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Rudolf Steiner - Arte e Estética Segundo Goethe
Rudolf Steiner - Arte e Estética Segundo Goethe
Tradução:
Marcelo da Veiga Greuel
1
A propósito da segunda edição1
Rudolf Steiner
Basiléia, 15 de setembro de 1909
1 Do original. (N.E.)
2 Noo (gr.) = espiritual. (N.T.)
2
elevar-se até à altitude luminosa de onde provém toda a luz de nossa educação
cultural. Só quem conseguir relacionar-se em algum ponto com Göethe e seu
tempo chegará à clareza sobre o caminho que nossa cultura enceta, e só esse se
tornará consciente das metas que a humanidade moderna tem de seguir. Quem
não encontrar esta relação para com o maior gênio dos tempos modernos será
simplesmente arrastado por seus contemporâneos e conduzido como se fora um
cego. Todas as coisas se nos apresentarão em nova correlação se as
observarmos com o olhar que se aguçou nessa fonte de cultura.
Por mais positiva que seja a preocupação dos contemporâneos em
relacionar-se de alguma forma com Göethe, de modo algum pode ser concedido
que a maneira como isso acontece seja geralmente feliz. Infelizmente, muitas
tentativas carecem demais da imprescindível ausência de preconceitos que
primeiro penetra as profundidades do gênio de Göethe para só depois adotar
uma postura crítica. As vezes, só se considera Göethe ultrapassado em
diferentes assuntos por não se compreender toda a sua importância. Acredita-se
ter ido muito além de Göethe, enquanto o correto consistiria, muitas vezes, em
aplicar seus amplos princípios, sua maneira maravilhosa de observar as coisas,
aos nossos atuais meios e fatos científicos mais perfeitos e avançados. Em
Göethe, não importa se os resultados de suas pesquisas científicas
correspondem ora mais, ora menos ao progresso da atual Ciência, e sim
unicamente como ele abordava os problemas. Os resultados são marcados pelo
tempo em que ele viveu, isto é, são limitados pelos meios e pelas experiências
acessíveis à sua época; porém sua maneira de pensar, sua maneira de levantar
os problemas possui um valor perene, que se desrespeita francamente ao tratá-
las de cima para baixo. Entretanto, nosso tempo tem como nota característica o
menosprezo quase total pela criatividade espiritual do gênio. Como poderia ser
diferente numa época em que parece ser ilícito ir além da experiência física,
tanto na Ciência quanto nas Artes? Para a mera observação sensória, necessita-
se apenas de sentidos sadios, e o gênio parece aí, em princípio, prescindível.
Mas o verdadeiro progresso nas Ciências e nas Artes nunca foi conseguido
por meio de tal observação ou de uma escravizada imitação da Natureza. É que
milhares e milhares de pessoas passam por determinada observação até chegar
alguém e fazer, durante essa observação, a descoberta de uma importante lei da
Natureza. Muitos, antes de Galileu, viram um lustre balançando; mas teve de
aparecer esta cabeça genial para descobrir as leis do pêndulo, tão importantes
para a física. “Não fosse o olho de natureza solar, como poderíamos a luz
avistar?”, exclama Göethe, querendo dizer com isto que só conseguirá ver as
profundidades da Natureza quem tiver as disposições necessárias e as forças
produtivas para ver, no factual, mais do que os meros dados externos. Isto não é
aceito. Porém não se deve confundir os enormes progressos que devemos ao
gênio de Göethe com as deficiências de suas pesquisas como resultado das
então limitadas experiências. O próprio Göethe chegou a caracterizar, ‘numa
imagem acertadíssima, a relação entre seus resultados científicos e o progresso
das investigações científicas; comparou seus resultados com as peças de um
jogo com as quais talvez tenha ousado ir demasiadamente longe, porém pelas
quais se pudesse reconhecer o plano do jogador. Se respeitarmos estas
palavras, competirá às nossas investigações referentes a Göethe a seguinte
elevada tarefa: elas sempre deverão remontar às tendências que Göethe
possuía. O que o próprio Göethe externa como resultados pode ser considerado
3
um mero exemplo de como ele tentou resolver suas tarefas com meios assaz
limitados. Temos de resolvê-las de acordo com seu espírito, porém com nossos
meios mais avançados e recorrendo à nossa experiência mais ampla. Seguindo-
se este caminho, todos os ramos de pesquisa aos quais Göethe dirigiu sua
atenção poderão ser fecundados e, mais ainda, tornar-se-ão unitários, membros
de uma grande e unitária cosmovisão. A mera investigação filológica e crítica,
cujos méritos são, aliás, inegáveis, tem de encontrar, assim, sua necessária
complementação. Temos de apoderar-nos da plenitude de pensamentos e idéias
residentes em Göethe para, a partir dela, continuar com o labor científico.
