba isto não ocorreu.
E de repente eu fui morar em Oswaldo patrimônio imaterial do Brasil.
Cruz! Você vê como o destino foi bom para Ele veio subindo, pegando força e
mim. Eu era vizinho da casa do Paulo da Finalmente este país faz o reconhecimento quando eles acordaram, o samba estava aí.
Portela. Então, eu cheguei menino ainda... da música que o representa. Isto foi há muitos anos. Hoje os editores
Eu já gostava de fazer meus sambinhas... Já (Nelson Sargento) estão reproduzindo na Europa gravações de
veio no sangue... Aí eu ia lá no ensaio da anos atrás e toda a Europa curte o samba em
Portela e ficava vendo, de longe assim, porque Por isso, esse movimento que estão nossos dias.
eu tinha medo de entrar naquela turma fazendo é um negócio de louco, um negócio (Rubem Confete)
ainda. E aí, com o tempo, eu fui ensaiando, importantíssimo, porque é preciso mostrar
fui aprendendo, fazendo samba direito, até direitinho como é que esse negócio de samba Então, o reconhecimento do samba
fazer um samba para ela. E fui feliz de o meu cresceu e se tornou tão importante que vem como patrimônio imaterial do Brasil é o
samba ser cantado pelas pastoras da Portela. gringo lá de fora, do Japão até, querendo reconhecimento da importância de um
(Monarco) conhecer a gente. Então é um patrimônio sim, segmento que não tinha força, pois sempre
que precisa desse reconhecimento todo, e tem fomos discriminados e desacreditados.
Fundamental na afirmação que divulgar pra todo mundo saber e respeitar O samba se tornou uma grande força
social das camadas mais pobres ainda mais. (Aloísio Machado) sem grandes estrelas. Acho importante o
da população, de origem negra, tombamento, feito com muita seriedade,
reconhecido pela sua força Considero fundamental a declaração do tendo que passar obrigatoriamente pelo
criativa e beleza, o samba do samba como patrimônio cultural brasileiro, reconhecimento da necessidade de preservação
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

SITUAÇÃO

das casas de culto omolokô, de onde partiu O partido-alto, o samba em geral - e a crise urbana que
a energia primeira, que ainda está aí. Não de terreiro e o samba-enredo esgarçou o tecido social nas
se pode desassociar o aspecto religioso da atravessaram o século XX no Rio metrópoles, afrouxando--se laços
preservação do samba carioca. de Janeiro como manifestações de solidariedade e sentimentos de
(Rubem Confete) vivas e ricas da cultura popular. grupo, provocaram uma redução na
Reconhecido pelo seu alto valor valorização dessas matrizes do samba,
Demorô. artístico, o samba contribuiu com a diminuição dos espaços
(Surica) significativamente para o processo tradicionais para a sua manifestação.
de integração social das camadas Esse processo pode ser
Diante do descrito, julgamos mais pobres da população no Rio de identificado, no que diz respeito ao
que o reconhecimento dessas Janeiro. E constituiu-se, ainda, em partido-alto e ao samba de terreiro,
matrizes — o partido-alto, um meio de expressão de anseios na diminuição de suas práticas
o samba de terreiro e o samba- pessoais e sociais, num elemento em comunidades tradicionais de
-enredo — contribuirá para fundamental na construção da sambistas, em especial nas quadras
a redução do processo de identidade nacional, ajudando das escolas, que se concentram
enfraquecimento verificado, a derrubar barreiras e eliminar no gênero samba-enredo, de
para a valorização dos espaços preconceitos, num projeto ainda apelo comercial e turístico mais
de manifestação originais dessa não concluído no país. imediato. Ele também aparece nas
arte e dos sambistas tradicionais, A partir dos anos 60 e 70 e, mais dificuldades de transmissão do
em especial as velhas guardas, acentuadamente nas duas últimas saber fazer do samba tradicional e
prestigiando um bem cultural décadas do século, o crescimento seus fundamentos, tanto no que se
de rica expressão artística e da indústria do espetáculo e do refere à música quanto à dança.
enorme importância para a turismo; a globalização - imposição Isso pode ser notado na redução
história da cidade do Rio de de modelos e padrões importados do número de solistas de alguns
Janeiro e do Brasil. na área cultural e no consumo instrumentos, como o pandeiro e
dossiê iphan 10 { Matrizes do Samba no Rio de Janeiro } 160
partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

a cuíca; na diminuição do número condições materiais ou de estrutura do valor atribuído à sua arte em
de partideiros, improvisadores; e para a manutenção desses projetos espaços antes tradicionais, ainda
na criação, pelas comunidades de com regularidade. que novos espaços tenham sido
sambistas, de escolas (ou cursos Outro sinal são as dificuldades abertos, como rodas de samba
de formação) para passistas, de sambistas tradicionais, em clubes e bares, que provam a
mestres-salas, porta-bandeiras, depositários reconhecidos sobrevivência do interesse popular
ritmistas. Substituía-se, assim, a da tradição, para circular sua pelo “samba de raiz”, como é
forma tradicional de transmissão produção. De um lado, por chamado pelos próprios sambistas.
do conhecimento (oral, familiar/ causa da preferência da indústria
comunitário e cotidiano) por um fonográfica por uma música de Não há espaço atualmente nos ensaios
modelo formal, que muitas vezes apelo e venda mais imediata; das escolas para o samba de terreiro.
enfrenta dificuldades por falta de de outro, por causa da redução (Dauro do Salgueiro).
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Camisetas vendidas nas


ruas do Rio de Janeiro
durante o carnaval.
foto: Márcio Vianna,
Acervo Iphan.

Eu acho que é desleixo. Não atentar na memória dos mais velhos ou A comunidade só está presente em massa nos
pra manutenção da cultura da escola, está preservados de forma precária. ensaios técnicos feitos durante a semana.
entendendo? Ninguém fica se preocupando Outros motivos de preocupação são Antigamente era diferente. Tinha livro de
mais com a cultura da escola. Ninguém a padronização de modelos (refrões presença para ver a ordem de quem
está preocupado com o passado da escola. fortes, letras mais curtas, andamento ia cantar.
Ninguém está... Então, acabei de fazer um acelerado), com o desaparecimento (Leci Brandão)
disco agora, que é um disco que... onde eu da riqueza rítmica e melódica
resgato composições da Mangueira da década dos sambas-enredos, a partir da Hoje eles cantam uma marcha com o
de 1930 à década de 1960, que é um disco explosão comercial dos anos 70 nome de samba. Não tem nada de samba
que eu me virei. O pessoal do morro me e da transformação do desfile [...] um texto muito reduzido, muito sucinto,
ajudou muito, mas era uma coisa que tinha principal num grande espetáculo; pro povo pegar fácil e só se canta refrão.
que ser feita pela escola, pela Mangueira. a situação enfrentada por escolas Quer dizer, a descrição do enredo você não
Um disco desses tinha que ser feito pela dos grupos de acesso, diante da entende nada. Junta um monte de palavreado
Mangueira... dificuldade de viabilizar desfiles cada e gíria e diz que é samba-enredo.
(Tantinho) vez mais caros; e o afastamento de (Djalma Sabiá)
sambistas tradicionais das esferas de
...preciso registrar isso porque senão decisão dos espaços que ajudaram a Aquela linha melódica gostosa a gente
vai perder, como já se perdeu coisa à beça. construir com seu gênio criativo. não ‘tá ouvindo, a poesia sumiu, quer dizer,
(Tantinho) daqui a pouco nós vamos pra Avenida com...
Nos ensaios abertos ao público (na do jeito que tá essa evolução do samba aí que
Deve-se registrar também o Mangueira), o pessoal da escola fica do nego tá dizendo que tem que ter evolução aí...
sentimento, descrito por sambistas lado de fora, nas barraquinhas. Só quem eu acredito que tem que ter evolução do geral,
“da antiga”, do risco de perda de fica na quadra é a velha guarda, a bateria, mas agora eles tão querendo até evoluir a
parte do patrimônio musical e mestre-sala e porta-bandeira, já que os bateria. A bateria evoluir, eles querem dizer
da história do samba, pois estão ensaios se transformaram num pula-pula. que tem que correr! Olha, bateria pra mim é
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Vista da Marquês de Sapucaí.


foto: Márcio Vianna,
Acervo Iphan.

