Você está na página 1de 256

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.

indd 1 11/12/2020 13:57:35


Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 2 11/12/2020 13:57:35
TEMAS
DIREITO DE

EMPRESARIAL
2021

Porto Alegre
São Paulo
2021

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 3 11/12/2020 13:57:36


© 2021 by Silveiro Advogados

Revisão Ortográfica
Gabriela Koza

Equipe Técnica sob Coordenação da Gráfica e Editora Copiart

Projeto Gráfico, Diagramação e Capa


Rita Motta

Impressão
Gráfica e Editora Copiart

T278 Temas de direito empresarial 2021 / [organizado por Silveiro Advogados].


–1. ed. – Porto Alegre, RS: São Paulo, SP: Silveiro Advogados, 2021.
256 p.; 21 cm.

ISBN: 978-65-993274-0-7
Inclui referências

1. Direito empresarial. 2. Contratos. 3. Pandemia. 4. Tributos.


5. Direitos Sociais. 6. Mediação empresarial. I. Silveiro Advogados.

CDU: 347

Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 4 11/12/2020 13:57:36


SUMÁRIO

Contratos, M&A e pandemia: “Novas” discussões já conhecidas,


mas ainda não resolvidas.................................................................................. 7
Pedro Dominguez Chagas

Acredite, o Outro pode ter razão….............................................................. 38


André Silveiro

“ICMS destacado na nota fiscal” x “ICMS efetivamente pago”:


uma discussão envolvendo a interpretação da Coisa Julgada nas
demandas sobre a exclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e
da COFINS.......................................................................................................... 54
Cassiano Menke
Maria Angélica Feijó

A participação e a votação dos acionistas de Sociedades Anôni-


mas fechadas em assembleias semipresenciais ou digitais................ 86
Bruno Sartor da Cunha

Aspectos da negociação das Reps and Warranties em operações


de M&A............................................................................................................... 97
Nikolai Rebelo

Transferência de participações societárias aos herdeiros: vanta-


gens e desvantagens da transmissão em vida.........................................117
Fernando René Graeff

Resolução de disputas empresariais na atualidade. O caso da me-


diação empresarial e do financiamento de terceiros na arbitragem....141
Julie Kelbert Griebler

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 5 11/12/2020 13:57:36


Operação societária entre Fibria Celulose S.A. e Suzano Papel e
Celulose S.A.: A “De Facto Merger Doctrine” e suas aplicações no
Brasil................................................................................................................167
Rafael Brunati

O Programa de Governança da Privacidade e a LGPD.........................195


Rodrigo Azevedo
Lucca Domingues Roth

“Quando o patrimônio do sócio corre risco” Hipóteses de reper-


cussão sobre a pessoa do sócio das obrigações inadimplidas pela
sociedade empresária com responsabilidade limitada.........................211
Ricardo Fortes

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 6 11/12/2020 13:57:36


CONTRATOS, M&A E PANDEMIA:
“Novas” discussões já conhecidas,
mas ainda não resolvidas

Pedro Dominguez Chagas


Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do do Sul – UFRGS
(1996). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio
Vargas – FGV (1999). Prêmio IEE BANKBOSTON – 1º lugar – Instituto de Estu-
dos Empresariais – IEE (2000). Presidente do Instituto de Estudos Empresariais
– IEE (2001-2002). Membro do Conselho Deliberativo do Instituto de Estudos
Empresariais – IEE (2002-2003). Membro do Conselho Acadêmico do Institu-
to Liberdade RS (2004-2006). Associado do Instituto Brasileiro de Governança
Corporativa – IBGC (desde 2005). Reconhecido como profissional de referência
por Chambers & Partners, Legal 500, Leaders League e IFLR1000.

“I know that history is going to be


dominated by an improbable event,
I just don’t know what that event will be.”
Nassim Nicholas Taleb, The Black Swan: The Impact of the Highly Improbable

“A curiosa tarefa da economia é demonstrar


aos homens o quão pouco eles realmente sabem
sobre o que imaginam que podem planejar.”
F.A. Hayek

•7

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 7 11/12/2020 13:57:36


1 INTRODUÇÃO

Todos os prognósticos no final de 2019 apontavam para


a continuação do boom de negócios de compra e venda de em-
presas no mundo, em especial nos Estados Unidos, onde des-
de 2013 ocorreram transações em montante superior a USD
10 Trilhões, fato sem qualquer precedente anterior. Pesquisas
realizadas por grandes empresas de auditoria reportavam que
mais de 2/3 dos mais de mil executivos entrevistados aposta-
vam no crescimento das operações em 2020.
Nessas mesmas pesquisas, as maiores tendências aponta-
das foram: (a) aproveitar as oportunidades de desinvestimen-
tos em face das altas valuations, (b) uma maior preocupação
com questões tecnológicas e de proteção de dados, além de
(c) uma ênfase maior em operações internas americanas do
que internacionais diante das instabilidades políticas e co-
merciais globais.
Então, o inesperado aconteceu, e os efeitos da pan-
demia de SARS-CoV-2 (coronavírus), causador da doença
COVID-19 (adiante em conjunto designados simplesmente
“COVID-19”), impactaram a tudo e a todos, e, com os con-
tratos e as operações envolvendo “fusões e aquisições”, ou
simplesmente M&A no jargão americano, não poderia ser
diferente.
Com o elevado grau de incerteza do primeiro semestre de
2020, negociações foram postas em stand-by ou até mesmo des-
continuadas. Pesquisas informais com base em dados de pro-
fissionais do mercado e/ou no acompanhamento do noticiário

8 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 8 11/12/2020 13:57:36


econômico realizadas por sites de negócios empresariais indica-
ram uma queda inicial de quase 40% nas operações. Uma reto-
mada começou a ocorrer no terceiro trimestre diante de relativa
maior tranquilidade, com expectativa de normalização no úl-
timo trimestre e retomada dos patamares pré-crise já em 2021,
principalmente em decorrência da permanência de um cená-
rio externo de juros baixos e excesso de liquidez.
Um dado interessante diz respeito a um levantamento
informal de um grande banco de investimentos americano
relativo a “operações elefante” de M&A, assim consideradas
aquelas de valores individuais superiores a USD 10 Bilhões,
que no acumulado até setembro de 2020 estavam em patamar
semelhante ao de 2019.
No plano interno brasileiro, tanto a queda acentuada
quanto a sensível retomada também foram percebidas, ape-
sar de uma grande restrição do investidor estrangeiro com a
situação fiscal brasileira, mesmo diante de um inédito cenário
interno de juros baixos. Dito cenário contribuiu de outro
lado para que as empresas fossem a mercado tentar capturar o
grande movimento de migração de renda fixa para variável nas
carteiras, como comprova o inesperado recorde de mais de 50
IPO’s e Follow on’s realizados até outubro, mas com participa-
ção de apenas 1/3 de estrangeiros.
Nas operações de M&A que foram adiante e até mes-
mo foram concluídas durante a pandemia, diversas tendên-
cias tecnológicas, que poderiam levar até o final da década
para estarem tão largamente difundidas, foram aceleradas e
em seis meses as reuniões virtuais se transformaram em pa-
drão, inclusive para assembleias e reuniões de sócios em todo

Temas de Direito Empresarial 2021 •9

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 9 11/12/2020 13:57:36


tipo jurídico de sociedade, graças a uma bem-vinda reforma
forçada do marco regulatório. Também não podemos deixar
de mencionar a incrível aceleração e democratização do com-
partilhamento de documentos e informações em nuvem, as
diversas ferramentas de edição compartilhada assim como a
assinatura eletrônica de documentos, que se antes ainda en-
gatinhavam por desconhecimento, falta de prática ou inércia,
agora já andam a passos largos.
No plano econômico, diante de qualquer alteração de
cenário tal como a promovida pela pandemia, sempre haverá
setores que se beneficiam, e, de outro lado, setores que saem
perdendo e muito. Também isso abrirá novas oportunidades
de consolidação ou até mesmo de diversificação para aquisi-
ções estratégicas, mas também fomentará o apetite crescente
de investidores institucionais, em especial fundos de venture
capital e/ou private equity, cada vez mais capitalizados. Exem-
plos de setores que ganharam com o novo cenário são muitos,
em especial produtos de limpeza, alimentos, medicamentos,
dentre outros.
No plano jurídico, ainda é cedo para aferir os seus efeitos
sobre as relações e contratos celebrados antes, durante e depois
da pandemia. Entretanto, algumas tendências de proteção e
alocação de riscos estão sendo formadas quando da elaboração
dos instrumentos. Além disso, é importante destacar que dis-
cussão semelhante ocorreu em diversos países com o advento
da I Guerra Mundial, evento de longa duração que colocou
em teste a máxima de que os contratos devem ser cumpridos
(“pacta sunt servanda”), fazendo ressuscitar a cláusula “rebus sic
stantibus”, algo próximo à teoria da imprevisão de hoje, para

10 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 10 11/12/2020 13:57:36


permitir a revisão judicial dos contratos. Desse embate, temos
idas e vindas legislativas ao longo do último século.
Portanto, as regras aplicáveis existentes já são bem conhe-
cidas e inclusive já testadas em situações similares no passado,
mesmo que em eventos de diferentes magnitudes e escalas,
e mesmo que apesar das mais recentes inovações legislativas.
O que demandará ainda anos por vir é a aplicação e inter-
pretação destas regras pelos juízes ou árbitros, mas também,
neste caso, as decisões do passado dão um norte para anteci-
parmos algumas posições possíveis, juntamente com os mais
recentes julgamentos. Nesse ponto cabe a ressalva de que a
maioria dos contratos de compra e venda de sociedades, por
elegerem a arbitragem como método de resolução de dispu-
tas, acabam por tornar sigilosas as discussões e consequente-
mente suas decisões.
O propósito do presente artigo é apresentar esta nova
realidade à luz de discussões já conhecidas de modo a alertar
tanto para os riscos como para as cautelas necessárias que com-
pradores, vendedores e seus advisers devem redobrar atenção
na elaboração de contratos e nas operações de M&A.

2 CONTRATOS E M&A

A liberdade de contratar decorrente da autonomia priva-


da, mitigada por normas de direito público introduzidas pelo
Código Civil de 2002, e estas, recentemente atenuadas pela
“Lei da Liberdade Econômica” de 2019, revelam a miríade de
questões que podem surgir de contratos privados em face de
um cenário de pandemia declarada e suas repercussões. Este

Temas de Direito Empresarial 2021 • 11

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 11 11/12/2020 13:57:36


fato leva-nos a limitar o escopo do presente às seguintes ques-
tões que julgamos de maior relevância neste momento ainda
conturbado.
Levando em consideração a amplitude dos inéditos e
amargos remédios adotados pelos governos em escala glo-
bal, assim como o seu pesado impacto econômico e finan-
ceiro decorrente sobre as empresas, muitas obrigações contra-
tuais deixaram de ser cumpridas. Nesse sentido, a discussão
da adequação de uma conduta ou fato concreto que resulta
em descumprimento contratual de um lado, à norma jurídica
aplicável, de outro, adquire especial relevo, pois, dependendo
da caracterização, pode ensejar ou não a aplicação dos dispo-
sitivos legais que regulam Caso Fortuito/Força Maior, e/ou,
Teoria da Imprevisão/Onerosidade Excessiva.
Já especificamente em relação aos contratos de M&A,
cumpre destacar a análise das cláusulas relativas aos efeitos
materiais adversos no período compreendido entre a assina-
tura dos contratos de compra e venda de empresas (“signing”)
e o fechamento da operação (“closing”), cláusulas conhecidas
como Material Adverse Changes (MAC) ou Material Adverse
Effects (MAE).
Por fim, igualmente nos instrumentos de compra e ven-
da, cumpre lançarmos um olhar sobre as cláusulas de Earn-out
diante de um cenário de pandemia, seja para as operações já
assinadas, seja para aquelas em negociação.
O motivo da escolha destas duas cláusulas específicas é
o fato de serem as de maior potencial conflitivo, mas isso não
significa que outras cláusulas não possam gerar controvérsias.

12 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 12 11/12/2020 13:57:36


3 CASO FORTUITO/FORÇA MAIOR E TEORIA DA
IMPREVISÃO/ONEROSIDADE EXCESSIVA

Entre janeiro e final de agosto de 2020, apenas o Governo


Federal editou aproximadamente 2.200 normas jurídicas, das
mais variadas espécies, voltadas para o combate à pandemia da
COVID-19. O Estado do Rio Grande do Sul no mesmo pe-
ríodo editou um número superior a 250 normas jurídicas re-
lativas à pandemia. O acompanhamento vem sendo feito pelo
Cepedisa (Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário)
da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São
Paulo) e trata-se de um estudo ainda parcial que não trouxe
dados de São Paulo nem das principais capitais até a referida
data, mas já é uma mostra do furor legislativo infelizmente tão
comum à nossa tradição.
Levando em consideração os efeitos sobre as atividades
econômicass decorrentes dessa miríade de normas jurídicas edi-
tadas e ainda sendo criadas pelas autoridades a todo momento,
não poderíamos esperar outra consequência do que a elevação da
probabilidade de pedidos de renegociação de um lado, e, de
outro, o risco de descumprimentos contratuais.
Razoabilidade e bom senso foram o cerne da estratégia de
maior sucesso na condução das tratativas entre as partes con-
tratantes nestes momentos, observado que a aplicação de qual-
quer regra sempre depende de uma minuciosa análise dos fa-
tos de cada caso concreto. Além disso, comunicação e esforço
constantes visando a minimizar prejuízos também foi, e vem
sendo, a atitude mais acertada a ser enfocada pelas partes, sem
deixar de lado o cuidado com a formalização das tratativas e

Temas de Direito Empresarial 2021 • 13

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 13 11/12/2020 13:57:36


novas combinações por escrito, como forma de registro e prova
futura, nem que seja por troca de e-mails ou de mensagens, em
especial WhatsApp (fato que demanda cada vez mais prudência
e cautela na sua utilização).
Dentre os institutos jurídicos que geram grande discus-
são estão as hipóteses previstas no Código Civil de (i) caso
fortuito/força maior, assim como da (ii) teoria da imprevisão/
onerosidade excessiva.

(a) Caso Fortuito/Força Maior:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resul-


tantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente
não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se
no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou
impedir.
Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibi-
lidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte
de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem
durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou
que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse
oportunamente desempenhada.

A primeira providência é checar a lei de regência do con-


trato, para posteriormente verificar se as partes na alocação
de riscos fizeram alguma previsão acerca de força maior de
forma genérica, ou, até mesmo de forma específica, ao elen-
car pandemia como hipótese excludente ou não de direitos e
obrigações.

14 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 14 11/12/2020 13:57:36


No caso da lei brasileira acima transcrita, deve haver um im-
pedimento real e comprovado que justifique a impossibilidade
absoluta de cumprimento do dever contratualmente assumido
(o que equivaleria a dizer que inexistia outro meio à disposição
da parte que permitisse dar cumprimento à obrigação) e não
um pretexto genérico. Contudo, se o impedimento, embo-
ra real, for apenas temporário, o cumprimento da obrigação
deverá, a princípio, ser apenas suspenso, salvo se o atraso dele
resultante justificar a rescisão do contrato. Se o impedimen-
to for definitivo, o contrato, em regra, poderá ser rescindido,
restabelecendo-se, sempre que possível, o status quo ante.
Certo é que, para identificar se determinada empresa ou
pessoa pode ou não se valer da excludente de responsabilidade,
há de se avaliar, caso a caso, as disposições contratuais, sendo
que dita análise também será permeada pela função social do
contrato e a boa-fé objetiva. Da mesma forma, cabe ressaltar
que o ônus da prova acerca de tal impedimento absoluto será
do devedor, e que a conduta deste após a ocorrência do even-
to será de grande importância no caso de análise judicial da
suspensão ou inexecução das obrigações. Nesse sentido, evitar
queimar etapas negociais é fundamental para uma estratégia
de sucesso.
Ainda, há de se atentar para a data da celebração do con-
trato, pois, se firmado no início de 2020, é provável que a pan-
demia não seja considerada um caso de força maior, pois o re-
quisito da imprevisibilidade não estaria suprido. Por outro lado,
as medidas radicais de prevenção, a exemplo do toque de reco-
lher, adotadas em certas áreas geográficas, também não possuem
precedentes recentes.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 15

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 15 11/12/2020 13:57:36


(b) Teoria da Imprevisão/Onerosidade Excessiva:

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier


desproporção manifesta entre o valor da prestação devida
e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo,
a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível,
o valor real da prestação.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou dife-
rida, se a prestação de uma das partes se tornar excessiva-
mente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em
virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis,
poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos
da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o
réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas
uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação
seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de
evitar a onerosidade excessiva.

Para os casos em que ainda é possível a execução do con-


trato, diferentemente do caso de caso fortuito/força maior,
pode ocorrer a aplicação das teorias da imprevisão e da one-
rosidade excessiva, usualmente utilizadas em conjunto pelos
tribunais pátrios. Estas admitem a resolução do contrato, a
pedido da parte prejudicada, ou a sua revisão, se a parte be-
neficiada se oferecer para restabelecer o equilíbrio contratual.
Vale lembrar que resolução do contrato é a sua extinção sem
cumprimento.
Usualmente são quatro os pressupostos da revisão con-
tratual por aplicação da teoria da imprevisão: (1) que se trate

16 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 16 11/12/2020 13:57:36


de contrato comutativo de execução diferida ou continuada,
não podendo ser aplicada tal teoria aos contratos aleatórios1;
(2) que, quando da execução, tenha havido alteração das cir-
cunstâncias fáticas vigentes à época da contratação; (3) que
essa alteração seja inesperada e imprevisível quando da cele-
bração do contrato, mesmo que com alguma diligência; e,
(4) por fim, que a alteração tenha promovido desequilíbrio
entre as prestações.
Em caso de aplicação da teoria da onerosidade excessiva,
além dos pressupostos para a aplicação da teoria da imprevi-
são, exige-se, ainda, que o evento, além de imprevisível, seja
extraordinário2, bem como que se demonstre uma situação de
grande vantagem, ou até de enriquecimento sem causa, para
um contratante, e, em contrapartida, uma situação de onero-
sidade excessiva para o outro.
Tais teorias poderão ser utilizadas tanto para tentativas
de resolução do contrato, quanto para revisão de seus termos
conforme o art. 479 do Código Civil, acima já transcrito.
Também é importante destacar que a Declaração de Di-
reitos de Liberdade Econômica, instituída pela Lei nº 13.874,
de 20 de setembro de 2019, conhecida por “Lei da Liberdade
Econômica”, alterou o Código Civil para atenuar a ingerência
pública na liberdade de contratar. Se antes esta liberdade tinha
em sua razão a função social do contrato, agora dita função

1
  Art. 458. Se o contrato for aleatório, por dizer respeito a coisas ou fatos futuros,
cujo risco de não virem a existir um dos contratantes assuma, terá o outro direito
de receber integralmente o que lhe foi prometido, desde que de sua parte não
tenha havido dolo ou culpa, ainda que nada do avençado venha a existir.
2
  REsp 1.321.614-SP, Rel. originário Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. para
acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 16/12/2014, DJe 3/3/2015;
REsp 945.166-GO,DJe 28/2/2012; REsp 1689225 / SP, DJe 29/05/2019.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 17

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 17 11/12/2020 13:57:36


social permanece apenas como seu limite. Além disso, tratou
de devolver aos indivíduos e empresas uma maior autonomia
ao tentar restringir ao máximo a possibilidade de revisão judi-
cial dos contratos. Ditas reformas constam dos seguintes arti-
gos do Código Civil:

Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limi-


tes da função social do contrato.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, pre-
valecerão o princípio da intervenção mínima e a excep-
cionalidade da revisão contratual.

Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se


paritários e simétricos até a presença de elementos con-
cretos que justifiquem o afastamento dessa presunção,
ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais,
garantido também que:
I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros
objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de
seus pressupostos de revisão ou de resolução;
II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser
respeitada e observada; e
III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira
excepcional e limitada.

Dessa forma, em momentos como o presente, em que se


há grande incerteza sobre como será o entendimento do Judi-
ciário diante da situação causada pela COVID-19, bem como
em razão da suspensão e diminuição do trabalho do Judiciário
no período mais crítico, as melhores atitudes voltaram a ser
as usuais de sempre, quais sejam, manter abertos canais de

18 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 18 11/12/2020 13:57:36


comunicação eficazes entre as partes, a fim de, se for o caso,
diante das peculiaridades concretas da relação, renegociar al-
guns dos termos do contrato, visando à não interrupção da
atividade econômica e à minimização de prejuízos.

4 EFEITOS MATERIAIS ADVERSOS

Quando se compra uma empresa, não se está compran-


do um bem ou direito, mas um complexo de direitos e obri-
gações em movimento, daí a expressão americana “on going”.
Em função disso, é uma operação complexa cercada de cau-
telas de ambos os lados. Da prática americana e inglesa sur-
giu o fatiamento da operação em dois grandes e importantes
marcos: a data da assinatura do contrato (“signing”) e a data
de fechamento da operação (“closing”).
A assinatura de um contrato de compra e venda deter-
mina o momento em que os termos e condições acordados
entre as partes são formalizados em um instrumento escrito.
Ou seja, é quando as partes efetivamente estão comprometi-
das em concluir a operação, pelo que torna-se bastante difícil
para qualquer uma delas desistir do negócio. Embora existam
casos nos quais a assinatura e o fechamento ocorrem de for-
ma simultânea, normalmente há um intervalo de vários meses
entre eles. Isso porque a assinatura em si não necessariamente
implica a transferência das participações societárias, já que é
muito comum serem estipuladas certas condições que preci-
sam ser atendidas para o fechamento, este sim, representando
o momento em que há transferência de propriedade e, portan-
to, a conclusão de uma transação.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 19

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 19 11/12/2020 13:57:36


Uma vez que o acordo é assinado, as partes precisam
atender às condições estipuladas para que a transação seja
concluída, ou seja, para o fechamento da operação. Essas
condições precedentes em sua grande maioria são definidas
de comum acordo, mas por vezes dependem da legislação
de cada país, como, por exemplo, a submissão prévia da
operação aos órgãos de defesa da concorrência, como é o
caso do CADE no Brasil. Dentre as condições mais comuns,
podemos citar obtenção das autorizações bancárias, contra-
tuais e/ou societárias porventura necessárias, reorganizações
societárias ou patrimoniais prévias, arquivamento dos atos
societários, pagamento do preço, dentre muitas outras de-
pendendo das peculiaridades de cada operação, setor e/ou
atividade da sociedade sendo vendida.
Como o implemento das condições podem levar algum
tempo, os contratos geralmente contêm cláusulas conhecidas
como Material Adverse Changes (MAC) ou Material Adverse
Effects (MAE). Estas cláusulas permitem a não conclusão do
contrato, em face de alterações ocorridas no período entre a as-
sinatura e o fechamento. A finalidade original destas cláusulas é
de regular questões imprevisíveis que possam vir a ocorrer du-
rante o período em questão, de forma a alocar quais riscos cada
parte assume.
Em um cenário de pandemia da COVID-19, onde to-
dos foram afetados de uma forma ou de outra, se as partes
estão no período entre o signing e o closing, a grande questão
é se o contrato necessariamente precisa ser concretizado. Isso
porque pode existir uma dúvida quanto ao cumprimento, e
até mesmo em relação à própria obrigatoriedade, de todas as
condições precedentes estipuladas.

20 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 20 11/12/2020 13:57:36


Em geral, pandemias são consideradas como um risco
sistêmico, portanto fora do controle das partes, e, por essa ra-
zão, normalmente não são considerados gatilhos ordinários de
uma cláusula MAC. O usual é alocar riscos gerais do merca-
do ou do setor específico da sociedade sendo vendida para o
comprador enquanto os riscos específicos da companhia são
alocados para o vendedor.
A maioria dos litígios conhecidos relacionados à
COVID-19 de que se tem notícia pela imprensa e por profis-
sionais do mercado envolve na atual fase dos problemas de-
correntes da pandemia questões relacionadas à cláusula MAC.
Até a COVID-19, não era comum os contratos preverem ex-
pressamente pandemias, mas, mesmo com previsão ou não,
a verdade é que seus efeitos foram mais do que suficientes
para atingir outras condições precedentes usuais em opera-
ções de compra e venda de empresas, tais como indicadores
econômicos e financeiros da companhia (faturamento, clien-
tes, pedidos, margem, lucro, manutenção das declarações e
garantias etc.).
O maior negócio da história no mercado de artigos de
luxo é um grande exemplo de como as transações assinadas
antes da pandemia podem ser tremendamente afetadas diante
da frustração de expectativas e das novas perspectivas de ren-
tabilidade em face da COVID-19. Estimativas apontam para
uma queda de 1/3 das vendas de artigos de luxo em 2020,
além de uma lenta recuperação ao longo dos próximos 36 me-
ses. Com isso, a aquisição da joalheria norte-americana Tif-
fany pelo grupo francês LVMH por USD 16,6 Bilhões foi

Temas de Direito Empresarial 2021 • 21

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 21 11/12/2020 13:57:36


parar nas cortes, pois as tentativas do comprador em renego-
ciar o preço de USD 135,00 por ação acordado em novembro
de 2019 não foram bem sucedidas, e este, então, teria, na visão
do vendedor, utilizado de diversos estratagemas protelatórios
para que as condições precedentes que deveriam ser cumpridas
até 24 de agosto de 2020 não fossem atingidas, notadamente
uma carta do governo francês que não teria sido submetida à
outra parte no prazo correto para eventual tentativa de rever-
são, dando contornos políticos ao envolver altas autoridades
da França e Estados Unidos tendo como pano de fundo ques-
tões de comércio internacional entre os dois países.
Para os contratos ainda não assinados, recomenda-se
que as partes discutam qual a alocação de risco decorrente da
COVID-19 e seus efeitos de forma a evitar qualquer discus-
são futura quando do fechamento. O mercado, nesse senti-
do, estaria caminhando para, na maior parte das vezes, ex-
cluir expressamente o impacto da COVID-19, pois já seria
uma situação dada e uma realidade presente. Entretanto, este
tipo de visão deve sempre ser temperada com as peculiarida-
des de cada caso, afinal ainda não está completamente clara
a magnitude dos efeitos adversos da COVID-19, como, por
exemplo, com relação a aquisições alavancadas, se nos meses
subsequentes à assinatura, e antes do fechamento, houver uma
mudança material adversa nas condições de mercado que afete
as disponibilidades de financiamento, impedindo a tomada de
recursos. Trata-se nesta última hipótese de pensar a cláusula
MAC de forma mais protetiva ao comprador.