Minha tarefa, nesta conferência, consistirá em mostrar como é possível
aplicar os princípios supra-mencionados a uma das mais recentes e controverti-
das ciências: a Estética. A Estética, isto é, a ciência que se ocupa da Arte e suas
criações, existe há pouco mais de cem anos. Ela foi apresentada pela primeira
vez, com a plena consciência de se estar inaugurando uma nova disciplina
científica, por Alexander Gottlieb Baumgarten no ano de 1750.3 É na mesma
época que incidem as tentativas de Winkelmann e Lessing de chegar a um juízo
profundo em relação às questões principais da Arte. Tudo o que se tentou antes
não pode ser considerado sequer um começo elementar para uma tal ciência.
Nem mesmo o grande Aristóteles, esse gigante cultural que exerceu influência
tão decisiva em todos os ramos da Ciência, foi fecundo em relação à Estética.
Ele exclui completamente as artes plásticas do âmbito de suas investigações, o
que evidencia não haver chegado a captar o conceito da Arte. Além disso, só
conhece o princípio da imitação da Natureza, o que nos demonstra não haver
ele entendido a função do espírito humano em suas criações artísticas.
Ofato de a ciência do belo ter surgido tão tarde não é um acaso. Outrora
ela nem era possível, pois lhe faltavam as precondições. Quais são tais
precondições? A necessidade da Arte é tão antiga como a própria humanidade,
porém o desejo de compreender sua meta só pôde surgir bem mais tarde. O
espírito grego, que devido à sua afortunada organização se satisfazia na
convivência com a simples natureza circundante, criou uma época artística
importantíssima; contudo, ele o fez a partir de uma ingenuidade 4 original, sem o
desejo de criar para si, na Arte, um mundo que lhe devesse oferecer uma
satisfação que não lhe afluísse de qualquer outro lado. O grego encontrava na
própria realidade tudo o que procurava; a Natureza vinha com abundância ao
encontro de tudo o que seu coração desejava e seu espírito ansiava. Nunca lhe
devia suceder nascer em seu coração um desejo por algo que, debalde, ele
procurasse no mundo circundante. O grego não se emancipou da Natureza, e
por isso todos os seus desejos puderam ser satisfeitos por ela. Havendo uma
unidade inseparável de todo o seu ser com a Natureza, ela cria no homem e
sabe o que pode proporcionar-lhe de modo que ele não se sinta insatisfeito.
Desta maneira a Arte só constituía, para esse povo ingênuo, uma extensão do
viver e atuar dentro da Natureza — nascendo, portanto, imediatamente dela. A
Arte satisfazia os mesmos desejos que sua mãe, a Natureza, só que em medida
mais elevada. Por isso Aristóteles não conhecia um princípio artístico superior à
imitação da Natureza. Nada mais é preciso alcançar além da Natureza, pois
nela se encontra a fonte de toda e qualquer satisfação estética. O que para nós
3 Atualmente, portanto, há quase duzentos e cinqüenta anos. (N.E.)
4 Emprega-se aqui a palavra ‘ingenuidade’ no sentido de atitude espontânea. ‘Ingênuo’ não
tem qualquer conotação pejorativa neste contexto; designa apenas uma forma de consciência
pré-reflexiva. (N.T.)
4
pareceria vão e vazio — a mera imitação da Natureza — era então totalmente
suficiente. Nós desaprendemos de ver na simples Natureza o sumo bem pelo
qual nosso espírito anseia; portanto, nunca poderíamos contentar-nos com o
mero realismo desprovido de todo e qualquer conteúdo superior. Esta época
estava para chegar, sendo uma necessidade para a humanidade que caminha
para estados cada vez mais perfeitos de sua evolução. O homem só pôde
manter-se dentro da Natureza enquanto não tinha consciência desta situação. A
partir do momento em que reconheceu sua autoconsciência com plena clareza,
no momento em que reconheceu abranger em seu interior um mundo
equivalente, não pôde senão desprender-se da Natureza.