igual a doce de coco: tem um ponto. Se passar velhos, alguns dos quais chegam aos pode contribuir decisivamente
estraga, entendeu. 60 anos sem nunca ter gravado; para minorar os riscos de
(Odilon) ou a retomada das feijoadas nas enfraquecimento das suas matrizes.
quadras com a apresentação das O registro como patrimônio
Afirma o pesquisador Sérgio Cabral: velhas guardas como centro das sublinha a importância do respeito
atenções, fica claro que o samba às tradições que se vinculam a essas
O samba é a mais expressiva linguagem tradicional carioca enfrenta perdas, matrizes e ressalta toda a pujança e
musical do povo carioca. Hoje enriquece descaracterização de fundamentos diversidade do samba no Rio.
os donos do mercado musical, enquanto e pressões, resistindo na criação de
as escolas de samba são utilizadas pelo seu seus mestres, baluartes, “bambas”, Eu tenho muita gratidão ao samba. Não
potencial turístico, sugadas pelo que oferecem enfim, das velhas guardas e posso nunca falar mal do samba... a gente
de supérfluo e desprezadas pelo fundamental. seus herdeiros.Tais perdas são pode falar mal de outras coisas do samba,
Há tantos interesses em torno do samba das compensadas pela presença de mas do samba em si não, porque o samba é
escolas que fica muito difícil saber onde é a jovens de diversas camadas da uma coisa maravilhosa, é a coisa mais linda
fronteira entre a manifestação espontânea sociedade, que demonstrarem que tem pra você tirar tudo de ruim que tem
do povo e a ganância. Há pessoas que ainda reconhecer o valor desses sambistas, dentro de você e você fazer aquele desfile da
sabem, porém, que a vitória do samba — se comparecendo a rodas para ouvi- Avenida, que é coisa maravilhosa, né? Só tem
assim se pode chamar o que existe atualmente los e saudá-los. que procurar os caminhos certos, não é?
— pertence a uma parcela da população que Embora se perceba com (Odilon)
sofreu violências, perseguições e preconceitos. clareza que, ao contrário de tantas
outras manifestações de cultura Essência é o perfume. É tudo aquilo que
Ainda que ações isoladas de popular, o samba do Rio de Janeiro te toca, está entendendo? Aquilo que te toca,
valorização sejam observadas, não se encontra ameaçado de aquele perfume que não te deixa. Isso é a
tais como a iniciativa de apoio ao extinção, o seu reconhecimento essência do samba.
registro de obras de sambistas mais como patrimônio imaterial (Rody)
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Recomendações de Salvaguarda
Recomendações de Salvaguarda
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

integrante de escola de
samba mirim.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

O presente dossiê recomenda


a criação de um plano de
salvaguarda que incentive, apoie e
deste dossiê, e com base em
sugestões e demandas explicitadas
por sambistas, pode-se listar
promova ações de valorização das uma primeira série de sugestões
matrizes do samba no Rio de Janeiro. de ações, que, debatidas e
Esse plano deverá prever amadurecidas, poderão vir a Pesquisa e
medidas nas áreas de pesquisa, compor o corpo desse futuro plano documentação
documentação, transmissão, de salvaguarda.
produção, registro, promoção e
apoio à organização.
A elaboração de um
plano de salvaguarda implica
necessariamente a articulação das
comunidades de sambistas, em 1. Incentivo a pesquisas de
especial daqueles identificados campo e pesquisas históricas sobre
como depositários reconhecidos da as três modalidades de samba,
tradição e dos saberes envolvidos em suas formas atuais e passadas,
nas práticas do partido-alto, do em suas expressões musicais e
samba de terreiro e do samba- coreográficas, em seus aspectos de
enredo. Caberá a eles detalhar as celebração, articulação e inserção
dificuldades que enfrentam e suas social, identidade de grupo, e
necessidades para a plena realização relações com a indústria cultural e
dessas formas de expressão. de espetáculo.
Como resultado preliminar O material historiográfico,
da pesquisa para a elaboração musicológico e coreológico
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

sobre as origens, influências e 2. Incentivo à produção roupas, fantasias, bandeiras, faixas,


desenvolvimento das variedades do de estudos biográficos sobre troféus, etc.
samba que são objeto desse registro sambistas e de investigações sobre
ainda está longe de responder as origens, organização e lutas de 3. Levantamento da produção
a todas as dúvidas ou esgotar o suas associações profissionais e musical, com a recuperação de letras
tema. Podem ser ampliadas as comunitárias: grupos musicais, e melodias de partidos-altos, sambas
pesquisas, por exemplo, em torno associações artísticas ou funcionais, de terreiro e sambas-enredos,
das semelhanças/diferenças entre como as velhas guardas, as além do estímulo à gravação,
as modalidades praticadas na associações de diretores de visto que parte significativa da
Bahia (como o samba de roda do harmonia, etc., e instituições como produção das comunidades de
Recôncavo) e as do Rio de Janeiro. clubes, blocos, escolas de samba, sambistas, principalmente a mais
E, também, a permanência, nas entre outras. Essa pesquisa poderia afeita às formas tradicionais, de
expressões musicais cariocas, ajudar a localizar, inventariar e caráter não comercial, não foi
de traços rítmicos, usos de preservar a memória do samba no registrada, ficando à margem da
instrumentos, gestos, posturas e Rio de Janeiro, por meio da coleta indústria fonográfica e sob risco
movimentos de danças do samba e regular de depoimentos de seus de desaparecimento. Alguns desses
de outras manifestações culturais de mestres, e também do registro e sambas sobrevivem na memória
origem afro-brasileira. Tais como o proteção de peças físicas que contêm dos membros mais velhos dessas
jongo, elas são comuns no interior essa história, como cartas, letras comunidades, em especial das velhas
do Estado do Rio de Janeiro, e em manuscritas de sambas, folhetos de guardas. Com a redução dos espaços
estados próximos como o Espírito shows, partituras, gravações de áudio para a prática do partido-
Santo e Minas Gerais - resultado e vídeo familiares, semiprofissionais -alto e do samba de terreiro, e
das poderosas ondas migratórias que ou profissionais, em diversos meios, o enfraquecimento das formas
formaram o mosaico populacional instrumentos musicais, fotografias, tradicionais de transmissão
da região metropolitana. diplomas, documentos pessoais, — baseadas na oralidade e no
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

compartilhamento dos saberes promover e preservar a produção atual diante da crise urbana, com
familiares e comunitários —, musical de seus sambistas, seja ou seus reflexos no esgarçamento
esse risco de perda é concreto, não dirigida ao Carnaval. das relações sociais, com visíveis
e a adoção de salvaguarda se faz impactos na produção e transmissão
urgente. Mesmo no que tange aos 4. Incentivo a pesquisas dos fundamentos do samba e no
sambas-enredo, o levantamento históricas que mapeiem e descrevam enfraquecimento do sentido e do
é necessário, porque há lacunas a formação e o crescimento das sentimento de comunidade.
na produção anterior ao início comunidades de sambistas na
da gravação de LPs com os sambas cidade do Rio Janeiro e região 5. Formação de pesquisadores
compostos para os desfiles das metropolitana, identificando dentro das diversas comunidades de
escolas, o que só ocorreria na as origens das ocupações dos sambistas do Rio de Janeiro, para
virada dos anos 60 para os 70. morros e logradouros e seus que a coleta, o registro e a análise
É necessário observar, ainda, primeiros moradores; as lideranças dessas formas de expressão, de
que o universo das agremiações comunitárias que as articularam, seu cenário e sua trajetória sejam
carnavalescas do Rio não pode as lideranças musicais e artísticas feitas cada vez mais pelos próprios
ser resumido ao espetáculo das 13 que definiram as suas identidades atores sociais e seus grupos. Isso
participantes do desfile principal no samba; o papel de lideranças atenderá a um anseio de que a sua
do Sambódromo. Espalhadas por religiosas na sua formação e história possa ser contada por eles
toda a cidade, nada menos de consolidação; os problemas mesmos, valorizando assim vozes
73 escolas formam um conjunto enfrentados ao longo do século XX mergulhadas no cotidiano do fazer
de reconhecida importância na no processo de afirmação e inserção e viver o samba no Rio de Janeiro.
construção da identidade das dos grupos no cotidiano e no Já existe, em número reduzido,
comunidades e na organização sistema produtivo formal da cidade, uma produção acadêmica fruto
do lazer local, a maioria das quais que, muitas vezes, ocorreu através do esforço de sambistas, como
enfrenta dificuldades para circular, da sua música, o samba; e a situação mestres-salas e porta-bandeiras.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Transmissão
do saber

Como já observado, o compartilhada entre os mais sambistas, com a audiência dos


enfraquecimento dos processos velhos e os jovens. Ressalta-se, mais jovens, e o registro dos
tradicionais de transmissão do assim, que a prática é a primeira improvisos em áudio e vídeos,
saber do samba no Rio levou os escola do samba e o caminho para ajudaria a difundi-los e revitalizá-
sambistas a criar alguns espaços renová-lo continuamente. -los. A gravação desses encontros
formais para o aprendizado. Esses A preocupação com a de mestres partideiros, portadores
espaços reproduzem modelos transmissão é maior diante do de uma tradição do samba,
de educação formal (aulas, desaparecimento de mestres, como poderia prever ainda a coleta de
professores, controle de presença, versadores do partido-alto e solistas depoimentos sobre esse ofício e suas
avaliação de desempenho), como de pandeiro e cuíca, por exemplo. características específicas, isto é,
no caso das escolas de dança do Na Mangueira, que já contou com como se cria/compõe o improviso
mestre-sala e da porta-bandeira, tradicionais rodas de partido-alto (inspiração, adequação à métrica,
e dos passistas, substituindo em por toda a comunidade, cercada de respeito ao ritmo e ao tema,
parte o processo de transmissão jovens, vendo e aprendendo, hoje agilidade e precisão da “resposta”,
tradicional, baseado na oralidade, não se ouve o improviso, segundo preparação durante a performance
na repetição, na participação em declaração do sambista Tantinho. do outro versador, etc.). Nesta
práticas no ambiente familiar e Já partidos tradicionais são ação, o aspecto de transmissão
comunitário, que mistura adultos cantados atualmente em rodas estaria aliado ao de pesquisa e ao de
e crianças de maneira natural. A promovidas por bares e centros registro e promoção, dignificando
criação de escolas de samba mirins culturais em outros pontos da uma forma de expressão de alto
também é resultado, em parte, cidade, fora das comunidades onde teor artístico e simbólico, resultado
dessa percepção. foram criados. do talento, do gênio criativo e do
Sambistas preocupados com A realização de encontros pleno domínio de um fazer.
a questão defendem o apoio e a de versadores, nas próprias Encontros semelhantes
valorização de espaços de prática, comunidades originais dos poderiam reunir sambistas, mais
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

