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Ideias matemáticas originárias da África e a

educação matemática no Brasil


Paulus Gerdes
Centro Moçambicano de Pesquisa Etnomatemática
paulus.gerdes@gmail.com

Resumo
O artigo apresenta algumas reflexões sobre a possível incorporação de
idéias matemáticas originárias da África na educação matemática no Brasil.
Informa e interroga sobre algumas atividades em curso, tais como o Projeto
“Brasil-África: Histórias Cruzadas”, uma parceria do Ministério da Educação e
da UNESCO e sobre a disciplina “Exploração de aspectos matemáticos de
culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas na educação matemática”
lecionada no primeiro semestre de 2011 na Universidade de São Paulo.

Palavras-chave: Educação Matemática, Brasil, África,


Etnomatemática, História da Matemática.

Tópicos Educacionais, Recife,v. 18, n.1-2, jun./dez. 2012. 139


Mathematical ideas originating from Africa and
mathematics education in Brazil
Paulus Gerdes
Centro Moçambicano de Pesquisa Etnomatemática
paulus.gerdes@gmail.com

Abstract
The paper presents some reflections about the possible incorporation
of mathematical ideas coming from Africa into mathematics education in
Brazil. It informs and reflects about some activities presently under way like
the activities of the “Brazil-Africa: Intercrossing of Histories” Project, a
collaborative effort of the Brazilian Ministry of Education and UNESCO,
and about the course “Exploration of mathematical aspects of African, Afro-
Brazilian and Indigenous cultures in mathematics education”, taught in the
first semester of 2011, at the University of São Paulo.

Keywords: Mathematics Education, Brazil, Africa, Ethnomathematics,


History of Mathematics.

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Já existe alguma incorporação de idéias matemáticas africanas?

Ao refletirmos sobre a possível incorporação de idéias matemáticas


provenientes da África na educação nas Américas, a primeira questão que se
levanta é “Será que já acontece?” Será que as meninas e os meninos no
Brasil já aprendem, na escola, algumas idéias matemáticas concebidas e
desenvolvidas em África?
Por exemplo, as crianças aprendem a utilizar símbolos? Utilizam
todos os dias símbolos, dentro e fora da escola? Alguns usam o telefone
celular, com diversos símbolos? Utilizam todos os dias abreviaturas (+, -, x,
:) para as operações aritméticas? Donde vem esta idéia?
Donde vem?
A partir do século 12 elaborou-se, no Noroeste de África, um
instrumento científico novo, um simbolismo aritmético e algébrico, como se
explica no texto seguinte preparado pelo autor para professores do ensino
fundamental no âmbito do Projeto “Brasil-África: Histórias Cruzadas.”

Notações matemáticas provenientes de África


Será que no Brasil se utilizam diariamente idéias matemáticas que têm
a sua origem na África?
Será que todos os alunos e todos os professores de matemática no
Brasil utilizam algumas notações que vêm do continente africano?
A resposta parcial que se apresenta no texto a seguir pode surpreender...
Costuma-se falar em ‘números árabes’, referindo-se à notação 1, 2, 3, 4, 5
, 6, 7, 8, 9, e 0 para os números de um até nove, e para zero e à continuação da
construção decimal posicional 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, etc.
A ideia e a notação dum sistema decimal posicional, de origem indiana,
foi introduzida e aproveitada nas culturas islâmicas, em particular, para as
transações comerciais. Noutras esferas da vida continuavam-se a utilizar vários
outros sistemas de numeração, como, por exemplo, a numeração alfabética, em
que se empregavam as vinte e oito letras do alfabeto árabe para representar os
números 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 (unidades), 10, 20, 30, 40, 50, 60, 70, 80, 90
(dezenas), 100, 200, 300, 400, 500, 600, 700, 800, 900 (centenas) e 1000.
Os chamados ‘números árabes’ utilizados progressivamente, a partir do
século 9, no ‘Oriente’, desde da Ásia central até ao Egito, e mais tarde em algumas
regiões ao sul da Saara onde a Islã se estabeleceu, são os seguintes dez símbolos:

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Figura 1: Numerais do Oriente, reproduzido de Djebbar (2001, p. 220)