Agora o homem não podia mais render-se à Natureza, para que esta fizesse
o que bem quisesse com ele, incutindo-lhe e satisfazendo-lhe necessidades.
Agora ele teve de defrontar-se com a Natureza. Assim, separou-se efetivamente
dela e edificou em seu interior um mundo novo — e é desse mundo que emanam
agora seus anseios e desejos. Se tais desejos poderão ser satisfeitos uma vez
separados da Natureza, isso cabe ao acaso. De qualquer modo, agora o homem
se encontra separado, por um profundo abismo, da realidade; assim sendo,
precisa estabelecer a harmonia que antes existia em perfeição original. Desta
maneira nos deparamos com os conflitos entre o ideal e a realidade, o projeto e
a realização — em suma, com tudo aquilo que pode levar a alma do homem a
um verdadeiro labirinto mental. A Natureza diante de nós está desprovida de
intimidade, sem vestígio daquilo que nosso íntimo nos anuncia do divino. A
próxima conseqüência é o distanciamento de tudo o que é Natureza, é a fuga de
qualquer realidade imediata. Eis justamente o contrário do mundo grego. Assim
como este encontrava tudo na Natureza, a cosmovisão subseqüente nada
encontrou nela. E é à luz deste critério que se nos deve apresentar a Idade
Média cristã. Assim como a atitude grega não conseguiu compreender a
qüididade5 das Artes, pois não lhe foi possível entender como a Arte pode ir
além da Natureza, tampouco a ciência cristã medieval pôde desenvolver uma
cognição da Arte, visto que a Arte só pode trabalhar com os meios da Natureza
e a erudição não conseguia entender como é possível criar, dentro do mundo
sem Deus, obras capazes de satisfazer o espírito que aspira à divindade. Tam-
pouco aí a incapacidade da Ciência se tornou obstáculo para o desenvolvimento
da Arte. Enquanto a primeira não sabia como pensar sobre a Arte, surgiam as
mais maravilhosas obras da arte cristã. A Filosofia, que nessa época era serva
da Teologia, não conseguiu atribuir à Arte um papel decisivo no progresso
cultural, como tampouco o conseguira o grande idealista dos gregos, ‘o divino
Platão’. Platão declarou as artes plásticas e a dramaturgia como algo nocivo, e
seu conceito da tarefa da Arte era tão deficiente que ele apenas atribuiu um
valor à Música pelo fato de ela servir para aumentar a coragem na guerra.
Na época em que espírito e Natureza se encontravam em íntima união, a
ciência das Artes não pôde surgir; mas também não o pôde numa época em que
espírito e Natureza se encontravam numa contraposição irremediável. Para que
a Estética pudesse nascer, foi necessário surgir uma época em o homem
entreviu, livre e independentemente das amarras da Natureza, o espírito em
sua nitidez, mas na qual também já era novamente possível uma confluência do
espírito com a Natureza. Para o fato de o homem se haver elevado acima do
ponto de vista grego há uma boa razão, pois na soma dos acasos que compõem
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nosso mundo jamais poderemos encontrar o divino, a ordem necessária. Não
vemos outras coisas em nosso redor a não ser o que também poderia ser
diferente. Não vemos senão indivíduos enquanto o nosso espírito aspira ao
universal e arquetípico; vemos apenas o finito e perecível, e nosso espírito
busca o infinito, não efêmero, eterno. Se o espírito humano alienado da
Natureza deve retornar a ela, isto não pode acontecer em relação àquela soma
de acasos. É a este retorno que Göethe se refere: retorno à Natureza, sim,
porém apenas com as riquezas do espírito evoluído, com a altura da erudição da
época moderna.
A separação fundamental entre Natureza e espirito não corresponde à
visão de Göethe, visto que ele contempla o mundo como uma grande totalidade,
uma seqüência evolutiva unitária de seres dentro da qual o homem representa
um membro, se bem que o mais evoluído.