22 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 22 11/12/2020 13:57:36


5 EARN-OUT

Na quantificação do preço de uma operação de M&A é


muito comum que as expectativas de valor do comprador, de
um lado, e, as expectativas do vendedor, de outro, ganhem
uma distância grande em função daquilo que a empresa alvo
é capaz de performar no futuro. É nesse contexto que a cláus-
ula de Earn-out surge como forma de criar uma ponte entre
as diferentes expectativas de valor, promovendo alocação mais
eficiente dos riscos envolvidos em uma aquisição, quase como
uma espécie de “seguro de performance”, além de poder viabi-
lizar operações com acesso mais difícil a financiamento.
Em termos jurídicos brasileiros, nada mais é do que uma
estipulação de preço contingente, ou seja, dependente da
ocorrência de eventos ou condições futuras, e, por si só, já traz
em seu bojo uma miríade de cautelas e problemas, seja na sua
negociação, seja na sua apuração, pois parte do preço será de-
terminada com base na performance da companhia depois de
vendida e já sob o comando do comprador, maior interessado
em pagar o menor preço possível. Como exemplos de ques-
tões preocupantes, podemos mencionar (i) a possibilidade ou
não de compensação com superveniências passivas da parcela
contingente, (ii) regras de como o comprador deve conduzir
o negócio durante o período de apuração, (iii) o que acontece
em caso de reorganizações societárias, e se novas plantas ou
operações são incorporadas, adquiridas, vendidas ou descon-
tinuadas, (iv) nova alienação do controle, dentre outras tantas
preocupações.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 23

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 23 11/12/2020 13:57:36


Em função disso, é importante destacar duas regras cons-
tantes do Código Civil que visam a impedir abusos:

Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não


contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes;
entre as condições defesas se incluem as que privarem de
todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro
arbítrio de uma das partes.

Art. 129. Reputa-se verificada, quanto aos efeitos jurídi-


cos, a condição cujo implemento for maliciosamente obs-
tado pela parte a quem desfavorecer, considerando-se, ao
contrário, não verificada a condição maliciosamente leva-
da a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento.

Nesse sentido, se a cláusula não foi corretamente dese-


nhada, ou mesmo que o tenha sido, se o comprador tenta se
aproveitar de seu poder de controle e comando para reduzir
os ganhos do vendedor, o que não é de todo incomum, di-
tos artigos da lei acabam por gerar muitas disputas, seja para
desconsiderar condições que dependam apenas da vontade de
uma das partes, seja para penalizar comportamentos malicio-
sos considerando atendida a condição nestas hipóteses.
Importante destacar que eventuais falhas da cláusula em
si, ou de ausência ou limitação de proteções contratuais adicio-
nais, podem não ser acolhidas pelos Tribunais, especialmente
em face da Lei da Liberdade Econômica, acima já referida.
Portanto, se já não bastasse a complexidade da regulação,
aferição e controle, em si, da cláusula de Earn-out, que se dirá
em um cenário de COVID-19. Em contratos sendo negocia-
dos não há dúvida de que as partes devem se cercar de cautelas

24 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 24 11/12/2020 13:57:36


e rever prazos e condições, mesmo que já ajustadas em docu-
mentos não vinculantes, como um memorando de entendi-
mentos ou carta de intenções. Mas em contratos já assinados
e estando em curso o período de apuração da performance
apesar de sempre existir a possiblidade de renegociação, esta
apenas subsiste se de comum acordo. Entretanto, diante da si-
tuação excepcional, no curso de período de apuração, poderia
ser entendido que existiria a obrigação de renegociar?
Trata-se de uma questão de alta indagação para a qual
ainda não se tem resposta, e talvez nem se venha a ter de forma
genérica, pois sempre dependerá das peculiaridades de cada
caso. Isso porque existem argumentos favoráveis tanto ao ven-
dedor aflito, pois, se soubesse que a COVID-19 iria aconte-
cer, não venderia a empresa, quanto ao comprador apreensivo,
porque, se soubesse que poderia ter que arcar com este tipo de
prejuízo sozinho, igualmente não teria adquirido a empresa.
Pela ótica do comprador, a alocação de risco está dada
no contrato, portanto somente será devido o pagamento do
Earn-out se for implementada a condição do preço contingen-
te, ou seja, se houver o lucro, o EBITDA ou a meta ajustada.
Do contrário, se não houve a implementação, não há o que se
pagar, até porque o cenário da COVID-19 afeta a avaliação da
companhia. Ou seja, a condição do Earn-out estava vinculada
ao efeito futuro que poderia ou não acontecer. Se a condição
era lícita, e ela não foi alcançada, não existe o direito ao pa-
gamento, por motivos alheios a vontade única e/ou atuação
maliciosa do comprador. Nesse sentido, as regras contidas no
Código Civil em seus artigos 421 § único e 421-A, acima já
transcritos, albergam esta posição.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 25

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 25 11/12/2020 13:57:36


De outro lado, pela visão do vendedor, a COVID-19
seria um evento imprevisto e extraordinário que abre a pos-
sibilidade de revisão do contrato. Nesse sentido, como visto
mais acima, isso não necessariamente implica resolução do
contrato, alteração de preço ou condições, mas sim por vezes
a possibilidade de ajustes mais tênues, como ajustes no fluxo
de caixa dos pagamentos. Dessa forma, ainda na visão do ven-
dedor, e, uma vez que na maioria das vezes as consequências
da COVID-19 têm a característica de efeitos transitórios não
recorrentes, e que, portanto, estão apresentando, na grande
maioria dos casos, uma tendência de normalização em tempo
mais longo, caberia uma revisão para afastar o risco imprevisí-
vel, inevitável e de efeito transitório que não teria sido aceito
pelo vendedor quando da contratação. Portanto, não sendo
duradouros ou recorrentes, os efeitos da COVID-19 deveriam
ser mitigados, por serem uma situação excepcional. As regras
contidas no Código Civil em seus artigos 317 e 478, acima já
transcritos, albergam esta posição, juntamente com as seguin-
tes conforme recentemente alteradas pela “Lei da Liberdade
Econômica”:

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados


conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir
o sentido que:
I – for confirmado pelo comportamento das partes poste-
rior à celebração do negócio;
II – corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado
relativas ao tipo de negócio;

26 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 26 11/12/2020 13:57:36


III – corresponder à boa-fé;
IV – for mais benéfico à parte que não redigiu o disposi-
tivo, se identificável; e
V – corresponder a qual seria a razoável negociação das
partes sobre a questão discutida, inferida das demais
disposições do negócio e da racionalidade econômica das
partes, consideradas as informações disponíveis no mo-
mento de sua celebração.
§ 2º As partes poderão livremente pactuar regras de in-
terpretação, de preenchimento de lacunas e de integração
dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.

Importante destacar que a cláusula de Earn-out é uma


das que geram mais controvérsias nos contratos de M&A, seja
antes, durante ou depois da assinatura, principalmente porque
as partes subestimam sua complexidade, menosprezam o ní-
vel de detalhamento necessário, ou, simplesmente, por terem
urgência no fechamento, acabam não discutindo nem regu-
lando a matéria de forma adequada. De outro lado, além de
ser impossível prever o futuro e toda a seara de eventos não
conhecidos que podem afetar as medidas de performance, o
vendedor normalmente tem uma capacidade muito reduzida
de influenciar a performance ou sua medição, que acabam fi-
cando muito dependentes apenas do comprador.

6 CONTRATOS E M&A – DECISÕES

Como já referido, atualmente grande parte dos contratos


de maior vulto, e a quase totalidade dos contratos de compra
e venda de empresas, estipulam a arbitragem como método

Temas de Direito Empresarial 2021 • 27

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 27 11/12/2020 13:57:36


de resolução de conflitos. Um dos benefícios buscados, além da
maior celeridade, é a confidencialidade do procedimento. Uma
consequência disso é que as decisões não têm caráter público,
fato que impede a verificação e confirmação de tendências.
De outro lado, ao se buscar e analisar as decisões da
Justiça referentes aos efeitos da COVID-19, verifica-se um
volume muito grande de decisões na esfera penal, e poucas
na esfera cível. As da esfera cível estão muito concentradas
no Tribunal de Justiça de São Paulo, em comparação com o
Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, onde praticamente só existem decisões na es-
fera penal. Além disso, todas as decisões não são definitivas,
ou seja, são decisões de recursos de pedidos de liminares ou
antecipação de tutela, seja pela parte autora, quando negados
na origem, seja pela parte ré, quando aceitos pelo julgador de
primeira instância.
Em sua grande maioria, afastam qualquer pleito de re-
solução do contrato ou suspensão de pagamentos, mas acei-
tam redução temporária de obrigações, prevendo pagamento
da diferença em momento posterior. Também em sua grande
maioria, são recursos de decisões ainda sem que a outra parte
tenha sido citada, pelo que os julgadores de segunda instância
deixam para que a análise de medidas excepcionais como reso-
lução ou suspensão de pagamentos seja feita apenas depois que
a outra parte seja ouvida, de modo que a matéria de prova da
situação do contrato e do devedor seja melhor analisada à luz
também dos argumentos da parte contrária (contraditório).

28 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 28 11/12/2020 13:57:36


Feitas estas considerações, é importante destacar que a revi-
são judicial dos contratos (ou sua extinção, em casos extremos)
relativa à COVID-19 ainda não encontra uma resposta única.
Alguns dos julgados são mais rígidos para revisar os termos do
contrato, outros são mais permissivos, permitindo a revisão sem
exigência de muitos requisitos. Além disso, uma grande parte
dos julgados considera a COVID-19 como fato imprevisível,
podendo-se alterar os termos contratuais caso se demonstre que
o instrumento foi firmado antes da pandemia e que, a partir da
disseminação do vírus, as prestações do contrato tornaram-se
excessivamente onerosas para uma das partes.
A divergência ainda não definida, diz respeito às exigên-
cias de comprovação com relação ao (i) quão as atividades de
uma das partes devem ter sido afetadas para se poder revisar
a prestação contratual, e, também, (ii) quanto o próprio ob-
jeto do contrato foi afetado. Um dos exemplos que ilustram
isso é um julgado do TJSP em que a locatária, a despeito das
alegações de sofrer com a presente crise, não comprovou a de-
preciação no valor do imóvel que justificasse a diminuição do
valor aluguel em sede de antecipação de tutela3.
Cumpre, também, lembrar que a alteração do contrato
para garantir a manutenção do equilíbrio nem sempre requer
a alteração de valores, podendo alterar-se outras condições
contratuais para que a parte prejudicada possa cumprir sua
obrigação sem ter de arcar com ônus tão grande. Assim, apesar

3
  TJSP; Agravo de Instrumento 2152679-53.2020.8.26.0000; Relator (a): Hugo
Crepaldi; Órgão Julgador: 25ª Câmara de Direito Privado; Foro de Dracena -
3ª V.CÍVEL; Data do Julgamento: 28/07/2020; Data de Registro: 28/07/2020.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 29

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 29 11/12/2020 13:57:36


da alteração do contrato poder envolver alteração no montan-
te da prestação, o que se afere nas decisões é uma maior ênfase
dos julgadores em uma possível alteração no tempo, modo ou
lugar do cumprimento da obrigação, como, por exemplo, pos-
tergação de parte do valor das prestações, e não sua redução
pura e simples.
Convém destacar que a visão geral, mas ainda preli-
minar, extraída dos julgados até o momento, é no sentido
de que todas as partes de um contrato foram afetadas pela
COVID-19, e, portanto, deveriam se “sacrificar” em prol uma
da outra, cedendo para que os efeitos do contrato continuem
de alguma forma, não podendo ser simplesmente suspensos
ou terminados. Assim, prioriza-se a revisão contratual, que
visa à readequação do equilíbrio, o que implica obrigar as par-
tes a realizarem concessões mútuas, distribuindo-se os prejuí-
zos de forma equilibrada. Dessa maneira, somente se aceitaria
a extinção do contrato caso fosse comprovado que o adimple-
mento da prestação se tornou impossível4.
O Judiciário tem bem presente que, ao afetar a todos,
a pandemia não pode ser transformada em panaceia para

4
  TJSP; Agravo de Instrumento 2191555-77.2020.8.26.0000; Relator (a): Gilber-
to dos Santos; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Carlos -
3ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 24/09/2020; Data de Registro: 24/09/2020;
– TJSP; Agravo de Instrumento 2197275-25.2020.8.26.0000; Relator (a): Adilson
de Araujo; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 25ª
Vara Cível; Data do Julgamento: 15/09/2020; Data de Registro: 15/09/2020 –
TJSP; Agravo de Instrumento 2178960-46.2020.8.26.0000; Relator (a): Francis-
co Loureiro; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Foro de Sorocaba - 3ª.
Vara Cível; Data do Julgamento: 02/09/2020; Data de Registro: 02/09/2020
– TJSP; Agravo de Instrumento 2179026-26.2020.8.26.0000; Relator (a): Walter
Exner; Órgão Julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 9ª Vara
Cível; Data do Julgamento: 26/08/2020; Data de Registro: 26/08/2020.

30 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 30 11/12/2020 13:57:36


dificuldades unilaterais sem maiores rigores de comprovação,
até porque, aceitar isso, seria alocar todos os riscos para a ou-
tra parte da relação, o que não é justo, muito menos bom e
equânime para a sociedade como um todo. Ou, de forma mais
coloquial, como muito bem colocado por SALOMÃO RE-
SEDÁ: “Esconder-se na pandemia transparece ser um ato muito
cômodo para o devedor; uma rasteira dada ao credor que não terá
como se manter em pé e arcará com prejuízo de um serviço ou de
um produto já fornecido”5.
Assim, a crise sanitária, na visão dos julgadores, não pode
ser utilizada genericamente, em abstrato, como excludente de
responsabilidade por motivo de força maior para todo e qual-
quer contrato ou relação. Especialmente nas hipóteses em que
o inadimplemento tenha ocorrido ou já vinha de período an-
terior ao da decretação da pandemia da COVID-19, os julga-
dos tendem a afastar alegações de força maior ou onerosidade
excessiva do pagamento das prestações já vencidas6.
Quanto à revisão propriamente dita, até o presente mo-
mento podem ser vislumbradas duas correntes de decisões.
Na primeira, mais permissiva para a renegociação dos valores

5
  “Todos querem apertar o botão vermelho do art. 393 do Código Civil para se
ejetar do contrato em razão da Covid-19, mas a pergunta que se faz é: Todos pos-
suem esse direito?”. In: Coronavírus e Responsabilidade Civil. Impactos Contratuais
e Extracontratuais. Coord. p/ Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Nelson Ro-
senvald e Roberta Densa. Indaiatuba-SP, Editora Foco, 2020, p. 207.
6
  TJSP; Agravo de Instrumento 2190421-15.2020.8.26.0000; Relator (a): Cesar
Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro
de São José do Rio Preto - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/09/2020;
Data de Registro: 29/09/2020 – TJSP; Agravo de Instrumento 2138860-
49.2020.8.26.0000; Relator (a): Gilberto dos Santos; Órgão Julgador: 11ª Câmara
de Direito Privado; Foro Regional XI – Pinheiros - 4ª Vara Cível; Data do Julgamen-
to: 13/07/2020; Data de Registro: 13/07/2020);

Temas de Direito Empresarial 2021 • 31

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 31 11/12/2020 13:57:36


vencidos e não pagos, devem existir provas seguras de que a
crise econômica atingiu a parte, por exemplo, demonstran-
do queda de seu faturamento devido à COVID-19. De outro
lado, na segunda, mais estrita, não basta apenas a mera com-
provação de que a crise econômica advinda da COVID-19
afetou as finanças de uma das partes, devendo também ser
demonstrado que a própria prestação do contrato foi afetada,
ou seja, que a base econômica objetiva do contrato foi dese-
quilibrada. Assim, para legitimar uma ação de resolução de
contrato, e igualmente para motivar a sua revisão, o evento
deverá ser a causa da desproporção no contrato e não mero fa-
tor de desestabilização da economia de um dos lados, que, por
força da COVID-19, sofre para honrar seus compromissos7.
Importante destacar a existência de algumas poucas de-
cisões redirecionando a discussão para assemelhar à Teoria
do Fato do Príncipe, relativa aos contratos administrativos e
concernente a qualquer ato estatal de conotação geral, sem
relação direta com o contrato em si, mas que produz efeitos
sobre ele, acarretando um desequilíbrio. Mesmo não existin-
do uma relação jurídico-administrativa direta, o argumento é
de que as decisões político-administrativas dos governantes,
que, em maior ou menor extensão, impuseram medidas res-
tritivas das atividades econômicas, é que afetaram o equilíbrio
dos encargos contratados entre os particulares, pois, de forma

7
  TJSP; Agravo de Instrumento 2143425-56.2020.8.26.0000; Relator (a): Ana
de Lourdes Coutinho Silva da Fonseca; Órgão Julgador: 13ª Câmara de Direi-
to Privado; Foro de São José do Rio Preto - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento:
03/08/2020; Data de Registro: 03/08/2020 – TJSP; Agravo de Instrumento
2152679-53.2020.8.26.0000; Relator (a): Hugo Crepaldi; Órgão Julgador: 25ª
Câmara de Direito Privado; Foro de Dracena - 3ª V.CÍVEL; Data do Julgamento:
28/07/2020; Data de Registro: 28/07/2020).

32 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 32 11/12/2020 13:57:36


exemplificativa, em outras pandemias, não teriam sido adota-
das “quarentena”, “lockdown”, “isolamento horizontal”, den-
tre outras. Na presente situação, a modificação das relações de
equilíbrio entre os particulares estaria ocorrendo por todo o
país em decorrência de decisões político-administrativas8. Tal
caminho abre margem para outras discussões, que já estão sen-
do travadas nas searas tributária e trabalhista, mas que não são
objeto do presente trabalho.
Em relação à possibilidade de suspensão de pagamentos
relativos às dívidas empresariais com financiamento não se vis-
lumbra uma flexibilização no sentido de se deixar de pagar. Os
julgados são claros ao dizer que se deve comprovar a situação
financeira da empresa, a qual, para ter os pagamentos de suas
dívidas flexibilizados de alguma forma, deve realmente se en-
contrar prejudicada, com suas atividades em risco ou na imi-
nência de serem inviabilizadas. Nesse sentido, deve a empresa,
por exemplo, demonstrar a sua situação econômico-financeira
com extratos bancários, movimentação empresarial, balance-
tes ou balanço. Isso porque é fato notório reconhecido pelos
julgadores como argumento decisório que as empresas geral-
mente possuem reservas operacionais de períodos anteriores
nos quais a geração de caixa ainda não tinha sido prejudicada9.

8
 TJSP; Agravo de Instrumento 2191104-52.2020.8.26.0000; Relator (a): Ar-
tur Marques; Órgão Julgador: 35ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional X
– Ipiranga - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 21/09/2020; Data de Registro:
21/09/2020 – TJSP; Agravo de Instrumento 2172715-19.2020.8.26.0000; Relator
(a): Artur Marques; Órgão Julgador: 35ª Câmara de Direito Privado; Foro Cen-
tral Cível - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 31/08/2020; Data de Registro:
31/08/2020).
9
  TJSP; Agravo de Instrumento 2116287-17.2020.8.26.0000; Relator (a): Grava
Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Cen-
tral Cível - 13ª Vara Cível; Data do Julgamento: 30/07/2020; Data de Registro:

Temas de Direito Empresarial 2021 • 33

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 33 11/12/2020 13:57:36


Já no que diz respeito a operações de M&A propriamente
ditas, foi encontrada decisão que versa sobre contrato de com-
pra e venda de participações societárias. Apesar de ser uma
operação pequena, deve ser destacada por constituir até o pre-
sente momento a única decisão de segunda instância sobre o
assunto nos tribunais objeto da presente pesquisa10.
No caso, o acordo entabulado entre as partes vinha sen-
do cumprido, sendo que 60% da quantia devida já havia sido
solvida quando declarada, em 11/3/2020, pela Organização
Mundial de Saúde, a pandemia de COVID-19. O pedido da
parte compradora era de “rescisão do contrato”, o que foi nega-
do pelo juiz. As quotas e o gozo da condição de dono das quotas
já tinham sido transferidos, então o afastamento da obrigação
de pagamento e o desfazimento da operação não foram acei-
tos. Em recurso, a segunda instância optou por aceitar parcial-
mente os argumentos do autor em relação à sua incapacidade
de pagamento, mas não para desfazer o negócio, suspender os
pagamentos ou revisar o valor das parcelas, mas sim para sim-
plesmente revisar o fluxo de pagamentos à luz das evidências
de redução de faturamento. Dessa forma, as três parcelas subse-
quentes à concessão da liminar requerida foram reduzidas em
50%, e a diferença teve seu pagamento postergado mediante

30/07/2020 – TJSP; Agravo de Instrumento 2121242-91.2020.8.26.0000; Rela-


tor (a): Hélio Nogueira; Órgão Julgador: 23ª Câmara de Direito Privado; Foro de
Americana - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 17/07/2020; Data de Registro:
17/07/2020).
10
  TJSP; Agravo de Instrumento 2065856-76.2020.8.26.0000; Relator (a): Ce-
sar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro
Central Cível - 11ª Vara Cível; Data do Julgamento: 16/07/2020; Data de Registro:
16/07/2020.

34 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 34 11/12/2020 13:57:36


o rateio do saldo nas seis últimas parcelas subsequentes. Em
suma, concedeu-se à parte um alívio financeiro no fluxo de
caixa diante da situação comprovada de queda de faturamento
em face da situação de força maior advinda da COVID-19, a
qual foi classificada pela decisão como extraordinária e impre-
visível nos termos do art. 478 do CC.