Contudo, no ‘Ocidente’ muçulmano, ou seja, primeiro no Maghreb


(Noroeste de África) e depois na Andaluzia (na Península ibérica), se
transformaram e se utilizaram, desde o século 11, os símbolos de origem
indiana até obterem a forma 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 0.
É esta forma que mais tarde se transmitiu para outros países da Europa e do
Mundo, inclusive o Brasil. Por outras palavras, a variante da notação decimal
posicional que se utiliza e se ensina no Brasil vem do noroeste da África medieval
(Para mais informações, vide: DJEBBAR 2001; DJEBBAR; MOYON, 2011).
Cientistas do ‘Ocidente’ muçulmano desempenharam um papel
importante no desenvolvimento da matemática, em particular, no período que
vai do século 11 ao século 15. Eles escreviam na língua árabe, mas isto não
significa que os próprios cientistas eram árabes. Em geral, eram norte-africanos
como, por exemplo, Ibn al-Banna (1256-1321), Uqbani (1320-1408) e Ibn
Qunfuh (1339-1407), ou da Andaluzia como o geômetra Al-Mutaman, que foi
rei da Zaragossa de 1081 a 1085. Às vezes, os matemáticos do ‘Ocidente’
muçulmano tinham uma origem diferente, como veremos.
Uma contribuição importantíssima do Maghreb medieval para o
desenvolvimento internacional da matemática foi a idéia de substituir
palavras para descrever várias operações aritméticas por símbolos. Observe
o texto seguinte do século 12:

Figura 2. Parte dum manuscrito do noroeste da África (século 12) reproduzido de Djebbar (2005, p. 93)

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Trata-se dum texto na língua árabe, escrito da direita para a esquerda (e
não como em Português da esquerda para a direita). Mesmo assim, escrito em
Árabe, o leitor brasileiro reconhece-se imediatamente frações como 14 e 101.
É o texto mais antigo, na medida em que se sabe hoje, em que aparece
o famoso traço para representar uma fração, com o numerador em cima do
traço e o denominador em baixo. Todas as crianças nas escolas brasileiras
aprendem esta idéia e notação originárias do norte da África. O matemático
que provavelmente tenha introduzido este símbolo e tenha sido o autor do
texto referido, chama-se Abdallah Ibn al-Yasamin.
Ibn al-Yasamin significa ‘filho da flor jasmim’. A mãe dele era
chamada flor de jasmim. A mãe era uma escrava negra, proveniente da
África ao sul do Saara. O pai era um norte-africano da população Berbere.
Tendo tido um filho com um homem ‘livre’, a mãe, em concordância com a
lei da época, ganhou a liberdade. O ‘filho sem pai’, descrito na época como
‘tão negro como a mãe’, educado inicialmente pela ‘flor de jasmim’, estudou
em Sevilha (Andaluzia) e tornou-se um matemático, jurista e poeta famoso.
Como professor teve a idéia de escrever poemas para facilitar a
aprendizagem da matemática por parte dos seus alunos. Durante séculos os
seus ‘poemas matemáticos’ foram decorados por estudantes.
Não se conhecem bem as razões, talvez pelo sucesso que teve ou pelas
posições publicamente assumidas, Ibn al-Yasamin foi assassinado em 1204
em Marrakech nos Marrocos. Crianças no Brasil e em muitas partes do
mundo atual aprendem algumas idéias e símbolos inventados pelo ‘filho da
flor jasmim’ ou do seu tempo e cultura.

Segundo exemplo
Um outro exemplo de uma notação simbólica concebida no Maghreb é uma
notação para equações. Em vez de descrever uma equação quadrática em extenso
por palavras, por exemplo, “3 ‘x ao quadrado’ mais 5 ‘x’ é igual a 7”, ela pode ser
abreviada como se ilustra na Figura 3. Os símbolos que aparecem num texto do
século 12, escrito da direita para a esquerda, parecidos com as letras J e Y,
representam os sinais de igualdade (=) e de subtração (-). As expressões para ‘x ao
quadrado’ e para ‘x’ aparecem em cima dos numerais 3 e 5.

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Figura 3: À direita a representação de duas equações quadráticas conforme um manuscrito do noroeste
africano do século 12; à esquerda mostra-se o equivalente atualmente utilizado nas escolas do Brasil.

Será somente no ensino fundamental que se utilizam idéias


matemáticas concebidas na África? Será que os estudantes de várias
faculdades das universidades no Brasil aprendem, nos seus cursos, algumas
idéias matemáticas concebidas em África?