Natureza! estamos cercados e envoltos por ela — incapazes de afastar-nos dela
e também incapazes de aprofundar-nos nela. Sem pedir e prevenir, ela nos
acolhe no circuito de sua dança e nos arrasta até ficarmos cansados e cairmos
de seus braços.
Quando a natureza sadia do homem atua como um todo; quando ele se sente no
mundo como num todo grande, belo, digno e valioso; quando o bem estar
harmonioso lhe proporciona um encantamento livre, então o próprio Universo,
se pudesse sentir a si mesmo, alegrar-se-ia como se tivesse cumprido sua
missão, admirando o auge de sua evolução e de sua essência.
...a peculiaridade de sentir uma espécie de pudor perante a vida real e recolher-
se em si mesmo, criar um mundo próprio em si mesmo e, destarte, conseguir o
mais excelente referente ao interior.
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adequada, assim como cores e formas só existem para seres dotados de visão, e
não para os cegos. Se não nos aproximarmos do mundo objetivo com o espírito
receptivo, ele não se nos desvendará. Sem a capacidade instintiva de perceber
idéias, não temos acesso a este domínio.
Foi Schiller quem, mais profundamente do que qualquer outro, se inteirou
da configuração do génio de Göethe. No dia 23 de agosto de 1794, ele
esclareceu Göethe sobre a essência de seu gênio com as seguintes palavras:
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tem de criar: trata-se do mundo da Arte — um terceiro reino necessário ao lado
dos sentidos e da razão.
A Estética tem a tarefa de compreender a Arte como esse terceiro reino, O
divino, do qual as coisas da Natureza carecem, o próprio homem tem de
implantá-lo, e aqui temos uma importante tarefa que resulta para o artista. Ele
tem de trazer o reino de Deus para a terra. Sobre essa que podemos chamar de
missão religiosa da Arte Göethe se expressa, no livro sobre Winckelmann, da
seguinte maneira:
O homem, sendo o cume da Natureza, considera a si mesmo, por sua vez, como
uma Natureza completa que tem de fazer surgir em si um novo cume. Para isso
ele evolve, compenetrando-se com todas as perfeições e virtudes, invocando
escolha, ordem, harmonia e significação para, finalmente, elevar-se à produção
da obra artística — que, ao lado de suas demais ações e obras, assume um lugar
brilhante. Uma vez realizada, essa obra, em sua realidade ideal, está diante do
mundo, produzindo destarte um efeito duradouro ou até desenvolvendo o su-
premo efeito — pois desenvolvendo-se espiritualmente a partir de todas as
forças, ela assimila tudo o que merece glória, veneração e amor e eleva a forma
humana acima de si mesma, compenetrando-a de alma; ademais, encerra o
círculo de sua vida e suas ações e deifica-a para o presente, que engloba o
passado e o porvir. Por tais sentimentos foram tomados aqueles que avistaram o
Júpiter Olímpico, segundo podemos depreender dos relatos e dos testemunhos
dos antepassados remotos. O deus se tornou homem para elevar o homem ao
deus. Avistara-se a suprema dignidade e a suprema beleza provocara
entusiasmo.
