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Rudolf Steiner

Arte e Estética segundo Göethe


Göethe como inaugurador
de uma estética nova

Conferência proferida em Viena


em 9 de novembro de 1888

Tradução:
Marcelo da Veiga Greuel

1
A propósito da segunda edição1

Esta conferência, publicada agora em sua segunda edição, foi proferida há


mais de vinte anos na Associação Göethe, em Viena. Por ocasião desta reedição
de um de meus primeiros escritos, talvez seja lícito dizer o seguinte:
Aconteceu de serem encontradas alterações de minhas opiniões durante
minha carreira de escritor. Como se justifica isto, se um escrito meu com mais
de vinte anos de idade pode ser editado hoje de forma que nenhuma frase
sequer precise ser alterada? E se houve sobretudo a pretensão de descobrir em
minha atuação noocientífica2 e antroposófica uma virada em minhas idéias,
pode-se replicar que agora, na revisão desta conferência, as idéias nela contidas
me parecem como um fundamento sadio para a Antroposofia. E até me parece
que cabe sobremaneira à abordagem antroposófica contribuir para a
compreensão destas idéias. No caso de outra direção das idéias, dificilmente se
acolherá devidamente na consciência o aspecto mais importante ali expresso. O
que, há mais de vinte anos, estava por trás de meu universo ideativo foi
elaborado desde então por mim das mais variadas maneiras; eis o fato ocorrido,
e não mudança de cosmovisão.
Alguns comentários anexados com o objetivo de maiores esclarecimentos
também poderiam ter sido escritos perfeitamente vinte anos atrás. Agora se
poderia ainda questionar se o conteúdo da conferência ainda vale, hoje, com
relação à Estética — pois nas últimas duas décadas muito se trabalhou neste
domínio. Quanto a isso, parece-me até mais válido do que vinte anos atrás. Com
respeito à evolução da Estética, pode-se ousar a seguinte afirmação
aparentemente contraditória: os pensamentos desta conferência tornaram-se,
desde sua primeira edição, mais verídicos, ainda que não mudassem.

Rudolf Steiner
Basiléia, 15 de setembro de 1909

Göethe como inaugurador de uma estética nova

O número de publicações que atualmente se dedicam a determinar a


relação de Göethe com os diferentes ramos das Ciências e da vida cultural
modernas em geral é, de fato, esmagador. A mera listagem dos títulos
preencheria uma obra respeitável. Este fenômeno deve-se ao fato de estarmo-
nos tornando cada vez mais cônscios de que em Göethe nos deparamos com um
fator cultural com o qual tem de confrontar-se quem quer que queira participar
da vida cultural do presente. Uma omissão significaria, neste caso, renunciar
aos fundamentos de nossa cultura, mexer nas profundezas sem a vontade de

1 Do original. (N.E.)
2 Noo (gr.) = espiritual. (N.T.)

2
elevar-se até à altitude luminosa de onde provém toda a luz de nossa educação
cultural. Só quem conseguir relacionar-se em algum ponto com Göethe e seu
tempo chegará à clareza sobre o caminho que nossa cultura enceta, e só esse se
tornará consciente das metas que a humanidade moderna tem de seguir. Quem
não encontrar esta relação para com o maior gênio dos tempos modernos será
simplesmente arrastado por seus contemporâneos e conduzido como se fora um
cego. Todas as coisas se nos apresentarão em nova correlação se as
observarmos com o olhar que se aguçou nessa fonte de cultura.
Por mais positiva que seja a preocupação dos contemporâneos em
relacionar-se de alguma forma com Göethe, de modo algum pode ser concedido
que a maneira como isso acontece seja geralmente feliz. Infelizmente, muitas
tentativas carecem demais da imprescindível ausência de preconceitos que
primeiro penetra as profundidades do gênio de Göethe para só depois adotar
uma postura crítica. As vezes, só se considera Göethe ultrapassado em
diferentes assuntos por não se compreender toda a sua importância. Acredita-se
ter ido muito além de Göethe, enquanto o correto consistiria, muitas vezes, em
aplicar seus amplos princípios, sua maneira maravilhosa de observar as coisas,
aos nossos atuais meios e fatos científicos mais perfeitos e avançados. Em
Göethe, não importa se os resultados de suas pesquisas científicas
correspondem ora mais, ora menos ao progresso da atual Ciência, e sim
unicamente como ele abordava os problemas. Os resultados são marcados pelo
tempo em que ele viveu, isto é, são limitados pelos meios e pelas experiências
acessíveis à sua época; porém sua maneira de pensar, sua maneira de levantar
os problemas possui um valor perene, que se desrespeita francamente ao tratá-
las de cima para baixo. Entretanto, nosso tempo tem como nota característica o
menosprezo quase total pela criatividade espiritual do gênio. Como poderia ser
diferente numa época em que parece ser ilícito ir além da experiência física,
tanto na Ciência quanto nas Artes? Para a mera observação sensória, necessita-
se apenas de sentidos sadios, e o gênio parece aí, em princípio, prescindível.
Mas o verdadeiro progresso nas Ciências e nas Artes nunca foi conseguido
por meio de tal observação ou de uma escravizada imitação da Natureza. É que
milhares e milhares de pessoas passam por determinada observação até chegar
alguém e fazer, durante essa observação, a descoberta de uma importante lei da
Natureza. Muitos, antes de Galileu, viram um lustre balançando; mas teve de
aparecer esta cabeça genial para descobrir as leis do pêndulo, tão importantes
para a física. “Não fosse o olho de natureza solar, como poderíamos a luz
avistar?”, exclama Göethe, querendo dizer com isto que só conseguirá ver as
profundidades da Natureza quem tiver as disposições necessárias e as forças
produtivas para ver, no factual, mais do que os meros dados externos. Isto não é
aceito. Porém não se deve confundir os enormes progressos que devemos ao
gênio de Göethe com as deficiências de suas pesquisas como resultado das
então limitadas experiências. O próprio Göethe chegou a caracterizar, ‘numa
imagem acertadíssima, a relação entre seus resultados científicos e o progresso
das investigações científicas; comparou seus resultados com as peças de um
jogo com as quais talvez tenha ousado ir demasiadamente longe, porém pelas
quais se pudesse reconhecer o plano do jogador. Se respeitarmos estas
palavras, competirá às nossas investigações referentes a Göethe a seguinte
elevada tarefa: elas sempre deverão remontar às tendências que Göethe
possuía. O que o próprio Göethe externa como resultados pode ser considerado