Exemplo do ensino superior


Apresentemos um exemplo do ensino superior. Muitos estudantes
universitários aprendem o chamado ‘Triângulo de Pascal’. O matemático
francês Blaise Pascal viveu no século 17 (1623-1662). Observe agora, na
Figura 4, uma parte de um manuscrito do século 13, descoberto e analisado
no final do século 20 pelo matemático-historiador argelino Ahmed Djebbar
(Cf. DJEBBAR; MOYON, 2011).

Figura 4: Triângulo aritmético de Ibn Mun’im

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Nas colunas verticais lêem-se, da esquerda para a direita, as linhas
horizontais do ‘Triângulo de Pascal’: 1; 1 2 1; 1 3 3 1; 1 4 6 4 1; etc., e isto
quatro séculos antes de Pascal. Este triângulo aritmético aparece num livro de
lingüística matemática elaborado por Ibn Mun’im (m. 1228). O título do livro de
Ibn Mun’im é “A ciência do cálculo” e contém as fórmulas básicas da análise
combinatória, séculos antes de Cardano, Tartaglia, Mersenne, Frenicle na
Europa... , mas as fórmulas ainda são transmitidas no ensino superior como se
fossem as fórmulas de Cardano, Tartaglia, Mersenne, Frenicle,...
Da mesma maneira pode-se dar outros exemplos a diversos níveis do
ensino.
Podemos concluir que já existem idéias matemáticas originárias do
continente africano que são incorporadas no ensino da matemática no Brasil.
No entanto, esta incorporação acontece amiúde inconscientemente,
implicitamente ou ‘às escondidas’, porque a grande maioria dos professores
não conhece a origem histórica das mesmas idéias.
Existirão outras possibilidades de incorporação explícita de idéias
matemáticas concebidas em culturas africanas na educação matemática no
Brasil e quais serão alguns objetivos a alcançar?

Contexto legal e o Projeto “Brasil-África: Histórias Cruzadas”


A Lei 10.639 de 2003 tornou obrigatório o ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira em todo o currículo escolar do Brasil. Esta lei preconiza que o
conteúdo programático deve incluir “o estudo da História da África e dos
Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na
formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas
áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil”.
O Ministério de Educação do Brasil, em parceria com a UNESCO, está a
implementar e a incentivar projetos – tal como o Projeto “Brasil-África: Histórias
cruzadas” – que visam a elaboração de material didático, tanto para a formação de
professores como para todos os níveis de ensino, sobre a contribuição africana e
afro-brasileira para o desenvolvimento do país. Pressupõe-se que para cumprir a lei
seja indispensável que o professor disponha de subsídios e materiais para
desenvolver atividades que promovam “a valorização e o reconhecimento da
diversidade étnico-racial, a partir do enfrentamento de culturas e práticas
discriminatórias e racistas presentes no cotidiano das escolas, as quais excluem

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e penalizam crianças, jovens e adultos negros e comprometem a garantia do
direito à educação de qualidade para todos” – como se pode ler no
documento Contribuições à Implantação da Lei 10.639.
Por ainda haver pouca experiência no Brasil com a incorporação explícita de
idéias matemáticas oriundas de culturas africanas na educação matemática (Cf.
COSTA; SILVA 2005, CUNHA, 2005; SANTOS, 2008; SILVA, 2008), o autor foi
contatado, em Maio de 2010, pela coordenação do Projeto “Brasil-África: Histórias
Cruzadas” a fim a aconselhá-la a este respeito. No contexto deste Projeto está-se a
elaborar a coleção “Brasil e África: Histórias Cruzadas” como contribuição para
implantar a Lei 10.639/2003. Esta coleção propõe apresentar uma resposta ao
desafio de enraizar a referida Lei nas escolas brasileiras de Educação Básica, desde a
Educação Infantil até o Ensino Médio. Para tanto, a coleção pretende apresentar
textos e orientações de atividades a serem desenvolvidas em sala de aula, no período
letivo, em articulação com as demais exigências curriculares. Até ao momento já
foram concluídas as primeiras versões dos livros para professores da Educação
Infantil e do primeiro nível do Ensino Fundamental. Seguirão livros para professores
dos outros níveis de ensino e livros e outros materiais didáticos para alunos de todos
os níveis de ensino. Os livros estão a ser elaborados por uma equipa de pedagogos,
baseando-se em textos previamente preparados por especialistas de diversas áreas do
saber (línguas, antropologia, história, geografia, ciências naturais, dança, musica,
arte e matemática). Estes textos provisórios e de base são discutidos e analisados em
reuniões conjuntas da coordenação, dos pedagogos e dos vários especialistas. O
autor participa nestes encontros, tendo sensibilizado os demais membros de toda a
equipa quanto a algumas contribuições matemáticas do continente africano. O autor
preparou vários textos sobre idéias matemáticas originárias da África, incluindo
sugestões de atividades para a sala de aula (Vide Apêndice A para a lista dos textos
elaborados até finais de 2010).

