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Diversidade

Étnico Cultural
Material Teórico
Condição Humana e Diversidade das Culturas
em Tempos de Globalização

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Ricardo Medina Zagni

Revisão Técnica
Profa. Ms. Vivian Fiori

Revisão Textual:
Prof. Ms. Luciano Vieira Francisco
Condição Humana e Diversidade das Culturas
em Tempos De Globalização

• Individualismo e globalização;
• Globalização tecnológica;
• Globalização e política;
• Globalização e diversidade cultural;
• Dimensão econômica da globalização;
• Globalização e sociedade;
• A mais dura crítica à globalização;
• Intolerância em sociedades globais.

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Evidenciar as formas de globalização no mundo atual.
· Destacar as influências na cultura a partir da globalização.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como o seu “momento do estudo”.

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo.

No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e
sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também
encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados.

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão,
pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato
com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem.
UNIDADE Condição Humana e Diversidade das Culturas

Condição Humana e Diversidade das


Culturas em Tempos de Globalização
Nesta Unidade trataremos das influências do processo de globalização na cul-
tura, nas sociedades, na economia que, de maneira integrada, interferem nas
condições humanas.

Individualismo e Globalização
O historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-
2012) afirmava que, com a globalização, surgiu
uma espécie de dissolidarização de classes,
constituída pelo que classificou como “valores
de um individualismo associal absoluto”. Com
isso, Hobsbawm (1995) problematizou um novo
ciclo sistêmico do capitalismo, caracterizado
pelo fenômeno da circulação global de capital,
de modo a lançar luzes em seus sintomas sociais,
na forma de indivíduos egocentrados.

As novas necessidades de manutenção do frágil


e já consolidado modo de produção moldaram
inéditas relações sociais, em uma espécie de
isolamento em que os indivíduos se alienam da
Figura 1 – Eric Hobsbawm condição de classe, ou seja, de pertencerem a
Fonte: BBC.co.uk grupos de interesses comuns.

O movimento trabalhista teve força quando havia condições de


desenvolvimento, quando sindicatos e partidos podiam levar suas
reivindicações a Estados capazes de fazer concessões. Tudo isso terminou
por conta da transformação nos modelos de produção. Como foram
reduzidos em número, também passou a ser menor a sua ação política.
Há uma diferença também no tipo da população trabalhadora, por causa,
especialmente, dos progressos da educação em massa. Uma das coisas
que eram características do movimento operário no passado era a boa
qualidade de seus líderes, que eram cultivados e mantidos pelos sindicatos.
Hoje, os mais inteligentes vão para a universidade sem compromisso de
voltar, e viram outras coisas. Podem continuar a ser de esquerda, mas já
não são mais operários. Isso faz diferença (HOBSBAWM, 1995).

Como, então, poderíamos definir globalização sem nos prendermos somente


aos aspectos econômicos superestruturais e à frágil ideia de “aldeia global”,
buscando como paradigma o exercício de Hobsbawm em aproximar a distante

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retórica sobre globalização do cotidiano de uma sociedade que privilegia o
consumo de massa de tudo o que é amoedável pelo capital, incluindo desejos,
pessoas, ideias e sentimentos?

Figura 2 - Fredric Jameson


Fonte: Wikimedia Commons

Definiremos globalização a partir dos estudos do crítico literário e político


marxista Fredric Jameson (1934-), tratando dos cinco níveis que a caracterizariam
para demonstrar a coesão e articular políticas de resistência à globalização e seus
efeitos negativos. São os níveis tecnológico, político, cultural, econômico e social.

Globalização Tecnológica
Sintetizando a metodologia de Fredric Jameson no estudo Globalização e
estratégia política, o autor elege, como dissemos, cinco níveis a partir dos quais
discorre sobre os resultados de sua análise.

O primeiro nível é o tecnológico e, logo de início, o termo já evidencia um dos


principais antagonismos do conceito de globalização, que supõe a totalidade de algo.

A Revolução da Informática e as novas tecnologias de informação, apesar de


terem se constituído de forma irreversível na produção e organização industriais e
comercialização de produtos, não atingem a totalidade da população mundial, em
sua grande maioria excluída não apenas do dialeto digital, mas do próprio mercado
de consumo para esses produtos.