3
um mero exemplo de como ele tentou resolver suas tarefas com meios assaz
limitados. Temos de resolvê-las de acordo com seu espírito, porém com nossos
meios mais avançados e recorrendo à nossa experiência mais ampla. Seguindo-
se este caminho, todos os ramos de pesquisa aos quais Göethe dirigiu sua
atenção poderão ser fecundados e, mais ainda, tornar-se-ão unitários, membros
de uma grande e unitária cosmovisão. A mera investigação filológica e crítica,
cujos méritos são, aliás, inegáveis, tem de encontrar, assim, sua necessária
complementação. Temos de apoderar-nos da plenitude de pensamentos e idéias
residentes em Göethe para, a partir dela, continuar com o labor científico.
Minha tarefa, nesta conferência, consistirá em mostrar como é possível
aplicar os princípios supra-mencionados a uma das mais recentes e controverti-
das ciências: a Estética. A Estética, isto é, a ciência que se ocupa da Arte e suas
criações, existe há pouco mais de cem anos. Ela foi apresentada pela primeira
vez, com a plena consciência de se estar inaugurando uma nova disciplina
científica, por Alexander Gottlieb Baumgarten no ano de 1750.3 É na mesma
época que incidem as tentativas de Winkelmann e Lessing de chegar a um juízo
profundo em relação às questões principais da Arte. Tudo o que se tentou antes
não pode ser considerado sequer um começo elementar para uma tal ciência.
Nem mesmo o grande Aristóteles, esse gigante cultural que exerceu influência
tão decisiva em todos os ramos da Ciência, foi fecundo em relação à Estética.
Ele exclui completamente as artes plásticas do âmbito de suas investigações, o
que evidencia não haver chegado a captar o conceito da Arte. Além disso, só
conhece o princípio da imitação da Natureza, o que nos demonstra não haver
ele entendido a função do espírito humano em suas criações artísticas.
Ofato de a ciência do belo ter surgido tão tarde não é um acaso. Outrora
ela nem era possível, pois lhe faltavam as precondições. Quais são tais
precondições? A necessidade da Arte é tão antiga como a própria humanidade,
porém o desejo de compreender sua meta só pôde surgir bem mais tarde. O
espírito grego, que devido à sua afortunada organização se satisfazia na
convivência com a simples natureza circundante, criou uma época artística
importantíssima; contudo, ele o fez a partir de uma ingenuidade 4 original, sem o
desejo de criar para si, na Arte, um mundo que lhe devesse oferecer uma
satisfação que não lhe afluísse de qualquer outro lado. O grego encontrava na
própria realidade tudo o que procurava; a Natureza vinha com abundância ao
encontro de tudo o que seu coração desejava e seu espírito ansiava. Nunca lhe
devia suceder nascer em seu coração um desejo por algo que, debalde, ele
procurasse no mundo circundante. O grego não se emancipou da Natureza, e
por isso todos os seus desejos puderam ser satisfeitos por ela. Havendo uma
unidade inseparável de todo o seu ser com a Natureza, ela cria no homem e
sabe o que pode proporcionar-lhe de modo que ele não se sinta insatisfeito.
Desta maneira a Arte só constituía, para esse povo ingênuo, uma extensão do
viver e atuar dentro da Natureza — nascendo, portanto, imediatamente dela. A
Arte satisfazia os mesmos desejos que sua mãe, a Natureza, só que em medida
mais elevada. Por isso Aristóteles não conhecia um princípio artístico superior à
imitação da Natureza. Nada mais é preciso alcançar além da Natureza, pois
nela se encontra a fonte de toda e qualquer satisfação estética. O que para nós
3 Atualmente, portanto, há quase duzentos e cinqüenta anos. (N.E.)
4 Emprega-se aqui a palavra ‘ingenuidade’ no sentido de atitude espontânea. ‘Ingênuo’ não
tem qualquer conotação pejorativa neste contexto; designa apenas uma forma de consciência
pré-reflexiva. (N.T.)

4
pareceria vão e vazio — a mera imitação da Natureza — era então totalmente
suficiente. Nós desaprendemos de ver na simples Natureza o sumo bem pelo
qual nosso espírito anseia; portanto, nunca poderíamos contentar-nos com o
mero realismo desprovido de todo e qualquer conteúdo superior. Esta época
estava para chegar, sendo uma necessidade para a humanidade que caminha
para estados cada vez mais perfeitos de sua evolução. O homem só pôde
manter-se dentro da Natureza enquanto não tinha consciência desta situação. A
partir do momento em que reconheceu sua autoconsciência com plena clareza,
no momento em que reconheceu abranger em seu interior um mundo
equivalente, não pôde senão desprender-se da Natureza.
Agora o homem não podia mais render-se à Natureza, para que esta fizesse
o que bem quisesse com ele, incutindo-lhe e satisfazendo-lhe necessidades.
Agora ele teve de defrontar-se com a Natureza. Assim, separou-se efetivamente
dela e edificou em seu interior um mundo novo — e é desse mundo que emanam
agora seus anseios e desejos. Se tais desejos poderão ser satisfeitos uma vez
separados da Natureza, isso cabe ao acaso. De qualquer modo, agora o homem
se encontra separado, por um profundo abismo, da realidade; assim sendo,
precisa estabelecer a harmonia que antes existia em perfeição original. Desta
maneira nos deparamos com os conflitos entre o ideal e a realidade, o projeto e
a realização — em suma, com tudo aquilo que pode levar a alma do homem a
um verdadeiro labirinto mental. A Natureza diante de nós está desprovida de
intimidade, sem vestígio daquilo que nosso íntimo nos anuncia do divino. A
próxima conseqüência é o distanciamento de tudo o que é Natureza, é a fuga de
qualquer realidade imediata. Eis justamente o contrário do mundo grego. Assim
como este encontrava tudo na Natureza, a cosmovisão subseqüente nada
encontrou nela. E é à luz deste critério que se nos deve apresentar a Idade
Média cristã. Assim como a atitude grega não conseguiu compreender a
qüididade5 das Artes, pois não lhe foi possível entender como a Arte pode ir
além da Natureza, tampouco a ciência cristã medieval pôde desenvolver uma
cognição da Arte, visto que a Arte só pode trabalhar com os meios da Natureza
e a erudição não conseguia entender como é possível criar, dentro do mundo
sem Deus, obras capazes de satisfazer o espírito que aspira à divindade. Tam-
pouco aí a incapacidade da Ciência se tornou obstáculo para o desenvolvimento
da Arte. Enquanto a primeira não sabia como pensar sobre a Arte, surgiam as
mais maravilhosas obras da arte cristã. A Filosofia, que nessa época era serva
da Teologia, não conseguiu atribuir à Arte um papel decisivo no progresso
cultural, como tampouco o conseguira o grande idealista dos gregos, ‘o divino
Platão’. Platão declarou as artes plásticas e a dramaturgia como algo nocivo, e
seu conceito da tarefa da Arte era tão deficiente que ele apenas atribuiu um
valor à Música pelo fato de ela servir para aumentar a coragem na guerra.
Na época em que espírito e Natureza se encontravam em íntima união, a
ciência das Artes não pôde surgir; mas também não o pôde numa época em que
espírito e Natureza se encontravam numa contraposição irremediável. Para que
a Estética pudesse nascer, foi necessário surgir uma época em o homem
entreviu, livre e independentemente das amarras da Natureza, o espírito em
sua nitidez, mas na qual também já era novamente possível uma confluência do
espírito com a Natureza. Para o fato de o homem se haver elevado acima do
ponto de vista grego há uma boa razão, pois na soma dos acasos que compõem