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educação estética do homem’.9 Tampouco essas cartas são devidamente levadas
em consideração — pelos estetas que valorizam sobretudo o trabalho
sistemático —, ainda que façam parte do mais importante até agora conseguido
pela Estética. Schiller parte de Kant. Este filósofo determinou a natureza do
belo em diferentes aspectos. Primeiro ele investiga a razão do prazer que
vivenciamos nas obras belas da Arte. Esta sensação de prazer lhe parece bem
diferente de qualquer outra. Comparemo-la com o prazer que experimentamos
ao lidar com um objeto útil. Este prazer é bem diferente. Este prazer está
intimamente vinculado à cobiça pela existência deste objeto. O prazer pelo
objeto útil se esvai quando o objeto útil deixa de existir. O caso é diferente em
relação ao prazer que vivenciamos no belo. Este prazer nada tem a ver com a
posse, a existência do objeto; não se prende ao objeto, e sim apenas à
representação do mesmo. Enquanto no caso do que possui finalidade e utilidade
surge imediatamente a vontade de converter a representação em realidade, no
caso do belo nós nos contentamos com a mera imagem. Por isso Kant chama a
estima pelo belo uma estima livre de qualquer interesse, ou seja, uma ‘estima
desinteressada’. Contudo seria errado achar que a finalidade é excluída do belo,
só ocorrendo com a finalidade externa. E assim resulta a segunda explicação do
belo: “Ele é algo finalisticamente 10 estruturado [formado] em si, porém sem
servir a um fim externo.” Ao percebermos um outro objeto da Natureza ou um
produto da técnica humana, nosso entendimento [intelecto] logo perguntará
pela utilidade e finalidade — e não se contentará antes de responder à pergunta
‘para quê?’. No belo, o ‘para quê’ se encontra na própria coisa, e o
entendimento não precisa ir além dela. É aqui que Schiller principia. E ele o faz
entretecendo a idéia da liberdade de tal forma, nesta cadeia de pensamentos,
que a natureza humana é sobremaneira honrada. Inicialmente apresenta dois
impulsos opostos que sempre estão em ação no ser humano. O primeiro é o
‘impulso-matéria’ [Stofftrieb]11 ou a necessidade de manter abertos nossos
sentidos às impressões que recebemos do mundo externo. Trata-se de um
conteúdo riquíssimo, que nos acomete sem que possamos exercer influência
alguma sobre sua natureza. Tudo acontece aqui com rígida necessidade. O que
percebemos é determinado de fora; somos coagidos e sujeitados, tendo
simplesmente de seguir os ditames da Natureza. O segundo é o ‘impulso-forma’
[Formtrieb]. Este nada mais é senão a razão que introduz ordem e lei no caos da
percepção. Por seu labor é introduzido sistema na experiência. Porém tampouco
aqui, segundo Schiller, somos livres — pois no tocante a este labor a razão está
sujeita às imutáveis leis da lógica. Tal como, no caso da experiência, estamos
sujeitos à necessidade da Natureza, aqui estamos subordinados à necessidade
da razão. E perante ambas que a liberdade procura abrigo. Schiller relaciona a
liberdade com a Arte, destacando a analogia da Arte com o jogo infantil. Onde
reside a essência do jogo12? Tomam-se os objetos da realidade para modificar
suas relações arbitrariamente. Neste contexto, a transformação da realidade
não segue uma necessidade lógica — como ao construirmos, por exemplo, uma
9 Briefe über die ästhetische Erziehung des Menschen. Edicão brasileira sob o título A
educação estética do homem, trad. de Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo,
Iluminuras, 1990. (N.E.)
10 Al. Zweckmässig. (N.T.)
11 Stoff (al.) corresponderia, na verdade, a ‘estofo’, termo usado, por exemplo, na tradução de
Merleau-Ponty, Edição ‘Pensadores’. (N.T.)
12 Spiel (al.) = jogo, brincadeira infantil. (N.T.)
9
máquina tendo de sujeitar-nos às leis da razão — e, sim, unicamente o desejo
subjetivo. Quem brinca relaciona as coisas de forma que elas lhe proporcionem
prazer, não se submetendo a qualquer coação; não respeita a necessidade da
Natureza, pois supera sua coação usando os objetos de acordo com seu livre
arbítrio. Tampouco se sente sujeito à necessidade da razão [ordem lógica], visto
que a ordem em que coloca os objetos é sua invenção. Assim, quem brinca
cunha a realidade conforme sua subjetividade e proporciona à sua subjetividadê
uma significação objetiva. A atuação separada dos dois impulsos acima men-
cionados cessa e eles confluem num só, tornando-se livres. O natural é
espiritual e o espiritual é natural. No entanto, Schiller, o poeta da liberdade, vê
na Arte apenas um jogo do homem num nível superior, exclamando com
entusiasmo: “O homem só é integralmente homem quando brinca.., e só brinca
quando é verdadeiramente homem.” O impulso que subjaz à Arte, Schiller o
denomina ‘impulso lúdico’. Este produz, no artista, obras que já em sua
aparência sensória satisfazem à nossa razão e cujo conteúdo racional se