A exclusão digital produzida no bojo de um sistema que se pretende totalizante,


assiste ainda à formação de um exército de analfabetos digitais, cada vez mais
excluídos das relações de produção mecanizadas e de acesso restrito à mão de obra
extremamente especializada.

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UNIDADE Condição Humana e Diversidade das Culturas

Globalização e Política
Da tecnologia para a política, Jameson dedica parte de seu estudo ao papel
desempenhado pelo Estado-nação que, segundo alguns teóricos, teria dado
lugar às corporações transnacionais – conhecidas na década de 1970 apenas
como multinacionais.
O neoliberalismo – ou a doutrina de livre mercado – defendido para que referidas
corporações pudessem operar circulando capitais em âmbito global, ilusoriamente
faz pensar em um distanciamento do Estado nas medidas econômicas para a
autorregulação do mercado.

Por outro lado, o Estado passou a ser um agente fundamental nesse sistema,
a partir da instituição de mecanismos legais e medidas intervencionistas que
contraditoriamente garantem a “autogestão” das economias, requerendo, para
tanto, uma efetiva intervenção governamental e um Estado centralizador.

Outro antagonismo é o papel nacionalista visivelmente exercido pelos povos


e governos europeus e o estadunidense. Ao passo do frágil discurso de “aldeia
global”, temos a ascensão de partidos políticos de extrema direita, ligados muitas
vezes a grupos religiosos intolerantes, políticas racistas e xenófobas, na maior parte
da Europa e também no Novo Mundo.

Figura 3 – Durante discurso pronunciado no campo histórico do Rütli,


durante feriado nacional, Samuel Schmid, atual presidente da Confederação Helvética
e ministro da Defesa, é vaiado e insultado por setecentos neonazistas.
Fonte: Acervo do Conteudista

Há um evidente descompasso entre o discurso de aceitação da diversidade


cultural em um mundo “cada vez menor” e o comportamento de povos europeus,
notadamente cultos, tais como franceses, ingleses e alemães, repudiando
publicamente africanos, hindus e latino-americanos; ou estadunidenses, que
levantam barreiras físicas e legais para impedir a imigração de mexicanos, os quais
comumente morrem nas fronteiras.

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Na Alemanha, os neonazistas do Nationaldemokratische Partei Deutschlands
(NPD), liderados por Peter Marx – jurista e secretário geral do grupo parlamentar
do NPD –, conquistaram doze cadeiras no Parlamento Regional do Estado da
Saxônia, o Landtag, em Dresden, denunciando a assustadora aceitação de
9,2% dos eleitores, ou seja, 19.087 almas, aos preceitos da causa nazista que se
pensava adormecidos.

No discurso político do partido inclui-se a atribuição do desemprego que


atinge boa parte dos jovens alemães aos imigrantes, ao contrário do que qualquer
estatística racional possa concluir em relação à proporção entre a força de trabalho
estrangeira e a alemã naquele Estado.

Figura 4 – Jean Marie Le Pen


Fonte: BBC.co.uk

Em 2002, quando foram divulgados os resultados do primeiro turno da eleição


presidencial francesa, o mundo “prendeu a respiração” com o sucesso de Jean-
Marie Le Pen, da Frente Nacional francesa, grupo político de extrema direita com
intrínsecas relações com a NPD. O mesmo ocorreu na Áustria, com a eleição de
um primeiro-ministro neonazista.

Na Inglaterra, basta que jogadores latino-americanos ou africanos toquem na


bola, em partidas de futebol, para que hooligans imitem grunhidos aludidos a
macacos – o mesmo fenômeno ocorre na Espanha.

Globalização e Diversidade Cultural


O discurso pró-globalização nos Estados Unidos constitui-se cuidadosamente
sobre uma base “politicamente correta”, fundamentalmente em relação às
diferenças étnicas, pregando uma aceitação que, de início, sabe-se frágil em um
país que tem profundas tradições racistas.

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UNIDADE Condição Humana e Diversidade das Culturas

Outro ponto central no discurso pró-globalização é o papel das unidades


caracterizadas como Estados-nações e seu ficcional desaparecimento.

Para Eric Hobsbawm (1995) as economias nacionais seriam “unidades mais


velhas”, definidas por políticas territoriais de Estado, que estariam reduzidas às
complicações decorrentes de atividades transnacionais. Nos argumentos de Fredric
Jameson (2001) percebemos que essas unidades políticas são desestruturadas
pela ideia e políticas neoliberais em virtude das necessidades do grande capital
para a promoção de um estágio de comercialização mundial, com a formação de
gigantescos blocos econômicos.