5 Do lat. quidditas = o quê, essência, substância (al. Wesen). (N.T.)

5
nosso mundo jamais poderemos encontrar o divino, a ordem necessária. Não
vemos outras coisas em nosso redor a não ser o que também poderia ser
diferente. Não vemos senão indivíduos enquanto o nosso espírito aspira ao
universal e arquetípico; vemos apenas o finito e perecível, e nosso espírito
busca o infinito, não efêmero, eterno. Se o espírito humano alienado da
Natureza deve retornar a ela, isto não pode acontecer em relação àquela soma
de acasos. É a este retorno que Göethe se refere: retorno à Natureza, sim,
porém apenas com as riquezas do espírito evoluído, com a altura da erudição da
época moderna.
A separação fundamental entre Natureza e espirito não corresponde à
visão de Göethe, visto que ele contempla o mundo como uma grande totalidade,
uma seqüência evolutiva unitária de seres dentro da qual o homem representa
um membro, se bem que o mais evoluído.
Natureza! estamos cercados e envoltos por ela — incapazes de afastar-nos dela
e também incapazes de aprofundar-nos nela. Sem pedir e prevenir, ela nos
acolhe no circuito de sua dança e nos arrasta até ficarmos cansados e cairmos
de seus braços.

E no livro sobre Winckelmann:

Quando a natureza sadia do homem atua como um todo; quando ele se sente no
mundo como num todo grande, belo, digno e valioso; quando o bem estar
harmonioso lhe proporciona um encantamento livre, então o próprio Universo,
se pudesse sentir a si mesmo, alegrar-se-ia como se tivesse cumprido sua
missão, admirando o auge de sua evolução e de sua essência.

Aí se encontra o que é autêntico para Göethe, ou seja, transcender a


Natureza imediata sem afastar-se de maneira alguma do que constitui sua
essência. A ele é estranho o que freqüentemente ele mesmo encontra em
homens particularmente dotados:

...a peculiaridade de sentir uma espécie de pudor perante a vida real e recolher-
se em si mesmo, criar um mundo próprio em si mesmo e, destarte, conseguir o
mais excelente referente ao interior.

Göethe não foge da realidade a fim de realizar em si um mundo de


pensamentos abstratos que nada têm em comum com ela; com efeito, ele se
aprofunda na realidade para encontrar em sua contínua transformação, em seu
devir e mover, as leis imutáveis; ele se põe diante do indivíduo para nele
contemplar o arquétipo. Assim surgiu em seu espírito a planta arquetípica,
como também o animal arquetípico, os quais nada mais são senão as idéias do
animal e da planta. Estes não são conceitos gerais e vazios pertinentes a uma
teoria abstrata, e sim fundamentos essenciais dos organismos providos de um
conteúdo rico e concreto, perceptíveis e cheios de vida. Perceptíveis, com
efeito, não para os sentidos externos, mas para aquela capacidade de percepção
superior que Göethe discute no ensaio Anschauende Urteilskraft [Juízo6
perceptual].7 As idéias, no sentido de Göethe, são tão reais corno as cores e as
formas das coisas, sendo porém perceptíveis apenas àcapacidade de percepção

6 Ou, literalmente traduzido, ‘capacidade de julgar’. (N.T.)


7 Trata-se de uma forma não-abstrata de uso do pensar. O pensamento mantém a ligação com o
fenômeno, contemplando as idéias universais como forças atuantes no mundo dos fenômenos
individuais. (N.T.)

6
adequada, assim como cores e formas só existem para seres dotados de visão, e
não para os cegos. Se não nos aproximarmos do mundo objetivo com o espírito
receptivo, ele não se nos desvendará. Sem a capacidade instintiva de perceber
idéias, não temos acesso a este domínio.
Foi Schiller quem, mais profundamente do que qualquer outro, se inteirou
da configuração do génio de Göethe. No dia 23 de agosto de 1794, ele
esclareceu Göethe sobre a essência de seu gênio com as seguintes palavras:

Osenhor toma a Natureza toda em conjunto para elucidar as particularidades;


na totalidade de suas aparências, o Senhor procura o fundamento explicativo
para o indivíduo. De uma organização simples o senhor ascende, passo por
passo, às mais complexas para, afinal, edificar geneticamente a mais complexa
de todas — o Homem — dos materiais da Natureza como um todo. E pelo fato de
reconstruí-lo na Natureza que o senhor tenta penetrar em sua técnica oculta.

Nesta reconstrução se encontra a chave para a compreensão da


cosmovisão de Göethe. Se realmente queremos ascender aos arquétipos das
coisas, ao imutável na eterna transformação, então não devemos considerar os
resultados, pois estes não correspondem mais totalmente à idéia que se
expressa nele; temos, sim, de regredir ao devir, temos de auscultar a Natureza
em seu criar. Eis o sentido das palavras de Göethe em seu ensaio Anschaueu de
Urteilskraft [Juízo perceptual]:

Se, no que se refere à moral, pela fé em Deus, virtude e imortalidade nos


alçamos às regiões superiores e nos aproximamos do Supremo Ser, então o
mesmo também deveria ser possível no campo intelectual — a saber: tornamo-
nos dignos de participar mentalmente das produções da Natureza pela
apercepção de uma Natureza sempre criativa. Eu mesmo procurava,
inicialmente sem consciência e por força de um impulso interior, aquele típico e
arquetípico.