Idéias matemáticas originárias da África e a sua divulgação


A história da matemática em África, em geral, e de idéias matemáticas
nas culturas ao Sul da Saara, em particular, ainda não era bem conhecida nos
anos 1980. Para estimular tanto a pesquisa como a disseminação da história da
matemática do continente africano, a União Matemática Africana (AMU),
reunida no segundo congresso pan-africano de matemáticos, realizada em Jos na
Nigéria em 1986, criou uma comissão para a história da matemática em África

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(AMUCHMA), coordenada, desde então, pelo autor e pelo professor argelino
Ahmed Djebbar. Devido às pesquisas efetuadas nos últimos trinta anos, já se sabe
hoje bastante mais sobre idéias matemáticas na história africana. Por exemplo, no
norte do continente foram encontrados e analisados neste período diversos
manuscritos elaborados da idade média até ao século 19. Em todo o continente,
estudos foram realizados sobre sistemas de numeração (GERDES, 2008a).
Realizaram diversos estudos sobre idéias geométricas na arte e artesanato africano
(por exemplo, GERDES, 1999), inclusive sobre fractais (EGLASH, 1999). Estudou-
se a história e o potencial didático e científico de desenhos elaborados
tradicionalmente na areia no leste de Angola e zonas limítrofes da Zâmbia e do
Congo (GERDES, 2008b; 2010a; 2010b). A Figura 5 apresenta um exemplo de um
desenho feito na areia. O desenho consiste de uma única linha fechada à volta de
uma rede retangular de pontos de referência. A linha representa o percurso
percorrido por uma galinha de mato que pretende fugir de um caçador.

Figura 5. Exemplo de um desenho na areia (cultura Cokwe de Angola).

A AMUCHMA tem publicado um boletim informativo e contribuído para


a organização de diversos seminários e conferências. Publicou-se igualmente
uma bibliografia anotada sobre matemática na história e culturas africanas
(GERDES & DJEBBAR, 2008), um catálogo de africanos doutorados em
matemática ou em educação matemática (GERDES, 2007). Acaba-se de
publicar uma coletânea de dois volumes dos boletins informativos da comissão,
Volume 1: 1986-1999; Volume 2: 2000-2011 (GERDES &DJEBBAR, 2011).
No contexto do Projeto ‘Brasil-África: Histórias Cruzadas’ e como

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professor visitante da Universidade de São Paulo (1º semestre de 2011), o
autor tem ministrado várias palestras sobre idéias matemáticas na história e
culturas africanas e sobre possibilidades de explorar essas idéias em vários
níveis do ensino na Brasil, palestras essas realizadas em várias universidades
e outras instituições educacionais do Brasil8.
Curso na Universidade de São Paulo
No primeiro semestre de 2011, o autor lecionou, a convite de e em
colaboração com a professora Maria do Carmo Domite, coordenadora do Grupo
de Pesquisa em Etnomatemática da Faculdade de Educação da USP, a disciplina
intitulada “Exploração de aspectos matemáticos de culturas africanas, afro-
brasileiras e indígenas na educação matemática”. Esta disciplina visava uma
reflexão crítica sobre as possibilidades de explorar idéias matemáticas de
diversos contextos culturais africanas, afro-brasileiras e indígenas em vários
níveis de educação, desde o infantil até ao universitário, incluindo a formação de
professores de matemática para esses níveis.