apresenta simultaneamente como manifestação sensória. E a essência do
homem atua, neste nível, de forma tal que sua Natureza se manifesta como
espírito e seu espírito como Natureza. A Natureza é realçada ao nível do es-
pírito e o espírito penetra a Natureza. Aquela é enobrecida e este é trazido de
sua alteza abstrata para a terra. As obras assim produzidas não são, portanto,
totalmente verdadeiras num sentido naturalista, visto que na realidade espírito
e Natureza não se coadunam totalmente. Quando, portanto, comparamos as
obras da Arte com as obras da Natureza, as primeiras nos parecem mera
ilusão.13 Contudo elas têm de ser ilusões, pois do contrário não seriam
verdadeiras obras artísticas. Com o conceito de ilusão Schiller ocupa uma posi-
ção única e excepcional como esteta. Aqui deveriam ter continuado a respeitar
a maneira goethiana de contemplar a Arte, a fim de aprimorar a solução
inicialmente unilateral do problema do belo. Entretanto, Schelling entra em
cena com uma visão básica totalmente equivocada, inaugurando um erro do
qual a estética alemã nunca mais conseguiu se livrar. Como toda a filosofia
moderna, também Schelling acha que a suprema tarefa das aspirações humanas
consiste na intelecção14 dos eternos arquétipos das coisas. O espírito ultrapassa
o mundo real e se eleva às alturas onde reina o divino. Aí se lhe revela toda a
verdade e toda a beleza. Só o que é eterno é verdadeiro e também belo. A
genuína beleza só pode ser contemplada, segundo Schelling, por quem se eleva
à suprema verdade, pois ambas são uma e a mesma coisa. Toda beleza sensória
é apenas um reflexo pálido daquela beleza infinita que jamais podemos
perceber com os sentidos. Assim, já estamos vendo aonde chegamos. A obra de
arte não é bela por si própria e graças ao que é em si mesma, mas porque
repete a idéia da beleza. É apenas conseqüência desta opinião o fato de o
conteúdo da Arte ser o mesmo que o da Ciência, pois ambas têm por funda-
mento a eterna verdade, que é ao mesmo tempo beleza. Para Schelling a Arte
não é senão a Ciência objetivada. O importante agora, neste contexto, é com
quê se relaciona nossa estima pela obra de arte. Visivelmente, é apenas com a
idéia expressa. A imagem sensória só é meio de expressão para a forma em que
se articula um conteúdo supra-sensório. E neste ponto todos os estetas da
10
corrente idealista seguem Schelling. Não posso concordar com o que acha o
mais recente sistemático da Estética, Eduard von Hartmann, a saber: que Hegel
foi muito além de Schelling no tocante a este ponto. Digo este ponto porque
existem muitos outros em que ele realmente supera Schelling em muito. Hegel
também diz: “O belo é o reluzir sensório da idéia.” Com isto admite igualmente
considerar a idéia expressa como sendo o essencial na Arte. Esta opinião se evi-
dencia ainda mais pelas seguintes palavras: “A casca dura da Natureza e do
mundo torna, para o espírito, o acesso à idéia mais difícil do que as obras de
arte.” Ora, aqui está claramente dito que o fim da Arte é o mesmo que o da
Ciência, a saber: chegar até à idéia.
A Arte apenas procura ilustrar o que a Ciência expressa imediatamente sob
forma de conceito. Friedrich Theodor Vischer denomina a beleza como ‘a
manifestação da idéia’, identificando, assim, também o conteúdo da Arte com a
verdade. Seja lá o que se queira objetar, quem vê na idéia expressa a essência
do belo não consegue mais separá-lo da verdade. E assim não é mais concebível
qualquer função autônoma para a Arte. O que ela nos dá nós o experimentamos,
pela via do pensar, de forma mais pura e menos opaca, e não apenas encoberto
por um véu sensório. Só por meio de sofismas é que se consegue evitar a
conseqüência comprometedora de que a alegoria nas artes plásticas e a poesia
didática na poesia constituem as supremas formas de arte. A significação
autônoma da Arte, este tipo de estética não a pode conceber. Com efeito, ele se
revelou infrutífero. Porém não devemos exagerar e abandonar todas as
aspirações por uma estética livre de contradições. E estão exagerando todos
aqueles que pretendem dissolver a Estética em história da Arte. Sem se apoiar
em princípios autênticos, a Ciência em nada mais pode consistir senão numa
coletânea de apontamentos sobre artistas e suas obras e em comentários mais
ou menos inteligentes que, por resultarem totalmente do raciocínio subjetivo,
não possuem o mínimo valor. Também se tentou uma aproximação à Estética
por outro lado, opondo-a a uma espécie de fisiologia do bom gosto. Pretende-se
examinar os casos mais simples e elementares em que temos uma sensação de
prazer para, em seguida, ascender aos casos mais complicados, contrapondo
desta maneira à ‘estética de cima’ uma ‘estética de baixo’. Este caminho foi o
encetado por Fechner em sua Vorschule der Aesthetik (Pré-escola da Estética).