velhos e mais jovens, em torno e transmissão. É fundamental, aqui, acesso dos sambistas aos estudos,
do samba de terreiro, que sofre prever que as ações do plano de investigações acadêmicas e acervos
a mesma desvalorização que o salvaguarda garantam e promovam de imagem e de som sobre o samba
partido-alto, com a redução dos os direitos autorais dos sambistas e no Rio Janeiro, em especial no que
espaços tradicionais de sua prática seus herdeiros. diz respeito às três modalidades
e o enfraquecimento da produção Há entre os sambistas no aqui identificadas como matrizes.
diante da concorrência com diversos Rio quem já trabalhe com ações Sugere-se o estímulo e apoio à
gêneros de música comercial. dessa natureza, no “garimpo”, criação e à capacitação de centros
A gravação desses encontros reconstrução e documentação de de memória e referência do samba,
poderia promover ainda a sambas praticamente esquecidos, dentro das comunidades e/ou na
reconstituição de letras e melodias como faz o próprio Tantinho, da Cidade do Samba. Agrupar-se-iam
de sambas antigos, quase perdidos, Mangueira, citado anteriormente. livros, teses, periódicos, partituras,
a partir das lembranças do grupo Mas eles enfrentam dificuldades por instrumentos musicais, gravações,
reunido, isto é, a partir da falta de estrutura e de apoio para fotos, vídeos e filmes que integram
memória da coletividade. o trabalho de pesquisa, gravação o rico repertório da produção
A recuperação desses sambas e divulgação. As escolas realizam cultural dos sambistas, mas ao
envolve, em outro momento, atualmente concursos de samba de qual, poucos têm acesso, por estar
o trabalho de pesquisa nas terreiro, mas, como são episódicos, abrigado em centros de pesquisa
comunidades e nas famílias dos se encerram em si mesmos, não oficiais ou acervos particulares
sambistas, em busca de cópias conseguindo ainda estimular a com os quais os sambistas não
de letras, cadernos de música ou produção e a circulação. mantêm estreito contato; e também
gravações caseiras, que os registrem, Outra medida que poderá documentos, manuscritos, livros,
e, de novo, o estímulo à memória. contribuir para a transmissão do recortes, gravações caseiras (imagem
Nesta ação, seriam associados saber fazer samba e para a produção e som), instrumentos pessoais,
aspectos de pesquisa, documentação de novos saberes é facilitar o fotos de álbuns de família, roupas,
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Ensaio de escola
de samba mirim.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

PÁGINA Ao lado
Oficina de transmissão
de saber de mestre sala e
porta bandeira.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

fantasias, figurinos e troféus, patrimônio produzido por essa e até mesmo de muitas danças
de integrantes das próprias expressão da cultura popular no Rio populares. O mais característico
comunidades de sambistas. de Janeiro, de modo a transmitir o das danças do samba carioca é
O plano de salvaguarda saber e também promover o samba. que, desde os seus primórdios,
talvez possa criar mecanismos Sugere-se ainda o incentivo à as coreografias pressupunham
para abrir canais, de modo que criação de oficinas, por meio das improvisações, desenvolvidas com
o conhecimento acadêmico quais os mestres apresentariam a diferentes graus de competência
produzido em torno do samba sua arte às novas gerações. por seus intérpretes, o que
retorne aos grupos criadores/ Em relação à dança, é contribuiu enormemente para sua
mantenedores da tradição. importante ressaltar que o samba diversidade e riqueza coreográfica.
Essa comunicação poderia ser no Rio de Janeiro tem matrizes É inegável que todas as técnicas
fomentada com a criação de um coreográficas bem-definidas, de dança codificadas sofrem
banco de dados digital disponível que revelam uma técnica de transformações ao longo da história.
nos centros de memória e dança e uma linguagem corporal Essas transformações ocorrem a
referência e associação de sambistas, subjacente. Nesta técnica estão, partir de fundamentos, de matrizes
com as fichas técnicas e as íntegras por exemplo, claramente definidas coreográficas (mais ou menos
de estudos, além de outras a postura, diversos gestos e os rígidas) que devem ser claramente
informações e imagens sobre os movimentos de diferentes partes identificadas e que se reproduzem
sambistas e a história do samba no do corpo (particularmente a e se renovam. Isto permite que
Rio de Janeiro. pélvis, as pernas e os pés), com diferentes técnicas de dança sejam
Os centros de referência qualidades específicas. preservadas, em sua essência, através
poderiam realizar seminários, Entretanto observa-se que os de gerações, mas que novas criações
palestras, mesas-redondas e festas códigos das danças de samba são coreográficas sejam reconhecidas
de samba, abertas a todos os menos rígidos do que os códigos da como pertencendo a um ou outro
interessados em compartilhar o maior parte das danças acadêmicas, gênero, ou linguagem artística.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Esta é uma questão são muitas vezes interpretadas analisadas por um método
fundamental para a caracterização como se fossem “naturais”, e sistemático para que seja possível
das danças do samba carioca, acabam sendo esquecidas, perdidas caracterizar com precisão suas
que são riquíssimas, singulares e descaracterizadas. matrizes coreográficas, ou seja,
e estão claramente associadas Assim, no que diz respeito à os códigos essenciais que as
às identidades e ao contexto dança, o presente dossiê ressalta caracterizam como expressão
sociocultural de seus primeiros que o plano de salvaguarda amplamente reconhecida da
intérpretes e coreógrafos. deverá considerar três pontos identidade nacional, em sua
Entretanto, devido a razões fundamentais: versatilidade, pluralidade, riqueza
históricas, sociais e culturais, e singularidade.
essas matrizes coreográficas, que 1. As danças do samba
definem uma técnica codificada, necessitam ser descritas e 2. É importante adotar
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Produção,
registro,
promoção
e apoio à
organização

um método coreológico que Entretanto, a competência O samba no Rio de Janeiro,


possibilite a compreensão dos intérpretes para dançá-las em sua vertente de espetáculo
dessas danças como linguagens dependerá da sua intimidade para o turismo e no que diz
complexas, envolvendo seus com essa linguagem, ou forma respeito aos gêneros de caráter
numerosos componentes de expressão. De um lado, mais comercial difundidos pela
inter-relacionados. Através essa intimidade pode ser indústria fonográfica, pelo
desse método será possível adquirida intelectualmente, rádio e pela TV, encontra-se
identificar seus elementos pela compreensão aprofundada relativamente bem-estruturado.
codificados essenciais, da “filosofia” subjacente ao Mas essa situação não é geral,
definindo-os como parâmetros samba carioca (conhecendo, e as matrizes do samba no Rio
que identificam a técnica das por exemplo, a história de seu necessitam de apoio para seu
danças de samba cariocas. desenvolvimento, as tradições a fortalecimento e difusão.
que está associada, e participando O plano de salvaguarda
3. É imprescindível levar das celebrações e rituais deverá fixar mecanismos que
em conta que essa técnica de comunitários que preservam essas ajudem a prover essas condições,
dança implica uma grande tradições). Para os dançarinos, permitindo a manifestação,
liberdade de expressão por entretanto, é fundamental a gravação e a circulação da
parte dos intérpretes. Ou que esse conhecimento seja produção cultural dos grupos
seja, as técnicas das danças complementado pelo preparo identificados como depositários
de samba carioca não são - e técnico-corporal específico do reconhecidos da tradição, como as
não podem vir a ser - técnicas samba. Ou seja, eles precisarão velhas guardas do samba. Reunidos
rigidamente executadas, pois a incorporar (absorver em seu em grupos ou trabalhando
possibilidade de improvisação, corpo) as matrizes coreográficas individualmente, esses sambistas
de fusão, de recriação é uma de específicas dessa linguagem para podem ter suas vozes amplificadas,
suas características marcantes. poder utilizá-las expressivamente. se forem incrementadas políticas
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

de incentivo específicas e organização, gestão, manutenção Mas é preciso, acima de tudo,