7 CONCLUSÃO

Ainda é muito cedo para aferirmos corretamente todos


os impactos da crise decorrente da pandemia da COVID-19.
Mas uma coisa é possível afirmar: eles serão sentidos por mui-
tos anos, principalmente por aqueles que tomaram o caminho
dos tribunais.
No plano econômico, uma combinação única de múlti-
plos fatores geraram dúvidas nunca sonhadas, tal como aná-
lises no segundo e terceiro trimestre de 2020 entre as opções
de iniciar um procedimento de recuperação judicial ou uma
abertura de capital. Além disso, abriu-se uma tremenda ja-
nela de oportunidades seja de consolidação, em especial para
investidores estratégicos, seja de investimento, área afeita aos
fundos de private equity que podem desempenhar um papel
determinante na retomada de atividades de diversas empresas
dos mais variados setores.
Como não há dúvida de que já estamos vivendo uma
onda de reestruturação de dívidas e rediscussão de contratos,
naturalmente uma operação de compra e venda ou de reorga-
nização societária de empresas durante um evento de pandemia

Temas de Direito Empresarial 2021 • 35

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 35 11/12/2020 13:57:36


deve se cercar de cuidados e cautelas extras, para não dizer
eventual suspensão das tratativas.
Na hipótese de retomada das tratativas e negociações,
um foco adicional no trabalho de due diligence é sempre bem-
-vindo, tendo em vista as alterações de prazos de realização
das demonstrações financeiras, do pagamento de tributos e,
ainda, do potencial passivo trabalhista que pode decorrer de
eventuais demissões do período mais crítico da pandemia.
Nesse sentido, nas operações em negociação, recomenda-se
a revisão de prazos porventura ajustados em documentos pre-
liminares (MOU ou LOI), bem como maior cuidado quanto
aos ajustes negociais relacionados ao preço e aos mecanismos
de ajuste de preço pós-fechamento, considerando os impac-
tos da pandemia nas operações da empresa. Da mesma for-
ma, deve ser feita uma readequação das expectativas das partes
quanto a eventuais cronogramas de trabalho das equipes en-
volvidas em face das restrições atuais, seja de viagem, seja de
disponibilidade e alocação de recursos.
Quanto aos contratos já firmados deste tipo de operação,
diversas cláusulas poderão ser objeto de discussão, em espe-
cial as já mencionadas MAC e Earn-out. Nos contratos ainda
em negociação, a redação a ser dada em tais cláusulas deverá
atender as circunstâncias e necessidades atuais decorrentes da
COVID-19.
Há que se observar ainda no caso dos contratos já fir-
mados que não detenham a previsão de cláusula MAC, que
poderão ou não ser aplicadas as regras referentes aos contratos
em geral, igualmente já mencionadas acima, a depender do

36 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 36 11/12/2020 13:57:36


contexto negocial. Isto é, haverá que se analisar, no caso con-
creto, se a escolha das partes pela não inclusão de cláusula de
força maior ou onerosidade foi proposital, o que poderia afas-
tar eventual aplicação supletiva do regramento legal. Isso por-
que, pela legislação brasileira, é facultado às partes a alocação
dos riscos decorrentes de eventos tais como uma pandemia e/
ou os efeitos dela decorrentes.
Já no que tange à cláusula de Earn-out, se mesmo em um
cenário de normalidade ela por si só é capaz de gerar muitas
controvérsias, em um cenário de COVID-19 e seus efeitos
adversos na performance das empresas, em maior ou menor
grau, será motivo de muitas discussões por envolver parcela do
preço que ficou contingente a um futuro que se alterou para
além das expectativas das partes. Tratar de entender a quem
este risco foi ou deve ser alocado, juntamente com uma aten-
ção à resposta na condução dos negócios da empresa vendida
promovidas pelo comprador neste novo cenário, além dos seus
efeitos na apuração do Earn-out, são atitudes recomendadas.
Assim como tudo na vida, razoabilidade e bom senso
devem conduzir as tratativas entre as partes neste momento,
observado que a aplicação de qualquer regra legal sempre de-
pende de uma minuciosa análise do caso concreto. Comuni-
cação e esforço constantes visando a minimizar prejuízos deve
ser o principal foco das partes. O caminho do menor prejuízo
é sempre trilhado pela busca de legitimidade e coerência em
todas as ações das partes envolvidas.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 37

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 37 11/12/2020 13:57:36


ACREDITE, O OUTRO
PODE TER RAZÃO…

André Silveiro
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS
(1983). Prêmio Incentivo IEE – Banco de Boston, 1º lugar – Instituto de Estudos
Empresariais (1994). Prêmio Asa Delta, do Instituto de Estudos Empresariais
(1994). Brasic Negotiation – Harvard Law School. Arbitration Special Fellowship
Course – The CIA – NAB/AAA/Stanford Law Scholl. Internacional Commercial
Training Arbitration Trainig Course – The Chartered Institute of Arbitration –
NAB/American Arbitration Associacion – NAB/American Arbitration Associa-
tion, Vancouver – Canadá. Curso de Contratos Internacional e Comércio Exte-
rior – Fundação Getúlio Vargas. Seminário – Cempetition and Entrepreneurship,
Foundation for Economic Education – NY – Prof. Israel Kirzner. Vice-Presidente do
INAMA/RS – Instituto Nacional de Mediação e Arbitragem – RS. Autor do livro
“Empresas Familiares: Raízes e soluções de conflitos”. Autor do livro “Turnaround:
Revigorando Empresas Familiares”. Membro do Conselho de Administração de
várias empresas.

Grande parte das dificuldades que temos em nossos rela-


cionamentos e negociações é causada por nós mesmos e não
pelos outros, como usualmente supomos.
Esses problemas derivam, com frequência, de termos es-
tabelecido certezas sobre fatos ou situações, ou seja, da exis-
tência de convicções pessoais distintas das impressões que ou-
tros tiveram sobre os mesmos fatos.

38 •

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 38 11/12/2020 13:57:36


Na obra Crítica da razão pura, o filósofo Imannuel Kant
propõe a seguinte questão: “Como posso obter um conheci-
mento seguro e verdadeiro sobre as coisas do mundo?” O mes-
tre de Königsberg concluiu que a realidade absoluta, o que cha-
mava de coisa-em-si, não é matéria passível de conhecimento
humano, sendo, portanto, incognoscível1, inapreensível.
No mesmo sentido, Freud, em seu Esboço de psicanálise,
afirma que “a realidade sempre permanecerá sendo incognos-
cível” e que “a equação percepção = realidade (mundo exter-
no) não mais se sustenta”.
Isso porque o que sabemos sobre o mundo concreto,
sobre o que ocorre ou já ocorreu, está, em grande medida,
a serviço da estruturação de uma narrativa pessoal. Assim, a
percepção que temos da realidade resta irremediavelmente
impregnada de conteúdo imaginativo e autoilusório2, que se
presta à elaboração das histórias3 simplificadas e reducionistas
que contamos a nós mesmos acerca de situações de infinita
complexidade.
Sobre as limitações de nossa compreensão do mundo ex-
terno, Nietzsche proferiu sua célebre frase: “As convicções são
inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras”.

1
  We can never know the world ‘as-it-is’ in its real form. …the noumenal world may
exist, but it is completely unknowable through human sensation. (Immanuel Kant)
2
  Para Lacan, a realidade é simbólico-imaginária, ou seja, é uma construção emi-
nentemente fantasística que, para cada sujeito, faz face ao real inominável. O real
é “o que é estritamente impensável”, é o impossível de ser simbolizado; o real é,
por excelência, o trauma, o que não é passível de ser assimilado pelo aparelho psí-
quico, o que não tem qualquer representação possível. Por isso, o real é também
aquilo que retorna ao mesmo lugar, já que o simbólico não consegue deslocá-lo, e
o ponto de não senso que ele implica se repete insistentemente enquanto radical
falta de sentido.
3
  Stories don’t just mirror life; they shape it. (Michael Nichols)

Temas de Direito Empresarial 2021 • 39

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 39 11/12/2020 13:57:36


Assim, o que consideramos fato ocorrido ou verdade es-
tabelecida está condicionado à nossa sempre limitada percep-
ção4 da realidade, seletivamente5 captada por nossos sentidos6
a partir de noções internas preconcebidas7 em nossa matriz
psicológica idiossincrática8.
Nosso conhecimento da realidade é sempre parcial,
perspectivo e construtivo, corroborado por dados incomple-
tos e pinçados à luz de um viés9 de confirmação. Ainda que
involuntariamente, essa dinâmica, no fim das contas, nos
confere uma visão fragmentada e, sempre, algo distorcida do
mundo externo.
Contudo, há atitudes capazes de nos aproximar ou dis-
tanciar ainda mais da percepção da chamada realidade concre-
ta. Afastamo-nos da verdade quando adotamos uma postura
dogmática, consolidando certezas e crenças inabaláveis e per-
manecendo presos convictamente à nossa perspectiva unilate-
ral, monocular e, por isso, limitada e incompleta da realidade.

4
  I think it is pretty universally accepted now that perception is not passive, not
acting on a mind which is a tabula rasa; it is an active interaction between the
mind and the external world. (Hanna Segal)
5
  We don’t see things as they are, we see them as we are. (Anais Nin)
6
  Não vemos as coisas como elas são, mas como nos parecem. (Talmude)
7
  Humans act in response to an internally constructed vision of the reality; …
senses allow us to perceive only part of the reality. Most of what happens passes
us by; (Kees Van der Heijden)
8
  A fantasia é uma forma singular de cada sujeito lidar com o Real. É neste sen-
tido que Coutinho Jorge afirma que “[...] a fantasia constitui a realidade psíquica
para cada sujeito”, pois é ela que vai operar a mediação entre o Real e o sujeito,
interpondo-se como uma matriz psíquica, por meio da qual o desejo vai ser sus-
tentado na medida em que vai ser fixado ao sujeito pela ação dela.
9
  Os processos perceptivos e cognitivos não são “neutros”, mas dependem do
sistema de interesses que temos em relação ao mundo. (V. Safatle)

40 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 40 11/12/2020 13:57:36


Uma abordagem rígida admite um único ponto de vis-
ta correto. Os outros envolvidos no assunto estão mal inten-
cionados ou evidentemente equivocados. Acompanhada de
presumida “boa-fé”, nossa postura rígida almeja assegurar o
monopólio da verdade. “Simple As That”, como diz a letra da
música de Paul McCartney.
No entanto, um ponto de vista é a visão a partir de um
ponto. Uma abordagem excludente dos demais ângulos da
realidade é tão reducionista quanto a soma dos outros insights
relativos ao mesmo tema e que restam abstraídos.
Diversamente, podemos nos aproximar da verdade apren-
dendo a conviver com as incertezas e por meio da expressão
de dúvidas e questionamentos que levem a trocas de informa-
ções e ao estabelecimento de diálogos. Confabulando, substi-
tuímos nossa visão unidimensional por lentes multifocais de
ótica perceptual. Expostos a concepções divergentes, temos a
chance de rever nossas próprias formulações, superar o auto-
matismo e formular raciocínios mais complexos e inteligentes.
As reflexões abrangentes e compreensivas de mundo não
são o resultado de um esforço solipsista. Elas decorrem de
exercícios e construções compartilhadas. Sabedoria é o esforço
permanente de ver os problemas em um contexto mais amplo,
sob uma perspectiva multifocal, plurilateral10.
Aristóteles definiu o homem como o ser que possui lin-
guagem, e a linguagem se concretiza por meio do diálogo. A
capacidade para dialogar é um atributo natural do homem11.

10
  Joseph Badaracco.
11
  Luiz Rohden.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 41

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 41 11/12/2020 13:57:37


O diálogo é aquilo que nos deixa uma marca, que nos
modifica por meio do contato com a diversidade contida no
outro, com algo único e com o que ainda não havíamos nos
deparado em nossa própria experiência. Esse encontro possibi-
lita superarmos nossas próprias limitações e ampliarmos nos-
sa compreensão da realidade. Quando um diálogo tem êxito,
somos conduzidos a um novo ponto de equilíbrio e podemos
transformar nossa subjetividade.
De outro lado, a incapacidade para o diálogo decorre da
dificuldade de relativizarmos posições, de empatizarmos com
o interlocutor e de acolhermos outra visão, diferente e estra-
nha à nossa compreensão inicial. Um olhar objetivo e indi-
ferente percebe muito pouco ou mesmo nada do horizonte
que pode ser aberto com a ótica de terceiros e põe a perder a
valiosa oportunidade do exercício da alteridade.
Nossa reatividade emocional também é arqui-inimiga do
diálogo, o que será examinado mais abaixo.
Para dialogar é preciso saber escutar. Baseada em valores
civilizatórios, a ideia de que o outro merece ser ouvido ten-
siona aspectos onipotentes de nossa personalidade, além de
demandar um efetivo esforço para que não restemos limitados
a nosso monólogo interior. A inaptidão para escutar é uma
dificuldade frequentemente identificada nas relações interpes-
soais e, em maior ou menor grau, está presente em todos nós.
Como devemos ajustar nossa postura para evoluirmos para
uma nova atitude dialógica?
Além de entendermos que devemos nos habituar a coe-
xistir com as incertezas, um bom início seria passarmos de

42 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 42 11/12/2020 13:57:37


mensageiros a questionadores. Não teremos mais mensagens
para enviar ao outro fundadas em verdades monopolísticas.
Teremos informações para compartilhar e perguntas para for-
mular. Diremos:
• “Conte mais sobre sua maneira de ver a questão.”
• “Será que você pode me ajudar a compreender isso?”
• “Eu não sabia que você se sentia assim. Explique me-
lhor como isso lhe impacta”.

Em outras palavras, transformar o “Sei tudo o que acon-


teceu” em “Podes me ajudar a entender o que aconteceu?”.
Cada um de nós detém parte das informações e igno-
ra outras. Vamos ver a que novas conclusões podemos chegar
com a combinação de nossos enfoques complementares?
É preciso abandonar a expectativa de persuadir o outro
para impor o próprio ponto de vista e adotar uma postura
capaz de alcançar os seguintes objetivos:
(a) compreender o que aconteceu sob a ótica do outro;
(b) explicar ao outro a sua perspectiva pessoal sobre os
mesmos fatos;
(c) compartilhar sentimentos12 envolvidos no conflito que
se estabeleceu, e,
(d) trabalhar conjuntamente para descobrir como lidar
com a situação dali para a frente.

12
  Quando duas pessoas ficam receando falar dos sentimentos ou da realidade
que percebem, ocorre um afastamento. Quando podem manifestar seus senti-
mentos abertamente, ocorre uma aproximação entre elas.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 43

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 43 11/12/2020 13:57:37


No mesmo sentido, é necessário compreender que nunca
sabemos realmente o que o outro pretendia. Sabemos somente
o que pretendíamos. Conhecemos, também, o impacto das
ações do outro sobre nós e nada sabemos sobre a situação in-
versa. Não dominamos a subjetividade do outro, suas inten-
ções, pensamentos e emoções.
Nesse novo estágio de entendimento, não haverá mais
busca por culpados, já que compreendemos que todos nós
contribuímos para o problema, ainda que sem intenção.
Reunindo diferentes vértices de visualização, os diálogos
tornam-se um rito de preenchimento de lacunas de conhe-
cimento e um processo de criação colaborativa da verdade.
Essa perspectiva compartilhada dos fatos será mais complexa,
profunda e abrangente, alicerçando a descontaminação do re-
lacionamento e a busca por novas opções para o equaciona-
mento dos interesses recíprocos.
Desenvolvermos a capacidade constante de retornar ao
diálogo, isto é, de permanecermos abertos à escuta do outro e
às suas diferenças13, implica ganhos recíprocos e significa ele-
varmos nossa dimensão como seres humanos e sociais, habili-
tados à superação dos conflitos com inteligência e maturidade.

1 AO FALAR, TAMBÉM NOS SURPREENDEMOS

A linguagem oral é o meio de comunicação mais comple-


to que existe, sendo muito mais rica que a linguagem escrita,

13
  Aos poucos, vamos aprendendo a tratar a presença das diferenças entre nós
como uma oportunidade de aprendizagem, ao invés de uma ameaça ou de um
sinal de conflito.

44 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 44 11/12/2020 13:57:37


que oferece como modulação, apenas, os pontos de exclama-
ção, de interrogação e as reticências. A expressão verbal conta
com a entonação da voz, seu timbre, suas pausas, sua cadência,
sua velocidade, tudo com múltiplas inflexões que colorem seu
conteúdo, revelando as demandas do sujeito e permitindo vis-
lumbrar suas motivações mais ocultas.
Ao conversar com alguém, você já teve a sensação de que,
“sem querer”, terminou dizendo algo diferente do que havia
pretendido dizer àquele interlocutor?
Quando as pronunciamos, as palavras têm um valor
diferente daquele que têm nos pensamentos que antecedem
nossas representações verbais. Nos pensamentos, há pulsões
internas que buscam alívio de tensionamentos mediante ex-
teriorização e realização e que pouco ou nada alcançam desse
objetivo. Elas vagueiam pela rede de trilhas do pensamento,
retornando à origem e voltando a circular de forma errante
enquanto o caldeirão ferve no plano inconsciente. Eleva-se a
tensão do aparelho psíquico e o sujeito permanece remoendo
seus pensamentos.
No entanto, ao falar com alguém, essas pulsões internas
alcançam um objeto externo, ou seja, aproveitam-se do conta-
to humano e do canal aberto com o ouvinte para encontrarem
o alívio pretendido, ainda que parcialmente. A fonetização
dirigida a outrem vem impregnada de conteúdos adicionais
(afetos) que transbordam dos pensamentos por onde transi-
taram, levando o sujeito a ser ultrapassado por seu enunciado
e a verbalizar conteúdos involuntários, podendo falar mais do
que havia se proposto ou não saber bem tudo o que disse.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 45

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 45 11/12/2020 13:57:37


O inconsciente se serve das palavras do pré-consciente para
ser ouvido.
Em 1938, em sua última obra, A clivagem do ego, Freud
aponta que, desde a cisão originária, na criança, entre o plano
consciente e o inconsciente, o sujeito se divide, estabelecendo-se
nele uma fenda psíquica que jamais se fechará.
Ao enunciar algo, o sujeito escuta sua fala e a clivagem
se evidencia, permitindo à palavra ganhar certa autonomia e
dar vazão a aspectos recalcados do inconsciente. Por isso, fre-
quentemente quem fala não é senhor do seu discurso, poden-
do exprimir mais ou menos que o pretendido ou dizer coisas
que não queria, que não sabia que sabia e que o surpreendem
como se fosse a fala de outra pessoa.
Fenômeno igual se dá quando o indivíduo não escuta
tudo o que fala, principalmente quando é algo que ele não
queria ter dito. O inconsciente vence o recalque e esse se ma-
nifesta fazendo surgir uma surdez momentânea: o sujeito não
reconhece o que disse e, depois, procura corrigir-se.
Assim, ao falar, podemos aprender muito sobre nós mes-
mos, como estabelecido há milênios nas práticas religiosas que
envolvem diálogos com rabinos ou confissões com padres.

2 REATIVIDADE EMOCIONAL

Reatividade emocional é uma reação involuntária exces-


siva a um estímulo externo. Emerge quando alguém ou algum
evento nos desperta irritabilidade ou “pisa em nossos calos”,
levando-nos a reagir intensamente.

46 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 46 11/12/2020 13:57:37


Trata-se de algo inerente à nossa condição humana de
seres divididos e decorre da dificuldade que experimentamos
no reconhecimento e manejo de nossos próprios sentimentos
e ambiguidades.
Há dois erros básicos em relação ao controle de nossas
emoções. O primeiro, reprimi-las e sufocá-las em sua expres-
são. O segundo, e não menos importante, deixá-las sair livre-
mente, sem qualquer mediação ou restrição14.
Quando reagimos emocionalmente às atitudes de deter-
minada pessoa, de certa forma conferimos a ela o controle da
relação interpessoal. Quando refletimos e depois responde-
mos, sem reagirmos emocionalmente, podemos manter maior
domínio sobre o nosso comportamento e sobre a nossa parcela
na dinâmica do relacionamento.
Reatividade emocional também pode ser vista como uma
oportunidade para uma emoção15 recalcada comunicar-nos so-
bre a sua existência.
A comunicação entre as pessoas se concretiza por inter-
médio da razão ou da emoção. As pessoas se comunicam emo-
cionalmente todo o tempo, em geral sem dar-se conta disso.

14
  Não se pretende obter o inviável comando das emoções, mas tão somente
cotejá-las com a função do pensamento em busca de um melhor balanceamento
interior.
15
  Emotions that are not experienced directly are expressed indirectly and harm-
fully. When our emotions are expressed in a direct and healthy manner, we are
less emotionally reactive. Emotional reactivity is a type of emotional response —
but a distorted, dysfunctional one that is very different than the healthy expres-
sion of emotions. (Jim Piekarski)

Temas de Direito Empresarial 2021 • 47

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 47 11/12/2020 13:57:37


A via racional utiliza a linguagem e a lógica. Colocamos
as ideias em palavras e tentamos comunicá-las aos outros. Esse
meio funciona muito melhor quando estamos calmos.
Já as tensões e a ansiedade podem sinalizar a presença de
perigo iminente, desencadeando uma reação emocional invo-
luntária, não reflexiva16, que nos deixa à mercê do funciona-
mento automático de nossos mecanismos de defesa primitivos.
Nossa mente passa então a ser inundada por emoções
como impaciência, irritabilidade, defensividade ou raiva.
Nesse ponto, já não prestamos atenção às palavras que
são ditas nem à lógica. Sob essa regressiva disfuncionalidade
transitória, captamos apenas nossos próprios sentimentos que
afloram e debilitam nossa capacidade de pensar com clareza,
de dialogar e de agir de forma mais ponderada e racional17.
Ao contrário do que pode parecer, nosso discernimento
não descarrilha devido a um estímulo externo – a eventual
provocação do interlocutor –, mas sim pela exacerbação de
nossa própria reação defensiva.
Quando nos tornamos reativos, damos vazão ao nosso
lado menos desenvolvido e passamos, seguidamente, a atuar
em contradição com nossos próprios interesses e também con-
tra os interesses de nossa organização.

16
  Corresponde ao conceito Kleiniano da posição esquizoparanoide (primeiro
ponto de apoio do bebê na esfera psicológica). Essa posição envolve, segundo
Ogden, uma forma de organização da experiência de natureza predominante-
mente não reflexiva (isto é, a experiência do self que tem poucas características
de “Eu-dade”). Pensamentos e sentimentos não são criações pessoais; eles são
eventos que acontecem. O sujeito não interpreta suas experiências; ele reage a
elas com um alto grau de automaticidade.
17
  This is particularly true when a person is interacting with a loved one and has a
history of emotional reactivity with that person. (idem)

48 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 48 11/12/2020 13:57:37


Esse é um dos principais fatores que podem transformar
simples conversações em discussões hostis.
A reatividade emocional é “contagiosa”, podendo logo
propagar-se entre os interlocutores e desembocar numa esca-
lada de farpas, ofensas e acusações recíprocas que desencadeia
novos conflitos e sabota, às vezes irreversivelmente, nossas in-
terações com determinadas pessoas.
Essa situação se agrava nas empresas familiares pela su-
perposição de papéis ali exercidos nas dimensões da proprie-
dade, da família e da gestão, bem como em decorrência da
confusão entre o tom emocional das interações familiares e as
necessidades frias do pragmatismo empresarial.
Podemos atuar em vários campos para minimizar nossa
reatividade e reduzir as chances de surgimento dos conflitos
que tanto abalam os negócios familiares.
Avançar no processo de diferenciação. Pessoas indife-
renciadas estabelecem alta reatividade em seu convívio social,
atuando com submissão ou com enfrentamento.
Mesmo após sairmos da casa parental, nossa família per-
manece conosco. A reatividade emocional não resolvida na
relação com nossos pais é a pendência mais importante de
nossas vidas, gerando deslocamentos e projeções em terceiros.
A diferenciação é conquistada com o processo de indivi-
duação pessoal. Trata-se da substituição do peso das expecta-
tivas e dos valores impostos pela família e pela sociedade – o
desejo dos outros –, por outros princípios e significados mais
autênticos e identificados com o indivíduo (self). As metas en-
tão fixadas envolvem interesses internos, crescimento pessoal
e enriquecimento dos vínculos humanos, em substituição a

Temas de Direito Empresarial 2021 • 49

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 49 11/12/2020 13:57:37


objetivos que envolvem apenas acumulação, beleza e prestígio,
subordinados a demandas de mera afirmação social.
Ampliar o autoconhecimento. É preciso conhecer e
buscar o equilíbrio entre as personagens internas na infinita
jornada de compreender-se e aceitar-se melhor18, deixando de
ser um forasteiro em sua própria mente. Importa aprender a
identificar a existência de emoções reprimidas que possam ir-
romper deslocadamente ou em projeções que catalisam a rea-
tividade. Incluem-se nessa categoria sentimentos de culpa e
autorreprovação que nos tornam ainda mais reativos à alusão
a aspectos de nossa personalidade ou a eventos de nossa bio-
grafia que secretamente rejeitamos.
Assumir nossa responsabilidade pessoal19. A reativida-
de emocional ocorre dentro de nós, pelo que somos prota-
gonistas e não vítimas de seu surgimento. Não cabe, assim,
transferir20 a terceiros a responsabilidade por sua manifestação
em nosso íntimo.

18
  Vide o ensaio do autor, “Gerenciando a equipe interna”.
19
  Somos responsáveis por nossos sentimentos (que derivam de nossas próprias
escolhas, interpretações e expectativas), bem como pelos nossos pensamentos
e ações, mas não devemos assumir responsabilidade pelos pensamentos, senti-
mentos ou ações de outros.
20
  Externalizing is the act of blaming our problems on the environment or on
others. It puts us in a position of attempting to change what we cannot change
rather than what we can. This stance leads us to feel victimized. Blaming the
outside world gives responsibility for our emotional problems to others, but it is
essential that we take responsibility for the part of the problem that is ours. To feel
like a victim when we are not undercuts our power. Seeing ourselves as victims
increases our emotional reactivity. Two common manifestations of feeling like a
victim are resentment and self-pity – attitudes that lead to emotional reactivity.
When we hold a resentment, we believe that our problems stem from what others
have done to us. With self-pity our object of resentment is more generalized. We
feel fate or life in general has let us down. Both attitudes are dead ends. They make
it impossible for us to feel empowered and to make the changes in our lives that
will make us feel happier. (Jim Piekarski)

50 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 50 11/12/2020 13:57:37


Definir limites interpessoais21. A identificação e o estabe-
lecimento de limites são passos importantes na gestão de reativi-
dade emocional. Quando temos limites reduzidos com pessoas
próximas, os relacionamentos podem se tornar dolorosos.
Ressignificar a trajetória individual. A visão que temos
de nossa vida e do conjunto de nossas interações com pessoas
próximas é ficcional, uma mentira sincera, baseada em peque-
nos grãos de verdade. Já que é assim, devemos relevar nessa
história os elementos trágicos e melodramáticos que trazem
consigo vitimização, ressentimentos e pessimismo, e adicio-
nar ao relato existencial conceitos menos gravosos, que nos
ajudem a ver a vida e as pessoas por um ângulo mais positivo.
Cultivar a flexibilidade e aprender a aceitar a incerteza.
Há valores essenciais ao indivíduo na incerteza e na flexibilida-
de. As patologias da mente residem menos na ideação distorcida
em si do que na certeza e na rigidez com que ela é sustentada e
divulgada e do lugar que essa ideação ocupa na vida da pessoa22.
Compadecer-se e deixar falar. Obviamente, um homem
adulto não revida um inofensivo soco desferido por um meni-
no de quatro anos de idade. O mesmo procedimento devemos
adotar frente às farpas, reais ou imaginárias, que nos dirigem
sócios que também são nossos parentes, pois essas são atitu-
des regressivas que refletem apenas sua fraqueza, insegurança,
imaturidade ou mesmo falta de inteligência.