Em verdade, é inconcebível que tal obra haja encontrado adeptos num povo que
teve um Kant. A Estética deve partir do exame das sensações de prazer, como
se toda sensação de prazer já fosse estética e como se pudéssemos distinguir a
natureza estética de uma sensação de prazer por um outro critério que não o do
objeto que a produz. Só sabemos que uma sensação de prazer é estética quando
reconhecemos o objeto como belo, pois psicologicamente uma sensação estética
de prazer não se distingue em nada de qualquer outra. Sempre se trata da
compreensão e cognição do objeto. Através de quê um objeto se torna belo? Eis
a questão básica de toda a Estética.
Muito melhor que os ‘estetas de baixo’, conseguimos aproximar-nos da
coisa apoiando-nos em Göethe. Certa vez Merck explicou a atuação de Göethe
com as seguintes palavras:
11
Estas palavras dizem mais ou menos a mesma coisa que Göethe expressa
na segunda parte do Fausto: “Cogite o quê, porém mais ainda cogite o como.”
Claramente está dito o que importa na Arte — não a incorporação de algo
supra-sensório, e sim a transformação da realidade sensória. O real não deve
ser menosprezado como mero meio de expressão; não, ao contrário, deve ser
conservado em sua plena autonomia, só que recebendo uma forma nova, uma
forma que nos satisfaça. Quando destacamos um ser singular de seu ambiente e
o defrontamos, muita coisa nos parecera enigmática. Não conseguimos
harmonizá-lo com o conceito, com a idéia em que temos de baseá-lo. Sua con-
figuração e sua forma na realidade não são somente a conseqüência da sua
regularidade própria, visto que a realidade adjacente é co-determinante. Se
esse objeto se tivesse desenvolvido livre e independentemente dos outros, então
expressaria apenas sua própria idéia. Esta idéia que subjaz ao objeto — mas
que na realidade é perturbada em seu desenvolvimento livre — o artista tem de
captá-la e desdobrá-la. Ele tem de encontrar no objeto o ponto a partir do qual
esse objeto pode desenvolver-se em sua forma mais perfeita, sem que, no
entanto, nessa forma ele se desenvolva na Natureza. A Natureza simplesmente
não consegue realizar num objeto singular sua intenção; ao lado desta planta
ela produz aquela, e uma segunda e mais uma terceira, e assim por diante,
nenhuma manifestando concretamente a idéia completa; uma manifesta este
lado e outra aquele, conforme as circunstâncias permitam. O artista, porém,
deve remontar ao que se lhe apresenta como a tendência própria da Natureza.
Eis o que Göethe nos quer dizer com as seguintes palavras: “Não paro antes de
encontrar um ponto pregnante a partir do qual se possa deduzir muita coisa.”
Para o artista, todo o lado externo de sua obra tem de expressar o interior; no
caso dos objetos da Natureza o interior não coincide com a forma externa, e o
gênio humano tem de investigá-lo para chegar à sua cognição. E assim as leis
que o artista segue não são outras senão as leis eternas da Natureza, no
entanto puras e não influenciadas por qualquer obstrução. Para as criações da
Arte não importa o que é, e sim o que poderia ser; não o real, e sim o possível.
O artista opera conforme os mesmos princípios que a Natureza; contudo trata
os indivíduos segundo estes princípios, enquanto a Natureza, como diz Göethe,
não se importa com os indivíduos. “Ela sempre constrói e sempre destrói”, visto
que não pretende atingir a perfeição com o particular, e sim com o todo. O
conteúdo de uma obra de arte é qualquer conteúdo fenomênico, sensorialmente
real — é o quê. Sob a forma que o artista lhe proporciona, ele tenciona ir além
das tendências próprias da Natureza e atingir, de maneira superior à Natureza,
o que lhe é possível com seus meios e suas leis.