facilitados os contatos com e recuperação de acervos; edição, ouvir, cantar e dançar esses sambas.
instituições e empresas que reedição e distribuição de livros, A revalorização dessas matrizes
patrocinem e promovam a cultura periódicos especializados, CDs, e da arte dos sambistas que as
no país. Com isso, sua arte e sua DVDs; montagem de exposições; professam se dará vivamente
história alcançarão um público formação de novos públicos; na medida em que o partido-
variado e maior. transmissão do saber e troca de -alto, o samba de terreiro e o
O sucesso de rodas de experiências, etc. samba-enredo que respeitam
samba tradicional — de terreiro Esse apoio deve prever, os fundamentos do gênero
e partido-alto — demonstra ainda, a capacitação de sejam mais divulgados e tenham
que há um público ávido por recursos humanos, dentro das restaurados e ampliados os
conhecer, ouvir e compartilhar comunidades de sambistas, nas espaços para a sua execução.
essas riquezas do Brasil. Mas áreas de administração, produção Recuperar, gravar e difundir
os meios para a sua difusão cultural e pesquisa, entre outras, composições hoje guardadas
são insuficientes, e o interesse beneficiando esses grupos que apenas na memória do povo do
da indústria é reduzido, daí a estão excluídos da indústria samba; estimular e circular a
necessidade de implementar ações fonográfica e do espetáculo, produção recente dos mestres
de apoio. apesar do valor inquestionável e dos jovens discípulos dessas
Além de dar condições para de sua arte. Essa capacitação modalidades tradicionais do
criação, produção, apresentação permitirá aprofundar o grau samba; prestigiar a apresentação
e difusão dessas matrizes do de organização e estimular a dos baluartes, das velhas guardas,
samba — música e dança —, preservação da memória do samba e de seus herdeiros musicais.
essas ações de apoio poderão ser no Rio de Janeiro, a partir de Estes são os desafios de um plano
dirigidas para a pesquisa, reflexão iniciativas dos próprios sambistas de salvaguarda das matrizes do
e documentação; aquisição, e de suas comunidades. samba no Rio de Janeiro.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

notas

1. A elaboração deste dossiê de Janeiro: Secretaria Municipal de Rio de Janeiro 1917-1933. Rio de
para o Registro das Matrizes do Cultura, 1995. p. 86-7. Janeiro: Zahar-UFRJ, 2001.
Samba no Rio de Janeiro como
Patrimônio Cultural do Brasil 4. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 10. TROTTA, Felipe. Samba e
contou com o apoio de convidados 18 de janeiro de 1913. mercado de música nos anos 1990. Tese
que participaram da pesquisa de doutorado apresentada ao
histórica e da elaboração dos 5. Arquivo Corisco Filmes, Programa de Pós-Graduação em
textos. Entre eles estão: Nei Lopes 1972. Comunicação da UFRJ (ECO-
(Da tradição africana); Roberto UFRJ), 2006.
Moura (Notas para uma história 6. LOPES, Nei. Sambeabá; o
afro-carioca); Sérgio Cabral samba que não se aprende na escola. Rio 11. Apesar de não hegemônico
(Deixa falar, o samba e a escola); de Janeiro: Casa da Palavra-Folha no samba carioca produzido a partir
Carlos Sandroni e Felipe Trota (A Seca, 2003. p. 15. da década de 1930, o ritmo 3-3-2
música); João Batista Vargens (A aparece em muitas gravações recentes
poesia); Marília Andrade (Estudo 7. LOPES, Nei. Partido-alto: de partideiros, quase sempre em
coreológico do samba) e Carlos samba de bamba. Rio de Janeiro: sambas calangueados que evidenciam
Monte, Haroldo Costa, Janaína Pallas, 2005. p. 26-7. a ancestralidade entre as duas
Reis e Lygia Santos. práticas e a estreita aproximação
8. TINHORÃO, José Ramos. entre partido e calango. Essa herança
2. Habitação coletiva para a História social da música popular brasileira. musical e afetiva compartilhada
população de baixa renda, também Rio de Janeiro: Editora 34, 1998. aparece, por exemplo, em gravações
denominada cortiço. p. 265. de Martinho da Vila (Segure tudo);
Seu Jair do Cavaquinho (Doce na feira
3. MOURA, Roberto. Tia Ciata 9. SANDRONI, Carlos. Feitiço e Soltaram minha boiada) e no samba de
e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio decente: transformações do samba no Wilson Moreira e Nei Lopes Coité e
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

cuia, no qual os autores afirmam que As escolas de samba do Rio de Janeiro no contexto das escolas pelo menos
“calango e samba é igual a coité e (1996:135) e por Marília Barboza até a década de 1940, é outro
cuia, tudo da mesma família”. da Silva e Lygia Santos em Paulo da sintoma da persistência do velho
Portela (1979:122-5). modelo de samba em duas partes,
12. CABRAL, Sérgio. As escolas de separadas também por atribuições
samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 20. AUGRAS, Monique. O Brasil do de gênero (a primeira, feminina; a
Lumiar, 1996. p. 65. samba-enredo. Rio de Janeiro: Fundação segunda, masculina).
Getúlio Vargas, 1998. p. 37.
13. Idem, p. 67. 25. Xangô da Mangueira,
21. CABRAL, Sérgio. As escolas de depoimento publicado no livro/
14. Idem, p. 66. samba do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 142. cd Xangô da Mangueira: Recordações
de um velho batuqueiro. Rio de
15. Idem., p. 78. 22. Citado por Cabral Janeiro: Cooperativa dos Artistas
(1996:121). Veja também Anônimos (CASA), 2005. p. 37.
16. Idem, p. 79. TINHORÃO, José Ramos. Pequena
história da música popular: da modinha 26. Nei Lopes encontrou o verso
17. Idem, p. 80-1. à lambada. (6ª ed. Rio de Janeiro: gravado por Jamelão em 1959, por
Art Editora, 1991, p. 175), para Chico Santana em 1970 (p. 141) e no
18. Idem, p. 83. referência a uma crônica de 1935 partido Olha a hora Maria, sem crédito
que aponta no mesmo sentido. de gravação ou autoria (p. 155).
19. A história desta decisão, que Partido-alto: samba de bamba. Op. cit.
eventualmente levou ao afastamento 23. CABRAL, Sérgio. As escolas de
de Paulo da Portela em relação samba do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 144. 27. Nei Lopes explica o termo:
à escola que ajudara a fundar, é 24. Diga-se, de passagem, que o “Fuleira, no jargão partideiro,
narrada por Sérgio Cabral em uso da palavra “pastoras”, registrado é redução de ‘fuleiragem’,
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

brincadeira sem consequência, ação de Mestre Fuleiro, do Império da Silva; CACHAÇA, Carlos;
sem responsabilidade” (Partido-alto: Serrano: As lágrimas foram adereços de OLIVEIRA FILHO, Arthur
samba de bamba. Op. cit., p. 189). pouca duração nos rostos dos sambistas que Loureiro de. Fala, Mangueira. Rio de
acompanharam, na tarde de ontem, o caixão Janeiro: José Olympio, 1980. p. 34.
28. Segundo a Enciclopédia da de Mestre Fuleiro até a gaveta 2.243 do
Diáspora Africana, “Desenho rítmico Cemitério de Irajá. O que se viu, no velório e 33. Há outras versões para a
característico da música africana no enterro, foi o canto alegre dos que, como fundação da escola. Uma delas
no continente de origem e na Antônio dos Santos, de 85 anos, o Mestre afirma que a Vila surgiu de uma
Diáspora. É conseguido com Fuleiro, não deixam o samba morrer nem dissidência do bloco Vermelho e
o deslocamento da acentuação na hora da morte. Fúnebres, ali, só havia os Branco. O grupo que se separou
regular de um compasso por meio túmulos. No trajeto da Capela Santo Cristo teria, primeiro, organizado um
da supressão do tempo fraco. Ltda, na pracinha de Irajá, até a última time de futebol - com as cores azul e
No Brasil, a denominação samba morada do fundador da Império Serrano, branco - e, depois, criado a escola.
sincopado é dada a um tipo de cerca de 300 pessoas cantaram o samba-
samba em que esse deslocamento é -enredo Heróis da liberdade. Depois, 34. MÁXIMO, João. “Uma Vila
levado às últimas consequências e emendaram a marcha Está chegando a cada vez mais distante do bairro”.
no qual se destacaram intérpretes hora. Bateram palmas. Acenaram lenços. O Globo. Rio de Janeiro, 5 de março
como João Nogueira”. E voltaram para continuar o que estavam de 2006. Seu Eurico é Eurico
fazendo durante o velório: beber cerveja nos Moreira da Silva, uma das figuras
29. Ou tambu – maior dos bares do bairro. centrais na organização da escola
tambores do jongo. nos seus primeiros anos.
31. Depoimento de Carlos
30. O repórter Múcio Bezerra, Cachaça para o Museu da Imagem e 35. “China e a história da Vila”.
no jornal O Globo em fevereiro do Som (1992). Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 16
de 1997, relatou assim o enterro 32. SILVA, Marília T. Barboza de fevereiro de 1971.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Registro das matrizes do de Janeiro” (o negrito é meu).