Os arquétipos de Göethe não são, portanto, esquemas vazios, e sim as


forças que impulsionam por detrás dos fenômenos.
Eis a ‘Natureza superior’ na Natureza da qual Göethe pretende apoderar-
se. Reconhecemos que em caso algum a realidade tal como se apresenta aos
nossos sentidos é algo em que o homem, tendo chegado a um nível superior de
cultura, possa permanecer. Só quando o gênio humano transcende esta
realidade, rompendo o invólucro para penetrar no cerne, é que se lhe revela o
que coere o mundo em seu íntimo. Jamais podemos encontrar satisfação no caso
particular, e sim só na lei da Natureza; jamais no indivíduo particular, e sim
apenas na universalidade. Em Göethe encontramos este fato com muita
perfeição. Para ele, o que também permanece é o fato de ao homem moderno a
realidade, o indivíduo particular nãoproporcionar satisfação, por não
encontrarmos nele próprio — e sim apenas quando o superamos — o que
veneramos como o divino, ao qual nos referimos na Ciência sob o título de idéia.
Enquanto a experiência não consegue conciliar os opostos — pois só possui a
realidade, e não mais a idéia —, a Ciência, embora possua a idéia, tampouco
chega a esta conciliação por lhe faltar a realidade. Entre ambos, o homem
necessita de um novo reino, de um reino em que já o particular, e não apenas o
todo, representa a idéia — de um reino em que o indivíduo já se apresenta de
uma forma que expressa o caráter da universalidade e da necessidade. Tal
mundo ainda não existe na realidade; um mundo como esse, o próprio homem

7
tem de criar: trata-se do mundo da Arte — um terceiro reino necessário ao lado
dos sentidos e da razão.
A Estética tem a tarefa de compreender a Arte como esse terceiro reino, O
divino, do qual as coisas da Natureza carecem, o próprio homem tem de
implantá-lo, e aqui temos uma importante tarefa que resulta para o artista. Ele
tem de trazer o reino de Deus para a terra. Sobre essa que podemos chamar de
missão religiosa da Arte Göethe se expressa, no livro sobre Winckelmann, da
seguinte maneira:

O homem, sendo o cume da Natureza, considera a si mesmo, por sua vez, como
uma Natureza completa que tem de fazer surgir em si um novo cume. Para isso
ele evolve, compenetrando-se com todas as perfeições e virtudes, invocando
escolha, ordem, harmonia e significação para, finalmente, elevar-se à produção
da obra artística — que, ao lado de suas demais ações e obras, assume um lugar
brilhante. Uma vez realizada, essa obra, em sua realidade ideal, está diante do
mundo, produzindo destarte um efeito duradouro ou até desenvolvendo o su-
premo efeito — pois desenvolvendo-se espiritualmente a partir de todas as
forças, ela assimila tudo o que merece glória, veneração e amor e eleva a forma
humana acima de si mesma, compenetrando-a de alma; ademais, encerra o
círculo de sua vida e suas ações e deifica-a para o presente, que engloba o
passado e o porvir. Por tais sentimentos foram tomados aqueles que avistaram o
Júpiter Olímpico, segundo podemos depreender dos relatos e dos testemunhos
dos antepassados remotos. O deus se tornou homem para elevar o homem ao
deus. Avistara-se a suprema dignidade e a suprema beleza provocara
entusiasmo.

Assim se atribuiu à Arte a sua alta importância para o progresso cultural


dos homens; e é característico no éthos do povo alemão que esta idéia se lhe
tenha revelado por primeiro, é significativo que há um século8 os filósofos
alemães estejam empenhados em encontrar a forma de expressão científica
mais digna do modo como, na obra artística, espírito e Natureza, idealidade e
realidade se fundem. Em nada mais consiste a tarefa da Estética senão em
compreender esta interpenetração em sua essência, bem como em elaborar as
formas particulares em que ela se expressa nos diferentes campos da Arte. O
mérito de ter ventilado este problema de acordo com o ponto de vista acima
mencionado, tendo, assim, posto em movimento as principais questões
estéticas, cabe à Crítica do juízo (1790) de Kant, cujas dissertações evocaram
imediatamente em Göethe uma reação positiva. Não obstante toda serenidade
do trabalho, temos de convencer-nos de que ainda não dispomos de uma
solução integralmente satisfatória sobre as tarefas estéticas.
O ancião de nossa estética, o nítido pensador e crítico Friedrich Theodor
Vischer, conservou até o fim de sua vida a convicção de que “a Estética ainda
está em seus primórdios”. Com isto concordou que todas as aspirações neste
domínio, inclusive sua própria obra de cinco volumes, são caminhos falsos. E
isto é verdade. Esta realidade se deve — se permitem que eu pronuncie aqui
minha convicção — ao fato de não terem sido levados em consideração os
germes frutíferos de Göethe nesse domínio, visto que ele próprio não foi tomado
como suficientemente científico. Tivesse isso acontecido, então teriam sido
levadas avante as idéias de Schiller, as quais se lhe revelaram quando ele con-
templou o gênio de Göethe — idéias que ele documentou nas ‘Cartas sobre a