21
  The key here is that the other person is not responsible for our limits; we are.
(Henry Cloud and John Townsend, “Boundaries: when to say yes, how to say no”).
22
  Leader, Darian. O que é loucura?, Zahar. Edição do Kindle; “A ausência de dúvida
é o mais claro indicador isolado da presença de uma psicose. Essa certeza pode
assumir a forma de uma convicção absoluta de alguma verdade, seja de um delí-
rio…, seja de uma teoria científica ou um dogma religioso”.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 51

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 51 11/12/2020 13:57:37


Para ganhar alguns minutos até conseguir desenvolver
um pouco de compaixão por esses interlocutores hostis, deve-
mos escutá-los e convidá-los a nos iluminar com mais detalhes
de sua sapiência. Já que eles querem muito dizer alguma coisa,
deixe-os falar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Badaracco, Joseph L. Jr., Questions of character: Professor of


Ethics, Harvard Business School.

Cloud, Henry and John Townsend, Boundaries: when to say


yes, how to say no, Grand Rapids, Zondervan, 1999.

Coutinho Jorge, Marco Antonio, Fundamentos da Psicanálise


de Freud a Lacan, vol.1: As bases conceituais, Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2008.

Goldenberg, Herbert, Irene Goldenberg, Family therapy: an


overview, Thomson Brooks, Belmont, CA, 2008.

Guedes, Paulo; Walz, Julio Cesar O sentimento de culpa, Porto


Alegre: Edição do Autor, 2007.

Heijden, Kees Van der, Scenarios the art of strategic conversa-


tion: West Sussex; John Willey & Sons, 2005. Management
Professor, Netherlands Business School, Nijenrode University,
e Templeton College, University of Oxford.

Kevin FitzMaurice, The secret of maturity, Kindle Edition, 2012.

Leader, Darian. O que é loucura?: Delírio e sanidade na vida co-


tidiana (Transmissão da Psicanálise). Zahar. Edição do Kindle.

52 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 52 11/12/2020 13:57:37


Minuchin, Salvador, Families & family therapy, Cambridge,
Harvard Press, 1974.

Nasio, Juan-David, Os olhos de Laura; Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

Nichols, Michael P., The lost art of listening: how learning to


listen can improve relationships, NY: The Guilford Press, 2009.

Ogden, Thomas. A matriz da mente: relações objetais e o diá-


logo psicanalítico. Editora Karnac. Edição do Kindle.

Piekarski, Jim, Reactivity, mastering your emotions, 2012.

Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao


sintoma. Zahar. Edição do Kindle, 2000.

Rohden, L., Hermenêutica filosófica: entre a linguagem da ex-


periência e a experiência da linguagem, São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2002.

Rohden, L., Hans-Georg Gadamer, o Sócrates contemporâneo,


São Leopoldo: Unisinos, s/d.

Safatle, Vladimir, Introdução a Jacques Lacan, Edição do Kindle;

Segal, Hanna, Yesterday, today and tomorrow, New York, Rout-


lege, 2007.

Stone, Douglas, Conversas difíceis, Rio de Janeiro: Campus, 1999.

“The Core Issue: Emotional reactivity”, in http://www.desert-


alchemy.com/info/article/reactivity/

“Impulsive and destructive emotional reactions”, in http://


www.thewisepath.org/Reactive.htm

Temas de Direito Empresarial 2021 • 53

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 53 11/12/2020 13:57:37


“ICMS DESTACADO NA NOTA
FISCAL” X “ICMS EFETIVAMENTE
PAGO”: uma discussão
envolvendo a interpretação da
Coisa Julgada nas demandas
sobre a exclusão do ICMS na base
de cálculo do PIS e da COFINS

Cassiano Menke
Advogado, sócio coordenador da área tributária do escritório Silveiro Advogados,
Doutor e Mestre em Direito Tributário pela UFRGS, professor do curso de espe-
cialização em Direito Tributário da PUCRS/IET, professor de Direito Tributário da
Fundação do Ministério Público – FMP e da Associação dos Juízes do Rio Grande
do Sul – AJURIS, professor de Direito Financeiro e Fiscal da Escola dos juízes fede-
rais do RS – ESMAFE, consultor de Direito Tributário da Fundação Getúlio Vargas
– FGV/Rio de Janeiro, membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/RS.

Maria Angélica Feijó


Sócia da Área Tributária do Silveiro Advogados. Mestre pela UFRGS e pesquisadora
visitante na Universität Heidelberg (Institut für ausländisches und internationales Privat
– und Wirtschaftsrecht), sob a orientação do Professor Christoph Kern, e na Univer-
sità degli Studi di Genova (Istituto Tarello per la Filosofia del Diritto), sob orientação
dos Professores Pierluigi Chiassoni e Mauro Barberis. Professora dos Cursos de
Pós-Graduação Lato Sensu da PUC/RS e da LaSalle. Membro de projetos cujo
objetivo é fomentar a liderança e a visibilidade feminina no âmbito corporativo

54 •

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 54 11/12/2020 13:57:37


(Women In Law Mentoring Brasil – WLM/BR) e dentro do Direito Processual Civil
(Processualistas e “Mulheres no Processo Civil” do Instituto Brasileiro de Direito
Processual – IBDP).

Sumário: Introdução – 1. O problema subjacente: as


decisões judiciais que não fizeram menção expressa à
exclusão do ICMS “destacado” na nota fiscal – 2. Os
argumentos para interpretação da coisa julgada omissa
com relação ao problema “ICMS destacado na nota
fiscal x ICMS efetivamente pago” – Conclusão.

Resumo: O presente artigo aborda uma doutrina da


interpretação, para definir como deve ser interpretada
a coisa julgada nos casos em que o dispositivo da de-
cisão que transitou em julgado determinou a exclusão
do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS,
sem mencionar expressamente que o ICMS a ser ex-
cluído era o ICMS destacado nas notas fiscais.

Palavras-chave: Interpretação; Coisa Julgada; ICMS;


PIS; COFINS.

1 INTRODUÇÃO

A exclusão do ICMS da base de cálculo da COFINS e


do PIS é, paradoxalmente, uma das teses mais “certas” e, ao
mesmo tempo, mais causadora de polêmicas que o STF pro-
duziu nos últimos 25 anos. Em 24.08.2006, formou-se, com
relação ao tema, maioria de votos em favor do contribuinte no
plenário da Corte Suprema. Em 08.10.2014, tal maioria foi
confirmada, tendo o tribunal decidido, no RE 240.785, que
o ICMS não compõe a base de incidência da COFINS. Em

Temas de Direito Empresarial 2021 • 55

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 55 11/12/2020 13:57:37


março de 2017, o Supremo Tribunal Federal reafirmou seu
entendimento. Em tal data, a Corte Suprema finalizou um
dos julgamentos mais relevantes e esperados da história do Di-
reito Tributário em nosso país. Em sede de repercussão geral,
indexada no Tema 69, a Corte Suprema fixou, novamente, a
tese de que o “ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da
COFINS”1. Isso para pacificar a controvérsia travada por anos
entre Fisco Federal e contribuintes. Todavia, em que pese esses
posicionamentos favoráveis aos contribuintes ao longo desses
mais de 20 anos, as discussões sobre a presente matéria, para a
perplexidade de todos, estão longe de acabar.
Ocorre que, após a publicação do Acórdão no recur-
so representativo de controvérsia, o Recurso Extraordinário
nº 574.706, houve Embargos de Declaração opostos pela
União Federal. Nestes embargos, a Procuradoria Geral da Fa-
zenda Nacional buscou prolongar a discussão2 sobre o tema
em relação a dois pontos: (i) a modulação de efeitos e (ii) se o
ICMS a ser excluído da base de cálculo do PIS e da COFINS
deve ser o destacado na nota fiscal ou o ICMS efetivamente
pago. Este segundo ponto é o que, atualmente, tem causado
maiores transtornos aos contribuintes que pleitearam e que
pleiteiam o reconhecimento do seu direito na esfera judicial.

1
  Mitidiero distingue e compara dois modelos de cortes de vértice da organi-
zação judiciária, a Corte Superior e a Corte Suprema. Sobre o perfil e estrutura
destes modelos: Cortes Superiores e Cortes Supremas. Do controle à interpretação,
da Jurisprudência ao Precedente. São Paulo: RT, 2013.
2
  Até o envio deste artigo para publicação, os Embargos de Declaração opos-
tos pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional no Recurso Extraordinário
nº 574.706 ainda estavam pendentes de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal.

56 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 56 11/12/2020 13:57:37


Quanto ao referido segundo ponto, há, por assim dizer,
dois grupos de casos dos contribuintes que tiveram o trânsi-
to em julgado dos seus processos individuais com relação ao
tema: o primeiro grupo, cuja decisão transitada em julgado as-
segurou, expressamente, que o ICMS a ser excluído da base de
cálculo das contribuições federais é o destacado na nota fiscal;
e, o segundo grupo, daqueles contribuintes cuja coisa julgada
foi formada a partir do dispositivo da decisão que não referiu
expressamente que o ICMS a ser excluído é o ICMS destacado
nas notas fiscais. Este segundo grupo é o dos indivíduos que
se encontram vulneráveis aos atos infralegais emitidos pela Re-
ceita Federal do Brasil. É que, segundo o Fisco, o cálculo do
crédito a ser aproveitado pelo contribuinte em tais casos deve
ser realizado considerando-se não o ICMS destacado na nota
fiscal, mas, isto sim, o ICMS efetivamente pago pela empresa
(débitos de ICMS menos créditos de ICMS)3.
É justamente no contexto deste cenário que o presente
artigo é escrito. Mais precisamente, busca-se demonstrar qual
é a correta interpretação a ser adotada com relação às decisões
judiciais individuais que, quanto ao referido tema, transitaram
em julgado sem mencionar expressamente que o ICMS a se ex-
cluir da base de cálculo da COFINS e do PIS seria o “ICMS
destacado em nota fiscal”. Em outras palavras, busca-se, neste
texto, responder a seguinte indagação: nos casos em que a de-
cisão judicial, transitada em julgado e proferida em deman-
da individual de certo contribuinte, foi silente com relação à

3
  Instrução Normativa RFB n° 1911/2019, publicada no Diário Oficial da União
em 15 de outubro de 2019, e Solução de Consulta interna COSIT nº 13, de 18 de
outubro de 2018.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 57

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 57 11/12/2020 13:57:37


“qual” ICMS deveria ser excluído da base de incidência dos
tributos federais em questão, seria correto aplicar o entendi-
mento da RFB, no sentido de que o valor a ser afastado da
tributação seria o do ICMS efetivamente pago? Para respon-
der a esta questão, o presente estudo parte de uma doutrina4
da interpretação da coisa julgada, que tem como contexto a
teoria não cognitivista5 da interpretação das decisões judiciais.
O trabalho encontra-se dividido em duas partes. Na pri-
meira, é analisado o problema propriamente dito. Na segun-
da, demonstra-se a solução quanto ao tema deste estudo.
O que se busca demonstrar com o presente artigo é, pois,
o seguinte: nas demandas individuais envolvendo o Tema 69 do
STF, em que o dispositivo de certa decisão judicial transitou em
julgado sem a menção expressa ao “ICMS destacado”, ainda sim

4
  Sobre a distinção entre doutrina (discurso prescritivo) e teoria (discurso descri-
tivo) da interpretação: ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação.
São Paulo: Malheiros, 2019, pp. 33 e ss.
5
  Com base no tipo da atividade desempenhada pelo intérprete é possível distin-
guir, em linhas gerais, duas diferentes teorias sobre a interpretação: a teoria cog-
nitivista ou formalista da interpretação e, de outro lado, a teoria cética, não cog-
nitivista ou antiformalista da interpretação. Se a atividade do intérprete consistir
apenas em atos de conhecimento para o descobrimento do significado intrínseco
e inequívoco do texto normativo, estaremos diante da primeira teoria. Já, por outro
lado, se a atividade do intérprete também envolver atos de vontade para a escolha
de um significado, dentre os vários possíveis que um texto normativo pode apre-
sentar, estaremos diante da segunda teoria. Nesse sentido, Humberto Ávila:“O
tipo de interpretação identifica a atividade desempenhada pelo intérprete (se
descrição, decisão ou criação) e a teoria da interpretação esclarece o estatuto
lógico da referida atividade (se conhecimento, vontade ou ambos)”. In: “Função
da Ciência do Direito Tributário: do formalismo epistemológico ao estruturalismo
argumentativo”. Revista Direito Tributário Atual. São Paulo: Dialética, 2013. n. 29. p.
183-184). Sobre as teorias da interpretação: TARELLO, Giovanni. L’Interpretazione
della legge. Milano: Giuffrè, 1980; GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare.
Milano: Giuffrè, 2011; CHIASSONI, Pierluigi. Tecnica dell’interpretazione giuridica.
Bologna: Il Mulino, 2007.

58 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 58 11/12/2020 13:57:37


é este o valor relativamente ao tributo estadual em questão a
ser excluído da base de incidência da contribuição ao PIS e da
COFINS, conforme se passa a analisar.

2 O PROBLEMA SUBJACENTE: AS DECISÕES


JUDICIAIS QUE NÃO FIZERAM MENÇÃO
EXPRESSA À EXCLUSÃO DO ICMS “DESTACADO”
NA NOTA FISCAL

Diversos contribuintes ingressaram com demandas judi-


ciais visando a obter o reconhecimento do seu direito de ex-
cluir o ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS. Nesse
contexto, obtiveram êxito em seus processos individuais, nos
quais foi aplicada, em geral, a tese fixada6 no precedente do
RE 574.706, Tema 69, do Supremo Tribunal Federal. Quanto
a essas demandas judiciais individuais, duas questões relati-
vamente ao problema enfrentado neste artigo devem ser aqui
destacadas.
Em primeiro lugar, é importante que se tenha em mente
que a maioria desses contribuintes, na época do ajuizamento
dos seus processos, não havia formulado pedidos específicos

6
  É importante esclarecer que a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal
em sede de Recurso Extraordinário, com repercussão geral reconhecida, possui
eficácia vinculante, nos termos do artigo 927 de Código de Processo Civil. Segundo
este dispositivo, as razões de decidir (ratio decidendi) contidas neste Acórdão se-
rão vinculantes para os casos que tratam do mesmo tema. Ou seja, em que pese
o julgamento tenha como resultado a ementização do tema decidido por meio de
uma ‘tese fixada’, esta nada mais é do que uma síntese do precedente, que está
contido no fundamento do Acórdão emitido pelo Supremo Tribunal Federal. Nes-
se sentido: MITIDIERO, Daniel. “Fundamentação e precedente – Dois discursos a
partir da decisão judicial”. REPRO, vol. 206, 2012, p. 61-77.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 59

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 59 11/12/2020 13:57:37


sobre a exclusão do “ICMS destacado” nas notas fiscais. Esse
não era, em tal momento, um dado relevante de ser discuti-
do de modo específico. A discussão se centrava em saber se
o valor correspondente ao tributo estadual deveria, ou não,
compor a base de cálculo da COFINS e da contribuição ao
PIS relativamente a certa operação de compra e venda e/ou
de prestação de serviço. Isso porque, como se sabe, o valor de
ICMS que efetivamente acaba integrando a apuração do PIS e
da COFINS para fins de recolhimento desses tributos federais
é o ICMS destacado na nota fiscal, conforme demonstraremos
adiante. Logo, a maioria dos contribuintes não travou uma
discussão judicial sobre este ponto específico, muito provavel-
mente pelo fato de esses contribuintes entenderem que, ao se
falar em “ICMS”, se estaria tratando do tributo estadual que
realmente serve de base para a COFINS/PIS, a saber, o ICMS
indicado na nota fiscal.
O certo é que referido debate sobre saber qual valor de
ICMS deveria ser excluído da base de incidência dos aludidos
tributos federais somente veio à tona recentemente, quando
opostos os Embargos de Declaração no Recurso Extraordiná-
rio nº 574.706, pela PGFN. Foi esse recurso que, em verdade,
criou o problema hoje conhecido como o “ICMS destacado na
nota fiscal x ICMS efetivamente pago”.
Em segundo lugar, diante do contexto fático acima narra-
do, há, como se sabe, diversos Acórdãos que foram proferidos
pelos Tribunais Regionais Federais depois de a decisão do STF
ter sido lançada. Dentro desse universo de acórdãos, há aque-
les que transitaram em julgado tendo no dispositivo da deci-
são o reconhecimento do direito do contribuinte de excluir o
ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS, sem, todavia,

60 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 60 11/12/2020 13:57:37


mencionar expressamente se esse ICMS seria o “destacado na
nota fiscal” ou o “efetivamente pago”. Ainda assim, todos esses
Acórdãos, por certo, tiveram como fundamento para decisão
favorável ao contribuinte o precedente vinculante do Supremo
Tribunal Federal indexado no Tema 69.
Exatamente nesse contexto de fato é que surge a indagação
central a ser respondida no presente trabalho, já mencionada
acima, qual seja: ainda que a parte final (dispositiva) de certa
decisão judicial não tenha feito menção à exclusão do ICMS
destacado na nota fiscal da base de cálculo da COFINS/PIS,
seria correto, com base nos motivos dessa decisão, se chegar a
essa conclusão? Ou a mencionada parte dispositiva e final da
decisão judicial deveria ser interpretada literal e isoladamente
do seu contexto, de tal modo a deixar ao Fisco a liberdade in-
terpretativa no que se refere ao valor do ICMS que teria de ser
realmente excluído da base de incidência dos tributos federais
em questão?
Como logo se vê, o tema acerca da interpretação da coisa
julgada assume fundamental relevância para o enfretamento
do presente problema. Isso porque somente a partir de uma
adequada atribuição de sentido à decisão que se tornou imu-
tável em certo processo judicial é que se torna possível saber
quais são os exatos limites da sua eficácia positiva e negativa,
em relação ao objeto e aos sujeitos que participaram desta re-
lação jurídica processual.
Com relação à coisa julgada, é importante, mais especi-
ficamente, mencionar o seguinte: trata-se do efeito jurídico7

7
  Aqui não desconsideramos toda a discussão doutrinária sobre a natureza da
coisa julgada, se autoridade ou eficácia, tal como historicamente foi estudada. Con-
tudo, entendemos que o mais adequado é tratá-la como efeito. Sobre a discussão

Temas de Direito Empresarial 2021 • 61

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 61 11/12/2020 13:57:37


outorgado a um fato jurídico complexo8, composto por uma
decisão judicial, que versa sobre mérito e que é tomada por
meio de cognição exauriente, e, ainda, sobre a qual não cabe
mais recurso. Tal efeito jurídico compreende a imutabilidade
e a indiscutibilidade do conteúdo do dispositivo de uma deci-
são. Assim, a coisa julgada, para além de ser um efeito jurídico,
é, também, a norma jurídica individual criada pelo julgador, a
partir de enunciados textuais (texto), para solucionar certo caso
concreto. E, exatamente por ser produzida a partir de textos, a
coisa julgada, para ter seu conteúdo construído com exatidão,
depende de interpretação.
Quanto ao tema envolvendo a necessidade de interpreta-
ção de textos normativos, vale lembrar que, conforme as lições
do Realismo Jurídico dos analíticos genoveses9, tendo por mais

entre autoridade e eficácia, vide: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Ainda e sem-
pre a coisa julgada”. In: Direito processual civil. Rio de Janeiro, Borsói, 1971. “Coisa
julgada e declaração”. In: Temas de direito processual – 1.ª série. São Paulo, Saraiva,
1977. “Eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada”. In: Ajuris/28. Porto
Alegre, s/e, 1983. “Conteúdo e efeitos da sentença: variações sobre o tema”. In:
Revista brasileira de direito processual/46. Rio de Janeiro, Forense, 1946. BAPTISTA
DA SILVA, Ovídio A. “Eficácia da sentença e coisa julgada”. In: Sentença e coisa
julgada. 2.ª ed., Porto Alegre, Fabris, 1988. “Conteúdo da sentença e coisa jul-
gada”. In Revista brasileira de direito processual/46. Rio de Janeiro, Forense, 1985.
LIEBMAN, Enrico Tullio. Efficacia ed autorità della sentenza. Reimpressão. Milão,
Giuffrè, 1962. “Effetti della sentenza e cosa giudicata”. In: Rivista di diritto proces-
suale/34. Pádua, Cedam, 1979. “Sentenza e coisa giudicata: recenti polemiche”. In:
Rivista di diritto processuale/35. Pádua, Cedam, 1980.
8
  DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso
de Direito Processual Civil – V. 2. 15ª ed. Salvador: Juspodivm, 2020, pp. 639 e ss.
9
  Em realidade, nos últimos anos se esculpiu uma verdadeira comunidade cientí-
fica ítalo-ibero-americana que discute lições de teoria filosofia do direito, a partir
das ideias de Bobbio, Bulygun e Kelsen, conforme aponta Jordi Bentrán na obra:
BELTRÁN, Jordi Ferrer; RATTI, Giovanni B. El Realismo jurídico genovés. Madrid:
Marcial Pons, 2011. São expoentes do Realismo genovês: Giovanni Tarello, Riccar-
do Guastini, Mauro Barberis, Pierluigi Chiassoni, Paolo Comanducci, Susanna Po-
zzolo, Giovanni Battista Ratti e Giovanni Damele. A este respeito, ver: BARBERIS,

62 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 62 11/12/2020 13:57:37


contemporânea a doutrina de Riccardo Guastini, também
trabalhadas no Brasil por Humberto Ávila, texto e norma não
se confundem. Nessa concepção, por assim dizer, genovesa, a
norma é o sentido que é dado ao texto pelo intérprete, median-
te atividade descritiva e adscritiva de significados. Mais precisa-
mente, o intérprete, de acordo com esta teoria, não praticaria
apenas atos de conhecimento. Ele praticaria, também, atos de von-
tade, na medida em que os textos normativos são potencialmen-
te equívocos, isto é, podem apresentar mais de um significado.
Assim, a tarefa do intérprete – que, neste caso, é o juiz – deixa
de ser a mera descoberta da vontade da lei, para transformar-se
na reconstrução do sentido dos textos normativos. Isso mediante a
atividade de individualização dos possíveis significados reconhe-
cidos a partir do texto, para, posteriormente a isso, a valoração
e a escolha de um desses significados como aquele que deve ser
tomado como correto, em detrimento dos demais10.
Aplicando-se essas ligeiras considerações ao assunto en-
volvendo a interpretação da coisa julgada, é correto afirmar o
seguinte: o texto do dispositivo de certa decisão deve, como
tal, ser interpretado. Isso para que se torne possível identifi-
car o conteúdo da norma individual que foi produzida para
regular determinado caso, isto é, para identificar, em outras
palavras, a coisa julgada. Essa atividade interpretativa deve,

Mauro. “Genoa’s realism: a guide for the perplexed”. Revista Brasileira de Filosofia.
Ano 62, vol. 240, jan-jun/2013. p. 13-25.
10
  CHIASSONI, Pierluigi. Tecnica dell’interpretazione giuridica. Bologna: Il Mulino,
2007. p. 51. GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare. p. 45 e ss; MITIDIE-
RO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas. Do controle à interpretação, da
jurisprudência ao precedente. p. 55.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 63

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 63 11/12/2020 13:57:37


por sua vez, respeitar o contexto11 em que a decisão está inse-
rida, visto que estamos diante de uma interpretação concreta.
É devido, nesse sentido, examinar os motivos da decisão cujo
conteúdo da coisa julgada se deseja identificar, para que, a par-
tir deles, se possa dimensionar a extensão dos efeitos daquilo
que foi realmente decidido.
Sendo assim, no que se refere, especificamente, ao tema
do presente artigo, é acertado dizer que o exame da funda-
mentação das decisões que transitaram em julgado é essencial
para a determinação do sentido da coisa julgada, ainda que,
no texto do dispositivo dessas decisões, não esteja expressa a
autorização para exclusão do “ICMS destacado”, mas somente
a menção ao “ICMS”. Nesse ponto, aliás, é importante lem-
brar que o próprio Código de Processo Civil (artigo 504, inci-
so I) estabelece que, ainda que os motivos (i.e. fundamentos)
da decisão não façam parte da coisa julgada, eles cumprem
papel relevante para determinar o alcance da parte dispositiva
da decisão. No caso envolvendo, precisamente, a exclusão do
ICMS da base de cálculo da COFINS e da contribuição ao
PIS, o exame desses motivos assume ainda maior relevo. Isso
porque, em se tratando de matéria em relação à qual há, como
visto, precedentes do STF, cumpre aos tribunais regionais se-
guir com rigor o conteúdo desses precedentes. E seguir prece-
dentes, por sua vez, não implica, apenas, replicar determinada
solução jurídica adotada por uma Corte Suprema, mas, mui-
to além disso, significa incorporar, na decisão a ser tomada,

11
  Sobre a necessidade de se levar em conta o contexto para interpretação: BARBE-
RIS, Mauro. “Pluralismo argomentativo. Sull’argomentazione dell’interpretazione”.
Etica & Politica/Ethics & Politics, 2006, 1.