samba no Rio de Janeiro Como primeira justificativa
partido-alto, samba de invocava-se o tombamento como
terreiro e samba-enredo valor arquitetônico e artístico,
anexo 1 pelo Instituto Estadual do
I. O processo Patrimônio Cultural (Inepac),
Parecer do na gestão do atual conselheiro
Relator O processo 01450.011404/2004- Ítalo Campofiorito, da
25 foi aberto com correspondência localidade denominada Pedra
datada de 14 de setembro de 2004, do Sal, próxima ao cais do
assinada por representantes de porto, que, segundo a mesma
três entidades — Centro Cultural correspondência, é considerada
Cartola, Associação das Escolas “o berço, o embrião de uma
de Samba do Rio de Janeiro e das maiores e mais significativas
Liga Independente das Escolas manifestações culturais do nosso
de Samba — e dirigida ao então país: o samba.”
presidente do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico A correspondência veio
Nacional (Iphan), em que era acompanhada de abaixo-assinado
solicitado “o tombamento, como com 124 assinaturas.
bem cultural imaterial a ser
preservado com todas as honras Em 31 de janeiro de 2005,
que os bens palpáveis e concretos o Centro Cultural Cartola
têm recebido” [...] “do samba, encaminhou ao Iphan projeto de
em especial do samba do Rio “Mapeamento do samba carioca: I
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

– Estação Primeira de Mangueira”, definidos no Convênio celebrado Procuradoria Federal do Iphan,


a ser realizado pelo Laboratório de em 30 de novembro de 2005 juntamente com o substancioso
Etnomusicologia da Universidade entre esse Centro e o Iphan, parecer técnico produzido pela
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). com interveniência da Fundação antropóloga Letícia Viana, da
Cultural Palmares. Gerência de Identificação do DPI,
A partir desse momento, e e pela arquiteta Márcia Sant’Anna,
durante um ano e meio, conforme Os trabalhos tiveram como respaldo diretora desse Departamento. Nada
relato feito pela diretora do o Termo de Cooperação Técnica, tendo a Procuradoria a opor, foi
Departamento do Patrimônio celebrado, em 2 de dezembro publicado Aviso no Diário Oficial da
Imaterial – DPI/Iphan, Márcia de 2005, entre a União, por União, em 6 de setembro de 2007.
Sant’Anna, à Câmara do intermédio da Secretaria Especial Decorrido o prazo regulamentar
Patrimônio Imaterial, em sua 8ª de Políticas de Promoção da sem que tenham sido apresentadas
reunião, realizada em Brasília Igualdade Racial da Presidência da contestações, o processo foi
em 14 e 15 de março de 2007, República, o Ministério da Cultura encaminhado ao Conselho
desenrolou- e o Instituto do Patrimônio Consultivo do Patrimônio
-se processo de discussão quanto Histórico e Artístico Nacional, Cultural, cujo presidente me
ao encaminhamento a ser dado com vistas ao desenvolvimento de designou como relatora.
ao pedido de registro, e do qual esforços conjuntos de salvaguarda.
participaram o Centro Cultural II. Do samba aos sambas
Cartola, o Centro Nacional de Concluída a instrução do processo,
Folclore e Cultura Popular e vários que resultou na reunião de Essa foi a tramitação de um
especialistas. Ficou acordado farto material documental e de processo administrativo cujas
que a instrução do processo de detalhado e esclarecedor dossiê origens estão na iniciativa, em
registro seria realizada pelo Centro informativo, este foi encaminhado abril de 2004, do ministro da
Cultural Cartola, com recursos em 22 de agosto de 2007 à Cultura, Gilberto Gil, e do então
dossiê iphan 10 { Matrizes do Samba no Rio de Janeiro } 182
partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

presidente do Iphan, Antônio seu critério IV (“estão ameaçadas Essas considerações levaram a
Augusto Arantes Neto, de de desaparecimento devido à uma reelaboração da proposta
anunciar à imprensa a intenção de falta de meios de salvaguarda ou inicial, no sentido de encaminhar
encaminhar à terceira edição do de processos de transformação a candidatura mais específica
programa da Unesco, Proclamação acelerada”). Além disso, do samba de roda do Recôncavo
das Obras-Primas do Patrimônio como muito bem observam as Baiano. A iniciativa teve o mérito
Oral e Imaterial da Humanidade, autoras do parecer técnico, de, além de se enquadrar nos
a candidatura do samba, com a candidatura do “samba”, requisitos do programa — pois
base no reconhecimento nacional tal como fora apresentada, se tratava de expressão cultural
e mundial dessa manifestação não se encaixava tampouco efetivamente sob ameaça de extinção
musical, poética e coreográfica na definição de “patrimônio —, apresentar-se como ponto fulcral
como uma das mais genuínas e cultural imaterial” expressa no da cadeia histórica e cultural de um
significativas expressões da cultura artigo 2 da Convenção acima conjunto de manifestações musicais
brasileira, constituindo inclusive citada: “embora ampla, ressalta e coreográficas do que se pode
um dos mais poderosos símbolos a importância do vínculo desses considerar, no Brasil, o metagênero
de nossa identidade nacional. usos, práticas, representações, “samba”, cujas expressões
Entretanto, dados os critérios saberes e expressões com a apresentam várias afinidades e
que norteavam esse programa, vida, a história e o cotidiano de também diferenciações entre si.
extinto e em parte incorporado comunidades e grupos sociais. Essas variantes incluem “o jongo,
à Convenção para a Salvaguarda Em suma, patrimônio imaterial o samba rural paulista ou samba
do Patrimônio Cultural Imaterial mais como um conjunto de de bumbo, o tambor de crioula
da Humanidade, de 2003, essa práticas e expressões imbricadas do Maranhão, o coco nordestino
candidatura, a exemplo do que na vida social do que como gênero (também chamado samba de coco)
ocorreu com as do “fado” e do artístico.” (*P p. 1) e o samba de roda baiano” (P
“tango”, não se enquadrava no p. 2). Desse conjunto, já foram
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

registrados o samba de roda do A opção foi, portanto, de seguir restringir o processo de registro
Recôncavo Baiano (2004), o jongo a trilha dos sambas de batuque aos depoimentos e à produção
do Sudeste (2005) e o tambor de ou de umbigada — terminologia criativa dos atores mais antigos
crioula do Maranhão (2007). utilizada por Oneyda Alvarenga e do mundo do samba, muitos dos
outros estudiosos — aberta com o quais integram as “velhas guardas”
Nessa linha de raciocínio, era samba de roda, considerado, pela das escolas de samba cariocas,
lógico e imperioso, portanto, que maior parte dos pesquisadores, foi abandonada em favor de uma
se considerasse a candidatura do referência fundamental para a perspectiva mais ampla. A proposta
“samba carioca” para registro, compreensão do modo como se foi se voltar para aquelas “expressões
porque constitui a face mais constituiu, no Rio de Janeiro, contemporâneas mais representativas
visível do conjunto de expressões o universo do samba. Opção da tradição do samba no Rio de
mencionado acima. Um dos acertada e coerente, a meu ver, Janeiro — expressões que podem
desafios era elaborar seu adequado com a orientação que vem sendo ser vistas como matrizes das várias
dimensionamento, seja porque, seguida pelo Departamento outras formas de samba que foram
num processo metonímico, se de Patrimônio Imaterial de (e continuam sendo) criadas depois
costuma associar o termo “samba” se procurar preliminarmente (...): o partido-alto, o samba de
à versão carioca, e considerar o Rio delinear séries históricas e mapear terreiro e o samba-enredo.” (P p. 4)
de Janeiro o “berço” do samba no as variantes de eixos constitutivos
Brasil, seja porque o samba carioca das manifestações culturais de III. O samba no Rio de Janeiro
assumiu em determinado período caráter processual. É o que vem
histórico o estatuto de “símbolo sendo feito, por exemplo, com os A emergência dessas três formas de
musical da nacionalidade”, sistemas alimentares e a diversidade expressão nas primeiras décadas do
tornando-se em seguida, sobretudo linguística no Brasil. século XX, que teve como cenário
no exterior, imagem por excelência inicial a região central do Rio de
da música popular brasileira. Nesse sentido, a ideia inicial de Janeiro, se confunde com um
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

momento da evolução urbana da africana, que encontraram novas no Rio de Janeiro à época era
cidade, da região portuária. Aí se formas de manifestação nas casas, bastante rico e diversificado, com
situavam a Pedra do Sal, já citada, ruas e bairros da capital. ritmos de origem europeia (polcas,
e a Praça Onze, na Cidade Nova mazurcas), africana (jongo, pontos
— região que Heitor dos Prazeres Os depoimentos de sambistas e de macumba e candomblé, samba
denominou “a Pequena África” os comentários dos pesquisadores de roda) e também formas depois
—, na direção dos Morros da apontam as casas das “tias baianas” caracterizadas como folclóricas,
Providência, da Favela, de Santo como centros irradiadores de como o coco e a embolada.
Antônio e outros, e dos subúrbios manifestações religiosas, artísticas
ao longo da linha férrea. e lúdicas que formaram o caldo Ao diferenciarem a produção
de que brotou o chamado samba musical da Pequena África daquela
Essa foi a trajetória dos migrantes, carioca em suas diferentes que se desenvolveu no Estácio, os
em sua grande maioria ex- expressões. Nesses espaços de pesquisadores deixam evidente a
-escravos ou libertos, que, devido sociabilidade se perpetuavam os polissemia do termo “samba”: na
à decadência da cafeicultura e cultos aos orixás, se comiam pratos primeira localidade, samba era
da atividade agrícola em geral, de origem baiana e também se a palavra utilizada para designar
vieram de diversas partes do país, cantava, dançava e batucava, no principalmente as festas — nas
afluindo para o Rio de Janeiro salão e no quintal. Os ranchos e ruas e também nas casas — onde
em busca de melhores condições blocos que, no Carnaval, saíam as pessoas se reuniam para tocar
de vida e de trabalho no porto, pelas ruas, paravam, em sinal de diferentes tipos de música, do
no comércio, em serviços e nas reverência, em frente às casas lundu ao maxixe e ao samba de
incipientes indústrias. Trouxeram das tias, mais tarde evocadas nas roda. Já no Estácio, desenvolveram-
consigo do meio rural seus alas das baianas, tradicionais nos se ritmos mais apropriados aos
costumes e tradições, ainda muito desfiles das escolas de samba. Vale desfiles dos blocos e depois
influenciados por sua origem ressaltar que o repertório musical das escolas. Essa diferença foi
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

sintetizada em um depoimento de também, diferenças de perícia de aspectos de técnica musical.