8 Na data da presente conferência (1888). (N.E.)

8
educação estética do homem’.9 Tampouco essas cartas são devidamente levadas
em consideração — pelos estetas que valorizam sobretudo o trabalho
sistemático —, ainda que façam parte do mais importante até agora conseguido
pela Estética. Schiller parte de Kant. Este filósofo determinou a natureza do
belo em diferentes aspectos. Primeiro ele investiga a razão do prazer que
vivenciamos nas obras belas da Arte. Esta sensação de prazer lhe parece bem
diferente de qualquer outra. Comparemo-la com o prazer que experimentamos
ao lidar com um objeto útil. Este prazer é bem diferente. Este prazer está
intimamente vinculado à cobiça pela existência deste objeto. O prazer pelo
objeto útil se esvai quando o objeto útil deixa de existir. O caso é diferente em
relação ao prazer que vivenciamos no belo. Este prazer nada tem a ver com a
posse, a existência do objeto; não se prende ao objeto, e sim apenas à
representação do mesmo. Enquanto no caso do que possui finalidade e utilidade
surge imediatamente a vontade de converter a representação em realidade, no
caso do belo nós nos contentamos com a mera imagem. Por isso Kant chama a
estima pelo belo uma estima livre de qualquer interesse, ou seja, uma ‘estima
desinteressada’. Contudo seria errado achar que a finalidade é excluída do belo,
só ocorrendo com a finalidade externa. E assim resulta a segunda explicação do
belo: “Ele é algo finalisticamente 10 estruturado [formado] em si, porém sem
servir a um fim externo.” Ao percebermos um outro objeto da Natureza ou um
produto da técnica humana, nosso entendimento [intelecto] logo perguntará
pela utilidade e finalidade — e não se contentará antes de responder à pergunta
‘para quê?’. No belo, o ‘para quê’ se encontra na própria coisa, e o
entendimento não precisa ir além dela. É aqui que Schiller principia. E ele o faz
entretecendo a idéia da liberdade de tal forma, nesta cadeia de pensamentos,
que a natureza humana é sobremaneira honrada. Inicialmente apresenta dois
impulsos opostos que sempre estão em ação no ser humano. O primeiro é o
‘impulso-matéria’ [Stofftrieb]11 ou a necessidade de manter abertos nossos
sentidos às impressões que recebemos do mundo externo. Trata-se de um
conteúdo riquíssimo, que nos acomete sem que possamos exercer influência
alguma sobre sua natureza. Tudo acontece aqui com rígida necessidade. O que
percebemos é determinado de fora; somos coagidos e sujeitados, tendo
simplesmente de seguir os ditames da Natureza. O segundo é o ‘impulso-forma’
[Formtrieb]. Este nada mais é senão a razão que introduz ordem e lei no caos da
percepção. Por seu labor é introduzido sistema na experiência. Porém tampouco
aqui, segundo Schiller, somos livres — pois no tocante a este labor a razão está
sujeita às imutáveis leis da lógica. Tal como, no caso da experiência, estamos
sujeitos à necessidade da Natureza, aqui estamos subordinados à necessidade
da razão. E perante ambas que a liberdade procura abrigo. Schiller relaciona a
liberdade com a Arte, destacando a analogia da Arte com o jogo infantil. Onde
reside a essência do jogo12? Tomam-se os objetos da realidade para modificar
suas relações arbitrariamente. Neste contexto, a transformação da realidade
não segue uma necessidade lógica — como ao construirmos, por exemplo, uma

9 Briefe über die ästhetische Erziehung des Menschen. Edicão brasileira sob o título A
educação estética do homem, trad. de Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo,
Iluminuras, 1990. (N.E.)
10 Al. Zweckmässig. (N.T.)
11 Stoff (al.) corresponderia, na verdade, a ‘estofo’, termo usado, por exemplo, na tradução de
Merleau-Ponty, Edição ‘Pensadores’. (N.T.)
12 Spiel (al.) = jogo, brincadeira infantil. (N.T.)

9
máquina tendo de sujeitar-nos às leis da razão — e, sim, unicamente o desejo
subjetivo. Quem brinca relaciona as coisas de forma que elas lhe proporcionem
prazer, não se submetendo a qualquer coação; não respeita a necessidade da
Natureza, pois supera sua coação usando os objetos de acordo com seu livre
arbítrio. Tampouco se sente sujeito à necessidade da razão [ordem lógica], visto
que a ordem em que coloca os objetos é sua invenção. Assim, quem brinca
cunha a realidade conforme sua subjetividade e proporciona à sua subjetividadê
uma significação objetiva. A atuação separada dos dois impulsos acima men-
cionados cessa e eles confluem num só, tornando-se livres. O natural é
espiritual e o espiritual é natural. No entanto, Schiller, o poeta da liberdade, vê
na Arte apenas um jogo do homem num nível superior, exclamando com
entusiasmo: “O homem só é integralmente homem quando brinca.., e só brinca
quando é verdadeiramente homem.” O impulso que subjaz à Arte, Schiller o
denomina ‘impulso lúdico’. Este produz, no artista, obras que já em sua
aparência sensória satisfazem à nossa razão e cujo conteúdo racional se
apresenta simultaneamente como manifestação sensória. E a essência do
homem atua, neste nível, de forma tal que sua Natureza se manifesta como
espírito e seu espírito como Natureza. A Natureza é realçada ao nível do es-
pírito e o espírito penetra a Natureza. Aquela é enobrecida e este é trazido de
sua alteza abstrata para a terra. As obras assim produzidas não são, portanto,
totalmente verdadeiras num sentido naturalista, visto que na realidade espírito
e Natureza não se coadunam totalmente. Quando, portanto, comparamos as
obras da Arte com as obras da Natureza, as primeiras nos parecem mera
ilusão.13 Contudo elas têm de ser ilusões, pois do contrário não seriam
verdadeiras obras artísticas. Com o conceito de ilusão Schiller ocupa uma posi-
ção única e excepcional como esteta. Aqui deveriam ter continuado a respeitar
a maneira goethiana de contemplar a Arte, a fim de aprimorar a solução
inicialmente unilateral do problema do belo. Entretanto, Schelling entra em
cena com uma visão básica totalmente equivocada, inaugurando um erro do
qual a estética alemã nunca mais conseguiu se livrar. Como toda a filosofia
moderna, também Schelling acha que a suprema tarefa das aspirações humanas
consiste na intelecção14 dos eternos arquétipos das coisas. O espírito ultrapassa
o mundo real e se eleva às alturas onde reina o divino. Aí se lhe revela toda a
verdade e toda a beleza. Só o que é eterno é verdadeiro e também belo. A
genuína beleza só pode ser contemplada, segundo Schelling, por quem se eleva
à suprema verdade, pois ambas são uma e a mesma coisa. Toda beleza sensória
é apenas um reflexo pálido daquela beleza infinita que jamais podemos
perceber com os sentidos. Assim, já estamos vendo aonde chegamos. A obra de
arte não é bela por si própria e graças ao que é em si mesma, mas porque
repete a idéia da beleza. É apenas conseqüência desta opinião o fato de o
conteúdo da Arte ser o mesmo que o da Ciência, pois ambas têm por funda-
mento a eterna verdade, que é ao mesmo tempo beleza. Para Schelling a Arte
não é senão a Ciência objetivada. O importante agora, neste contexto, é com
quê se relaciona nossa estima pela obra de arte. Visivelmente, é apenas com a
idéia expressa. A imagem sensória só é meio de expressão para a forma em que
se articula um conteúdo supra-sensório. E neste ponto todos os estetas da

13 Ilusão = aparência. (N.T.)


14 Intelecção (lat. intelligere, de intus legere = ler no interior = compreensão profunda. Veja
Johannes Hessen, Teoria do conhecimento, trad. Antonio Correia. Coimbra, 1987. (N.T.)