Na prática, o que vemos é o enfraquecimento desses governos, alimentando


a hegemonia de Estados centrais nessa nova ordem econômica, estabelecida por
meio de comércios agressivos. Ao invés de desaparecerem os limites nacionais, os
Estados-nações são paulatinamente subordinados a Estados centrais.

Como explicar o desaparecimento da ideia de nação com o ressurgimento do


nacionalismo politicamente à direita dos movimentos sociais? Como coexistir a
concepção de aceitação das diversidades étnicas e culturais com as graves condutas
de intolerância religiosa, perseguição a homossexuais, negros e latino-americanos
em diversas realidades nacionais.

Enquanto o discurso neoliberal, na periferia do sistema capitalista, defende a


abertura de suas fronteiras fiscais e de seus mercados para a penetração de seus
produtos e tecnologias, no centro do sistema vigora o nacionalismo econômico.

A hegemonia política de Estados centrais no sistema capitalista caminha ao passo


do chamado imperialismo cultural, ascendente principalmente após o término da
Segunda Guerra Mundial, com os tratados de concessão para emissoras televisivas
norte-americanas e de garantia de mercado para produções cinematográficas
hollywoodianas, em acordos firmados com diversos países.
As indústrias culturais locais de entretenimento dificilmente irão suplantar
Hollywood com uma forma global bem-sucedida no mundo inteiro, em
especial devido ao fato de que o próprio sistema americano sempre
incorpora elementos exóticos do estrangeiro, um pouco de cultura
samurai, outro de música sul-africana, o cinema de John Woo, comida
tailandesa, e assim por diante (JAMESON, 2001).

A globalização cultural, lê-se no discurso de Jameson (2001), atua como tentativa


de uniformizar o mundo a um modelo de cultura de massa, no campo televisivo,
musical, comportamental, gastronômico, da indumentária e em todos os outros.

Não se trataria de uma tentativa ingênua de tomada de mercados, evidenciando


que a cultura, na Era do capital, constitui produto, é amoedável e, portanto, caminha
ao passo da economia; mas a destruição de culturas locais onde se estabelece.
Implica no desaparecimento de restaurantes típicos onde se fixam os fast foods; no
desestímulo à produção cinematográfica de países antes tradicionais nesse ramo.

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Dimensão Econômica da Globalização
Para tratarmos da dimensão econômica da globalização, segundo Fredric
Jameson (2001), temos que retomar o princípio de que não houve o desapa-
recimento dos Estados-nações diante das corporações transnacionais, afinal: o
autor nos mostra que há uma notória cumplicidade entre ambos e os discursos
em torno de sua inexistência mascaram seus interesses individuais, com o uso
da fantasia criada pela ideia da globalização que, grosso modo, pode ser de-
finida como um novo ciclo sistêmico no modo de produção vigente, no qual
há necessidades de circulação global de capital, cuja acumulação primitiva tem
novo lugar nas megacorporações.

O Estado tem o papel de garantir a quebra de barreiras para seu livre fluxo. Não
se trata de um movimento natural: há um grande interesse das corporações em se
estabelecer em países pobres, alimentando-se de miseráveis e desesperados como
mão de obra barata e semiescrava, de isenções fiscais e concessões de governos
corruptos e de multidões de desempregados nos locais de onde migraram. O mesmo
ciclo se desencadearia novamente quando as mesmas corporações abandonassem
esses novos locais, já não mais tão pobres com a criação de um mercado consumidor
a partir da instituição de mão de obra assalariada, seguindo em busca de novos
miseráveis que aceitassem uma espécie de “escravidão voluntária”.

Para Fredric Jameson (2001), da mesma forma que, em nível cultural, o


estabelecimento econômico em áreas de exploração e a transferência de operações
para locais mais baratos minariam as economias e destruiriam os mercados
nacionais, evidenciando um dos vários aspectos perigosos da globalização, como
a especulação destrutiva de moedas estrangeiras e a dependência econômica de
países subdesenvolvidos, submissos às políticas econômicas dos países do Primeiro
Mundo, em troca de empréstimos e investimentos. No mundo economicamente
globalizado, nesses termos, transferências instantâneas de capital poderiam
empobrecer, da noite para o dia, regiões inteiras.