Ismael Silva para Sérgio Cabral: técnica dos intérpretes. Mas mesmo Essa observação só vem reforçar a
“O estilo (antigo) não dava para essas hipóteses são objeto de evidência de como esse metagênero
andar. Eu comecei a notar que controvérsias, como aponta Carlos foi sendo apropriado pelos
havia uma coisa. O samba era assim: Sandroni em seu livro Feitiço decente. diferentes grupos sociais numa
tan tantan tan tantan. Não dava. Por exemplo, Pelo telefone, de autoria relação de pertencimento coletivo.
Como é que um bloco ia andar na de Donga, o primeiro samba
rua assim? Aí a gente começou a gravado em disco, pela gravadora Na perspectiva do reconhecimento
fazer um samba assim: bum bum Casa Edison, em janeiro de 1917, das matrizes do samba carioca como
paticumbum prugurundum”. era considerado por Ismael Silva patrimônio cultural brasileiro, essas
um maxixe. disputas interessam no que revelam
Essa seria, porém, apenas parte da complexidade de um processo
das possíveis explicações para as A alusão a essas polêmicas que envolveu as camadas populares,
mudanças que caracterizam o só interessa aqui porque de origem africana. Mas também,
chamado “paradigma do Estácio”, demonstram como, a partir de como demonstra Hermano Vianna
considerado o ritmo identificado certo momento, a questão das em seu livro O mistério do samba,
como uma primeira versão do origens e da autenticidade do intelectuais e artistas da classe
samba carioca. Outros autores samba produzido no Rio de média, os meios de comunicação
apontam para as diferenças de Janeiro passou a mobilizar os que de massa e a classe política, esta
instrumentação: piano, flauta, o produzem e também os que o especialmente no período do
clarineta, cordas e metais na Cidade estudam. Embutidas nesses debates Estado Novo, quando o samba
Nova; e predominância marcante estão disputas pela primazia de foi “oficializado” como expressão
da percussão — tamborim, cuíca, sua “origem” e de sua “criação”, máxima de uma identidade
surdo e pandeiro no Estácio. envolvendo questões de etnia, classe nacional. Nesse sentido, a trajetória
Consequentemente, havia, social e contexto cultural, além do samba carioca é reveladora não
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apenas da história da cidade, como Com as escolas, vai surgir um novo das escolas, onde, até os anos 70,
também da formação da sociedade tipo de samba na cidade, o samba- “o tempo destinado aos sambas
brasileira, uma vez que ocorreu na -enredo, cuja estrutura narrativa de terreiro (mais tarde sambas
capital do país, com repercussão se refere obrigatoriamente ao tema de quadra) se dividia com a
nacional e internacional. escolhido pela escola para o desfile competição interna de escolha do
do ano, e que precisava também samba-enredo” (D p. 131)
Esse processo de “oficialização” se adequar aos regulamentos que
tem início três anos após o que é organizavam os desfiles. Como O fato é que, como consta do texto
considerado o primeiro desfile a exigência, por parte do poder do dossiê, formadas as escolas de samba, o
de escolas de samba, promovido público, a partir de 1937, de que os povo carioca passou a contar com uma espécie
em 1932 pelo jornal Mundo Sportivo enredos das escolas tivessem caráter de passaporte para cantar, dançar e tocar o
na Praça Onze. Quatro anos histórico, didático e patriótico. samba, hábitos que, nas primeiras décadas
antes, em 12 de agosto de 1928 Essa intervenção no processo do século XX, eram violentamente reprimidos
fora criado o bloco Deixa Falar, criativo — que chegou a se pela polícia, que agia como instrumento do
o primeiro a receber a designação manifestar, em alguns casos, na preconceito das classes dominantes contra as
de escola de samba, na medida forma de censura por parte do manifestações culturais e religiosas dos negros.
em que novidades introduzidas Departamento de Imprensa e (D p. 21) Além disso, compositores
por seus componentes, como o Propaganda — demonstra que e intérpretes oriundos da classe
surdo, logo foram adotadas por “nem todas as formas tradicionais média contribuíram para a difusão
outras comunidades da cidade. Em de samba foram reconhecidas pelo de produções identificadas como
1935, a Prefeitura da cidade do Estado” (P p. 11), nem divulgadas samba pela via do rádio e da
Rio de Janeiro se torna parceira da pela indústria cultural. Mas, indústria fonográfica: Francisco
promoção do desfile ao lhe garantir por outro lado, a diversidade Alves, Noel Rosa, Ary Barroso,
subvenção financeira e divulgação. dos sambas permaneceu viva nas Almirante, Braguinha, Mário Reis e
rodas de pagode e nas quadras tantos outros.
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

A partir da década de 1940, dos Estudantes (UNE), e desfile. A introdução da variável


portanto, o samba, já fortemente compositores como Zé Kéti, mercado na produção do desfile
associado ao Carnaval e às considerado por Ricardo Cravo e na divulgação do samba teve
escolas, foi convertido em ícone Albin “uma ponte entre os vários desdobramentos, como a
da brasilidade, a serviço de um sambistas e a intelectualidade”, problematização da questão da
projeto de nação, e até “importado” são incorporados em shows e autoria, e trouxe uma nova tensão
pela indústria cinematográfica gravações produzidos por artistas para o universo do samba carioca,
americana na figura de Zé Carioca vinculados à bossa nova. Para essa sobretudo a partir dos anos 70. O
com seu pandeiro. Mas foi o ampliação do público do samba caráter coletivo da performance, que
impulso dos meios de comunicação contribuiu também a criação, prevalece sobre a criação individual
de massa e da indústria fonográfica fora dos subúrbios, de espaços na medida em que é o grupo
que contribuiu efetivamente para voltados para sua difusão. Um que consagra o sambista, e que,
identificar o samba carioca com dos primeiros foi o Zicartola, que sobretudo no caso do improviso,
o que seria uma “música popular funcionou no centro do Rio de participa ativamente do processo de
brasileira”, e para torná- Janeiro como restaurante e casa sua apresentação, passa a sofrer a
-lo reconhecido tanto pelas classes de samba, e onde pontificavam o competição da lógica do espetáculo
populares como pelas classes médias compositor Cartola e sua mulher e do gosto anônimo do “público”.
e as elites. Zica, responsável pela cozinha.
Uma prova da vitalidade do samba,
Nos anos 60, inclusive, o “samba Por outro lado, a porém, é a constante conquista
do morro” foi apropriado “profissionalização” das escolas de novos espaços e a incorporação
pelos movimentos estudantis de terminou por restringir, no seu de novos atores, sem que isso, aos
contestação ao regime militar, âmbito, os espaços para as rodas olhos dos sambistas, comprometa os
como os Centros de Cultura de samba, e também o papel do valores que identificam o samba de
Popular da União Nacional compositor na organização do raiz. Nas últimas décadas do século
dossiê iphan 10 { Matrizes do Samba no Rio de Janeiro } 188
partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

XX, artistas como Clara Nunes, a programação de agências de IV. Partido-alto, samba de
Beth Carvalho, Paulinho da Viola, turismo. terreiro e samba-enredo
Martinho da Vila, Zeca Pagodinho,
e grupos como o bloco Cacique Mas, ao lado dessas novas formas No alentado dossiê produzido pelo
de Ramos, o conjunto Fundo de de difusão do samba, a prática de Centro Cultural Cartola, esses três
Quintal, e, mais recentemente, tocar partido-alto e sambas de tipos de samba são descritos no
o grupo Semente, alcançaram terreiro nos quintais das casas e “aspecto rítmico, na sonoridade,
grande sucesso com gravações de botequins dos subúrbios, em rodas na estrutura harmônico-melódica
composições de sambistas ligados às de samba e pagodes, ainda que e nas formas de algumas canções
matrizes do samba, e terminaram tenha perdido espaço nas escolas de consideradas típicas de cada um dos
por atrair a atenção do público para samba, permanece viva em bairros universos abordados.” (D p. 23).
as rodas de samba e os pagodes. É populares da cidade. A esses itens, cabe acrescentar os
importante esclarecer, conforme Enfim, diante da diversidade de ambientes em que ocorrem, o que
demonstram Roberto Moura e formas musicais que se abrigam leva a uma primeira distinção entre
Nei Lopes, que não se trata de um sob o termo “samba”, é indubitável partido-alto e samba de terreiro, de
revival das rodas de samba tal como que o samba carioca tem como um lado, e samba-enredo de outro.
ocorriam nas casas de subúrbio e matrizes desenvolvidas no Rio de
nos morros nas primeiras décadas Janeiro o partido-alto, o samba de Dos três tipos de samba
do século XX, mas de reuniões em terreiro e o samba-enredo, cujas identificados como matrizes do
botequins e outros espaços abertos características como expressões samba carioca, o partido-alto
ao grande público, como o do musicais e vetores de costumes e “talvez represente mais que os
Clube Renascença no Andaraí, formas de sociabilidade constituem outros uma certa ancestralidade.”
e os da Lapa revitalizada, que o objeto da documentação (D p. 24) Cantado na forma
atraem as classes médias das Zonas apresentada para fundamentar o de desafio por dois ou mais
Sul e Oeste, integrando inclusive pedido de registro. contendores, é, segundo Nei
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