10
corrente idealista seguem Schelling. Não posso concordar com o que acha o
mais recente sistemático da Estética, Eduard von Hartmann, a saber: que Hegel
foi muito além de Schelling no tocante a este ponto. Digo este ponto porque
existem muitos outros em que ele realmente supera Schelling em muito. Hegel
também diz: “O belo é o reluzir sensório da idéia.” Com isto admite igualmente
considerar a idéia expressa como sendo o essencial na Arte. Esta opinião se evi-
dencia ainda mais pelas seguintes palavras: “A casca dura da Natureza e do
mundo torna, para o espírito, o acesso à idéia mais difícil do que as obras de
arte.” Ora, aqui está claramente dito que o fim da Arte é o mesmo que o da
Ciência, a saber: chegar até à idéia.
A Arte apenas procura ilustrar o que a Ciência expressa imediatamente sob
forma de conceito. Friedrich Theodor Vischer denomina a beleza como ‘a
manifestação da idéia’, identificando, assim, também o conteúdo da Arte com a
verdade. Seja lá o que se queira objetar, quem vê na idéia expressa a essência
do belo não consegue mais separá-lo da verdade. E assim não é mais concebível
qualquer função autônoma para a Arte. O que ela nos dá nós o experimentamos,
pela via do pensar, de forma mais pura e menos opaca, e não apenas encoberto
por um véu sensório. Só por meio de sofismas é que se consegue evitar a
conseqüência comprometedora de que a alegoria nas artes plásticas e a poesia
didática na poesia constituem as supremas formas de arte. A significação
autônoma da Arte, este tipo de estética não a pode conceber. Com efeito, ele se
revelou infrutífero. Porém não devemos exagerar e abandonar todas as
aspirações por uma estética livre de contradições. E estão exagerando todos
aqueles que pretendem dissolver a Estética em história da Arte. Sem se apoiar
em princípios autênticos, a Ciência em nada mais pode consistir senão numa
coletânea de apontamentos sobre artistas e suas obras e em comentários mais
ou menos inteligentes que, por resultarem totalmente do raciocínio subjetivo,
não possuem o mínimo valor. Também se tentou uma aproximação à Estética
por outro lado, opondo-a a uma espécie de fisiologia do bom gosto. Pretende-se
examinar os casos mais simples e elementares em que temos uma sensação de
prazer para, em seguida, ascender aos casos mais complicados, contrapondo
desta maneira à ‘estética de cima’ uma ‘estética de baixo’. Este caminho foi o
encetado por Fechner em sua Vorschule der Aesthetik (Pré-escola da Estética).
Em verdade, é inconcebível que tal obra haja encontrado adeptos num povo que
teve um Kant. A Estética deve partir do exame das sensações de prazer, como
se toda sensação de prazer já fosse estética e como se pudéssemos distinguir a
natureza estética de uma sensação de prazer por um outro critério que não o do
objeto que a produz. Só sabemos que uma sensação de prazer é estética quando
reconhecemos o objeto como belo, pois psicologicamente uma sensação estética
de prazer não se distingue em nada de qualquer outra. Sempre se trata da
compreensão e cognição do objeto. Através de quê um objeto se torna belo? Eis
a questão básica de toda a Estética.
Muito melhor que os ‘estetas de baixo’, conseguimos aproximar-nos da
coisa apoiando-nos em Göethe. Certa vez Merck explicou a atuação de Göethe
com as seguintes palavras:

Teu empenho, tua direção indesviável é proporcionar à realidade uma forma


poética. Os outros tentam realizar o chamado poético ou imaginativo, o que só
redunda em tolices.

11
Estas palavras dizem mais ou menos a mesma coisa que Göethe expressa
na segunda parte do Fausto: “Cogite o quê, porém mais ainda cogite o como.”
Claramente está dito o que importa na Arte — não a incorporação de algo
supra-sensório, e sim a transformação da realidade sensória. O real não deve
ser menosprezado como mero meio de expressão; não, ao contrário, deve ser
conservado em sua plena autonomia, só que recebendo uma forma nova, uma
forma que nos satisfaça. Quando destacamos um ser singular de seu ambiente e
o defrontamos, muita coisa nos parecera enigmática. Não conseguimos
harmonizá-lo com o conceito, com a idéia em que temos de baseá-lo. Sua con-
figuração e sua forma na realidade não são somente a conseqüência da sua
regularidade própria, visto que a realidade adjacente é co-determinante. Se
esse objeto se tivesse desenvolvido livre e independentemente dos outros, então
expressaria apenas sua própria idéia. Esta idéia que subjaz ao objeto — mas
que na realidade é perturbada em seu desenvolvimento livre — o artista tem de
captá-la e desdobrá-la. Ele tem de encontrar no objeto o ponto a partir do qual
esse objeto pode desenvolver-se em sua forma mais perfeita, sem que, no
entanto, nessa forma ele se desenvolva na Natureza. A Natureza simplesmente
não consegue realizar num objeto singular sua intenção; ao lado desta planta
ela produz aquela, e uma segunda e mais uma terceira, e assim por diante,
nenhuma manifestando concretamente a idéia completa; uma manifesta este
lado e outra aquele, conforme as circunstâncias permitam. O artista, porém,
deve remontar ao que se lhe apresenta como a tendência própria da Natureza.
Eis o que Göethe nos quer dizer com as seguintes palavras: “Não paro antes de
encontrar um ponto pregnante a partir do qual se possa deduzir muita coisa.”
Para o artista, todo o lado externo de sua obra tem de expressar o interior; no
caso dos objetos da Natureza o interior não coincide com a forma externa, e o
gênio humano tem de investigá-lo para chegar à sua cognição. E assim as leis
que o artista segue não são outras senão as leis eternas da Natureza, no
entanto puras e não influenciadas por qualquer obstrução. Para as criações da
Arte não importa o que é, e sim o que poderia ser; não o real, e sim o possível.
O artista opera conforme os mesmos princípios que a Natureza; contudo trata
os indivíduos segundo estes princípios, enquanto a Natureza, como diz Göethe,
não se importa com os indivíduos. “Ela sempre constrói e sempre destrói”, visto
que não pretende atingir a perfeição com o particular, e sim com o todo. O
conteúdo de uma obra de arte é qualquer conteúdo fenomênico, sensorialmente
real — é o quê. Sob a forma que o artista lhe proporciona, ele tenciona ir além
das tendências próprias da Natureza e atingir, de maneira superior à Natureza,
o que lhe é possível com seus meios e suas leis.
O objeto que o artista coloca diante de nós é mais perfeito do que em seu
estado natural, porém não comporta outra perfeição senão a sua própria. Nesta
transcendência do objeto em relação a si mesmo, porém baseando-se apenas
naquilo que lhe é inerente, é que reside o belo. O belo não é, portanto, algo
contrário à Natureza; e assim Göethe pode dizer, com direito:

