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Projeto de pesquisa

PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA: PESQUISA E INTERVENÇÃO


Prof. Mauro Martins Amatuzzi
PUC-Campinas, CCV
Grupo de Pesquisa:
Processos psicológicos – abordagens qualitativas
Projeto para o biênio 2008-2009

Justificativa e introdução

Publicações recentes como as de Turato (2003), Gonzáles Rey (2005,


2002) e Morais (2007), por exemplo, mostram que o interesse pela pesquisa
qualitativa é bastante grande atualmente entre nós no Brasil. E esse interesse vai
além das meras técnicas de análise qualitativa de dados colhidos através de
instrumentos quantitativos ou entrevistas estruturadas. Trata-se na verdade de
uma outra concepção de pesquisa, e no fundo de uma outra epistemologia ou
visão de conhecimento. Eu mesmo já fiz algumas incursões teóricas nesse campo
(ver, por exemplo, Amatuzzi, 2001, 2001, 1996).

Publicações um pouco anteriores, escritas em português ou traduzidas,


prepararam esse terreno em nosso meio (Quivy & Van Campenhoudt, 1998; Bauer
& Gaskell, 2002; Bogdan & Biklen, 1994; Chizzotti, 1991; Lüdke & André, 1986;
Richardson, 1999; ver também, por exemplo, Martínez, 1994; Denzim & Linciln,
1998; Mucchielli, 1991).

A preocupação com os limites do conhecimento produzido pelas ciências


modernas teve um momento forte na virada do século 19 para o 20. Um dos
grandes nomes aqui é o de Husserl (por ex. 2005, 2004). A ele devemos o início
do movimento fenomenológico: uma tentativa de ultrapassar os impasses da
filosofia e de ver claro a respeito das pretensões da ciência. O que exatamente
estava ficando fora das grandes construções filosóficas, por um lado, e por outro,
do modo científico moderno de praticar o conhecimento? Era o mundo. O mundo
vivido, o “lebenswelt”, e a correspondente subjetividade, “erlebniss”. A postura
objetivante da ciência finge que podemos olhar o mundo como se dele não
fizéssemos parte. A postura subjetivista da filosofia tenta, ou ao menos tentava, na
época do idealismo anterior à fenomenologia, retirar o mundo de nosso
pensamento, e, diante da impossibilidade de tal empreitada, contentou-se com
significados construídos subjetivamente. A fenomenologia representou uma
esperança para muitos jovens que se reuniram em torno de Husserl. Ela propõe
olhar a subjetividade na sua relação com o mundo, e o mundo nos seus
significados para o homem. Não é possível dissociar sujeito e objeto.

Os psicólogos e psiquiatras gostaram disso e começaram a praticar uma


atenção psicológica orientada filosoficamente (Binswanger, Jaspers, por exemplo).
Construíram assim uma psicologia de inspiração fenomenológica: abordagem
essencialmente qualitativa que se apoiava numa epistemologia diferente da
convencionalmente praticada no mundo científico (ver, por exemplo, Halling & Nill,
1995; Cloonan, 1995; mas também Giorgi, 2005).

Profundamente interessados em permanecer no interior do mundo


científico, alguns psicólogos quiseram trazer a abordagem fenomenológica para a
pesquisa acadêmica na área dessa ciência. Dois nomes aqui poderiam ser citados
como exemplos de outros: Amedeo Giorgi (1978) e Joel Martins (1989). O que
eles tentaram fazer ia além do que Binswanger ou Jaspers haviam proposto.
Poderíamos dizer que eles pretenderam praticar a fenomenologia a partir do
interior da Psicologia e não somente a partir do interior da Filosofia. A confusão
estava armada e manifestação disso são os atuais estudos de Husserl retomados
em vista dos interesses da pesquisa em psicologia (Ales Bello, 2004), mas
também artigos publicados em revistas científicas ou filosóficas de psicologia (ou
de outras áreas como a enfermagem, por exemplo) abordando direta ou
indiretamente a questão do estatuto epistemológico de uma psicologia
fenomenológica (para não citar senão alguns exemplos, ver Manganaro, 2005,
2004; Carvalho & Martins, 2002; Groenewald, 2004; Laverty, 2003; Davidson,
2004; Ashworth, 2003).