64 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 64 11/12/2020 13:57:37


as razões jurídicas que fundamentam a edificação do aludido
precedente.
Em face, portanto, de todas as considerações acima ex-
postas, cumpre, a partir de agora, demonstrar quais são os
argumentos presentes no contexto da decisão do STF com
relação ao assunto. Isso porque é a partir desses argumentos,
e, com base neles, que se pode chegar à correta interpretação
da coisa julgada omissa com relação ao assunto envolvendo
“ICMS destacado na nota fiscal x ICMS efetivamente pago”.

3 OS ARGUMENTOS PARA A INTERPRETAÇÃO


DA COISA JULGADA OMISSA COM RELAÇÃO AO
PROBLEMA “ICMS DESTACADO NA NOTA FISCAL
X ICMS EFETIVAMENTE PAGO”

Conforme foi mencionado acima, as decisões envolvendo


a exclusão do ICMS da base de cálculo da COFINS e do PIS
têm como fundamento principal o precedente vinculante do
Supremo no Recurso Extraordinário nº 574.706 (Tema 69).
Este determinou a exclusão do “ICMS destacado” em nota
fiscal, e não do “ICMS pago” ao poder público estadual, da
base de cálculo da COFINS e da contribuição ao PIS.
Essa vinculação das decisões proferidas pelos Tribunais
Regionais Federais à decisão do Supremo, vale ressaltar, é, a
rigor, uma consequência da adoção, pela Constituição Federal
e pelo Código de Processo Civil Brasileiro, da teoria dos pre-
cedentes obrigatórios, quanto à qual é adequado que se façam,
aqui, as considerações que seguem abaixo.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 65

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 65 11/12/2020 13:57:37


A teoria dos precedentes obrigatórios está baseada no ra-
ciocínio segundo o qual, ao decidirem determinado caso, as
Cortes Supremas, como o Supremo Tribunal Federal, realizam
escolhas interpretativas. Por meio dessas escolhas, tais Cortes
definem, dentre os possíveis sentidos que poderiam ser empre-
gados aos enunciados normativos por elas examinados, aquele
que deve ser objeto de estipulação. Nas palavras de Derzi, a
“decisão judicial configura o fechamento da plurissemia da
linguagem da norma legal”12 e, assim, cria o Direito13. A de-
cisão judicial cumpre, nesse contexto, a função de precisar o
sentido do enunciado normativo interpretado diante de certo
quadro fático existente.
Por precisarem o conteúdo normativo em relação a deter-
minados casos cuja solução é universalizável para os demais, as
decisões proferidas pelas Cortes Supremas reconstroem “nor-
mas jurídicas gerais” a serem aplicadas sobre o mesmo objeto.
Tais normas são denominadas de precedentes, assim considera-
dos os atos normativos com alto grau de vinculação para o Po-
der Judiciário e para a sociedade, segundo os quais é realizada
a justa interpretação da ordem jurídica14.
O precedente é delimitado pela ratio decidendi constante
do corpo da decisão judicial. Essa ratio consiste, por sua vez,
na norma expressa ou implicitamente dada pelo Magistrado

12
  DERZI, Misabel de Abreu Machado. Modificações da jurisprudência: proteção da
confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao
poder judicial de tributar. São Paulo: Noeses, 2009, p. 266 e p. 587.
13
  Ibid., p. 587.
14
  MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do controle à interpre-
tação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
op. cit., p. 102 e ss.

66 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 66 11/12/2020 13:57:37


como razão suficiente e necessária à solução de um caso15. Iden-
tificar a ratio decidendi significa formular, a partir da decisão
judicial dada, a norma geral da qual essa mesma decisão pode
ser inferida. Trata-se de induzir, de uma decisão individual,
uma norma geral que a justifica e que se torna capaz de regu-
lar os casos iguais examinados pelo Poder Judiciário16. É um
processo de universalização que transcende a particularidade
do caso17. Os precedentes, portanto, como universalização de
razões de decidir, vinculam o Poder Judiciário com relação à
sua observância no presente e no futuro e, desse modo, criam
confiança na estabilidade normativa18. Em outras palavras: eles
estabilizam determinado entendimento jurisprudencial.
Essa eficácia vinculante e geradora de confiança que ema-
na dos precedentes está fundamentada no ordenamento jurí-
dico brasileiro, de um lado, em disposições normativas gerais19.

15
  MACCORMICK, Neil. Legal Reasoning and Legal Theory (1978). Oxford: Oxford
University, 2003, p. 215; MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas:
do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2013, op. cit., p. 104.
16
  GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare. Milano: Giuffrè, 2011, p. 264; Vide,
também: DERZI, Misabel de Abreu Machado. Modificações da jurisprudência: proteção
da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao
poder judicial de tributar. São Paulo: Noeses, 2009, p. 257-258, p. 290-291.
17
 PECZENIK, Aleksander. On law and reason. 2. ed. Springer, 2008, p. 273;
SCHAUER, 2009, pos. 2149 e 2150 de 3538.
18
  SCHAUER, Frederich. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning.
Cambridge: Harvard University. eBook Kindle Edition 2009, pos. 2166 de 3538.
Segundo Schauer: “It is an important consequence of the generality of reasons that
a person (or a court) who gives a reason for a decision is typically committed to that
reason on future occasions. […] And thus, when in law a court gives a reason for a
decision, it is expected to follow that reason in subsequent cases falling within the
scope of the reason articulated by the court on the first occasion”.
19
  Sobre a força normativa dos precedentes, vide: MARINONI, Luiz Guilherme. Pre-
cedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 120 et seq.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 67

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 67 11/12/2020 13:57:37


Isso porque a referida vinculação visa a promover a igualdade,
mais precisamente a coerência temporal das manifestações do
Poder Judiciário, de modo que casos iguais sejam decididos
igualmente ao longo do tempo (art. 5.º, caput e preâmbulo,
da CF/88)20. Além disso, o caráter vinculante dos precedentes
judiciais visa a tornar a ordem jurídica cognoscível, calculável
e confiável, isto é, visa a torná-la uma ordem juridicamente
segura (art. 5.º, caput e preâmbulo, da CF/88)21. Cognoscível,
porque os precedentes contribuem para a determinabilidade
do conteúdo normativo. Sabe-se qual é a norma que regula
determinada circunstância de fato. Calculável, porque os pre-
cedentes possibilitam a previsão do espectro de consequên-
cias jurídicas a que o cidadão estará submetido no futuro por
praticar, no presente, determinados atos e fatos. E confiável,
porque os precedentes contribuem para a estabilidade e conti-
nuidade normativas. Eles permitem configurar um estado de
coisas em que o tratamento dos casos é uniforme e constante.
A vinculação do Poder Judiciário aos seus precedentes
também encontra, por outro lado, previsões específicas no
Código de Processo Civil. Exatamente nesse sentido é que o
art. 926 do CPC determina que os tribunais devem uniformi-
zar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
Por outro lado, o art. 927 preceitua que os juízes e os tribunais
observarão as decisões proferidas pelo STF, seja em controle con-
centrado de constitucionalidade, seja por meio do controle difuso.

20
  Ibid., p. 141 et seq.
21
  MITIDIERO, 2013, p. 103.

68 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 68 11/12/2020 13:57:37


Essas considerações demonstram que os precedentes têm,
por assim dizer, dupla força normativa, a saber, força normati-
va formal (vinculatividade formal) e força normativa material
(vinculatividade material). Força normativa formal consiste no
efeito vinculante do qual o precedente é dotado em decor-
rência de expressa disposição legal, como é o caso dos artigos
926 e 927 acima citados. Força normativa material, por outro
lado, decorre do conteúdo da decisão e do seu órgão prolator,
assim como do dever de promoção dos ideais de segurança ju-
rídica e de igualdade22. A vinculatividade do precedente, nesse
caso, advém da pretensão de permanência e da definitivida-
de que essas decisões apresentam. Fala-se, aqui, de um dever
de vinculação às razões do precedente. Isso em face de eles
terem conteúdo capaz de ser universalizado para solução de
casos semelhantes. Advém, igualmente, da circunstância de te-
rem sido proferidas por cortes supremas a quem cabe, segundo
a CF/88, dar a última palavra em determinadas matérias. Por
exemplo, as decisões proferidas pelo STF, depois de terem pas-
sado pelo teste de repercussão geral, como aquela proferida no
RE 574.706, constituem normas jurídicas (precedentes) em
razão do seu conteúdo e do órgão que a prolatou (Tribunal
Pleno do STF). Como só há repercussão geral em controvér-
sias que vão além do interesse individual das partes, toda de-
cisão proferida em recurso extraordinário indica a orientação

22
  ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2014, p. 498; Nesse sentido: MENKE, Cassiano. Revista de Estudos Tributários e
Aduaneiros do III Seminário do CARF./Brasil. Ministério da Fazenda. CARF. Coor-
denação de Marcus Lívio Gomes e Francisco Marconi de Oliveira. Brasília: CNC,
2018, pp. 67-105, p. 93.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 69

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 69 11/12/2020 13:57:37


a ser seguida também para o restante dos casos iguais àquele
decidido pelo STF23.
Todas as considerações acima expostas relativamente à
força vinculante dos precedentes querem significar o seguinte:
a decisão proferida pelo Supremo, no Recurso Extraordinário
nº 574.706, vincula os demais órgãos do Poder Judiciário não
apenas quanto ao dever de estes seguirem, por imposição le-
gal (art. 927, do CPC), a solução jurídica adotada pela Corte
constitucional. A vinculação existente em tal caso diz respeito,
especialmente, ao dever de os membros do Poder Judiciário
adotarem as razões consubstanciadas no precedente como ra-
tio decidendi dos pronunciamentos individuais a serem emiti-
dos. Isso porque são essas razões, quando realmente adotadas
pelo caso individual, que faz haver efetiva igualdade de trata-
mento entre soluções jurídicas.
Desse modo, ao se constatar que um Tribunal Regional
Federal aplicou, depois de a Corte Suprema ter se pronuncia-
do, o conteúdo do que foi decidido pelo Supremo relativa-
mente ao Recurso Extraordinário nº 574.706, é certo afirmar
que as razões de decidir do precedente (do Supremo) devem
ser tomadas como necessariamente incorporadas às razões de
decidir de processos individuais. Em outras palavras: a coisa
julgada formada nas ações individuais deve ser interpretada
a partir do e com base no conteúdo do que foi julgado pelo
Supremo, nunca de forma contrária.

23
  DERZI, Misabel de Abreu Machado. Modificações da jurisprudência: proteção
da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais
ao poder judicial de tributar. São Paulo: Noeses, 2009, p. 279.

70 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 70 11/12/2020 13:57:37


Nesse contexto, a definição do conteúdo da coisa julgada
naqueles casos em que, como se disse, a decisão judicial foi
omissa com relação a mencionar que o ICMS a ser excluído
da base de cálculo da COFINS/PIS seria o ICMS destacado
em nota fiscal depende de se saber quais foram, na realidade,
as razões de decidir do precedente do STF. Isto é, para que se
defina o conteúdo e o alcance da decisão do caso individual,
se impõe, por tudo o que já se disse anteriormente, que se es-
clareça quais são, a rigor, as razões que compõem o precedente
vinculante do Supremo no RE 574.706 (Tema 69), no qual
houve a fixação da tese “O ICMS não compõe a base de cálculo
para incidência do PIS e da COFINS”.
E isso tem de ser feito a partir da análise dos fundamen-
tos do voto vencedor do leading case, bem como dos demais
votos que o acompanharam, o que passa a ser feito abaixo.
Nesse sentido, veja-se, em primeiro lugar, como se sabe,
que a questão sobre a qual se debruçou o STF foi precisamen-
te a impossibilidade da inclusão da integralidade do ICMS na
base de cálculo da contribuição ao PIS e da COFINS. Isto
porque o ICMS que compõe o faturamento das empresas
– e que é a base de cálculo das contribuições analisadas – é
o ICMS destacado na nota fiscal. A leitura atenta dos votos
proferidos pela Ilma. Ministra Relatora Carmen Lúcia e pelos
Ilmos. Ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes revela que o
tema foi devidamente enfrentado no julgamento do Recurso
Extraordinário nº 574.706. Observe-se:

“Desse quadro é possível extrair que, conquanto nem


todo o montante do ICMS seja imediatamente re-

Temas de Direito Empresarial 2021 • 71

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 71 11/12/2020 13:57:37


colhido pelo contribuinte posicionado no meio da
cadeia (distribuidor e comerciante), ou seja, parte do
valor do ICMS destacado na ‘fatura’ é aproveitado
pelo contribuinte para compensar com o montan-
te do ICMS gerado na operação anterior, em algum
momento, ainda que não exatamente no mesmo, ele
será recolhido e não constitui receita do contribuin-
te, logo ainda que, contabilmente, seja escriturado,
não guarda relação com a definição constitucional
de faturamento para fins de apuração da base de
cálculo das contribuições.

A parcela do ICMS destacada na nota fiscal quando


da aquisição (pela entidade) do bem ou da mercadoria
não é tributo, e sim preço.

O problema reside, assim, em saber se o ICMS desta-


cado nas notas fiscais de vendas de mercadorias ou
serviços integra o conceito de faturamento, para fins
de cobrança do PIS e da COFINS.”

Conforme o trecho acima colacionado, o voto vencedor


da Ministra Relatora é claríssimo no sentido de que o valor do
ICMS a ser excluído para fins de apuração das aludidas con-
tribuições é o ICMS total incidente na operação – i.e. o ICMS
destacado na nota fiscal. Ponto adicional e relevante a ser aqui
esclarecido é que, neste julgamento do Recurso Extraordinário
nº 574.706, o Supremo nem sequer poderia pretender discutir
outra questão, senão a exclusão do ICMS destacado da base
das contribuições. Isso em razão das peculiaridades do caso
paradigma. Veja-se, nesse aspecto, que o caso que deu origem
ao Recurso Extraordinário representativo da controvérsia teve

72 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 72 11/12/2020 13:57:37


sentença de procedência do pedido do contribuinte. A sua
parte dispositiva foi prolatada no seguinte sentido:

“(...) para reconhecer o direito da impetrante de ex-


cluir da base de cálculo da COFINS e do PIS a parcela
relativa ao ICMS destacado na nota fiscal.”

Note-se que a decisão acima citada foi muito clara em


acolher o pedido do autor daquela ação, para o fim de deter-
minar a exclusão do “ICMS destacado” das bases de incidên-
cia dos tributos federais. Após ter sido proferida tal sentença,
esta decisão acabou sendo reformada em sede de Recurso de
Apelação. Em razão disso, o Recurso Extraordinário interpos-
to pelo contribuinte visava, justamente, a reformar o Acórdão
de Apelação, no intuito de restabelecer o resultado da senten-
ça, vale dizer, de restabelecer a decisão no sentido de que o
ICMS a ser excluído dos tributos federais era o “destacado”,
não o “pago”, o que, no final, acabou ocorrendo.
Em verdade, a interpretação realizada pelo Supremo no
julgamento do Recurso Extraordinário nº 574.706, portanto,
nada mais representa, sob o ponto de vista processual, do que
uma decorrência lógica do andamento do processo paradigma
e do provimento do recurso da parte que pedia a exclusão do
ICMS destacado, para fins da aludida tributação federal. Além
disso, a análise do caso concreto feita pelo Supremo Tribunal
Federal é rigorosamente coerente com a sistemática das apura-
ções destas contribuições. Isso porque, se na contabilização do
faturamento está englobado o valor total das receitas oriundas
das vendas realizadas pela empresa, inclusive o ICMS da nota

Temas de Direito Empresarial 2021 • 73

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 73 11/12/2020 13:57:37


fiscal e não apenas o ICMS efetivamente pago, logo, deve ser
aquele (ICMS da nota fiscal) e não este o valor a ser excluído
da aludida base de incidência. Dito de outra forma, o valor do
ICMS destacado (que é aquele devido na operação) é o que
deve ser excluído da base de cálculo da COFINS e da contri-
buição ao PIS.
Em segundo lugar, é necessário frisar que, ao decidir so-
bre a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base das
contribuições federais em exame, o Supremo estava analisan-
do, a rigor, o conceito constitucional de faturamento/receita. E
como se sabe, faturamento/receita são, por assim dizer, o nú-
cleo material da hipótese de incidência do PIS e da COFINS.
A definição desses elementos, por sua vez, tem a ver, como
também se sabe, com um tipo de ingresso de caixa, nunca com
um custo da empresa por conta da aquisição de mercadorias a
serem revendidas.
Logo, ao decidir pela exclusão do ICMS destacado nas
notas fiscais, o raciocínio aplicado por este precedente foi o de
excluir da definição de faturamento/receita o ICMS que esta-
ria indevidamente embutido nesta, já que tal tributo estadual
não coincide com a definição de faturamento/receita. Ou seja,
o Supremo tratou a parcela do ICMS que verdadeiramente
impacta a receita da empresa, a saber, o ICMS incluído em
tal receita. Era isso que estava em jogo no julgamento do Re-
curso Extraordinário nº 574.706. Não há como se cogitar,
tal como pretende a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacio-
nal, a partir do precedente do Supremo, que haveria o dever
de o contribuinte excluir o ICMS da base de créditos, já que
este nada tem a ver com a hipótese de incidência das aludidas

74 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 74 11/12/2020 13:57:37


contribuições federais e, portanto, não está no campo de aná-
lise do precedente da Corte Suprema.
Em terceiro lugar, é essencial destacar que o Supremo
Tribunal Federal já teve a oportunidade de interpretar o seu
próprio precedente, de forma autêntica, e, nessa ocasião, de
ratificar o posicionamento de que o precedente vinculante do
STF no Recurso Extraordinário nº 574.706 (Tema 69). Isso
no sentido de determinar a exclusão do valor do ICMS des-
tacado nas notas fiscais de saída, não do valor do ICMS efeti-
vamente pago pela empresa, após a consideração dos créditos
relativamente a esse tributo estadual.
Note-se, nesse contexto, que, no âmbito do Recurso
Extraordinário nº 574.706, a Corte decidiu que “o Supremo
Tribunal Federal afirmou que o montante de ICMS destacado
nas notas fiscais não constituem receita ou faturamento, razão
pela qual não podem fazer parte da base de cálculo do PIS e da
COFINS”24, posição esta que vem sendo reiteradamente ado-
tada pela jurisprudência nacional.
As considerações alinhadas acima demonstram que,
ainda que existam decisões que transitaram em julgado sem
conter expressamente em seu dispositivo a autorização para
exclusão do “ICMS destacado”, o precedente vinculante pro-
ferido pelo Supremo, no Recurso Extraordinário nº 574.706,
estabeleceu, inequivocamente, conforme se viu, que a tributo
estadual a ser suprimido da base de cálculo dos aludidos tri-
butos federais é aquele que é destacado nas notas fiscais de

24
  RE 954.262/RS, Relator Min. Gilmar Mendes, julgado em 20/08/2018, publi-
cado em 23/08/2018;

Temas de Direito Empresarial 2021 • 75

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 75 11/12/2020 13:57:37


saída do contribuinte. Essa é a interpretação correta a ser ado-
tada para todos os casos individuais em que a solução jurídica
adota foi, expressamente, a ratio decidendi emitida no Recurso
Extraordinário nº 574.706.
A decisão do precedente, ao ser adotada, substitui e, ao
mesmo tempo, integra a fundamentação de todas as decisões a
serem proferidas nos casos individuais, sob pena, de se assim não
for, ser cabível reclamação ao Supremo Tribunal Federal.
Em que pese a certeza acima exposta com relação ao con-
teúdo do precedente normativo do Recurso Extraordinário nº
574.706, não é de se deixar de considerar que, por outro lado,
os órgãos fazendários federais vêm tentando distorcer a inter-
pretação oficial proferida pelo Supremo para o caso. Nesse
sentido, veja-se que a Receita Federal do Brasil editou Solução
de Consulta COSIT e Instrução Normativa visando a “escla-
recer” qual seria o valor de ICMS – no entendimento desta
Autoridade Tributária – passível de exclusão da apuração das
contribuições em exame. Contudo, tais normativas infralegais
são inconstitucionais, por violarem o que foi decidido pelo
Supremo no Tema 69.
A Solução de Consulta interna COSIT nº 13, de 18 de
outubro de 2018, nada mais é do que a interpretação distorcida
da RFB sobre o precedente vinculante do STF. E, segundo esta,
“o montante a ser excluído da base de cálculo mensal da contribui-
ção é o valor mensal do ICMS a recolher, conforme o entendimen-
to majoritário firmado no julgamento do Recurso Extraordinário
nº 574.706/PR, pelo Supremo Tribunal Federal”. Abaixo colacio-
na-se a ementa de referida Solução de Consulta:

76 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 76 11/12/2020 13:57:37


ASSUNTO: CONTRIBUIÇÃO PARA O PIS/PASEP
EXCLUSÃO DO ICMS DA BASE DE CÁLCULO
DA CONTRIBUIÇÃO.
Para fins de cumprimento das decisões judiciais tran-
sitadas em julgado que versem sobre a exclusão do
ICMS da base de cálculo da Contribuição para o PIS/
Pasep, no regime cumulativo ou não cumulativo de
apuração, devem ser observados os seguintes procedi-
mentos:
a) o montante a ser excluído da base de cálculo
mensal da contribuição é o valor mensal do ICMS
a recolher, conforme o entendimento majoritário
firmado no julgamento do Recurso Extraordinário
nº 574.706/PR, pelo Supremo Tribunal Federal;
b) considerando que na determinação da Contribui-
ção para o PIS/Pasep do período a pessoa jurídica apu-
ra e escritura de forma segregada cada base de cálculo
mensal, conforme o Código de Situação Tributária
(CST) previsto na legislação da contribuição, faz-se
necessário que seja segregado o montante mensal do
ICMS a recolher, para fins de se identificar a parcela
do ICMS a se excluir em cada uma das bases de cálcu-
lo mensal da contribuição;
c) a referida segregação do ICMS mensal a recolher,
para fins de exclusão do valor proporcional do ICMS,
em cada uma das bases de cálculo da contribuição,
será determinada com base na relação percentual exis-
tente entre a receita bruta referente a cada um dos tra-
tamentos tributários (CST) da contribuição e a receita
bruta total, auferidas em cada mês;
d) para fins de proceder ao levantamento dos valores
de ICMS a recolher, apurados e escriturados pela pes-
soa jurídica, devem-se preferencialmente considerar os

Temas de Direito Empresarial 2021 • 77

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 77 11/12/2020 13:57:37


valores escriturados por esta, na escrituração fiscal di-
gital do ICMS e do IPI (EFD-ICMS/IPI), transmitida
mensalmente por cada um dos seus estabelecimentos,
sujeitos à apuração do referido imposto; e
e) no caso de a pessoa jurídica estar dispensada da
escrituração do ICMS, na EFD-ICMS/IPI, em
algum(uns) do(s) período(s) abrangidos pela decisão
judicial com trânsito em julgado, poderá ela alterna-
tivamente comprovar os valores do ICMS a recolher,
mês a mês, com base nas guias de recolhimento do re-
ferido imposto, atestando o seu recolhimento, ou em
outros meios de demonstração dos valores de ICMS a
recolher, definidos pelas Unidades da Federação com
jurisdição em cada um dos seus estabelecimentos.
Dispositivos Legais: Lei nº 9.715, de 1998, art. 2º;
Lei nº 9.718, de 1998, arts. 2º e 3º; Lei nº 10.637,
de 2002, arts. 1º, 2º e 8º; Decreto nº 6.022, de 2007;
Instrução Normativa Secretaria da Receita Federal do
Brasil nº 1.009, de 2009; Instrução Normativa Secre-
taria da Receita Federal do Brasil nº 1.252, de 2012;
Convênio ICMS nº 143, de 2006; Ato COTEPE/
ICMS nº 9, de 2008; Protocolo ICMS nº 77, de 2008.
ASSUNTO: CONTRIBUIÇÃO PARA O FINANCIA-
MENTO DA SEGURIDADE SOCIAL – COFINS
EXCLUSÃO DO ICMS DA BASE DE CÁLCULO
DA CONTRIBUIÇÃO.
Para fins de cumprimento das decisões judiciais tran-
sitadas em julgado que versem sobre a exclusão do
ICMS da base de cálculo da COFINS, no regime
cumulativo ou não cumulativo de apuração, devem
ser observados os seguintes procedimentos:
a) o montante a ser excluído da base de cálculo
mensal da contribuição é o valor mensal do ICMS

78 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 78 11/12/2020 13:57:37


a recolher, conforme o entendimento majoritário
firmado no julgamento do Recurso Extraordinário
nº 574.706/PR, pelo Supremo Tribunal Federal;
b) considerando que na determinação da COFINS do
período a pessoa jurídica apura e escritura de forma
segregada cada base de cálculo mensal, conforme o
Código de Situação Tributária (CST) previsto na le-
gislação da contribuição, faz-se necessário que seja se-
gregado o montante mensal do ICMS a recolher, para
fins de se identificar a parcela do ICMS a se excluir em
cada uma das bases de cálculo mensal da contribuição;
c) a referida segregação do ICMS mensal a recolher,
para fins de exclusão do valor proporcional do ICMS,
em cada uma das bases de cálculo da contribuição,
será determinada com base na relação percentual exis-
tente entre a receita bruta referente a cada um dos tra-
tamentos tributários (CST) da contribuição e a receita
bruta total, auferidas em cada mês;
d) para fins de proceder ao levantamento dos valores
de ICMS a recolher, apurados e escriturados pela pes-
soa jurídica, devem-se preferencialmente considerar os
valores escriturados por esta, na escrituração fiscal di-
gital do ICMS e do IPI (EFD-ICMS/IPI), transmitida
mensalmente por cada um dos seus estabelecimentos,
sujeitos à apuração do referido imposto; e
e) no caso de a pessoa jurídica estar dispensada da
escrituração do ICMS, na EFD-ICMS/IPI, em
algum(uns) do(s) período(s) abrangidos pela decisão
judicial com trânsito em julgado, poderá ela alterna-
tivamente comprovar os valores do ICMS a recolher,
mês a mês, com base nas guias de recolhimento do re-
ferido imposto, atestando o seu recolhimento, ou em
outros meios de demonstração dos valores de ICMS a
recolher, definidos pelas Unidades da Federação com
jurisdição em cada um dos seus estabelecimentos.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 79

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 79 11/12/2020 13:57:37


Dispositivos Legais: Lei nº 9.718, de 1998, arts. 2º e
3º; Lei nº 10.833, de 2003, arts. 1º, 2º e 10; Decreto
nº 6.022, de 2007; Instrução Normativa Secretaria da
Receita Federal do Brasil nº 1.009, de 2009; Instrução
Normativa Secretaria da Receita Federal do Brasil nº
1.252, de 2012; Convênio ICMS nº 143, de 2006;
Ato COTEPE/ICMS nº 9, de 2008; Protocolo ICMS
nº 77, de 2008.