Figura 6. Participantes no curso produzem e analisam bolas e poliedros, utilizando técnicas de


trançados conhecidas no Brasil e originárias da África

8 Universidade Federal de São Carlos, São Carlos e Sorocaba; Universidade Estadual de São
Paulo, Rio Claro; Universidade Federal de Uberlândia; Secretaria de Educação da Cidade de
São Paulo; Universidade de São Paulo; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo;
Universidade de Campinas; Universidade Severino Sombra; Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro; Universidade Federal do Rio de Janeiro; Universidade Federal do Rio Grande
do Norte; Universidade Federal de Pará; Universidade da Amazônia; Universidade
Bandeirante de São Paulo; Universidade Federal de Pernambuco.

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A partir da leitura de pesquisas e da experimentação realizada durante as
aulas (vide as Figuras 6 e 7), os estudantes e os docentes participantes refletiram
sobre a própria aprendizagem de aspectos matemáticos desses contextos
culturais e sobre as possibilidades de incorporação de atividades culturais –
africanas, afro-brasileiras e indígenas – no ensino e aprendizagem da
matemática. As atividades contempladas variaram desde as artes e artesanato – a
cestaria, a cerâmica, o desenho entre outras –, a pesca, os jogos e puzzles, a
comunicação, a representação gráfica até à numeração e à contagem.

Figura 7. Um participante no curso mostra um poliedro (nonaedro), entrecruzado com uma única fita
de cartolina. O processo de fabricação inspira-se no entrelaçamento de chocalhos musicais do
nordeste de Moçambique.

O curso visava contribuir para com o desenvolvimento de algumas


ferramentas para poder analisar alguns aspectos matemáticos em vários contextos
culturais e para refletir e experimentar com a incorporação de alguns desses

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elementos no ensino e aprendizagem da matemática em escolas brasileiras.
Os estudantes experimentaram com alguma atividade de origem africana,
afro-brasileira ou indígena na sala de aula (vide os exemplos nas Figuras 8 e
9 da experimentação numa escola na cidade de São Paulo) e relataram e
apresentaram a experiência no final do curso.

Figura 8. Alunos de uma escola na cidade de São Paulo aprendem a fabricar uma esfera entrecruzada

Figura 9. Uma aluna de uma escola na cidade de São Paulo mostra orgulhosamente uma coroa que ela
trançou, inspirada numa técnica de entrecruzamento de trançados tanto africana como afro-brasileira e

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indígena.
Um dos objetivos do curso foi despertar o interesse e promover um diálogo
sobre aspectos matemáticos nas atividades culturais africanas e indígenas, assim
como refletir sobre o potencial para a educação matemática, desde a motivação de
todos os alunos, em particular, os alunos afro-brasileiros e indígenas, passando pela
promoção da valorização mútua dos alunos de diversas origens culturais distintas,
até à diminuição – no contexto das leis 9394/1996 e 10.639/2003 – de sentimentos e
preconceitos racistas em nível dos professores e alunos relativos às habilidades e
contribuições científicas dos povos africanos e indígenas. Um outro objetivo residiu
em refletir sobre atividades práticas culturais africanas e indígenas e tanto
compreender como aprender a metodologia de pesquisa de aspectos matemáticos
nelas integrados, tendo em vista em particular, uma possível exploração desses
aspectos na educação matemática. Vide Apêndice B para as considerações de um
participante no curso.

Os principais temas analisados foram:

1. Arte e trançados africanos e indígenas – entrelaçamentos na


matemática e educação:
* Desde o estudo de polígonos e poliedros até à modelagem matemática
na química (Cf. GERDES, 2007b, 2009c, 2010c, 2011b, 2011c)
2. Comunicação em tradições africanas e sistemas gráficos:
*Exploração na educação matemática (algoritmos, sistemas de
coordenadas, mínimo múltiplo comum, etc.) e potencial científico
(teorias de design e matrizes) (cf. GERDES, 2008b, 2010a, 2010b).
3. Da arte e decoração africanas e indígenas ao Teorema de Pitágoras.
* Reflexão sobre diversas variantes heurísticas para os alunos
poderem descobrir o Teorema de Pitágoras e demonstrações do
mesmo teorema e outros teoremas relacionados (cf. GERDES, 2011a).
4. Sistemas numéricos em culturas africanas e indígenas:
* Reflexão sobre o ensino e a aprendizagem da aritmética, tomando
também em conta as especificidades da língua materna e da língua do
ensino (cf. GERDES, 2008a).
5. Jogos e puzzles intelectuais africanos e indígenas:
* Exploração na educação matemática e em atividades de lazer (Cf.
GERDES, 2007c).