Afinal, qual a validade e o alcance de Psicologia de inspiração


fenomenológica? Seria a pesquisa psicológica de inspiração fenomenológica
(praticada a partir do interior da Psicologia) ainda uma Fenomenologia? Seria ela
uma pesquisa científica? E o que dizer da prática de atenção psicológica inspirada
na fenomenologia? Essas são as perguntas que proponho como perguntas-guia
para esse projeto.

A inspiração fenomenológica está presente na origem de projetos


acadêmicos na área da Psicologia em várias Universidades e particularmente aqui
na PUC-Campinas. O grupo de pesquisa liderado por mim, radicado no Centro de
Ciências da Vida, na Pós-Graduação em Psicologia, tem por título “Processos
psicológicos – abordagens qualitativas”, e todos os seus projetos são atualmente
qualitativos e de inspiração fenomenológica. Este grupo de pesquisa enquadra-se
na linha “Prevenção e intervenção psicológica” do programa. O projeto guarda-
chuva que está em vias de conclusão chama-se “explorando a experiência –
significados do conceito e diversidade das vivências”. O projeto que está sendo
aqui apresentado pretende dar continuidade a esse que está por terminar. Ambos
são projetos teóricos, tratam de articular conceitos e as outras pesquisas do
grupo. Como projetos teóricos dispensam parecer do Comitê de Ética em
Pesquisa.

Uma última consideração fecha esta introdução. Pesquisa fenomenológica


em psicologia e prevenção-intervenção psicológica de inspiração fenomenológica
são dois enormes campos a serem explorados. Como justificar a unidade do
projeto? É que em fenomenologia, ou psicologia fenomenológica, não é possível
separar radicalmente o campo da reflexão e produção de conhecimento do campo
da prática de prevenção e intervenção. A fenomenologia é uma exploração do
mundo vivido (Lebenswelt), das vivências (Erlebniss), e isso vale tanto para a
pesquisa como para a intervenção. Este projeto pretende examinar essa dupla
questão em suas raízes. Isso significa que pretende fundamentar teoricamente a
pesquisa e a intervenção fenomenológicas sem, porém, se deter na descrição
detalhada dos possíveis modelos operacionais históricos que encarnam essa
proposta, a não ser como exemplo e sem a pretensão de ser exaustivo na sua
listagem.

Objetivo geral

Essa pesquisa pretende elaborar teoricamente a questão da validade e do


alcance da Psicologia de inspiração fenomenológica, seja enquanto pesquisa, seja
enquanto prática de prevenção e intervenção (ou atenção psicológica).

Objetivos específicos

Esse objetivo geral pode se desdobrar nos seguintes objetivos teóricos


específicos:

1) Clarificar os fundamentos da abordagem fenomenológica em Filosofia e em


Psicologia, diferenciando a Psicologia Fenomenológica trabalhada no
interior da Filosofia, da psicologia fenomenológica trabalhada no interior da
Psicologia.
2) Diferenciar os estudos e as práticas de atenção psicológica de inspiração
fenomenológica e hermenêutica, das pesquisas e práticas empírico-
analíticas, por um lado, e das práticas e pesquisas sócio-históricas
(dialéticas), por outro lado.
3) Diferenciar a tendência fenomenológica mais pura (de tipo husserliano) nos
estudos e práticas psicológicas, da tendência hermenêutica (de tipo
heiddegeriano ou ricoeuriano).
4) Diferenciar duas possíveis tendências no interior dos estudos e da prática
psicológica de inspiração fenomenológica e hermenêutica: a tendência
empírica e a tendência dialética.
5) Exemplificar modelos de pesquisa fenomenológica em psicologia e modelos
de prática de atenção psicológica.

