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Alexandre Herculano
A Abóbada
1 Um quadrante de pedra, assentado em um canto do adro, apontava meio-dia. A igreja tinha sorvido
dentro do seu seio desmesurado os habitantes das próximas povoações, e de todo o ruido e algazarra que
poucas horas antes soava por aquelles contornos, apenas traspassavam pelas frestas e portas do templo
os sons do orgam, soltando a espaços suas melodias, que sussurravam e morriam ao longe, suaves como
5 um pensamento do ceu. Nao estava, porem, inteiramente ermo o terreiro da frontaria do edifício.
Assentado sobre um troco de fuste, com os pés ao sol, e o resto do corpo resguardado de seus raios
ardentes pela sombra de um telheiro, a qual se começava a prolongar para o lado do oriente, via-se um
velho, venerável de aspecto, que parecia embebido em profundas meditações: pendia-lhe sobre o peito
uma comprida barba branca: tinha na cabeça uma touca foteada, um gibão escuro vestido, e sobre elle
10 uma capa curta ao modo antigo. A luz dos olhos tinha-lha de todo apagado a velhice; mas as suas feições
revelavam que dentro daquelles membros trémulos e enrugados morava um animo rico de alto imaginar:
as faces do velho eram fundas, as maçans do rosto elevadas, a fronte espaçosa e curva, e o perfil do rosto
quasi perpendicular. Tinha a testa enrugada como quem vivera vida de continuo pensar, e correndo com a
mão os lavores de pedra, sobre que estava assentado, ora carregando o sobrolho, ora deslisando as rugas
15 da fronte, reprehendia ou approvava com eloquência muda os primores ou as imperfeições do artífice,
que copiara a ponta de cinzel aquella pagina do immenso livro de pedra, a que os espíritos vulgares
chamam simplesmente o mosteiro da Batalha.
Emquanto o velho scismava sosinho, e palpava o canto subtilmente lavrado, sobre que repousava os
membros entorpecidos, a portaria do mosteiro, que perto d'alli ficava, outras figuras e outra scena se
20 viam. Dous frades estavam em pe no limiar da porta, e altercavam em voz alta: de vez em quando, pondo-
se nos bicos dos pés, e estendendo os pescoços, parecia quererem descubrir no horisonte, que as
cumiadas dos montes fechavam, algum objecto: depois de assim olharem um pedaço, encolhiam os
pescoços, e voltando-se um para o outro, travavam de novo renhida disputa, que levava seus visos de não
acabar.
25 "Oh homem!—dizia um dos dous frades, a quem a tez macilenta e as barbas e cabellos grisalhos
davam certo ar de auctoridade sobre o outro, que mostrava nas faces coradas e cheias, e na cor negra da
barba povoada e revolta, mais vigor de mocidade.—Já disse a vossa reverencia, que elrei me escreveu de
seu próprio punho que viria assistir ao auto da adoração dos reis, e de caminho veria a casa do capitulo, a
que hontem mestre Ouguet mandou tirar os simples que sustentavam a abobada."
30 "E nego eu isso?—replicou o outro frade.—O que digo e que me parece impossível, que elrei venha
de feito, conforme a vossa paternidade prometteu em sua carta. Há muito que la vae o meio-dia; daqui a
pouco tocara a vésperas1 e as duas por três e noite. não vedes, padre mestre, a que horas vira a acabar o
auto? E este povo, este devoto povo que ahi esta, que ahi vem, ha-de ir com o escuro por esses
descampados e serras com mulheres, com raparigas..."
(http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ws000001.pdf, adap.)
1
RELIGIÃO plural na liturgia católica, hora canónica do ofício divino que se segue à nona, tradicionalmente pelas dezoito horas (véspera in Dicionário infopédia
da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2021. [consult. 2021-02-16 15:03:44]. Disponível na
Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/véspera)
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“Mas um velho d’aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C’um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
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“Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C’uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!”