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UNIDADE Condição Humana e Diversidade das Culturas

Globalização e Sociedade

Figura 5
Fonte: iStock/Getty Images

O último nível caracterizado por Fredric Jameson em sua análise sobre a


globalização é o social e, neste aspecto, a destruição do que se convencionou como
tecido cotidiano faz-se evidente com o distanciamento do indivíduo do conceito
de grupo e classe. Os padrões de unidades nucleares de família e clã cederam
à sociedade moderna impessoal de consumo que, em seus próprios dizeres,
“individualiza e atomiza”, negando o zõom politikòs de Aristóteles.

Para Fredric Jameson trata-se do elemento-chave que desencadearia toda a


configuração de nossa sociedade, explicando-a melhor do que os conceitos de base
moralista de “individualismo corrosivo” ou “materialismo consumista”.

A Mais Dura Crítica à Globalização


John Peter Berger (1926-), crítico de arte, romancista, pintor e escritor inglês,
prefaciando a obra Fahrenheit 11 de setembro, do cineasta estadunidense Michael
Francis Moore (1954-), caracterizou o papel dos Estados Unidos sob o governo
George W. Bush (1946-), em relação à globalização e às megacorporações, como
uma “quadrilha” que teria tomado de assalto – pela fraude eleitoral denunciada
no filme – a Casa Branca e o Pentágono “[...] para que o poder dos Estados
Unidos dali em diante estivesse a serviço, prioritariamente, dos interesses globais
das grandes empresas” (MOORE, 2004).

A afirmação parece dura pelas adjetivações que traz; porém, sintetiza os inte-
resses que levaram à formação de um grupo político a serviço das megacorpora-
ções, que teria conduzido o poder da nação economicamente mais desenvolvida

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e que se pretenderia a “polícia do mundo”, nos dizeres de Jameson, dando o
tom de uma globalização extremadamente violenta, na defesa de um modelo de
mundo, o que possibilitaria dizer de uma espécie de “globalitarismo”.

Sua percepção é a de que a globalização se caracterizaria como um embuste que


mascararia uma nova fase do capital, no interesse das megacorporações aliadas aos
Estados-nações mais ricos e industrializados do sistema capitalista, subordinados
aos Estados Unidos que, de forma predatória, alimentar-se-ia das economias dos
países pobres, da mão de obra semiescrava, aculturando povos inteiros no escopo
de aliciar o consentimento unânime a todo e qualquer intervencionismo para o
estabelecimento e manutenção de um modelo de hegemonia político-econômica,
que prescindiria da dominação cultural.

Intolerância em Sociedades Globais


Como vimos até aqui, o que nos constitui essencialmente são as diferenças. O
imperativo, para a construção de uma sociedade tolerante é, portanto, a aceitação
do outro, do diverso.

É impensável, nesses termos, que sociedades plurais, como a brasileira, convivam


com graves problemas de intolerância exatamente ao diverso. Nos grandes centros
urbanos, em cidades consideradas como globais, grupos religiosos profanam
imagens e símbolos rituais de outras religiões, o racismo velado ou desvelado
circulando como “enlatados culturais”, condutas de violência contra homossexuais
– dos espancamentos ao assassínio –, o trato dos estrangeiros como inferiores e
uma série de outros exemplos revelam que as sociedades que se dizem planetárias
convivem mal com a diversidade.

Figura 6 – Erich Fromm (1900-1980) foi um Psicólogo Alemão


Fonte: erichfromm.net

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UNIDADE Condição Humana e Diversidade das Culturas

Podemos afirmar, sob vários aspectos, que ao invés de valores de tolerância


à diversidade, estamos na vigência de uma cultura de ódio expresso, vazado nos
mais variados âmbitos da vida social, o que nos impõe uma imensa e urgente
tarefa a fazer: construir uma contracultura da tolerância para reafirmar o homem,
os próprios valores humanísticos, no seio de uma sociedade planetária que
desumaniza, valorando o “ser” pelo “ter”, como nos disse o psicanalista e escritor
alemão Erich Fromm.

Nos casos de guerras ideológicas, religiosas e étnicas, a intolerância chega a


ultrapassar os limites da irracionalidade com relação a indivíduos ou grupos específicos.