Na mesma linha da referida Solução de Consulta, foi edi-


tada a Instrução Normativa RFB n° 1911/2019, publicada no
Diário Oficial da União, em 15 de outubro de 2019. Tal ato
normativo contém 766 artigos e pretendeu consolidar todas as
normas esparsas a respeito da apuração do PIS e da COFINS,
revogando, para tanto, 53 Instruções Normativas editadas en-
tre 2002 e 2015 – as quais tratavam da apuração dessas con-
tribuições sociais no regime cumulativo, não cumulativo, no
regime concentrado, em relação às instituições financeiras, a
importação, Zona Franca de Manaus, regimes especiais, den-
tre outros. Em verdade, para além da compilação da legislação
do PIS e da COFINS, esta Instrução Normativa tinha como
principal e real objetivo limitar como o ICMS que poderia
ser excluído da base de cálculo da contribuição ao PIS e da
COFINS, para fins de minimização dos impactos financeiros
deste tema nos cofres da União. De acordo com o art. 27, pa-
rágrafo único, inciso I, da referida Instrução Normativa, no-
vamente há a determinação de exclusão do ICMS a recolher, e
não do ICMS destacado. Vejamos:

Art. 27 (...) Parágrafo único. Para fins de cumprimen-


to das decisões judiciais transitadas em julgado que

80 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 80 11/12/2020 13:57:38


versem sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo
da Contribuição para o PIS/Pasep e da COFINS, de-
vem ser observados os seguintes procedimentos:
I – o montante a ser excluído da base de cálculo
mensal das contribuições é o valor mensal do ICMS
a recolher;

Ao que tudo indica, a edição de tais atos infralegais nada


mais parece do que uma estratégia da Receita Federal do Bra-
sil em institucionalizar sua interpretação distorcida quanto ao
precedente do Supremo Tribunal Federal. Isso porque a Auto-
ridade Tributária federal tem demonstrado, por seus atos, ao
lado da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que, até o
julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Extraor-
dinário nº 574.706 pela Corte Constitucional e, pois, até que
transite em julgado o Acórdão proferido em tal caso, seguirá
com o posicionamento de que o ICMS a ser excluído para
fins de apuração das contribuições examinadas seria o ICMS
a recolher.
Porém, é essencial frisar que a força normativa do prece-
dente do Tema 69 não depende do seu trânsito em julgado.
E isso por uma simples razão: precedente e coisa julgada são dois
institutos completamente distintos em nosso ordenamento
jurídico. O precede está voltado, em sua essência, para a
reconstrução da ordem jurídica e para a orientação geral das
condutas dos indivíduos, ou seja, para a unidade do direito,
enquanto a coisa julgada está voltada, principalmente, para o
caso concreto, isto é, para a proteção da confiança das partes
que participam do processo. Logo, a aplicação do Tema 69
a todos os casos que tratam desta matéria só depende da

Temas de Direito Empresarial 2021 • 81

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 81 11/12/2020 13:57:38


publicação do Acórdão que julgou o mérito da repercussão
geral. Veja-se, a esse respeito, que é exatamente isso o que está
expresso no Código de Processo Civil, em seu art. 1.040:

Art. 1.040. Publicado o acórdão paradigma:


I – o presidente ou o vice-presidente do tribunal de
origem negará seguimento aos recursos especiais ou
extraordinários sobrestados na origem, se o acórdão
recorrido coincidir com a orientação do tribunal
superior;
II – o órgão que proferiu o acórdão recorrido, na ori-
gem, reexaminará o processo de competência origi-
nária, a remessa necessária ou o recurso anteriormente
julgado, se o acórdão recorrido contrariar a orienta-
ção do tribunal superior;
III – os processos suspensos em primeiro e segundo
graus de jurisdição retomarão o curso para julgamen-
to e aplicação da tese firmada pelo tribunal superior;

Por outro lado, é acertado afirmar que, desde a altera-


ção da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro
(“LINDB” – Decreto-Lei nº 4657/1942 e suas alterações), a
Administração Pública está cada vez mais vinculada aos prece-
dentes judiciais. Por disposição expressa do art. 24, parágrafo
único da LINDB, o precedente do Supremo se enquadra na-
quilo que a lei menciona ser uma orientação geral, de ca-
ráter público, que deve ser adotada pela administração pú-
blica tal como “lei”. Vejamos o que diz o referido dispositivo:

Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, contro-


ladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato,

82 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 82 11/12/2020 13:57:38


ajuste, processo ou norma administrativa cuja pro-
dução já se houver completado levará em conta as
orientações gerais da época, sendo vedado que, com
base em mudança posterior de orientação geral, se de-
clarem inválidas situações plenamente constituídas.
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as
interpretações e especificações contidas em atos
públicos de caráter geral ou em jurisprudência ju-
dicial ou administrativa majoritária, e ainda as ado-
tadas por prática administrativa reiterada e de amplo
conhecimento público.

Em verdade, o posicionamento exteriorizado pela Receita


Federal do Brasil por meio desses atos infralegais acima citados
está equivocado, na medida em que são ilegais (violação ao
CPC/2015 e à LINDB) e inconstitucionais (violação à inter-
pretação dada pelo STF à Constituição Federal). Especifica-
mente no que se refere à violação à Constituição Federal, é
flagrante que tais disposições ignoram – ou melhor, distor-
cem – o que está literalmente escrito no voto vencedor do RE
574.706, conforme demonstrado anteriormente. Prova disso
é o que foi dito acima relativamente à interpretação autên-
tica realizada pelo Supremo em face da sua decisão. Isto é, a
Corte constitucional se manifestou no Recurso Extraordinário
nº 574.706 pela exclusão do “ICMS destacado” das bases de
incidência das contribuições federais e, se não bastasse isso,
repetiu esse mesmo entendimento em outro caso, o Recurso
Extraordinário nº 954.262, conforme visto anteriormente.
Enfim, seja como for, o certo é que todas as decisões ju-
diciais proferidas pelos Tribunais Regionais Federais que se-
guiram o precedente criado pelo RE 574.706 estão vinculadas

Temas de Direito Empresarial 2021 • 83

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 83 11/12/2020 13:57:38


materialmente às razões dessa decisão do STF. Isso significa,
na prática, que, ainda que aludidas decisões individuais não
tenham feito menção expressão à exclusão do ICMS destacado
em nota fiscal da base de cálculo da COFINS e da contribui-
ção ao PIS, é este valor a título de tributo que deve, sim, ser
afastado da tributação em exame. Pensar diferente disso é me-
nosprezar a força normativa dos precedentes da Corte Cons-
titucional, com o que, por evidente, não se pode concordar.

4 CONCLUSÃO

Em face de tudo o que foi exposto, é possível apresentar


as seguintes considerações finais:
1. As decisões judiciais, transitadas em julgado e profe-
ridas em processos individuais, nas quais foi aplicada
a tese jurídica criada no RE 574.706 como razões de
decidir, estão necessariamente vinculadas ao conteú-
do dos fundamentos constantes do aludido prece-
dente constitucional;
2. A força normativa do precedente criado no RE
574.706, com relação à exclusão do ICMS da base
de cálculo da COFINS/PIS, faz com que as razões
jurídicas de decidir utilizadas no referido caso pa-
radigma sejam incorporadas pelos casos individuais
nos quais a mesma matéria foi julgada e resolvida,
isso em razão dos deveres jurídicos que emanam da
segurança jurídica, da igualdade e das regras jurídi-
cas baseadas no Código de Processo Civil (arts. 926
e 927);

84 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 84 11/12/2020 13:57:38


3. Ainda que eventuais decisões judiciais já proferidas
em casos individuais, transitadas em julgado, não
tenham feito menção expressa à exclusão do ICMS
destacado em nota fiscal como sendo o tributo a ser
excluído da base de cálculo da COFINS e da contri-
buição ao PIS, é este o critério que deve ser utilizado
para delimitar o alcance normativo das referidas de-
cisões judiciais individuais, haja vista, como se viu,
a vinculação material de todos os órgãos do Poder
Judiciário ao conteúdo das razões jurídicas estabele-
cidas pelo precedente do STF, o RE 574.706.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 85

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 85 11/12/2020 13:57:38


A PARTICIPAÇÃO E A VOTAÇÃO
DOS ACIONISTAS DE SOCIEDADES
ANÔNIMAS FECHADAS
EM ASSEMBLEIAS
SEMIPRESENCIAIS OU DIGITAIS

Bruno Sartor da Cunha


Graduado em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (2013). Especialização
em Direito Empresarial na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul – PUCRS (2015). Período de graduação na Illinois State University – Financial
Accounting, International Business Law, U.S. Judicial Process (2011).

O ano de 2020 ficará marcado por muito tempo como


sendo o ano em que a doença infecciosa causada pelo co-
ronavírus da síndrome aguda grave 2 (SARS-COV-2) –
COVID-19 – afetou profundamente a economia mundial,
bem como as relações pessoais nos mais diversos níveis.
Por se tratar de doença de fácil transmissão através das
gotículas produzidas pelas vias respiratórias das pessoas in-
fectadas, a grande maioria dos países do mundo optou por
combatê-la através da sugestão e/ou imposição de medidas de
distanciamento social entre seus habitantes.

86 •

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 86 11/12/2020 13:57:38


Como resultado destas medidas de distanciamento so-
cial, diversas pessoas se viram, abruptamente, trabalhando de
suas casas, não mais comparecendo aos seus locais de trabalho.
Esta mudança alterou, profundamente, a maneira como todos
conduziam suas atividades profissionais, mas, ainda mais, a
maneira pela qual se relacionavam com seus colegas, colabora-
dores, superiores e sócios. As reuniões presenciais, visitas e até
os encontros não planejados nos corredores das sedes de suas
empresas já não eram mais possíveis.
Diante deste cenário de bruscas mudanças na maneira
em que os relacionamentos interpessoais ocorriam, as plata-
formas digitais de videoconferência se tornaram ferramentas
fundamentais na condução das operações dos mais variados
segmentos empresariais.
Feita esta breve introdução, passemos a análise das con-
sequências deste distanciamento social em uma das atividades
presenciais mais importantes das companhias, a assembleia de
acionistas.
A Lei 6.404/1976 (“Lei das S.A.”) estipula, em seu artigo 132:

“Art. 132. Anualmente, nos 4 (quatro) primeiros me-


ses seguintes ao término do exercício social, deverá ha-
ver 1 (uma) assembleia geral para:
I – tomar as contas dos administradores, examinar,
discutir e votar as demonstrações financeiras;
II – deliberar sobre a destinação do lucro líquido do
exercício e a distribuição de dividendos;
III – eleger os administradores e os membros do con-
selho fiscal, quando for o caso;

Temas de Direito Empresarial 2021 • 87

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 87 11/12/2020 13:57:38


IV – aprovar a correção da expressão monetária do ca-
pital social (artigo 167).”

Levando em consideração esta obrigação legal da realiza-


ção anual de assembleia geral ordinária e os transtornos cau-
sados pela pandemia da COVID-19, principalmente o que
envolve o distanciamento social, o Governo Federal sancionou
a Medida Provisória n.º 931, de 30 de março de 2020 que, em
28 de julho de 2020, foi convertida na Lei n.º 14.030/2020.
Cabe destacar, inicialmente, que esta Lei teve por alterar
diversos pontos relacionados à realização das assembleias gerais
das companhias, bem como prazos de gestão dos administra-
dores, porém, com a perspectiva do desenvolvimento de uma
vacina capaz de combater o coronavírus e o consequente retor-
no das atividades empresariais de maneira presencial, muitas
regras previstas nesta Lei provavelmente perderão efeito.
Sobre as alterações que provavelmente perderão efeito te-
mos, de pronto, que o prazo para realização da assembleia ge-
ral ordinária foi prorrogado de 4 meses para 7 meses contados
do término do exercício social da companhia.
Já com relação aos administradores da companhia, seus
prazos de gestão ou atuação foram prorrogados até a realização
da assembleia geral ordinária, que, conforme exposto acima,
pode ocorrer até 7 meses após o término do exercício social da
companhia.
Feitas as observações acima, cabe agora, efetivamente,
abordar a principal mudança, e que provavelmente perdurará
após a normalização das atividades empresariais, que é a parti-
cipação e votação à distância em assembleias gerais.

88 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 88 11/12/2020 13:57:38


Esta mudança se deu com a inclusão do seguinte Parágra-
fo Único no Artigo 121 da Lei das S.A.:

“Art. 121. A assembleia geral, convocada e instalada


de acordo com a lei e o estatuto, tem poderes para
decidir todos os negócios relativos ao objeto da com-
panhia e tomar as resoluções que julgar convenientes à
sua defesa e desenvolvimento.
Parágrafo único. Nas companhias, abertas e fechadas,
o acionista poderá participar e votar à distância em
assembleia geral, nos termos do regulamento da Co-
missão de Valores Mobiliários e do órgão competente
do Poder Executivo federal, respectivamente.”

Este parágrafo único outorgou à regulamentação dos vo-


tos e participação dos acionistas de companhias abertas à Co-
missão de Valores Mobiliários e aos acionistas de companhias
fechadas ao órgão competente do Poder Executivo Federal,
chamado Departamento Nacional de Registro Empresarial e
Integração (“DREI”).
Assim, coube ao DREI, através de sua Instrução Nor-
mativa n.º 81, de 10 de junho de 2020, regulamentar a par-
ticipação e a votação à distância em reuniões e assembleias de
sociedades anônimas fechadas.
Passaremos, assim, a examinar, ponto a ponto, as princi-
pais mudanças apresentadas por esta Instrução Normativa 81
(“IN 81”).
Importante destacar que as análises que serão realizadas a
seguir não se aplicam às assembleias e reuniões em que a parti-
cipação dos acionistas seja exclusivamente presencial.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 89

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 89 11/12/2020 13:57:38


Dito isso, para melhor compreensão, cabe expor a dife-
rença entre assembleias e reuniões semipresenciais e digitais, as
quais estão descritas como: semipresenciais ocorrem quando
os acionistas puderem participar e votar presencialmente, no
local físico da realização do conclave, mas também à distância
e digitais quando os acionistas só puderem participar e votar
à distância, caso em que o conclave não será realizado em ne-
nhum local físico.
1. Formas de participação e votação à distância:
A participação poderá ser realizada através do envio de
boletim de voto à distância e/ou mediante presença remota,
através de sistema eletrônico de videoconferência.
2. Formalidades prévias ao conclave:
Independentemente da assembleia ou reunião ser realiza-
da de forma semipresencial ou digital, os requisitos da Lei das
S.A. e do estatuto social da companhia devem ser observados.
Com isso, seguem as obrigações anteriores de disponibi-
lizar aos participantes os documentos atinentes ao conclave.
Importante destacar que, para que o conclave digital ou
semipresencial seja realizado de maneira regular, além da obri-
gação anterior de disponibilização dos documentos com todas
as informações referentes à ordem do dia, nos termos da IN,
é necessário que estes documentos sejam disponibilizados não
só para retirada na sede da companhia, mas também por meio
digital seguro, o qual pode, por exemplo, ser realizado através
do envio direto aos acionistas e/ou permitir que sejam aces-
sados remotamente com sistema que garanta a segurança das
informações e registro das pessoas que os obtiveram.

90 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 90 11/12/2020 13:57:38


Sobre o instrumento de convocação, é necessário que este
contenha especificamente se a assembleia ou reunião será reali-
zada de maneira semipresencial ou digital, além de (i) possuir
detalhamento completo, ou endereço eletrônico onde estejam
disponibilizadas todas as informações relativas ao conclave; e,
(ii) indicar quais os documentos exigidos para que o acionista,
ou seu representante, sejam admitidos na reunião ou assembleia.
Caso seja de interesse da companhia, ela poderá solicitar
que os documentos de admissão à assembleia sejam encami-
nhados previamente, permitindo protocolo por meio digital.
Independentemente do prazo estipulado pela companhia
para envio dos documentos, os acionistas ou seus representan-
tes estão autorizados a participar do conclave caso apresentem
os documentos solicitados até trinta minutos antes da abertu-
ra dos trabalhos.
Um ponto importante é que cabe a companhia a ado-
ção de tecnologia que permita aos acionistas participar e votar
no conclave, podendo contratar terceiros para administração,
em seu nome, das informações da reunião ou assembleia, não
podendo a companhia ser responsabilizada por problemas
técnicos de seus equipamentos de informática ou na rede de
internet.
Por fim, a companhia deverá manter arquivada a grava-
ção e documentos pertinentes ao conclave pelo prazo aplicável
à ação que vise a anulação da reunião ou assembleia.
3. Aferição de presenças:
A IN 86 estabelece que serão considerados presentes na
reunião ou assembleia semipresencial ou digital os acionistas

Temas de Direito Empresarial 2021 • 91

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 91 11/12/2020 13:57:38


que (i) se façam fisicamente presentes; (ii) tenham encami-
nhado boletim de voto à distância, nos termos requeridos pela
companhia; e, (iii) registrarem sua presença eletrônica através
do sistema disponibilizado pela companhia.
4. Participação à distância:
4.1 Utilização de sistema eletrônico
Alguns requisitos devem ser garantidos pelo sistema ele-
trônico utilizado pela companhia para a realização do conclave
semipresencial ou digital, especificamente: (i) segurança, con-
fiabilidade e transparência; (ii) registro das presenças; (iii) ga-
rantia de participação à distância durante todo o conclave; (iv)
registro do voto do presente; (v) possibilidade de visualização
dos documentos apresentados durante o conclave; (vi) possi-
bilidade de recebimento de manifestações escritas pela mesa;
(vii) gravação integral do conclave; e, (viii) participação de ad-
ministradores e outras pessoas com participação obrigatória.
4.2 Boletim de voto à distância
O boletim de voto à distância, quando da realização de
assembleias ou reuniões semipresenciais ou digitais, são extre-
mamente importantes, motivo pelo qual dividiremos os pon-
tos a serem observados em 3:
4.2.1 Requisitos
O boletim deverá conter, além de todas as matérias cons-
tantes na ordem do dia, as orientações para seu envio e forma-
lidades para que o voto seja computado, bem como a lista de
documentos que deverão ser enviados conjuntamente.

92 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 92 11/12/2020 13:57:38


A companhia deverá disponibilizar o boletim aos acionis-
tas previamente, em versão passível de impressão e preenchi-
mento por escrito.
4.2.2 Conteúdo
O boletim deverá detalhar quais as matérias a serem
deliberadas, possuir linguagem clara e objetiva, além de ser
formulado em forma de proposta, permitindo ao acionista a
possibilidade de aprovar, rejeitar ou se abster da deliberação.
Pode a companhia optar por fornecer página na rede mun-
dial de computadores onde as propostas estejam descritas de
maneira mais detalhada, bem como apresentar os documentos
que possam ser legalmente exigidos para algumas deliberações.
4.2.3 Envio e recepção
O boletim de voto à distância deve ser enviado ao acio-
nista na data da publicação da primeira convocação e devolvi-
do à companhia com, no mínimo, 5 dias de antecedência ao
conclave.
Em até dois dias do recebimento do boletim, a compa-
nhia deverá confirmar seu recebimento e/ou indicar eventuais
documentos não enviados ou retificações necessárias.
Cabe destacar que, caso o acionista compareça ao con-
clave após o envio do boletim de voto, é permitido que ele se
manifeste de maneira contrária ao boletim, o qual será, assim,
desconsiderado.
5. Assinatura da ata e dos livros
Os livros societários e a ata do conclave semipresencial ou
digital não necessitam da assinatura dos presentes, bastando que
o presidente e o secretário do ato certifiquem quais os presentes.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 93

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 93 11/12/2020 13:57:38


6. Arquivamento da ata
Por fim, para arquivamento da ata, o procedimento será
o mesmo dos atos realizados com presença física, bastando
incluir a indicação de que se trata de reunião ou assembleia
semipresencial ou digital.
Após a análise dos pontos apresentados pela IN 81, po-
demos verificar que a intenção dos legisladores e técnicos do
DREI foi a de possibilitar que, apesar dos efeitos causados
pela pandemia de COVID-19, as companhias mantivessem
condições para realizar as importantes formalidades com seus
acionistas através da realização das reuniões e assembleias de
maneira semipresencial ou digital.
Podemos dizer que estas alterações garantem a regulari-
dade dos conclaves, maior agilidade, menor custo e, inclusive,
mais interesse dos acionistas em participar destas assembleias.
O fato de que a companhia possui o dever de enviar aos
acionistas todos os documentos relacionados à ordem do dia,
bem como a não necessidade de deslocamento, às vezes entre
cidades ou estados, para participar do conclave, garante maior
praticidade e interesse do acionista em participar.
De todo o exposto, cabe, para melhor entendimento, exem-
plificar o roteiro para realização de uma assembleia geral ordinária
realizada de maneira digital, em um simples passo a passo:
1. Previamente ao conclave:
a. Definição da data de realização da assembleia;
b. Definição da plataforma de videoconferência que será
utilizada (e.x. Microsoft Teams, Google Meet, Zoom);

94 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 94 11/12/2020 13:57:38


c. Elaboração do instrumento de Convocação.
2. Instrumento de Convocação:
a. Indicações tradicionais da Convocação (data,
hora, ordem do dia, quem poderá comparecer,
documentos para representação);
b. Com relação ao local, cabe indicar explicitamen-
te se tratar de assembleia realizada de maneira
virtual;
c. Sendo assembleia virtual, este fato deve ser expli-
citamente indicado, acompanhado de endereço
eletrônico para acesso à assembleia ou para aces-
so às informações completas da assembleia.
3. Instruções para participação de assembleia:
a. Deve conter as informações de acesso à assem-
bleia, quais os documentos necessários para par-
ticipação, bem como os documentos para ser re-
presentado;
b. Incluir o boletim de voto à distância com infor-
mações sobre seu preenchimento e documentos
que o suporte;
c. Proposta da administração. Se tratando de as-
sembleia geral ordinária, é necessário que todas
as informações referentes ao conclave estejam ex-
pressamente indicadas, juntamente com as pro-
postas da administração e documentos que serão
analisados.
4. Assembleia geral ordinária digital:

Temas de Direito Empresarial 2021 • 95

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 95 11/12/2020 13:57:38


a. Quando da realização da assembleia, cabe aos
administradores verificarem se houve envio de
boletins de voto à distância para cômputo das
presenças destes acionistas, bem como quais os
documentos encaminhados previamente;
b. Na abertura dos trabalhos da assembleia, cabe
verificação de que os presentes são de fato as pes-
soas autorizadas a comparecer ao conclave atra-
vés de documentação e áudio/vídeo;
c. Desde a abertura dos trabalhos até o encerramen-
to da assembleia, deve ser garantida a gravação de
todas as informações apresentadas, bem como vo-
tos ou manifestações realizadas pelos presentes;
d. Na ata da assembleia, cabe ao presidente e secre-
tário a declaração de quem estava presente.

Diante de todo o exposto, temos que as legislações cria-


das para que as formalidades exigidas pela lei fossem manti-
das pelas companhias são bem-vindas, pois representam uma
evolução ao antigo sistema de assembleias presenciais. Assim
como em diversas áreas, a tecnologia pode garantir efetividade
e economia, mas, mais importante, segurança jurídica aos atos
praticados nas companhias.