CENÁRIOS DE RESPOSTA :
1. “O arquiteto português Afonso Domingues desenha uma complexa abóbada para o Mosteiro da Batalha,
mas fica cego, em 1401, antes de a edificar… O rei D. João I contrata, então, um arquiteto irlandês, mestre
Ouguet, para a terminar, que não acredita no projeto inicial. Uma delas desaba... a outra ainda hoje lá está!
Mas a de quem?
A história da construção desta abóbada podia ser um simples e aborrecido relato, mas é digna de um
romance elaborado. Assim é este e muitos outros episódios da História de Portugal, que Alexandre
Herculano tão bem soube glorificar!”
2. O excerto situa-se no capítulo I (“O cego”) no início do conto, no momento em que Frei Lourenço Lampreia e
Frei Joane, Procurador do Mosteiro, aguardavam pela chegada do Rei, D. João I, que prometera assistir ao
Auto dos Reis, no Mosteiro da Batalha, no dia 6 de janeiro de 1401.
3. Enquanto o interior da igreja está cheio de gente (“A igreja tinha sorvido dentro do seu seio desmesurado os
habitantes das próximas povoações”), o exterior está praticamente vazio, “ermo”, à exceção dos dois frades
e do cego.
4. No primeiro parágrafo, encontramos palavras e expressões que remetem para várias sensações. Assim, são
exemplificativas da sensação visual as expressões que caracterizam o cego, como “via-se um velho”, “A luz
dos olhos tinha-lha de todo apagado a velhice”; “feições”; “as faces do velho”, “a fronte espaçosa e curva”,
“a testa enrugada”, entre outras palavras e expressões com uma função descritiva. Além da visão, também
há várias alusões ao sentido da audição, sobretudo no que diz respeito aos sons abafados que emanam da
igreja, devido ao enorme número de pessoas que aí aguarda o início do Auto, por contraste com o barulho
que se ouvira antes (“ruido e algazarra”, “soava”, “sons do orgam, soltando a espacos suas melodias, que
sussurravam e morriam ao longe”). Por último, o sentido do tato aparece em expressões como “raios
ardentes” e “correndo com a mão os lavores de pedra”, ambas referindo-se ao cego.
5. O velho cego está sentado à porta do mosteiro resguardado do sol. Tinha um aspeto “venerável”, que
impunha respeito, e estava pensativo e trémulo. O seu rosto estava marcado pelas rugas profundas e
próprias da sua idade avançada . O velho tinha uma barba branca comprida, tinha na cabeça uma “touca
foteada”, e vestia um “gibão escuro vestido, e sobre elle uma capa curta ao modo antigo”. Além disso, “as
faces do velho eram fundas, as maçans do rosto elevadas, a fronte espaçosa e curva, e o perfil do rosto quasi
perpendicular”.
5.1. O velho cego era Afonso Domingues, o arquiteto do Mosteiro da Batalha.
6. Os dois frades falavam sobre a vinda do rei, D. João I, ao Mosteiro para assistir ao “auto da adoração dos
reis”.
7. O frade mais novo duvida que o rei compareça, como vemos pelas expressões: “O que digo e que me parece
impossível”; “Há muito que la vae o meio-dia; daqui a pouco tocara a vésperas 2 e as duas por três e noite”.
8. Podemos encontrar algumas semelhanças entre o velho de “A Abóbada” e o Velho do Restelo, de Os
Lusíadas. Assim, além da idade avançada, ambos possuem o aspeto “venerável” que esta permite, assim
como um “saber só de experiências feito”. Além disso, ambos se mostram descontentes com a situação
presente, pelo que o cego franze o sobrolho enquanto analisa, com o toque, a pedra do Mosteiro; já o Velho
do Restelo mostra o seu descontentamento em relação à partida das naus para a Índia com meneios de
cabeça (“meneando/ Três vezes a cabeça, descontente”).
9. a. vocativo; b. sujeito; c. modificador apositivo do nome.
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RELIGIÃO plural na liturgia católica, hora canónica do ofício divino que se segue à nona, tradicionalmente pelas dezoito horas (véspera in Dicionário infopédia
da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2021. [consult. 2021-02-16 15:03:44]. Disponível na
Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/véspera)