Apesar de as guerras serem extremamente racionalizadas, de os morticínios


na modernidade serem perpetrados com o recurso fundamental da técnica e de
a intolerância ter se desenvolvido, como nos disse o escritor, filósofo, semiólogo,
linguista e bibliófilo italiano Humberto Eco (1932-), de tipo selvagem para
categórico, não podemos deixar de verificar que os argumentos sobre os quais
tentam se ancorar condutas de intolerância em alguma base de cientificidade,
fazem-no construindo ou se reapropriando de pseudociências, criadas em essência
para legitimar seculares preconceitos ou ideias de superioridade civilizacional.

Infelizmente, os exemplos de intolerância concreta em sociedades que se


apresentam como globais são vários. A modernidade pode ser caracterizada,
primordialmente, por essas ocorrências.

Figura 7
Fonte: Wikimedia Commons

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Os nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial, ao perpetrarem o abominável:
o Holocausto; os conflitos étnico-nacionalistas na África; as sistemáticas tentativas
de “limpeza étnica” nos Bálcãs; e o “barril de pólvora” que se tornou o Oriente
Médio, entre tantos outros exemplos.

Temos graves questões humanitárias em jogo, que não devem ser preteridas em
relação às ideologias, convicções religiosas ou pertenças étnicas. O homem universal e
seus direitos inalienáveis devem ser o cerne das reflexões sobre a política, não apenas
um dos elementos componentes de um sistema mecânico-funcionalista.

Nesse contexto conturbado por ocorrências de ódio expresso em uma sociedade


que propagandeia valores universais e totalizantes, seria possível estabelecer uma
cultura de paz em favor da tolerância? Sociedades fragmentadas por diferentes
grupos sociais, como é o caso, por exemplo, dos países que constituem a América
Latina, experimentariam qual tipo de globalização?

O modelo de desenvolvimento, ou de progresso que adotou a civilização


ocidental, entende tal progresso como puramente técnico, como o meio capaz de
promover o progresso humano.

Em verdade, a própria ideia de progresso deve ser repensada para incorporar


uma gama muito mais variada de relações, para além dos processos produtivos.
É preciso, então, pensar o progresso em termos totalizantes e meios para sua
consecução, que abarque o homem e suas aspirações, não meras modernizações
abstratas: é preciso repensar o homem para repensar a própria ideia de civilização,
tendo como horizonte o mundo que queremos.

Figura 8
Fonte: freepalestinemovement.org

Atualmente, os exemplos mais latentes de intolerância no mundo globalizado


são as constantes epidemias de fome em países periféricos do sistema capitalista; o
reinventado imperialismo e o velho discurso civilizador dos países ricos; a ascensão
de uma direita ultrarreacionária como força política na Europa; o conflito israelense-

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palestino; a retórica de negação iraniana em relação ao Holocausto judeu durante a


Segunda Guerra Mundial; a ascensão do terrorismo como ameaça global; os novos/
velhos terrorismos de Estado; os conflitos étnico-nacionalistas na África; golpes
militares; a hiperexploração de trabalhadores pobres em vários lugares do mundo;
o trabalho infantil e a pedofilia; a pena de morte nos Estados Unidos e em tantos
outros países; o estupro legalizado no matrimônio afegão; o fundamentalismo em
qualquer religião; a ideia de que matar pode ter um propósito divino, entre tantos
outros exemplos possíveis.

Figura 9
Fonte: memoriasdaditadura.org.br

Obviamente, pensar a tolerância em sociedades duais, em formações sociais


eivadas de contradições e com gravíssimos problemas de subdesenvolvimento e
dependência, é uma tarefa muito mais difícil, mas que faz muito mais sentido.
Isso porque temos, na América Latina, uma das mais violentas histórias de
conflitos civilizacionais, desde a colonização; a hecatombe que vitimou civilizações
antiquíssimas; a escravidão; as guerras de independência – excluindo-se daí a
experiência lusófona –; o ciclo de civilização e barbárie; o caudilhismo; o populismo;
as ditaduras; as revoluções sociais; a organização dos setores subalternos, oprimidos,
como forças políticas etc.

A América Latina é complexa, apaixonante e pode ter ainda muito que ensinar
aos povos da Terra em termos de multiculturalismo, hibridismo, aceitação das
diferenças e consecutivas superações operadas pelos “de baixo” que tantas vezes
“assaltaram o céu”, termo muito adequado, embora originalmente utilizado em
outro contexto, do filósofo alemão Karl Marx (1818-1883), referindo-se ao efêmero
– mas significativo – sucesso da Comuna de Paris, em 1871.