96 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 96 11/12/2020 13:57:38


ASPECTOS DA NEGOCIAÇÃO
DAS REPS AND WARRANTIES
EM OPERAÇÕES DE M&A

Nikolai Rebelo
Admitido como Advogado em nova Iorque Estados Unidos – NY BAR. Mestre
em Direito (Master of Laws) na University of California Berkley – School of Law
– EUA (2016). Pós-Graduado em Direito Empresarial na Pontifícia Universidade
Católica – PUCRS (2011). Graduado na Pontifícia Universidade Católica – PUCRS
(2008). Professor convidado de Programas de Pós-graduação e Graduação em
matérias de Direito Societário, Direito Empresarial e Arbitragem. Autor dos livros:
“Os deveres fiduciários dos Administradores de S.A. em operações de Fusões e
Aquisições” e “A sociedade empresária e a captação de recursos de Private Equity
e Venture Capital” – Estudo interdisciplinar do financiamento empresarial”. Autor
de diversos artigos acadêmicos nas áreas de direito societário e arbitragem.

1 INTRODUÇÃO

As operações de fusões e aquisições continuam a ser de


grande importância no mercado brasileiro e internacional. Tal
realidade não se altera mesmo diante das situações de crise.
Enquanto para alguns grupos empresariais fusões e aqui-
sições são parte da rotina, para outros, a operação de M&A
é algo esporádico. Em qualquer um dos casos, ainda que o

• 97

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 97 11/12/2020 13:57:38


mercado brasileiro já esteja bastante acostumado a lidar com
tais operações existindo alguns padrões contratuais costumei-
ramente seguidos pelos players, elas sempre serão complexas
e fortemente negociadas, pois o “objeto do contrato” é com-
plexo e dinâmico. Por mais padronizados que possam ser os
contratos atuais, a venda de “empresa”1 envolverá alto grau de
negociação e exigirá ajustes específicos nas redações contra-
tuais para se adequar ao caso concreto.
Nesse sentido, um dos capítulos de grande importância
e merecedor de grande atenção das partes é o das declarações
e garantias, também chamadas de reps and warranties. Exis-
tem muitos textos padronizados de reps and warranties, alguns
mais favoráveis aos vendedores e outros mais favoráveis aos
compradores, e trazemos, aqui, alguns pontos a serem consi-
derados em caráter geral ao tratar deste tema nos contratos.

2 O QUE SÃO CONSIDERADAS OPERAÇÕES DE M&A

Primeiramente, vale rememorar quais são as possíveis


operações que podem ser enquadradas na expressão que se
popularizou pela expressão fusões & aquisições, mergers and ac-
quisitions ou M&A. Ao se falar de forma genérica em opera-
ções de M&A, se pode estar diante de uma ou da combinação
de algumas da seguintes operações empresariais: alienação do
controle pela venda de participação societária; alienação de
estabelecimento ou transferência da unidade produtiva, tam-

1
  Usaremos o termo empresa em sentido amplo, e não no sentido jurídico estrito
extraído na interpretação doutrinária do Código Civil (art. 966).

98 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 98 11/12/2020 13:57:38


bém chamado de contrato de trespasse; compra e venda de
ativos; fusão; incorporação; cisão; incorporação de ações.
O contrato de trespasse é o contrato pelo qual se trans-
fere o estabelecimento empresarial. Estabelecimento não é
somente o local de negócios do empresário ou da sociedade
empresária, mas, sim, do conjunto de bens organizadamen-
te utilizados pelo empresário ou sociedade empresária para o
desempenho da atividade econômica. Além disso, com base
na Lei 11.101/05, criou-se também a figura da unidade pro-
dutiva isolada, como um dos meios de alienar ativos em uma
recuperação judicial, que poderia ser enquadrada como ven-
da de estabelecimento. Vale destacar que a venda de unidade
produtiva isolada se assemelha a este tipo de operação, mas
deve ocorrer no contexto da recuperação judicial para se poder
aproveitar determinados benefícios da Lei 11.101/05, pois tal
norma busca gerar incentivos aos compradores dessas opera-
ções a fim de auxiliar na manutenção da empresa.
A venda de controle, em geral, se concretiza pela venda
da participação societária na empresa. O controle é uma es-
pécie de poder-dever reconhecido aos detentores do capital
social com a consequente capacidade de dominar as delibe-
rações societárias. Essa possibilidade de dominar as delibera-
ções tem como consequência a capacidade de decidir sobre as
questões empresariais da companhia, havendo grande interfe-
rência também na própria administração da sociedade. Essa
característica repercute na maior valorização das ações do cha-
mado bloco de controle, sendo atrativo no caso de alienação
em bloco dessas ações.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 99

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 99 11/12/2020 13:57:38


Em seguida, temos a incorporação e a fusão. São duas
operações nas quais duas pessoas jurídicas se unificam. A in-
corporação trata-se da operação societária pela qual duas ou
mais sociedades empresárias se unem, subsistindo uma delas,
extinguindo-se as outras. Os acionistas das sociedades incor-
poradas passam a ser acionistas da incorporadora. As duas pes-
soas jurídicas envolvidas se unem formando uma nova socie-
dade, extinguindo as precedentes.
A cisão é a operação de segregação de patrimônio de uma
sociedade existente para outra sociedade ou mesmo para novas
sociedades constituídas a partir da operação, podendo ou não
extinguir a sociedade cindida (conforme prevê o artigo 229 da
Lei 6.404/76). Conceitualmente, chama-se cisão parcial aque-
la operação de cisão em que a companhia cindida não é extinta
pela operação, permanecendo com parte do patrimônio ori-
ginal. A cisão total é a operação em que todo o patrimônio é
vertido para sociedades novas ou existentes.
Além dessas, no caso de sociedades anônimas, existe a
possibilidade da incorporação de ações. A incorporação de
ações é uma alternativa diferente de operação societária, pois
mantém separadas as personalidades jurídicas das companhias
envolvidas, não sendo confundida com a incorporação. Cria-se
a partir dessa operação societária uma subsidiária integral da
companhia incorporadora, sendo separados o seu patrimônio
e o da incorporada.
Cada uma destas formas de se realizar a operação de
M&A deve seguir alguns passos, tendo diferentes instrumen-
tos jurídicos. Em comum a todas elas, podemos ter os acordos

100 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 100 11/12/2020 13:57:38


de confidencialidade, os Memorandos de entendimentos, as
Cartas de Intenções. Normalmente, estes são instrumentos
preparatórios, sendo seguidos pelo detalhado procedimento
das auditorias (due diligence) para conhecimento da situação e
dos riscos do negócio que será objeto da operação empresarial.
Finalmente, chega-se aos contratos definitivos ou vinculantes.
Nos casos de operações de incorporação, fusão, cisão e incor-
poração de ações, há necessidade de serem realizados procedi-
mentos de natureza societária, com deliberação dos sócios das
entidades envolvidas.
Em termos de contratos, podem-se destacar os seguintes
instrumentos a serem utilizados na operação:
a) Trespasse – venda de estabelecimento (raramente
utilizado);
b) Contrato de Compra e Venda de Ativos e outras
avenças – Asset Purchase Agreements (APA)
c) Contrato de Compra e Venda de Ações/Quotas –
Share Purchase Agreement/Quota Purchase Agreement
d) Contratos de Joint Ventures

Serão nas tratativas desses instrumentos supracitados que


as partes negociarão as suas declarações e garantias, e o presen-
te texto abordará alguns aspectos relevantes destas cláusulas.

3 O QUE SÃO AS REPS AND WARRANTIES?

As declarações e garantias são comuns em diversos tipos


de contratação, em especial, nos contratos de operações de

Temas de Direito Empresarial 2021 • 101

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 101 11/12/2020 13:57:38


fusões & aquisições. Por meio dessas cláusulas, as partes fazem
declarações sobre determinados fatos ou sobre as condições
atuais de diversos elementos do negócio que está sendo ou
vendido ou em relação à própria parte que está dando a de-
claração. Dependendo da forma como estas declarações são
redigidas, elas podem ter maiores ou menores impactos sobre
a responsabilização da parte declarante e, por consequência,
sobre o direito indenizatório da outra parte.
Normalmente, haverá, de um lado, as declarações da
parte compradora e, de outro, as da parte vendedora. Em ge-
ral, as declarações e garantias da vendedora tendem a menos
polêmicas, pois não estão relacionadas à empresa vendida.
A compradora deve declarar e garantir sua situação geral,
como, por exemplo:
a) constituição e existência jurídica, capacidade jurídi-
ca e econômica para realizar o negócio,
b) inexistência de processos de falência ou de insolvên-
cia pendendo contra si,
c) ter obtido as aprovações necessárias para realização
dos negócios;
d) que, ao firmar o contrato, não está violando outros
contratos, legislação, ordens judiciais ou administra-
tivas, licenças etc.

Por outro lado, as declarações da parte vendedora são


mais sensíveis, sendo objeto de grandes negociações e, muitas
vezes, disputas arbitrais após o fechamento da operação. Os
temas das declarações dos vendedores são diversos; em geral,

102 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 102 11/12/2020 13:57:38


além de espelhar as mesmas declarações já citadas acima, eles
irão tratar da vendedora e da empresa alvo a respeito de:
a) o estado e qualidade das demonstrações financeiras;
b) o estado e situação dos contratos, principalmente
aqueles relevantes;
c) lista de contas-correntes, ativos e passivos relevantes;
d) lista de procurações e procuradores existentes com
poderes para representar em alguma medida a em-
presa alvo;
e) existência e status de licenças administrativas para
operação e funcionamento do negócio;
f ) lista de ativos, suas condições físicas e estado de con-
servação, bem como a sua situação jurídica, como,
por exemplo, existência ou inexistências de ônus
legais ou contratuais que impeçam ou limitem sua
utilização, gozo e disponibilidade;
g) lista de direitos sobre propriedade intelectual e si-
tuação jurídica desses direitos, em especial se há pro-
priedade intelectual devidamente registrada e prote-
gida, tais como marcas, patentes, software e outros;
h) lista de trabalhadores, suas remunerações e benefí-
cios, bem como todos os aspectos trabalhistas rela-
cionados;
i) aspectos tributários;
j) aspectos ambientais;
k) lista de fornecedores, clientes relevantes, projetos em
andamentos entre outros planos de negócio em an-
damento;

Temas de Direito Empresarial 2021 • 103

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 103 11/12/2020 13:57:38


l) lista de demandas judiciais e seus devidos status nas
diversas áreas do direito citadas anteriormente;
m) questões de legislação de combate à corrupção;
n) recentemente, com a entrada das legislações sobre
proteção de dados intelectuais, especialmente envol-
vendo grupos empresariais europeus, em razão da le-
gislação europeia (GPDR) e, a partir de agora, com a
norma brasileira da LGPD, os vendedores vem sen-
do exigidos a declarar se estão cumprindo as regras
sobre tratamento de dados pessoais e inexistências de
reclamações ou investigações contra a empresa alvo
nesse sentido.
Entre outros, lembrando que, por serem relacionadas
ao status do negócio, diversas situações podem ser
descritas, podendo se estender por páginas e páginas
do contrato.

4 EFEITOS JURÍDICOS DAS REPS AND WARRANTIES

Conforme já mencionado, as declarações e garantias pro-


duzem efeitos jurídicos e têm força obrigacional, pois são cláu-
sulas dos contratos das operações de M&A. Dessa forma, o
descumprimento de uma dessas cláusulas trará consequências
jurídicas relevantes para as partes.
Primeiramente, é importante destacar que existe a ne-
cessidade de análise de cada contrato para compreender
exatamente os remédios jurídicos aplicáveis, pois ele pode
prever uma lei aplicável diferente da brasileira, estabelecer
expressamente quais são os remédios possíveis, apresentar

104 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 104 11/12/2020 13:57:38


qualificadores e desqualificadores das reps and warranties, bem
com trazer menos detalhes, aplicando-se, então, a legislação
em geral (principalmente o Código Civil).
Assim, partindo da hipótese de um contrato que não
contenha previsão de um remédio exclusivo ou de um remé-
dio jurídico específico para o descumprimento de uma decla-
ração e garantia, a parte prejudicada terá à sua disposição os
remédios previstos no direito civil. Nesse aspecto, se for uma
operação transnacional, é importante avaliar, primeiramente,
a lei aplicável. Em geral, um contrato desta natureza costu-
ma ter a cláusula expressa definindo à legislação que regula
o contrato, de forma que, se for a lei brasileira, as normas do
Código Civil vigente fornecerão as soluções jurídicas para as
situações de disputas. Como o direito não é uma ciência exata,
entretanto, as respostas nem sempre serão tão claras.
Um importante aspecto das operações de M&A é que,
em grande parte dos casos, as partes envolvidas são assessora-
das por profissionais e representadas por pessoas altamente ca-
pacitadas para uma negociação complexa. O aspecto subjetivo
é importante, pois o grau de diligência que se exige de ambos
os lados é um fator considerado na análise jurídica quando se
está falando em responsabilização de um dos lados. Destarte,
a situação mais comum nessas operações é estar diante de con-
trato bilateral, onde ambas as partes têm poder de barganha e
força negocial, existindo pouco espaço para se valer de remé-
dios legais protetivos à parte mais fraca ou à parte aderente de
um contrato de adesão.
Em razão disso, o comprador deve agir com diligência
ao avaliar e decidir adquirir uma empresa em atividade. Nesse

Temas de Direito Empresarial 2021 • 105

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 105 11/12/2020 13:57:38


sentido, apesar de escassa jurisprudência sobre o tema, há de-
cisão recente proveniente do Tribunal de Justiça de São Paulo
com base nesse exato entendimento, como se percebe no tre-
cho do acórdão abaixo transcrito:

Se, de um lado, não se nega o dever de informação do


réu, com fulcro na boa-fé contratual; de outro, razoá-
vel esperar que os adquirentes buscassem conhecer os
riscos do negócio celebrado, tendo, nessa senda, o i.
Juízo a quo bem destacado que “o dever de diligência
é inerente aos negócios jurídicos”, mormente em se
tratando de contratos empresariais.2

Em todo o caso, diante de uma declaração expressa dada


por uma parte à outra que seja comprovadamente falsa, exis-
tem argumentos suficientes para permitir o uso de remédios
jurídicos, pois o direito não deve ser utilizado como uma “car-
ta branca” para a mentira, uma vez que violaria princípios de
direito que são mais amplos e contemplam valores gerais, os
quais são benéficos para as relações empresariais, bem como
para as relações sociais como um todo.
O primeiro mecanismo à disposição da parte prejudicada
é a indenização, ou seja, a parte que fornece a declaração falsa
terá a obrigação de reparar danos que esse fato tenha causa-
do à outra parte. Quando o vendedor é a parte violadora de
uma das reps and warranties, a declaração falsa, na maioria dos
casos, o fato representa uma desvalorização do negócio ad-
quirido, impactando a precificação acordada. Deste modo, a

2
 Tribunal de Justiça de São Paulo. Acórdão do Julgamento da Apelação Nº:
1006988-64.2018.8.26.0624 – jugado em 31 de outubro de 2019.

106 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 106 11/12/2020 13:57:38


medida da indenização poderia ser, pelo menos em parte, basea-
da no impacto sobre o preço pago pelo comprador, como forma
de ou abater o valor ou o pagamento efetivo pelo vendedor do
valor de modo a restabelecer o valor perdido do negócio.
Existe a previsão legal que regula os chamados vícios redi-
bitórios, mas tal argumento pode ser um caminho mais difícil.
Em verdade, A fundamentação no descumprimento contra-
tual genérico com base no artigo 389 do Código Civil, que
também gera direito de indenização, é aplicável e menos sus-
cetível de ser contestado. Ao não entrar em discussão de vícios
ocultos, se retira a discussão de eventual defesa fundamentada
em inaplicabilidade do instituto em operações de M&A ou o
argumento da vendedora com base na falta de diligência da
compradora, que acaba surgindo, pois o vício poderá não ser
considerado oculto se a ele pudesse ser razoavelmente desco-
berto nas fases de due diligence. Em verdade, a tese de vício
redibitório deverá ser utilizada se não havia, de fato, uma de-
claração expressa da parte sobre a situação que se está buscan-
do a indenização. Juridicamente, a perda de valor do “bem”
adquirido pode ser fundamentada com base nas regras sobre
vícios redibitórios, disciplinada nos arts. 441 a 446 do Código
Civil Brasileiro. O abatimento no preço é opção do compra-
dor com base no artigo 442. O art. 443 penalizará o vendedor
que conhecia o vício, dizendo que será devida a indenização
das perdas e danos, além de ser restituído ou abatido o valor
da desvalorização no próprio preço da operação.
Outro remédio outorgado no Código Civil é a possibi-
lidade de desfazer o contrato, por meio de aplicação de cláu-
sula resolutiva ou pelo argumento de vício de consentimento.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 107

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 107 11/12/2020 13:57:38


Quanto à cláusula resolutiva, conforme determina o artigo
474 do Código Civil, se ela for prevista expressamente, a res-
cisão contratual é permitida de pleno direito, ou seja, sem ne-
cessidade de interpelação judicial. Nesse sentido, nas reps and
warranties, é comum que o contrato faça uma distinção clara
entre declarações que são “fundamentais/essenciais” ao objeto
da operação daquelas que não o são, permitindo, por vezes,
o desfazimento do negócio na situação de quebra de reps and
warranties fundamentais. Enquanto isso, a cláusula resolutiva
tácita dependerá de ação judicial (ou arbitral) para ser aplica-
da. Em qualquer dos casos, será admitida a indenização por
perdas e danos, quando provados, nos termos do artigo 475.
Uma alternativa ao fundamento supracitado de rescisão
é a anulação pelo vício de consentimento da parte, ou seja,
quando ela alega que firmou o contrato por ter sido “engana-
da” pela outra parte. O principal fundamento legal é o dolo,
nos termos do artigo 171, inciso II e combinado com os arti-
gos 145 a 150 do Código Civil. O artigo 145 do Código Civil
somente permite a anulação por dolo quando ele for a causa
do negócio. Vale dizer, a informação enganosa foi determinan-
te para induzir a manifestação da vontade de firmar o contra-
to. Entretanto, sendo claro o objeto do negócio, o instituto de
vício de consentimento não pode ser usado para qualquer tipo
de erro de julgamento da parte, bem como não pode ser usado
para desobrigar-se em razão de mero arrependimento, como
bem disse o Tribunal de Justiça de São Paulo:

AÇÃO ANULATÓRIA DE NEGÓCIO JURÍDICO.


COMPRA E VENDA DE ESTABELECIMENTO

108 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 108 11/12/2020 13:57:38


COMERCIAL. SENTENÇA DE IMPROCEDÊN-
CIA. MANUTENÇÃO. VÍCIO DE CONSENTI-
MENTO (ERRO OU DOLO) NÃO VERIFICA-
DO. CONTRATO CLARO QUANTO AO SEU
OBJETO E SUA LOCALIZAÇÃO. MERO ARRE-
PENDIMENTO QUE NÃO JUSTIFICA A ANU-
LAÇÃO DO NEGÓCIO. PRINCÍPIO DA BOA-
-FÉ OBJETIVA. RECURSO NÃO PROVIDO.

(TJSP; Apelação Cível 0005578-49.2007.8.26.0114;


Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador:
1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro
de Campinas – 8ª. Vara Cível; Data do Julgamento:
02/09/2020; Data de Registro: 03/09/2020)

Note-se que o dolo é uma espécie de erro na manifestação


de vontade provocada pela outra parte. O artigo 171, inciso II
do Código Civil inclui, além do dolo, o erro de forma gené-
rica como fundamento de anulação do contrato. Entretanto,
diante das peculiaridades da operação de M&A, onde o com-
prador tem um dever de diligência reconhecido pelo direito
empresarial, será bastante difícil valer-se do erro como funda-
mento genérico, pois o comprador deve buscar as informações
necessárias e razoáveis esperadas que um profissional necessita
para tomada de decisão.

5 A PREVISÃO EXPRESSA DOS EXCLUSIVE REMEDIES

Em razão da influência da cultura jurídica americana


nas redações de contratos deste tipo, é comum encontrar-
mos as cláusulas prevendo expressamente que tipos de remé-
dios jurídicos podem ser utilizados pelas partes em razão do

Temas de Direito Empresarial 2021 • 109

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 109 11/12/2020 13:57:38


descumprimento de obrigações contratuais ou pela quebra das
reps and warranties. Nesse sentido, uma cláusula bem conhe-
cida é a “sole and exclusive remedy clause” (cláusula de remédios
exclusivos).
Em geral, o desfazimento da operação de M&A é algo
indesejável e muito complicado de ser feito na prática, de
modo que o remédio preferencial das partes é a indenização
equivalente. Assim, uma cláusula desta natureza irá afirmar de
modo expresso que a parte lesada somente poderá se valer do
pedido de indenização renunciando o direito de tentar anular
o negócio, seja com base em vícios redibitórios, vício de con-
sentimento, evicção etc.
Embora seja uma cláusula de conhecimento da comu-
nidade jurídica brasileira que atua em operações de fusões e
aquisições, inexiste posicionamento da jurisprudência conso-
lidando entendimentos acerca da interpretação deste tipo de
cláusula. O fato é que ela é usada e reconhecida pelo mer-
cado e, em caso de disputas, é provável que a previsão seja
considerada válida justamente em razão da consolidação da
sua prática (ainda mais em contratos que são submetidos na
via arbitral, que tende a manter a validade dessas cláusulas).
Corrobora com este entendimento o princípio contratual de
liberdade das partes de se autorregularem, desde que não este-
jam ferindo a lei.
Entretanto, como se está adiante de renúncias de direitos,
a interpretação deve ser restritiva. Além do mais, há nulidade
quando houver incidência de norma de ordem pública e, por-
tanto, de aplicação cogente (é o caso do regime de nulidade

110 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 110 11/12/2020 13:57:38


absoluta dos artigos 166 a 170 do Código Civil. Nos termos
do artigo 169, “negócio jurídico nulo não é suscetível de con-
firmação, nem convalesce pelo decurso do tempo”).
Em síntese, a cláusula deverá ser considerada válida para
a maioria das situações, exceto para quando houver violação
da ordem pública, quando o remédio legal não pode ser afas-
tado em razão da aplicabilidade cogente do direito brasileiro.

6 AS QUALIFICADORAS DAS REPS AND WARRANTIES

Outro dispositivo contratual comum nos contratos de


M&A que afetam as declarações de garantias são as chamadas
qualificadoras. Trata-se de situação em que o contrato irá in-
cluir outros aspectos que auxiliarão a interpretar os efeitos das
reps and warranties.
Nesse aspecto, existem diferentes níveis de reps and war-
ranties, sendo que a forma mais firme e drástica é quando a
parte declarante, ao final, ainda declara que revelou todas
as informações necessárias e que não deixou de incluir ne-
nhuma informação material e pertinente ao negócio. Nor-
malmente, essa é uma declaração da parte vendedora, sendo,
claramente, uma redação mais favorável ao comprador, pois
a omissão de uma situação que possa impactar o contrato ou
o negócio de alguma forma gerará grande risco de responsa-
bilização ao vendedor.
A forma de o vendedor “suavizar” sua declaração, em
geral, é com a inclusão da qualificadora com base em seu
conhecimento (ou no seu melhor conhecimento). Essa lin-

Temas de Direito Empresarial 2021 • 111

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 111 11/12/2020 13:57:38


guagem pode ser genérica, mas também pode ser definida
contratualmente. Por exemplo, conhecimento da vendedora
pode ser descrito no contrato como uma informação que era
de conhecimento dos executivos da vendedora que têm po-
deres de representação legal sobre a sociedade. Outro exem-
plo é definir o conhecimento da vendedora como sendo a
situação de conhecimento de diretores e conselheiros. Por
outro lado, a compradora pode querer um conceito mais am-
plo, tentando incluir como “conhecimento da vendedora”
qualquer situação que razoavelmente deveria ser de conhe-
cimento dos executivos, ou seja, um conhecimento que um
executivo diligente teria se tivesse investigado o fato.
Outra discussão relacionada ao tema são os dispositivos
contratuais de sandbagging e o seu oposto anti-sandbagging.
Aqui, a negociação envolve definir se uma situação de conhe-
cimento do comprador (buyer’s knowledge) evita a indenização
no caso de uma declaração falsa. Em outras palavras, estar-se-
-ia diante do caso de uma declaração falsa, mas que o compra-
dor já tinha conhecimento anterior desta situação e, portanto,
não poderia ser considerado que o comprador foi levado a
tomar uma decisão com base em erro da situação fática. Esta
cláusula pode definir se há ou não responsabilidade de indeni-
zação da vendedora.
A cláusula pro sandbagging irá autorizar o comprador a
buscar a indenização ainda que seja demonstrado de que ele
sabia da falsidade da declaração. Essa regra pode constar com
redação exatamente nesse sentido ou por meio de declaração
do comprador de que ele não tem conhecimento de qualquer
tipo de inadequação ou falsidade nas declarações da vendedora.