O belo é uma manifestação de ocultas leis da Natureza, que sem sua aparição
permaneceriam eternamente secretas.

Ou, numa outra ocasião:

Aquele a quem a Natureza começa a desvendar seu segredo manifesto

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experimenta um anseio irresistível por sua intérprete mais digna: a Arte.

No mesmo sentido em que se pode afirmar ser o belo irreal e não


verdadeiro, uma mera ilusão, pois o que expressa não se encontra nesta
perfeição em lugar algum da Natureza, também se pode dizer o seguinte: o belo
é mais verdadeiro do que a Natureza, pois expressa o que a Natureza pretende
mas não consegue ser. Sobre esta questão da realidade na Natureza, diz
Göethe:

O poeta [e podemos bem estender suas palavras à Arte inteira], o poeta


necessita de expressão. A mais alta é quando esta compete com a realidade — a
saber: quando suas articulações adquirem forma vital pelo génio, de forma a
poderem estar presentes para qualquer um.

Göethe acha que “na Natureza, nada que não seja motivado como
verdadeiro, pelas leis da Natureza, é belo”. E o outro lado da ilusão, a
transcendência do ser em relação a si mesmo, encontramos pronunciado como
a opinião de Göethe em Sprüche in Prosa [Dizeres em prosa]

Na flor a lei vegetal atinge sua suprema manifestação, sendo a rosa apenas o
ápice desse fenômeno... A fruta jamais pode ser bela, pois aqui a lei vegetal se
recolhe em si mesma (como lei).

Ora, aqui temos claramente expresso: o belo se manifesta onde a idéia se


expressa e se articula, ou seja, onde nós percebemos a lei de maneira imediata
no fenômeno externo; onde, porém, como na fruta, a forma externa permanece
amorfa e banal por nada revelar da lei que subjaz à formação vegetal, aí o
objeto natural deixa de ser belo. Por isso Göethe acrescenta:

A lei que se torna manifesta com a maior liberdade e de acordo com as suas
próprias condições produz o objetivamente belo — que, no entanto, pressupõe
sujeitos dignos para poder ser compreendido.

E esta acepção de Göethe se encontra de forma decisiva no seguinte


pronunciamento das conversas com Eckermann (III.108):

O artista, sem dúvida, tem de repetir a Natureza, em seus pormenores, com


fidelidade e piedade... Não obstante, nas regiões superiores do processo
artístico, pelo qual uma imagem se torna uma genuína imagem, ele pode agir
livremente e até prosseguir até à ficção.

A suprema meta da Arte é, para Göethe, transmitir, através da aparência, a


ilusão de uma realidade superior. Uma aspiração errada consiste, porém, em
realizar tanto a aparência que reste apenas uma realidade comum.
Perguntemo-nos agora qual é a razão do prazer em relação aos objetos da
Arte. Sobretudo temos de conscientizar-nos de que o prazer satisfeito pelos
objetos do belo não tem um valor menor do que o intelectual, vivenciado por
nós no que é puramente espiritual. Sempre se trata de uma decadência da Arte
quando se procura sua meta no mero divertimento e na satisfação de prazeres
inferiores. Portanto, a razão para o prazer nos objetos da Arte não será outra
senão a razão que nos leva a experimentar aquela elevação alegre perante o
mundo das idéias, a qual permite ao homem transcender a si mesmo. O que nos
proporciona uma tal satisfação no contato com o mundo das idéias? Nada mais

13
senão a paz e a perfeição celestes que ele contém. Nenhuma contradição e
nenhuma dissonância podemos constatar no mundo das idéias que emerge em
nosso íntimo, visto ser ele um infinito em si. Tudo o que faz desta imagem algo
perfeito jaz nela mesma. Esta perfeição inata do mundo das idéias é a razão de
nossa elevação ao estarmos diante dele. Se o belo nos deve proporcionar
também uma elevação, então deve ser estruturado conforme a idéia. E isto é
totalmente diferente daquilo que os estetas idealistas alemães pretendem. Não
se trata da ‘idéia sob a forma de aparência sensória’, e sim, bem ao contrário,
da ‘aparência sensória sob forma de idéia’. O conteúdo do belo, a matéria que a
ele subjaz é sempre algo real, algo imediatamente real, e a forma de surgimento
é a ideiética.15 Vemos ser certo justamente o contrário do que diz a estética
alemã: esta colocou simplesmente as coisas de cabeça para baixo. O belo não é
o divino em sua vestimenta sensoriamente real; não, é o sensoriamente real em
sua vestimenta divina. O artista não traz o divino para a terra deixando-o fluir
para dentro dela, e sim apenas elevando o mundo para a esfera divina. O belo é
ilusão, pois faz surgir diante de nossos sentidos uma realidade que se apresenta
como um mundo ideal. Cogite o quê, porém ainda mais cogite o como, pois no
como se encontra o que realmente importa. O quê permanece algo sensório,
mas o como de sua surgência16 se torna ideiético. Onde esta forma de aparência
sensória melhor se manifesta, aí também aparece a dignidade da Arte com
máxima perfeição. Göethe diz a este respeito:

A dignidade da Arte é talvez, no caso da música, a mais eminente, por não ter
qualquer matéria a ser subtraída. Ela é integralmente forma e teor, e eleva e
enobrece o que expressa.