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Seria preciso, portanto, para os novos tempos de circulação mundializada do
capital, ou como queira, de globalização, repensar o homem na adversidade e
frente os desafios a serem superados pelas novas/velhas sociedades.

Entendendo a intolerância como um dos maiores desafios a serem superados


em um contexto de multiculturalismo, devemos observar sua ocorrência também no
plano político, como o recurso a meios excessivamente coercitivos para a garantia,
pela força ou ameaça do uso da força, de apenas uma interpretação de mundo, o
que leva à ideia de civilidade ou cidadania como a adoção de comportamentos de
obediência plena e irreflexiva.

Seria preciso repensar o indivíduo de forma plena, exatamente como aquele que
deve tomar as rédeas do destino em suas mãos, o agente de sua própria história –
e não aquele que anula a si, as suas particularidades, aquilo que o constitui como
único, em nome de uma ideologia que uniformize corações e mentes e que o torne
estupidamente obediente, como gado.

Figura 10
Fonte: memoriasdaditadura.org.br

Essa obediência não se manifesta apenas em relação aos Estados; mas à própria
sociedade de consumo de massa na difusão de seus valores. Podemos utilizar,
para a análise desse aspecto, o conceito de globalitarismo, cunhado pelo geógrafo
brasileiro Milton Santos (1926-2001), quem entendia o consumo de massa como
o “fundamentalismo” dos novos tempos. Não seriam as ideologias políticas os
controladores desse “não admirável mundo novo”: o que nos uniformiza, padroniza
e nos torna subservientes seriam os valores partilhados por essa sociedade
materialista, difundidos pelas megacorporações, que nos submeteriam à ditadura
da aparência, que entenderiam indivíduos, valorizando-os e lhes atribuindo a
própria existência social em relação ao repertório de bens tridimensionais que
conseguissem concentrar no tempo efêmero de sua existência.

A ideologia vigente não seria política, totalitarista; mas do consumo acrítico,


sem sentido e nocivo ao próprio Planeta, igualmente fundamentalista.

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Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

 Livros
Mundialização e Cultura
ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996.

Por uma outra Globalização: Do Pensamento Único à Consciência Universal


SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
São Paulo: Record, 2005.

 Filmes
Encontro com Milton Santos
Encontro com Milton Santos, ou o mundo global visto do lado de cá (89 min., 2007). Documen-
tário feito a partir da entrevista de Milton Santos sobre a globalização.

Entre os Muros da Escola


Entre os muros da escola. François Marin (François Bégaudeau) trabalha como professor de
Língua Francesa em uma escola de Ensino Médio, localizada na periferia de Paris, onde há um
choque de culturas, já que há franceses e outros imigrantes provenientes de diferentes países.

Hotel Ruanda (2004)


Hotel Ruanda (2004). Em 1994, um conflito político em Ruanda levou à morte de quase um
milhão de pessoas em apenas cem dias. Sem apoio dos demais países, os ruandenses tiveram
de buscar saídas em seu próprio cotidiano para sobreviver. Uma das quais foi oferecida por Paul
Rusesabagina (Don Cheadle), que era gerente do hotel Milles Collines, localizado na capital do
País. Paul abrigou no hotel mais de 1.200 pessoas durante o conflito.

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Referências
ARRIGHI, G.; SILVER, B. J. Caos e governabilidade no moderno sistema
mundial. Rio de Janeiro: Contraponto; UFRJ, [20--?].

HOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.

JAMESON, F. A cultura do dinheiro. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

MOORE, M. O livro oficial do filme Fahrenheit 11 de setembro. São Paulo:


Francis, 2004.

MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo:


Cortez, 2000.

SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico


informacional. São Paulo: Hucitec, 1994.

SEGATO, R. L. Formações de diversidade: nação e opções religiosas no contexto


da globalização. In: JORNADA SOBRE ALTERNATIVAS RELIGIOSAS NA
AMÉRICA LATINA, 6., 6-8 nov. 1996, Porto Alegre, RS.

VOLTAIRE. Cartas filosóficas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

WERNECK, J. Da diáspora globalizada: notas sobre os afrodescendentes no


Brasil e o início do século XXI. 2003. Paper (Curso A Teoria Crítica da Cultura
Hoje: Alguns Caminhos Possíveis) - Escola de Comunicação da Universidade Fed-
eral do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.

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