Lopes, composto de “uma parte comprometido em sua capacidade samba como sendo ‘de terreiro’”.
coral (refrão ou ‘primeira’) e de sintonia com o momento de (D p. 31) Em termos gerais, é
uma parte solada com versos sua execução, do mesmo modo possível distinguir dois tipos:
improvisados ou do repertório como ocorre com o mito quando aqueles em que há espaço para
tradicional, os quais podem ou não cristalizado numa narrativa escrita. improviso e aqueles de estrutura
se referir ao assunto do refrão,” fechada, cuja elaboração é anterior
(D p.26-27) acompanhadas por Já o samba de terreiro tem ao momento da performance. Com
instrumentos de corda e percussão. como principal característica a profissionalização dos desfiles,
A sonoridade dominante deve diferenciadora o contexto onde os terreiros cederam lugar às
ser a do solista, o que seria um ocorre, que pode ser tanto o quadras, e esse tipo de samba, de
diferencial em relação ao samba quintal de uma casa de família expressão eminentemente gregária e
de terreiro e ao samba-enredo. como, mais especificamente, a comunitária, desde os anos 70 vem
Nesse sentido, relaciona-se com área comum de uma escola de deixando as escolas, recolhendo-se
o lundu, o samba rural paulista, samba, sua parte “de dentro”. a espaços de menor visibilidade.
o samba de roda do Recôncavo Nesse sentido, caracteriza-se mais
e outras práticas musicais que o “como uma prática sociomusical O chamado samba-enredo foi,
antecederam. Dos três tipos de do que como um tipo específico de num primeiro momento, um
samba aqui referidos, é também o samba, cujos elementos poderiam samba de terreiro adequado a
que menos se adapta à difusão pelos ser isolados e descritos” (D p. 31). determinado tema de uma escola.
meios de comunicação de massa, Seu reconhecimento como tal Mas, devido às já mencionadas
pois o seu traço mais característico depende da comunidade: “apenas o exigências para a organização
é a improvisação, emulada pelo grupo de pessoas autorreconhecido dos desfiles, a predominância da
ambiente propício das rodas de como sambistas das escolas narratividade o vai distanciando do
samba. Gravado ou apresentado em tem legitimidade para designar samba de terreiro, desaparecendo
shows, o samba de partido-alto fica determinado samba ou grupos de também qualquer espaço para o
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

improviso. Até sua temática, como além de trazerem significativas V. Conclusão


já vimos, passou a ser objeto de consequências coreográficas.” (D
regulamentação, o que contribuiu p. 40) Qual o sentido então de propor o
para esvaziar seu potencial de registro das Matrizes do samba no
crítica e de irreverência. Ao se Mesmo afetadas pelo impacto das Rio de Janeiro: partido-
propor a desenvolver uma história, mudanças no mundo do samba, -alto, samba de terreiro, samba-
o samba se alonga num monólogo essas matrizes foram seminais para a enredo como patrimônio cultural
produzido por seus autores. Essa aparição de novas formas de grande brasileiro? Em que medida uma
situação vai predominar até a penetração junto ao público, como intervenção dessa natureza — a
década de 1970, quando novos o samba de breque, o samba- outorga de um título, pelo Estado,
interesses, como o de atrair o -canção e mesmo a bossa nova, que e a consequente elaboração e
público para os desfiles, e o de surge em diálogo com os sambas implementação de um plano
satisfazer às exigências da indústria que a antecederam. Mas, a partir de salvaguarda — contribuiria
fonográfica, fazem com que “a das últimas décadas do século XX, efetivamente para preservar os
forma vire fôrma” (D p. 40). “pode-se observar uma redução valores identificados nessas formas
Retorna o refrão, e o ritmo se na valorização dessas matrizes do de expressão, sem a pretensão de
acelera, processo considerado samba, com a diminuição dos “engessá-las” ou de lhes cobrar
“um afastamento das matrizes espaços tradicionais para a sua uma “autenticidade” quanto à
do samba-enredo” (D p. 40) na manifestação,” (D p. 114) ainda que fidelidade a certos traços, o que,
medida em que essas mudanças novos espaços para o samba tenham nas circunstâncias atuais, soaria
“mascaram as nuances rítmicas sido abertos em contextos sociais e como artificial?
da levada da bateria, reduzem o culturais diferenciados.
potencial de interpretação dos Essas perguntas estão
cantores e escondem a riqueza dos necessariamente presentes em todas
caminhos melódicos e harmônicos, as decisões quanto aos processos de
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

registro, mas as respostas só podem capacidade que tradicionalmente contemporâneo. (P p. 16) Essa situação
ser buscadas na análise de cada revela grandes talentos. A riqueza compromete profundamente as
situação particular. rítmica, melódica e lírica dessas formas tradicionais de transmissão
três formas de expressão, sem do samba, baseadas na oralidade,
No caso das expressões propostas dúvida ameaçada pela influência na convivência, na observação e
como matrizes do samba dos meios de comunicação de massa na participação. É desse modo
carioca, há que, primeiramente, que, coerentes com sua lógica de que se consolida, desde a infância,
especificar os valores que se deseja consumo, pressionam no sentido da um sentimento de experiência
preservar. Como traço mais adequação a um gosto padronizado, compartilhada e um sentido de
forte e recorrente, sobressai o deve ser objeto de especial atenção pertencimento a uma comunidade,
caráter comunitário presente em em um plano de salvaguarda. entendida esta tanto como a família
todas três, não necessariamente e os grupos que se reúnem para
na criação, mas sem dúvida na Mas há ainda um aspecto mais sambar, como uma “comunidade
execução e recepção. Esse traço, complexo e sutil a considerar, imaginada” mais ampla que
para Roberto Moura, é sintetizado amplamente reconhecido pelas tem o samba como referência
na roda de samba como locus pessoas próximas a essas matrizes fundamental em suas vidas.
gregário de fruição desinteressada do samba, e justamente enfatizado
e de participação ativa — ainda no parecer técnico: o crescente Comprovação desse fortíssimo
que possa até ser silenciosa — de afastamento das comunidades das escolas papel que o samba carioca,
todos os presentes. É o ambiente da produção dos sambas-enredos, assim sobretudo em suas três matrizes,
caloroso e estimulante que como [...] as transformações que são exerce como referência para a
propicia a emergência de outro impostas a essa forma de expressão pela construção de identidades coletivas
traço muito valorizado pelos mídia que transmite os desfiles, e pelo e mesmo individuais é o tom
sambistas consagrados em suas formato comercial e voltado para o turismo afetivo e de admiração com que é
comunidades: a improvisação, de aspectos centrais do Carnaval carioca mencionado nas infinitas letras de
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

samba sobre o samba, ou seja, que dossiê, foram sugeridas as seguintes 3. Promoção e documentação
têm o samba como tema. medidas de salvaguarda: de encontros entre sambistas
mais velhos e as novas gerações,
Tem toda pertinência, 1. Ampla pesquisa e visando à transmissão de
portanto, a ênfase presente nas documentação, tanto dos três conhecimentos, pois “a prática é
recomendações do dossiê para tipos de samba como formas a primeira escola do samba”. (D
que as medidas de salvaguarda de expressão artística, como de p. 121)
se voltem prioritariamente para sua história, e da biografia de
“a valorização dos espaços de seus principais representantes. 4. Criação de centros de
manifestação originais dessa arte Considero de especial urgência o memória e referência do samba
e dos sambistas tradicionais, em levantamento da produção musical, com dentro das comunidades ou na
especial as velhas guardas” (D a recuperação (e gravação) de letras Cidade do Samba, de modo a
p. 118) com base na articulação das e melodias de partidos-altos, sambas de “facilitar aos sambistas o acesso
comunidades de sambistas, em especial os terreiro e sambas-enredo, visto que parte aos estudos, investigações
identificados como depositários reconhecidos significativa da produção das comunidades acadêmicas e acervos de imagem
da tradição e dos saberes envolvidos nas de sambistas, principalmente a mais afeita e de som sobre o samba no Rio”
práticas de partido-alto, samba de terreiro às formas tradicionais, de caráter não (D p. 122), a exemplo do espaço
e samba-enredo, que detalharão as comercial, não foi registrada. (D p.120) que acaba de ser criado para o
dificuldades que enfrentam e suas necessidades samba de roda em Santo Amaro
para a plena realização dessas formas de 2. Formação de pesquisadores da Purificação (BA).
expressão. (D p. 120) dentro das diversas comunidades
de sambistas de modo a que Essas e outras iniciativas são
Nesse sentido, como primeiro possam se tornar os agentes da propostas “não com vistas à
resultado do processo de discussão salvaguarda de seu patrimônio eliminação da produção comercial
desenvolvido para a produção do cultural. e voltada para o espetáculo
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

turístico, mas para a valorização, das Matrizes do Samba Carioca no


resgate e difusão de elementos e Livro das Formas de Expressão.
aspectos patrimoniais que estão
sendo esquecidos ou postos de Rio de Janeiro, 9 de outubro de 2007.
lado.” (P. p. 16)