Ora, a estética partindo da definição de que “o belo é algo sensoriamente


real que aparece como se fosse idéia” sem dúvida ainda não existe — terá de
ser produzida. Ela pode ser chamada simplesmente a ‘estética da cosmovisão
de Göethe’. E essa é a estética do futuro. Também um dos mais recentes
pesquisadores da Estética — Eduard von Hartmann —, que produziu em sua
‘filosofia do belo’ uma obra excelente, é adepto do velho erro segundo o qual o
conteúdo do belo é a idéia. Ele diz acertadamente que o conceito básico do qual
a Estética deve partir é o conceito da ilusão estética. Mas será que podemos
considerar efetivamente a aparência do mundo ideal, em algum caso, como
ilusão? A idéia é a suprema verdade — quando aparece como verdade, e não
como ilusão. Temos uma ilusão efetiva, porém, quando o particular e o natural
provindos de uma vestimenta eterna e não-perceptível aparecem com o caráter
da idéia, pois esta, na realidade, não se encontra nele.
Neste sentido, o artista se nos apresenta como o continuador do espírito
que atua no mundo; ele continua a Criação onde o espírito divino a abandonou.
Ele se nos apresenta em íntima confraternização com o espírito divino, e a Arte
como a continuação livre da evolução natural. Com isto o artista se eleva acima
da vida real comum e leva consigo quem consegue aprofundar-se em suas
obras. Ele não produz para o mundo finito; ele o transcende. Göethe expressa
sua acepção em sua obra Die Apotheose des Künstlers [A apoteose do artista],
fazendo a musa dizer ao artista:

15 Ideiético = que tem forma de idéia. (V. Pinharanda Gomes, Filosofia grega pré-socrática,
prefácio. Lisboa, Guimarães Editores. (N.T.)
16 Surgência: v. Johannes Hessen, Teoria do conhecimento. (N.T.)

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Assim atua com poder o homem nobre
durante séculos sobre seus semelhantes:

Pois o que um homem bom pode alcançar


não se alcança no espaço apertado da vida.
Por isso continua vivendo também após sua morte
e é tão eficaz como quando vivia;
a ação boa, o verbo belo,
aspira imperecivelmente,
assim como aspirava de maneira mortal.
Destarte, tu (o artista) vives
durante tempos infindáveis;
goza da imortalidade!

Este poema expressa com excelência os pensamentos de Göethe sobre a


missão cósmica do artista, como eu gostaria de chamá-la.
Quem terá compreendido a Arte como Göethe, com tanta profundidade?
Ninguém soube provê-la com tanta dignidade quanto ele, ao dizer:
As obras elevadas de arte foram produzidas, por seres humanos, como as
supremas obras da Natureza, de acordo com leis verdadeiras e naturais. Todas
as arbitrariedades e falsas ilusões desmoronam — pois aqui só existem
Necessidade17 e Deus.

Isto comprova a profundidade de sua visão. Uma estética conforme sua


tendência certamente não seria ruim. E isto também se evidenciará com relação
a outros aspectos das ciências modernas.

Quando morreu Walther von Göethe, o último descendente do poeta, no dia


15 de abril 1885, e os tesouros da casa de Göethe se tornaram acessíveis à
Nação, muitos se espantaram diante da meticulosidade dos eruditos que
acolheram e arquivaram as mais insignificantes minúcias da herança de Göethe,
tratando-as como relíquias que não poderiam ser subestimadas, em seu valor,
para a pesquisa científica. Mas a genialidade de Göethe é inesgotável, incapaz
de ser relanceada de uma só vez, e dela temos de aproximar-nos grada-
tivamente, sempre por lados diferentes. E para isto temos de recorrer a todos
os detalhes. Também o que parece sem valor, visto isoladamente, adquire
significação quando o contemplamos em relação à cosmovisão abrangente do
Poeta. Só ao percorrermos a plena riqueza das manifestações de vida pelas
quais este gênio universal se expressou é que podemos deparar-nos com seu
âmago, com sua tendência, da qual nele tudo nasce e que constitui um auge da
humanidade. Apenas quando esta tendência se tornar um bem comum a todos
os que aspiram espiritualmente, quando a crença de que não devemos apenas
entender a cosmovisão de Göethe, e sim viver nela e ela em nós, só então Göe-
the terá cumprido sua missão. Esta cosmovisão tem de ser, para todos os
membros do povo alemão e muito além dele, o signo no qual eles se encontrem
e se reconheçam numa busca universal.

Algumas observações
17 Necessidade significa, aqui, seguir rigorosamente uma lei ou uma ordem; o que é necessário
decorre da própria essência de algo. (N.T.)

15
Pág.

3Fala-se aqui da Estética enquanto ciência independente e particular. Encontram-


se, naturalmente, explanações sobre as Artes também em personalidades
representativas de tempos passados. Um historiador da Estética só poderia,
contudo, tratar destes como se trata adequadamente das aspirações filosóficas
da humanidade antes do verdadeiro começo da Filosofia com Tales, na Grécia.

3-4 Alguém poderia observar o fato de se dizer, nestas exposições, que o pensar
medieval ‘nada’ encontra na Natureza. Poderia objetar a esta afirmação os
grandes pensadores e místicos da Idade Média. No entanto, uma tal objeção se
basearia num equívoco total. Não se diz aqui, de forma alguma, que o pensar
medieval não tenha sido capaz de formar conceitos sobre a importância da
percepção, etc., mas sim que nessa época o gênio humano estava voltado ao
espírito em si e, por conseguinte, não sentia inclinação para ocupar-se com os
fatos particulares da Natureza.

8 Com a ‘visão básica equivocada’ de Schelling não se alude à elevação do


espírito “às alturas onde trona o divino”, mas sim à aplicação errônea que
Schelling faz dela na contemplação das Artes. E preciso destacar este ponto
para que não seja confundido com as críticas atualmente divulgadas contra
este filósofo e contra o idealismo filosófico em geral. E possível ver em
Schelling um pensador muito elevado, porém contestando-se alguns detalhes
de seus trabalhos.

10 A realidade sensória é transfigurada, na Arte, pelo fato de aparecer como se


fora espírito. Neste sentido o criar artístico não é uma imitação de alguma
coisa, pois é a continuação da evolução do mundo que se origina na alma
humana. A mera reprodução da Natureza, bem como a ilustração do espírito já
existente, nada produzem de novo. Só podemos considerar um artista
realmente forte aquele que não nos causa a impressão de repetição fiel da
realidade, e sim nos compele a acompanhá-lo quando está dando,
criativamente, continuação à evolução do Cosmo em suas obras.

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