Método

Quando escrevi acima “diferenciar”, está suposto pelo contexto que se trata
de uma diferenciação teórica e, portanto, fundamentada. Trata-se evidentemente
de examinar a possível fundamentação teórica e epistemológica dessas
diferenciações sem estar de antemão presumida sua validade.

Para tanto o método será histórico, isto é, examinando o surgimento desses


enfoques como forma concreta de elaboração conceitual teórica que atenda as
necessidades do tempo, equivalendo isso a uma história das idéias, por um lado;
e, por outro lado, será propriamente teórico, isto é, buscando elucidar as possíveis
fundamentações dessas posições, buscando dar conta, em termos de
consistência e validade de pensamento, dessas posições. A junção do histórico e
do teórico exemplifica também a própria abordagem fenomenológica: o que se
busca é tornar o entendimento dessas questões algo presente à consciência como
uma possibilidade concreta.

Alguns pontos podem ser discernidos nesse caminhar:


1) um contato com o que tem sido escrito a respeito do assunto nos últimos
anos;
2) a reconstrução dos caminhos históricos, não necessariamente nos
detalhes, mas nos seus eixos de compreensão;
3) a elaboração teórica propriamente dita;
4) a descrição dos possíveis modelos de pesquisa e intervenção (ou atenção),
com uma ênfase especial para a abordagem centrada na pessoa (em sua
inspiração original e em seus dilemas atuais);
5) um olhar crítico sobre os projetos do grupo de pesquisa.

Previsão Orçamentária
Por se tratar de um projeto teórico ele será desenvolvido com material
disponível 1) nas bibliotecas da PUC-Campinas, e 2) na internet. Quanto a esse
aspecto a previsão é de custo zero.
Posso acrescentar pedidos de compra de livros ou assinatura de revistas
não disponíveis atualmente nessas bibliotecas. Destaco aqui: 1) a excelente
revista internacional Journal of Phenomenological Psychology, citada na
bibliografia abaixo, e não existente na Biblioteca do CCV (assinalo que a biblioteca
da USP, Psicologia/SP, assina esta revista e é de relativamente fácil consulta); e
2) alguns livros de Husserl ou outro autor importante para esta pesquisa. Esses
pedidos deverão ser feitos à biblioteca do CCV no decorrer da projeto e
certamente serão atendidos na medida das possibilidades daquele órgão,
podendo se enquadrar na rotina das práticas de compras de material bibliográfico
sem maiores prejuízos para a pesquisa.

Cronograma
De 1°/jan/2008 a 31/dez/2009
Apresento aqui um cronograma para 2 anos e fica subentendido que
poderão ou deverão ocorrer publicações parciais relacionadas com o projeto a
cada ano.

2008/1ºsem.
Estudo de Husserl
Principalmente:
a VI Investigação Lógica: jan/fev/mar de 2008
a Crise das Ciências Européias: abr/mai/jun/jul de 2008.
2008/2ºsem.
Estudo dos desdobramentos da fenomenologia como movimento.
Principalmente: Merleau-Ponty, Heidegger, Scheller, Stein e Ricoeur:
jul/ago/set/out/nov/dez de 2008.
2009/1ºsem.
Estudo das propostas de aplicação da Fenomenologia à Psicologia.
Levantamento: jan/fev/mar de 2009
Articulação teórica: abr/mai/jun de 2009.
2009/2ºsem.
Elaboração teórica final: jul/ago/set/out de 2009;
com olhar crítico e integrador sobre os projetos do grupo: out/nov/dez de 2009.
Colocando tudo isso num quadro:

Colocando tudo isso num quadro, teremos:

CRONOGRAMA 2008-2009
Cronograma 2008 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez

Estudo de Hussserl:
- VI Invest. Lógica X X X
- Crise das Ciências
X X X X
Estudo dos desdobramentos do
movimento fenomenológico:
X X X
- Merleau-Ponty, Ricoeur
- Heidegger, Scheller, Stein X X X

Cronograma 2009 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez

Aplicações à Psicologia
- levantamento X X X
- articulação teórica X X X
- Elaboração teórica final X X X X
- Integração dos projetos de grupo X X X
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