Enfim, trata-se de viabilizar o Maria Cecília Londres Fonseca


conhecimento e a valorização Conselheira Relatora
da diversidade de linguagens e
práticas referentes ao partido-
-alto, ao samba de terreiro e ao
samba-enredo, das formas de
sociabilidade que as propiciam, e
também dos sentidos e valores a * No parecer, foram usadas as
elas atribuídos, assegurando assim seguintes convenções:
a preservação de “modos de criar,
fazer e viver”. (CF art. 216) D – Dossiê das matrizes do samba
no Rio de Janeiro: partido-alto,
Por todos esses motivos, e samba de terreiro, samba-enredo
acompanhando a solicitação (versão dos proponentes)
expressa no dossiê, no parecer
técnico e no abaixo-assinado P – Parecer técnico do DPI/Iphan
anexado ao pedido inicial, sou
inteiramente favorável ao Registro
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

anexo 2
Titulação de
Patrimônio
Cultural do
Brasil
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

• Corações Unidos do • União da Ilha do Governador


Amarelinho • União de Jacarepaguá
• Delírio da Zona Oeste • União de Vaz Lobo
• Difícil é o Nome • União do Parque Curicica
anexo 3 • Unidos da Ponte
• Em Cima da Hora
As 73 Escolas de • Estação Primeira de Mangueira • Unidos da Tijuca
Samba do Rio de • Estácio de Sá • Unidos da Vila Kennedy
• Flor da Mina do Andaraí • Unidos da Vila Santa Teresa
Janeiro • Gato de Bonsucesso • Unidos da Villa Rica
• Imperatriz Leopoldinense • Unidos de Cosmos
• Imperial • Unidos de Lucas
• Império da Tijuca • Unidos de Manguinhos
• Império Serrano • Unidos de Padre Miguel
Escolas de Samba da Região • Unidos de Vila Isabel
• Independente da Praça da
Metropolitana do Rio de Janeiro • Unidos do Anil
Bandeira
(Grupos Especial, A, B, C, D e E) • Unidos do Cabral
• Infantes da Piedade
• Inocentes de Belford Roxo • Unidos do Cabuçu
• Acadêmicos da Abolição • Unidos do Jacarezinho
• Acadêmicos da Barra da Tijuca • Leão de Nova Iguaçu
• Unidos do Sacramento
• Acadêmicos da Rocinha • Lins Imperial
• Unidos do Uraiti
• Acadêmicos de Santa Cruz • Mocidade de Vicente de
• Unidos do Viradouro
• Acadêmicos de Vigário Geral Carvalho
• Vizinha Faladeira
• Acadêmicos do Cubango • Mocidade Independente de
• Acadêmicos do Dendê Inhaúma
Fontes:
• Acadêmicos do Engenho da • Mocidade Independente de
Sites da Liga Independente das
Rainha Padre Miguel Escolas de Samba do Rio de
• Acadêmicos do Grande Rio • Mocidade Unida de Jacarepaguá Janeiro (Liesa) <http://www.
• Acadêmicos do Salgueiro • Mocidade Unida do Santa liesa.com> e da Associação das
• Acadêmicos do Sossego Marta Escolas de Samba da Cidade
• Alegria da Zona Sul • Paraíso da Alvorada do Rio de Janeiro (AESCRJ)
• Arame de Ricardo • Paraíso do Tuiuti <http://aescrj.com.br>
• Arranco • Portela
• Arrastão de Cascadura • Porto da Pedra
• Beija-Flor • Renascer de Jacarepaguá
• Boêmios de Inhaúma • Rosa de Ouro
• Boi da Ilha do Governador • São Clemente
• Canários das Laranjeiras • Sereno de Campo Grande
• Caprichosos de Pilares • Tradição
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

• Acadêmicos de Bento Ribeiro Meriti


• Acadêmicos de Bonsucesso • Escalão de Tupã
• Acadêmicos do Engenho de • Estrela de Ouro
Dentro • Filhos do Deserto
anexo 4 • Além do Horizonte • Fiquei Firme
• Alunos da Penha Circular • Flor da Infância
Escolas de samba • Aprendizes da Boca do Mato • Flor do Andaraí
extintas • Aprendizes da Gávea • Flor do Cabuí
• Aprendizes de Copacabana • Flor de Lins
• Aprendizes de Lucas • Floresta do Andaraí
• Aventureiros da Matriz • Guarani de Realengo
• Azul e Branco do Salgueiro • Império da Colina
• Baianinhas Brasileiras • Império de Campo Grande
• Balanço de Lucas • Império de Jacarepaguá
• Boa União de Coelho da Rocha • Império do Marangá
• Cada Ano Sai Melhor • Independente de Turiaçu
• Cenáculo do Samba • Independentes da Serra
• Coração das Morenas • Independentes do Leblon
• Corações da Liberdade • Independentes do Rio
• Corações Unidos da Favela • Índios de Acaú
• Corações Unidos de Jacarepaguá • Inimigos da Tristeza
• De Mim Ninguém se Lembra • Lira do Amor
• Deixa Malhar • Mocidade do Cachambi
• Depois Eu Digo • Mocidade de um Paraíso
• Embaixadores de São João de • Mocidade de Vasconcelos
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

• Mocidade Louca de São Cristóvão • União de Colégio • Unidos do Morro Azul


• Não é o que Dizem • União do Realengo • Unidos do Outeiro
• Papagaio Linguarudo • União do Sampaio • Unidos do Pecado
• Paraíso das Baianas • União do Barão da Gamboa • Unidos do Riachuelo
• Paraíso de Anchieta • União do Catete • Unidos do Salgueiro
• Paraíso de Santa Teresa • União do Jacarezinho • Unidos do Tuiuti
• Paraíso de Grotão • União do Uruguai • Unidos dos Arcos
• Paraísos das Morenas • Unidos da Capela • Universidade de Rocha Miranda
• Paz e Amor • Unidos da Congonha • Universitária de Honório Gurgel
• Paz, Música e Alegria • Unidos da Mangueira • Vai como Pode
• Podia Ser Pior • Unidos da Piedade • Vai se Quiser
• Prazer da Mocidade • Unidos da Saúde • Voz de Orion
• Prazer da Serrinha • Unidos da Tamarineira Fonte: Nei Lopes. Sambeabá: o
• Primeira Linha • Unidos de Bangu samba que não se aprende na
• Rainha das Pretas • Unidos de Cavalcante escola. Rio de Janeiro: Casa da
• Recreio de Inhaúma • Unidos do Irajá Palavra-Folha Seca. 2003. p. 170.
• Recreio de Ramos • Unidos do Barão
• Recreio de Rocha Miranda • Unidos do Castelo
• Recreio de São Carlos • Unidos do Catete
• Sai Quem Pode • Unidos do Coqueiro
• Segunda Linha do Estácio • Unidos do Grajaú
• Sem Você Vivo Bem • Unidos do Indaiá
• Três Mosqueteiros • Unidos do Jacaré
• Última Hora • Unidos do Leme
• União da Mocidade • Unidos do Marangá
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo

anexo 5
Escolas de
samba mirins do
rio de janeiro

• Aprendizes do Salgueiro
• Corações Unidos do CIEP
• Estrelinha da Mocidade
• Filhos da Águia
• Golfinhos da Guanabara
• Herdeiros da Vila
• Império do Futuro
• Infantes do Lins
• Inocentes da Caprichosos
• Mangueira do Amanhã
• Mel do Futuro
• Miúda da Cabuçu
• Nova Geração do Estácio de Sá
• Petizes da Penha
• Pimpolhos da Grande Rio
• Tijuquinha do Borel
• Virando Esperança
anexo 6
Fonte: Site da Associação das aquarela
Escolas de Samba Mirins do Rio de
Janeiro (AESM-RIO) <http://www. brasileira
aesmrio.com>
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partido-alto, samba de terreiro, samba-enredo
Xangô da Mangueira.
Acervo Centro
Cultural Cartola.

Este livro foi produzido


no verão de 2014 para o
Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA ALOÍSIO MAGALHÃES

M433 Matrizes do samba do Rio de Janeiro: partido-alto,


samba de terreiro, samba-enredo / Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
– Brasília, DF : Iphan, 2014.
204 p. : il. color. ; 25 cm. – (Dossiê
Iphan ; 10)

ISBN: 978-85-7334-192-8

1. Patrimônio Imaterial. 2. Samba - Rio de Janeiro.


3. Patrimônio Cultural. 4. Bens Culturais. I. Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. II.
Série.

Iphan/Brasilia-DF CDD 784.188 8

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