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No contexto do curso e do trabalho como professor visitante
enquadra-se também a co-supervisão de algumas teses de pós-graduação,
que visam a reflexão sobre as possibilidades de contribuir para a
implementação das referidas leis ao nível da educação matemática, tanto
escolar como na formação de professores. Visam igualmente a preparação de
quadros para poder acompanhar, testar e melhorar os materiais elaborados no
âmbito do Projeto “Brasil-África: Histórias Cruzadas”.
Coleção “Etnomatemática em África e nas Américas”
No intuito de apoiar a implementação do Projeto “Brasil-África: Histórias
Cruzadas” e de ter materiais suplementares disponíveis para as secretarias de
educação, para professores e alunos, a Editora Diáspora em São Paulo criou a
coleção “Etnomatemática em África e nas Américas”. Até ao momento re-
publicou o livro infantil “Desenhos de Angola: Viver a Matemática” (GERDES,
2010b) e outros livros estão no prelo (cf. GERDES, 2008b; 2011c) .
Desafio novo
A incorporação de idéias matemáticas oriundas de culturas africanas na
educação matemática no Brasil, na perspectiva das leis de combate a racismo, de
promoção da diversidade cultural e da valorização das contribuições africanas
para com a cultura brasileira, constitui um desafio novo para a cooperação e a
colaboração Sul-Sul – América do Sul e África –, no domínio específico da
educação matemática. Muitas possíveis questões se levantam e estas estimularão
certamente tanto a pesquisa no Brasil como a pesquisa conjunta.

Referências Bibliográficas
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mítico-religiosa-corporal do negro brasileiro. Scientific American, São
Paulo, n. 11, p. 94-98, 2005.
CUNHA JÚNIOR, Enrique. Matemática e cultura africana e afrobrasileira:
Afroetnomatemática, África e afrodescendência. Valores afro-brasileiros na
Educação. Boletim 22, p. 43-54, nov. 2005. Disponível em: <http://tvbrasil.
org.br/fotos/salto/series/151432Valoresafrobrasileiros.pdf>. Acesso em: 29 dez.
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Dordrecht: Kluwer, 1997. p. 414-415.
DJEBBAR, Ahmed. Une histoire de la science árabe. Paris: Éditions du
Seuil, 2001.
DJEBBAR, Ahmed. L’algèbre arabe: Genèse d’un art. Paris: Vuibert, 2005.
DJEBBAR, Ahmed; MOYON, Marc. Les sciences arabes en Afrique:
Mathématiques et Astronomie (IX e – XIXe siècles). Paris: Editions
Grandvaux-Vecmas, 2011.
EGLASH, Ron. African fractals: Modern computing and indigenous
design. Piscataway: Rutgers University Press, 1999.
GERDES, Paulus; DJEBBAR, Ahmed. Mathematics in African History
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GERDES, Paulus; DJEBBAR, Ahmed. History of Mathematics in Africa:
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GERDES, Paulus. Geometry from Africa: Mathematical and educational
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Morrisville NC: African Mathematical Union & Lulu, 2007a.
__________. Otthava: Fazer Cestos e Geometria na Cultura Makhuwa do
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Lulu, 2007b.
__________. Etnomatemática: Reflexões sobre Matemática e Diversidade
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__________. (Org.). A numeração em Moçambique: Contribuição para
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__________. Geometria Sona de Angola: Matemática duma Tradição
Africana. Morrisville NC: Lulu, 2008b.
__________. Sipatsi: Basketry and Geometry in the Tonga Culture of
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__________. Da etnomatemática a arte-design e matrizes cíclicas. Belo
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__________. Desenhos de Angola: Viver a matemática. São Paulo:
Editora Diáspora, 2010b
__________. Tinhlèlo, Entrecruzando Arte e Matemática: Peneiras
Coloridas do Sul de Moçambique. Morrisville NC: Lulu, 2010c. (Nova
edição: Maputo: Alcance Editoras, 2012)
__________. Pitágoras Africano: Um estudo em cultura e educação
matemática. Morrisville NC: Lulu, 2011a.
__________. Mulheres, Cultura e Geometria na África Austral.
Morrisville NC: Lulu, 2011b.
__________. Mundial de Futebol e de Trançados. Morrisville NC: Lulu,
2011c.
SANTOS, Eliane Costa dos. As ‘ticas’ de ‘matema’ de um povo africano:
um exercício para sala de aula brasileira. Revista Latinoamericana de
Etnomatemática, Colômbia, v. 1, n. 2, p. 27-50, 2008.
SILVA, Vanísio Luíz da. A cultura negra na escola pública: uma
perspectiva etnomatemática. 2008. 204 f. Dissertação (Mestrado em
Educação), Universidade de São Paulo, 2008.
Recebido em setembro de 2011
Aprovado em novembro de 2011