O objeto que o artista coloca diante de nós é mais perfeito do que em seu
estado natural, porém não comporta outra perfeição senão a sua própria. Nesta
transcendência do objeto em relação a si mesmo, porém baseando-se apenas
naquilo que lhe é inerente, é que reside o belo. O belo não é, portanto, algo
contrário à Natureza; e assim Göethe pode dizer, com direito:
O belo é uma manifestação de ocultas leis da Natureza, que sem sua aparição
permaneceriam eternamente secretas.
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experimenta um anseio irresistível por sua intérprete mais digna: a Arte.
Göethe acha que “na Natureza, nada que não seja motivado como
verdadeiro, pelas leis da Natureza, é belo”. E o outro lado da ilusão, a
transcendência do ser em relação a si mesmo, encontramos pronunciado como
a opinião de Göethe em Sprüche in Prosa [Dizeres em prosa]
Na flor a lei vegetal atinge sua suprema manifestação, sendo a rosa apenas o
ápice desse fenômeno... A fruta jamais pode ser bela, pois aqui a lei vegetal se
recolhe em si mesma (como lei).
A lei que se torna manifesta com a maior liberdade e de acordo com as suas
próprias condições produz o objetivamente belo — que, no entanto, pressupõe
sujeitos dignos para poder ser compreendido.
13
senão a paz e a perfeição celestes que ele contém. Nenhuma contradição e
nenhuma dissonância podemos constatar no mundo das idéias que emerge em
nosso íntimo, visto ser ele um infinito em si. Tudo o que faz desta imagem algo
perfeito jaz nela mesma. Esta perfeição inata do mundo das idéias é a razão de
nossa elevação ao estarmos diante dele. Se o belo nos deve proporcionar
também uma elevação, então deve ser estruturado conforme a idéia. E isto é
totalmente diferente daquilo que os estetas idealistas alemães pretendem. Não
se trata da ‘idéia sob a forma de aparência sensória’, e sim, bem ao contrário,
da ‘aparência sensória sob forma de idéia’. O conteúdo do belo, a matéria que a
ele subjaz é sempre algo real, algo imediatamente real, e a forma de surgimento
é a ideiética.15 Vemos ser certo justamente o contrário do que diz a estética
alemã: esta colocou simplesmente as coisas de cabeça para baixo. O belo não é
o divino em sua vestimenta sensoriamente real; não, é o sensoriamente real em
sua vestimenta divina. O artista não traz o divino para a terra deixando-o fluir
para dentro dela, e sim apenas elevando o mundo para a esfera divina. O belo é
ilusão, pois faz surgir diante de nossos sentidos uma realidade que se apresenta
como um mundo ideal. Cogite o quê, porém ainda mais cogite o como, pois no
como se encontra o que realmente importa. O quê permanece algo sensório,
mas o como de sua surgência16 se torna ideiético. Onde esta forma de aparência
sensória melhor se manifesta, aí também aparece a dignidade da Arte com
máxima perfeição. Göethe diz a este respeito:
A dignidade da Arte é talvez, no caso da música, a mais eminente, por não ter
qualquer matéria a ser subtraída. Ela é integralmente forma e teor, e eleva e
enobrece o que expressa.
15 Ideiético = que tem forma de idéia. (V. Pinharanda Gomes, Filosofia grega pré-socrática,
prefácio. Lisboa, Guimarães Editores. (N.T.)
16 Surgência: v. Johannes Hessen, Teoria do conhecimento. (N.T.)
14
Assim atua com poder o homem nobre
durante séculos sobre seus semelhantes:
Algumas observações
17 Necessidade significa, aqui, seguir rigorosamente uma lei ou uma ordem; o que é necessário
decorre da própria essência de algo. (N.T.)
15
Pág.
3-4 Alguém poderia observar o fato de se dizer, nestas exposições, que o pensar
medieval ‘nada’ encontra na Natureza. Poderia objetar a esta afirmação os
grandes pensadores e místicos da Idade Média. No entanto, uma tal objeção se
basearia num equívoco total. Não se diz aqui, de forma alguma, que o pensar
medieval não tenha sido capaz de formar conceitos sobre a importância da
percepção, etc., mas sim que nessa época o gênio humano estava voltado ao
espírito em si e, por conseguinte, não sentia inclinação para ocupar-se com os
fatos particulares da Natureza.
16