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Apêndice A
Textos elaborados no contexto do Projeto ‘Brasil-África:
Histórias Cruzadas’

Na qualidade de consultor do Projeto ‘Brasil-África: Histórias


Cruzadas’, o autor preparou, em 2010, os seguintes textos para os vários
níveis de ensino considerados.

Ensino Infantil:

1. Pássaros a voar.
Ensino Fundamental:
2. Numeração verbal em Português e em algumas línguas africanas.
3. Explorar um jogo dos Fulbe nos Camarões.
4. Jogos de contagem e numeração dos Chaga na Tanzânia.
5. Quebra-cabeças da Libéria e Zâmbia.
6. Notações matemáticas provenientes de África.
7. desenhar patinhos a voar.
8. O osso de Ishango: Atividade numérica há 22 mil anos.
9. Ângulos de 60o e 120o.
10. Nó de amizade.
Ensino Fundamental ou Médio:
11. Um prodígio em cálculo mental oriundo da África ocidental.
12. Construção alternativa de hexágonos regulares.
13. Panos estampados com carimbos simétricos.
14. Nós pentagonais em
trançados. Ensino Médio:
15. Como se aproximava a área do círculo no Egito Antigo?
16. A equação quadrática e Ibn al-Banna.
17. decoração de paredes.
18. Pitágoras no Egito.
19. Construção dum prisma octogonal.

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Apêndice B
Algumas considerações sobre o curso “Exploração de aspectos
matemáticos de culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas na
Educação Matemática” elaboradas pelo participante Régis Luíz Lima de
Souza (doutorando do Programa de Educação Matemática da USP).

“Professor Paulus Gerdes, antes de iniciar as minhas observações acerca da


disciplina gostaria de abrir um parêntese para dizer o quanto foi gratificante
participar destas aulas ministradas pelo senhor. Já de longa data venho ouvindo
sobre seus trabalhos, e tendo como referência para meus estudos vários de seus
escritos, mas de fato, este contato mais próximo, foi uma oportunidade única e é
algo que cultivarei com muito apreço. Quando surgiu a possibilidade de contar com
sua presença no GEPEm – Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemática, fui
um dos primeiros a sugerir para a professora Maria do Carmo que pensasse sobre a
possibilidade de uma disciplina. E posso lhe confessar que foi uma das decisões
mais acertadas, pois o curso foi muito gratificante e tenho certeza que contribuiu
muito para a formação de cada um que pôde estar presente.
Como pode ter percebido, em todos os relatos que escrevi ao término das
aulas fiz questão de destacar a importância de iniciar cada uma delas
contextualizando-as, isso do meu ponto de vista facilita o entendimento e valoriza a
cultura a qual desenvolveu tais conhecimentos, contribuindo, de alguma forma, para
preservar o modo peculiar de pensar e agir de determinados povos/grupos, bem
como evidenciar formas distintas de fazer e pensar matemática.
O principal fator que me motivava a escrever sobre as aulas era pensar
como as idéias matemáticas daqueles cesteiros, artesãos,... se manifestavam
de forma prática em suas realizações gerando padrões de aplicação, na
ciência, na arquitetura, no ‘design’, na indústria têxtil e que, embora muito
significativa, corriam o risco de extinção, como citado no texto “Explorando
poliedros do Nordeste de Moçambique”.
Durante a aula a qual tivemos a oportunidade de discutir alguns pontos
deste texto, foi interessante observar em seu discurso, que além de retomar uma
prática cultural há muito tempo não mais desenvolvida por aquele grupo pôde a

156 Paulus Gerdes


partir daquelas observações extrair muito conhecimento matemático.
Embora eu ainda esteja tentando tecer um nirrosula, confesso que foi uma
atividade muito motivadora.
Algo que me chamou a atenção e que me fez pensar mais sobre o assunto foi
um dos itens abordado no texto “Algumas dimensões do desenvolvimento, durante a
formação de professores(as), duma consciência das bases culturais e sociais da
Matemática e da educação matemática”, em especial quando fala que a Matemática
é uma atividade universal; é uma atividade pan-cultural e pan-humana. Paulus, tenho
buscado em alguns filósofos entender porque a Matemática, diferentemente de quase
tudo nesse mundo tem esse caráter universal. Entendo que a matemática, por sua
importância e aplicabilidade deva ser universalizada, mas penso que o perigo está
muitas vezes em querer universalizar também, o saber-fazer matemático, isto é, o
modo de resolver problemas matemáticos de uma forma global, como se existisse
um modelo único, infalível e advindo de um poder maior, uma verdade absoluta ou
algo do tipo.
Outra atividade interessante está proposta no artigo “Pitágoras Africano: Um
Estudo em Cultura e Educação Matemática”, não só o texto, mas em especial a
atividade prática com as cartolinas (trabalhando a idéia do quadrado dentado), nos
permitiu observar, a partir da sua explanação, uma série infinita de demonstrações
para o chamado teorema de Pitágoras a partir de elementos decorativos dos mais
diversos povos. Fico pensando a riqueza de conhecimentos matemáticos advindos
dos mais variados contextos culturais e que são praticamente ignorados nos
contextos escolares, isso é realmente motivo para reflexão.
Por fim, gostaria de destacar a última aula. Aquela aula realmente me
tocou enquanto educador, e penso que um dos seus objetivos foi alcançado –
promover a reflexão dos alunos que ali estavam.
Desde aquela aula comecei a perceber uma preocupação que me
incomoda quando estou lecionando. Às vezes os termos utilizados, embora
pareçam comuns aos nossos ouvidos, não têm sentido para o aluno, por
exemplo: quando dizemos triângulo isósceles. O que isso significa?
Algo que você, Paulus Gerdes, nos questionou naquela aula me pôs a
pensar o que realmente queremos. Será que queremos que o aluno saiba que
o triângulo citado é aquele que possui pelo menos dois lados de mesma
medida? Se sim, porque não dizer exatamente isso para ele?
A partir dessa idéia, fiz uma atividade no centro de formação de professores
em que trabalho, com professores das diversas áreas do conhecimento, menos

Tópicos Educacionais, Recife,v. 18, n.1-2, jun./dez. 2012. 157


é claro, com professores de matemática. Desenhei três triângulos na lousa
(um isósceles, um eqüilátero e um escaleno) e perguntei qual deles era o
escaleno. Tínhamos uns vinte e três professores, somente uma professora de
Arte soube explicar com precisão qual era o triângulo escaleno, outros até o
apontaram, mas disseram ter “chutado”, não sabiam a razão da resposta,
outros disseram, ter escolhido o correto, porque como o nome era muito
estranho, deveria ser o triângulo que possuía todos os lados diferentes, ou
seja, associou um nome estranho a um triângulo também estranho.
O texto “Algumas reflexões sobre cultura, língua e educação matemática em
Moçambique” parece nos indicar alguns indícios da problemática, destacando as
dificuldades de aprendizagem da Matemática numa segunda língua e das possíveis
transferências entre a língua materna, a língua de ensino e a Matemática. Embora o
artigo se refira especialmente ao contexto africano, podemos observar também, o
quanto nossa língua dificulta a aprendizagem da matemática.
Um exemplo bem colocado, a meu ver, na aula, foi o próprio sistema
de numeração e o modo como a língua portuguesa dificulta a leitura e por
conseqüência a contagem e aprendizagem por parte da criança.
Professor Paulus Gerdes, não vou me estender muito, mas saiba que
foi um prazer estar contigo nessas aulas e que, de algum modo, colocou cada
um presente a refletir sobre sua prática pedagógica em sala de aula.
Gostaria de finalizar parabenizando-o pelo trabalho desenvolvido e até
uma próxima oportunidade.”

158 Paulus Gerdes

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