112 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 112 11/12/2020 13:57:38


Qualquer uma das duas formas de redação visa a atingir o
mesmo objetivo.
De outro lado, a cláusula anti-sandbagging é pró-
vendedora, pois mesmo que ela forneça reps and warranties
falsas ou imprecisas, ela poderá se eximir de responsabilida-
de se tal situação era de conhecimento prévio do comprador.
Uma situação clara de qualificar as declarações e garantias da
vendedora com o conhecimento prévio da compradora é por
meio da documentação disponibilizada para a due diligence via
data room. Diante disso, é de grande importância os registros
do data room, a fim de saber que tipo de informação e docu-
mentação foi transmitida e levada ao conhecimento da com-
pradora antes de se fechar ou firmar o contrato. Atualmente,
existem empresas especializadas na montagem dos data rooms
virtuais, gerando relatórios dos documentos que foram dispo-
nibilizados e acessados pelas partes. Assim, as partes podem se
valer de terceiros de confiança de ambas, a fim de dar confia-
bilidade da prova de que o documento ou a informação era
de conhecimento prévio do comprador. Em alguns países, os
arquivos digitalizados do data room podem ser levados aos ar-
quivos de notários públicos com manutenção da sigilosidade
(isso, porém, não é um serviço disponível nos cartórios brasi-
leiros, em razão de princípios da publicidade dos atos notariais
que regem o direito público brasileiro).
Conforme brevemente mencionado acima, é comum que
as declarações e garantias sejam classificadas em fundamentais
e não fundamentais, havendo diferentes consequências previs-
tas para o caso de violação de cada uma delas. Nesse sentido,
a limitação de responsabilidade, que é cláusula presente em

Temas de Direito Empresarial 2021 • 113

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 113 11/12/2020 13:57:38


praticamente todas as operações desta natureza, pode conter
diferentes patamares para o caso de quebra de uma declaração
fundamental de uma não fundamental. Uma das formas de
dar tratamento diferente é estabelecendo que os valores dos
limites de responsabilidade não se aplicam para quebra de de-
clarações e garantias fundamentais, ou seja, responsabilidade
será ilimitada para estes casos.
Por fim, mais uma situação merecedora de destaque é no
caso de contratos sujeitos à separação entre as fases de signing e
closing. Em determinadas transações de M&A, o momento da
assinatura do contrato pode não ser o momento em que todos
os efeitos do negócio são produzidos com a conclusão da ven-
da. Esses são casos em que as partes chegam ao acordo final,
mas para consumar definitivamente a operação precisarão rea-
lizar outros atos preliminares que serão condições precedentes
para o fechamento e, por conta disso, existe um período entre
essas duas datas, em que o contrato já foi assinado, mas a em-
presa continua em poder do vendedor, havendo necessidade
de regular o comportamento das partes durante esse prazo,
conhecido também como interim period.
A vendedora deverá conduzir os negócios com base em
determinadas regras que limitam a sua capacidade de realizar
alterações substanciais ao negócio vendido, mas, dependen-
do do tempo que perdurar o interim period, podem ocorrer
situações que impactem as declarações e garantias fornecidas
na data de assinatura do contrato, tornando-as imprecisas no
momento do fechamento da operação. Assim, é importante
incluir as regras que permitam a atualização das declarações
e garantias da vendedora ou previsão de que elas devem ser

114 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 114 11/12/2020 13:57:38


confirmadas no momento do closing, também chamada em
contratos internacionais de disclosure bring dowm.
Vale destacar, entretanto, que, além da atualização das reps
and warranties, deve-se prever contratualmente o que ocorre
em caso de alteração de uma situação declarada anteriormen-
te. Primeiramente, aqui se trata de casos em que a declaração
precisa ser alterada por fato ocorrido após o signing, ou seja,
não serve para salvar uma declaração e garantia dada pela parte
por fato já conhecido antes da assinatura do contrato. Ainda
assim, é provável que o comprador não aceitará uma alteração
substancial na situação da empresa vendida, sendo possível
prever que a atualização da declaração não impede a indeni-
zação, mas serve como fundamento para demonstrar a boa-fé
da vendedora e limitar a extensão de sua responsabilidade se
for o caso. Essa situação também pode estar relacionada com
a previsão de efeito material adverso, sendo que o comprador,
normalmente, vai buscar incluir previsão de que, se ocorrer
uma situação desta natureza, ele não será obrigado a concluir
o negócio (pode ser previsto entre as condições suspensivas, ou
seja, não deve ocorrer nenhum efeito material adverso entre a
assinatura e a data de fechamento da transação).

7 CONCLUSÃO

Como tais operações negociais são complexas, obvia-


mente, não havia pretensão de esgotar o assunto, mas apre-
sentar questões comumente discutidas neste tipo de cláusula,
sendo certo que existem outros pontos que podem surgir em
cada caso, inclusive, de modo muito específico a depender da

Temas de Direito Empresarial 2021 • 115

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 115 11/12/2020 13:57:38


peculiaridade do negócio envolvido. Nesse sentido, operações
de M&A de um setor econômico específico ou de empresa
com ativos de natureza altamente técnica precisarão incluir
reps and warranties bastante individualizadas para as caracte-
rísticas do negócio vendido.
Em síntese, buscou-se com o presente texto trazer alguns
dos aspectos a serem observados na negociação de fusões e
aquisições em relação às cláusulas de declarações e garantias,
pois são de suma importância em termos de distribuição de
riscos, precificação e responsabilização das partes.

116 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 116 11/12/2020 13:57:38


TRANSFERÊNCIA DE
PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS
AOS HERDEIROS:
vantagens e desvantagens
da transmissão em vida

Fernando René Graeff


Doutor e Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Especialista em Direito de Família pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul. Professor e advogado atuante nas áreas de Direito de Família e
Sucessões e de Direito Empresarial.

Sumário: 1 Introdução — 2 Participações societárias


e transmissão aos herdeiros — 3 Transmissão em caso
de falecimento — 4 Transmissão em vida: vantagens e
desvantagens — 5 Conclusão.

1 INTRODUÇÃO

De acordo com o Cadastro Central de Empresas


(CEMPRE)1, no ano de 2018, havia cerca de 5 milhões de

1
  Cadastro formado por empresas e outras organizações formalmente consti-
tuídas, registradas no CNPJ, cuja atualização é realizada a partir das pesquisas

• 117

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 117 11/12/2020 13:57:38


empresas em atividade no Brasil2. Embora os dados estatísticos
demonstrem que menos da metade das empresas sobrevivam
após quatro anos de atividades3, é incontroverso que o número
de empresas cresceu consideravelmente na última década.
Tal decorre, dentre outras razões, da necessidade de em-
preendedorismo face à crise econômica do país, que atinge
diretamente as vagas de emprego, e da desburocratização nos
procedimentos de abertura e registro de empresas, auxiliada
pela introdução dos sistemas eletrônicos. Além disso, vem sen-
do cada vez mais frequente a constituição de holdings como
instrumento para organização patrimonial e planejamento su-
cessório4, o que também contribui para esse crescimento.
Nesse contexto de expressiva quantidade de empresas,
é cada vez mais comum, nos procedimentos de inventário e
partilha, a presença de participações societárias no rol de bens
inventariados.
A transmissão dessas participações aos herdeiros possui
alguns contornos específicos, na medida em que exige a apli-
cação conjunta de normas atinentes ao Direito Sucessório, ao

econômicas anuais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) nas


áreas de Indústria, Comércio, Construção e Serviços, e de registros administrativos.
2
 https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/cempre/quadros/brasil/2017.
3
 https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agen-
cia-de-noticias/releases/15251-demografia-das-empresas-2013-menos-da-me-
tade-47-5-das-empresas-sobrevivem-apos-quatro-anos-de-atividade
4
  Nesta operação, constitui-se uma sociedade para o qual são transferidos bens
de determinada(s) pessoa(s) (mediante integralização do capital social), que, em
contrapartida, se torna(m) titular(es) de quotas ou ações da referida sociedade.
Como resultado, em vez de os herdeiros receberem uma fração de diversos bens,
recebem as quotas ou ações de uma sociedade (com personalidade jurídica pró-
pria) que, por sua vez, é a titular dos referidos bens.

118 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 118 11/12/2020 13:57:39


Direito de Família e ao Direito Empresarial, fazendo com que
o procedimento de partilha envolva questões de peculiar com-
plexidade. É o caso, por exemplo, da possibilidade ou não do
ingresso dos herdeiros na sociedade (herdar quotas não significa,
necessariamente, herdar a condição de sócio), da forma de apu-
ração e pagamento dos haveres aos sucessores (em que podem
colidir os interesses dos herdeiros e a preservação da empresa),
ou, ainda, da própria avaliação de tais participações para fins de
recolhimento do imposto de transmissão (há critérios distintos
para essa avaliação nos diferentes Estados da Federação).
Tal complexidade se soma à inexistência de legislação cla-
ra e satisfatória para a transmissão dos bens em caso de faleci-
mento, e também ao fato recorrente de haver conflitos entre os
herdeiros (o que é ainda mais relevante no âmbito das famílias
empresárias, na medida em que a continuidade dos negócios
da família, e, consequentemente, a manutenção do patrimô-
nio familiar, muitas vezes depende de uma sucessão exitosa).
Isso sem falar na significativa carga tributária incidente sobre
a transmissão do patrimônio em caso de falecimento, que, ao
que tudo indica, tende a aumentar.
Todas essas circunstâncias vêm acarretando uma mudan-
ça cultural nas famílias brasileiras – especialmente as empresá-
rias –, as quais têm passado a se preocupar cada vez mais em
antecipar a organização da sucessão, fazendo-a ainda em vida,
sendo muitas as vantagens que esta organização patrimonial e
sucessória, se bem implementada, pode trazer.
No presente artigo, serão examinadas quais as vantagens
e as desvantagens da antecipação da transferência das partici-
pações societárias.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 119

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 119 11/12/2020 13:57:39


2 PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS E TRANSMISSÃO
AOS HERDEIROS

São diversos os tipos de participação societária que po-


dem ser objeto de transferência aos herdeiros. Em razão do
princípio da tipicidade adotado pelo Código Civil, a socie-
dade deve, obrigatoriamente, adotar um dos tipos societários
previstos em lei. Os dois tipos mais largamente utilizados,
mormente no âmbito do planejamento sucessório, são a socie-
dade limitada e a sociedade anônima de capital fechado.
A sociedade limitada é constituída por contrato social
e seu capital é dividido em quotas5. Recentemente, a Lei
nº 13.874/20196 alterou o Código Civil, passando a permitir
que a sociedade limitada seja constituída por uma só pessoa (até
então, exigia-se pelo menos dois sócios). A responsabilidade de
cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respon-
dem solidariamente pela integralização do capital social.
A sociedade anônima, por sua vez, é constituída por esta-
tuto social e seu capital é dividido em ações7. A responsabilidade
de cada sócio ou acionista será limitada ao preço de emissão
das ações subscritas ou adquiridas. A sociedade por ações pode

5
  Nas sociedades divididas em quotas, a quota social é a unidade representativa
de uma fração do capital social, correspondendo a uma posição de direitos e de-
veres perante a sociedade (BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 14.
ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 44)
6
  Que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.
7
  Nas sociedades divididas em ações, a ação consiste em um valor mobiliário
representativo de unidade do capital social (COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de di-
reito comercial: direito de empresa. 28. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, p. 183).

120 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 120 11/12/2020 13:57:39


ser aberta (quando as ações são negociadas no mercado de va-
lores mobiliários – bolsa de valores) ou fechada (quando as
ações não são negociadas no mercado de valores mobiliários).
No que tange às sociedades anônimas de capital fechado, é
comum que elas sejam compostas por grupos familiares, pelo
que, em razão do caráter pessoal da sociedade nestes casos,
acabam sendo aplicadas a elas algumas regras próprias das so-
ciedades limitadas (como, por exemplo, o direito do acionista
de se retirar da sociedade mediante ação de dissolução parcial).
Na esfera da organização patrimonial e sucessória, cada
um destes tipos societários tem suas vantagens próprias. Na
sociedade por ações, ao se planejar a sucessão, é possível
alocar diferentes espécies de ações a cada um dos herdei-
ros8. Por exemplo, é possível destinar mais ações com direi-
to a voto (ações ordinárias) para aqueles herdeiros escolhi-
dos para administrar a sociedade, e mais ações que geram
maiores proventos (ações preferenciais) para aqueles que
não atuarão na sociedade. A sociedade limitada, por seu
turno, é mais vantajosa por envolver menos burocracia para
sua constituição e menores custos de manutenção9, sendo
mais apropriada para negócios ou patrimônio de pequeno e
médio porte. Daí por que a sociedade limitada é a preferida
em planejamento sucessório.

8
  Tal é possível inclusive no que diz respeito à composição da legítima, na medida
em que o Código Civil determina a igualdade quantitativa da legítima (valor do
patrimônio) e não qualitativa (espécie de patrimônio).
9
  ROSSI, Alexandre Alves; SILVA, Fabio Pereira da. Holding familiar: visão jurídica
do planejamento societário, sucessório e tributário. São Paulo: Trevisan, 2015. E-
book, p. 34.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 121

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 121 11/12/2020 13:57:39


Independentemente do tipo de participação societária, é
certo que, em algum momento, ela acabará sendo transferida
aos herdeiros do respectivo titular. O momento desta trans-
missão – que é o tema central do presente artigo – pode ser
quando do falecimento do titular (o que se denomina trans-
missão causa mortis), ou antecipadamente, ainda em vida (o
que se denomina transmissão inter vivos).
A seguir, será analisado como ocorre a transmissão da
participação societária em decorrência do falecimento, para,
na sequência, serem examinadas as vantagens e desvantagens
de se antecipar esta transferência ainda em vida.

3 TRANSMISSÃO EM CASO DE FALECIMENTO

O Código Civil Brasileiro10 adota um sistema misto de


sucessão causa mortis, mesclando a sucessão testamentária
com a sucessão legítima. Enquanto na sucessão testamentária
a divisão da herança se estabelece por declaração de última
vontade – prevalecendo, portanto, o desejo do testador –, na
sucessão legítima prevalece a divisão estabelecida pela legis-
lação, chamada ordem de vocação hereditária (art. 1.829 do
Código Civil).

10
  Art. 1.786 do Código Civil.

122 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 122 11/12/2020 13:57:39


3.1 Transmissão de participação societária na sucessão
legítima

Na sucessão legítima, a transferência da participação


societária de titularidade do de cujus, após excluída eventual
meação de seu cônjuge ou companheiro, será transferida aos
herdeiros conforme ordem estabelecida pelo Código Civil,
qual seja: (1) em primeiro lugar, aos descendentes, sendo que
com eles concorrerão o cônjuge ou companheiro, a depender
do regime de bens (a lógica do sistema é que, sobre os bens
em que o cônjuge ou companheiro tiver recebido meação, não
herda, e vice-versa); (2) em segundo lugar, aos ascendentes,
igualmente em concorrência com o cônjuge ou companheiro
(aqui independentemente do regime de bens); (3) em terceiro
lugar, ao cônjuge ou companheiro (também independente-
mente do regime de bens); (4) em quarto lugar, aos colaterais
(limitado o 4º grau).
Esta ordem funciona por eliminação, pelo que, em ha-
vendo descendentes – hipótese (1) –, a herança será distri-
buída apenas a estes, em concorrência com o cônjuge sobre-
vivente, e não haverá herança para os ascendentes e seguintes
potenciais herdeiros ali previstos – hipóteses (2), (3) e (4). E,
assim, sucessivamente.
Todavia, pode ocorrer que o titular das participações so-
cietárias deseje distribuir a herança de forma distinta daquela
prevista na legislação, o que é o mais comum em planejamen-
tos sucessórios. Para tanto, pode se socorrer da sucessão testa-
mentária, devendo ser observadas algumas regras específicas.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 123

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 123 11/12/2020 13:57:39


3.2 Transmissão de participação societária na sucessão
testamentária

Quanto à forma de celebração, o testamento poderá ser


elaborado na forma particular, cerrada ou pública (as duas úl-
timas envolvem maiores formalidades).
Em havendo herdeiros necessários (pelo Código Civil,
são eles os descendentes, os ascendentes e o cônjuge; e, para
parte da doutrina e da jurisprudência, também o companheiro
em união estável11), o objeto do testamento, em razão de regra
legal segundo a qual os mesmos não podem ser afastados total-
mente da herança12 (salvo situações excepcionalíssimas, como
é o caso da deserdação), poderá abranger apenas a metade do
patrimônio do testador, sendo a outra metade partilhada con-
forme a ordem de vocação hereditária.
Ressalva-se que a existência da legítima não impede o di-
reito do titular do patrimônio de indicar quais os bens que
irão compor a parte de cada herdeiro13, na medida em que a
legítima se limita ao valor, e não à natureza ou ao tipo de bem
a ser transmitido14.
É também possível, no testamento, a inclusão de cláusulas
restritivas sobre as quotas ou ações a serem transmitidas,
com o objetivo de conferir proteção ao patrimônio em

11
  A questão ainda não está pacificada.
12
  Art. 1.789 do Código Civil.
13
  Consoante previsão do art. 2.014 do Código Civil.
14
  MAMEDE, Eduarda Cotta; MAMEDE, Gladston. Holding familiar e suas vanta-
gens: planejamento jurídico e econômico do patrimônio e da sucessão familiar. 11ª.
ed. – São Paulo: Atlas, 2019, p. 98.

124 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 124 11/12/2020 13:57:39


relação a terceiros. São elas as cláusulas de inalienabilidade,
impenhorabilidade e incomunicabilidade. A cláusula de
inalienabilidade importa a vedação ao herdeiro de alienar,
doar, permutar ou dar em pagamento o bem recebido15. Uma
vez imposta, implica também a impenhorabilidade e a inco-
municabilidade do bem16. A cláusula de impenhorabilidade
tem como objetivo proteger os herdeiros de eventuais credo-
res17. Já a cláusula de incomunicabilidade, por sua vez, objetiva
impedir que os bens recebidos por herança se comuniquem
com o cônjuge ou companheiro do herdeiro18.
Sobre a parte disponível, tais cláusulas podem ser insti-
tuídas pelo testador sem qualquer justificativa, havendo total
liberdade de disposição por parte do testador. Assim, no que
tange às participações societárias, poderá o testador definir,
por exemplo, quem terá o controle da sociedade, bem como
destinar ações de natureza distinta aos herdeiros, algumas com
direito a voto, outras com direito a maiores proventos.
Sobre a legítima, por outro lado, tais cláusulas não podem
ser instituídas, via testamento, se não houver justa causa19.

15
  DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2013, p. 291.
16
  Art. 1.911 do Código Civil. Trata-se de cláusula bastante utilizada em planeja-
mentos sucessórios envolvendo a constituição de holding familiar, na medida em
que obstaculiza o ingresso de terceiros na sociedade. No entanto, em se tratando
especificamente de sociedade por ações, pode-se entender que a instituição de
tal cláusula contraria a regra do art. 36 da Lei 6.404/1976, segundo a qual não se
pode limitar por completo a negociação de ações.
17
 DIAS. Manual das sucessões. op. cit., p. 292.
18
  Ibid., p. 293. Vale lembrar que o único regime de bens em que o patrimônio
recebido por herança é comunicável é o da comunhão universal dos bens.
19
  Art. 1.848 do Código Civil. Cabe a ressalva de que não foi atribuído pelo le-
gislador o conceito de justa causa para tal fim. A doutrina vem entendendo que

Temas de Direito Empresarial 2021 • 125

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 125 11/12/2020 13:57:39


O testamento é revogável a qualquer tempo, sendo possí-
vel a alteração das disposições testamentárias, com a realização
de novo testamento. Tal revogabilidade permite que o titular
da participação societária faça adequações necessárias ao seu
planejamento sucessório, caso haja alterações em sua situação
pessoal, profissional e financeira.
Por fim, ressalta-se que o custo para a elaboração de testa-
mento é diminuto e, no caso específico do testamento particu-
lar, inexistente. Todavia, vale frisar que a efetiva transferência
das quotas ou ações aos herdeiros ocorrerá somente quando do
falecimento do titular, incidindo, assim, o respectivo imposto
de transmissão causa mortis (ITCD) de acordo com a alíquota
vigente na data do óbito.

3.3 Coexistência de sucessão legítima e testamentária

Importante referir que a sucessão legítima pode coexistir


com a sucessão testamentária. Isso significa que parte da he-
rança será dividida conforme as disposições testamentárias, e
outra parte será dividida conforme a ordem de vocação here-
ditária prevista pela legislação.
Tal ocorre em duas hipóteses: (a) se, mesmo tendo o de
cujus deixado testamento, este não tiver contemplado toda a
parte disponível do seu patrimônio; (b) se, mesmo tendo o de

configuram justa causa circunstâncias que tornem provável a dilapidação da he-


rança pelo herdeiro, como, por exemplo, prodigalidade ou incapacidade que com-
prometa o discernimento do herdeiro. Nesse sentido: Nery Junior, Nelson; Nery,
Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 10. ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2013, p. 1.580-1.581.

126 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 126 11/12/2020 13:57:39


cujus deixado testamento, houver herdeiros necessários, de ma-
neira que ao menos metade do patrimônio será partilhada con-
soante a ordem de vocação hereditária prevista no Código Civil.

3.4 Procedimento para a transmissão da participação


aos herdeiros

Independentemente da existência ou não de testamento,


no caso de falecimento, por força do Princípio da Saisine20, os
herdeiros têm direito de terem a si transmitidas, desde logo, as
participações societárias.
Todavia, a transmissão das participações societárias não
atribui aos sucessores, necessariamente, a condição de sócio da
sociedade21. Isso porque, enquanto o direito às participações
societárias do de cujus é regulado pelas regras do Direito Suces-
sório, o direito de ingresso na sociedade é regulado pelas regras
do Direito Societário.
Nesse contexto, o Código Civil, ao regular as sociedades
por quotas (dentre elas a sociedade limitada), estabeleceu que,
salvo exceções22, no caso de morte de sócio, liquidar-se-á desde

20
  O direito sucessório brasileiro rege-se pelo Princípio da Saisine, derivado do
direito francês, segundo o qual, com o evento morte, a herança transmite-se, des-
de logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.
21
  REsp 537.611/MA, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, jul-
gado em 05/08/2004, DJ 23/08/2004, p. 230.
22
  Há três exceções a esta regra. A primeira é se o contrato social dispuser di-
ferentemente, estabelecendo, por exemplo, que a decisão do ingresso ou não na
sociedade cabe aos herdeiros. A segunda é se os sócios remanescentes optarem
pela dissolução total da sociedade, com o encerramento das atividades. A terceira
é se, por acordo com os herdeiros, regular-se a substituição do sócio falecido,
ocasião em que um ou mais herdeiros ingressarão na sociedade.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 127

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 127 11/12/2020 13:57:39


logo sua quota, com o pagamento dos respectivos haveres aos
herdeiros, os quais não ingressarão na sociedade.
O ingresso dos herdeiros na sociedade, portanto, não é au-
tomático, embora também não seja vedado pela legislação. Não
sendo previsto o ingresso, a solução passa pela apuração dos res-
pectivos haveres23, os quais serão pagos conforme disciplinar o
contrato social e, no silêncio deste, a quota liquidada será paga
em dinheiro, no prazo de noventa dias, a partir da liquidação.
Havendo ou não a possibilidade de ingresso dos herdeiros
na sociedade, o certo é que, enquanto não partilhadas as parti-
cipações societárias – o que, especialmente em casos de litígio
entre os herdeiros, poderá demorar muitos anos –, as mesmas
estarão abarcadas pelo espólio, integrando um todo unitário e
indivisível (herança), que é considerado bem imóvel por força
de lei24, e ao qual se aplicam as regras do condomínio25.
Durante todo o ínterim entre a abertura da sucessão e a
efetiva partilha dos bens entre os herdeiros, o espólio, ainda
que não integre a sociedade26, deverá necessariamente ser re-
presentado na sociedade em que o de cujus detinha participa-
ção, na medida em que o direito não admite vazio na gestão da

23
  Os haveres são o quantum devido pela sociedade ao sócio falecido correspon-
dente à quota deste em relação ao capital social. Para mais detalhes, cf. COELHO,
Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. 28 ed. rev., atual. e
ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 171-172.
24
  Art. 1.791 do Código Civil. Cf. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil, v. 7: direito
das sucessões. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 37.
25
  GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 7: direito das suces-
sões. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2016., p. 51-52.
26
  FREITAS, Douglas Phillips. “Partilha e sucessão das quotas empresariais”. In:
FREITAS, Douglas Phillips (Coord.); BARBOSA, Eduardo Lemos (Coord.). Direito
de família nas questões empresariais. Florianópolis: Voxlagem, 2012, p. 97.

128 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 128 11/12/2020 13:57:39


herança27. Apenas com a partilha de bens é que deixa de existir
o espólio, passando cada herdeiro a administrar seus próprios
bens, já individualizados28.
Quanto ao procedimento para a partilha das participa-
ções societárias, tal poderá se dar ou por meio de processo
judicial de inventário, ou via inventário extrajudicial, feito por
meio de escritura pública firmada em Tabelionato. Nesta se-
gunda hipótese, deverá necessariamente haver consenso entre
as partes e não poderá haver herdeiro incapaz. Além disso,
no caso de haver testamento, será necessário, para a realização
de inventário extrajudicial, um procedimento judicial prévio
para o registro do respectivo testamento.

3.5 Custos

Os custos da transferência de participações societárias


em caso de falecimento abrangem basicamente o imposto de
transmissão causa mortis (ITCD)29 e as despesas para a realiza-
ção do procedimento30.
Em relação ao ITCD, trata-se de imposto de competên-
cia estadual, sendo que cada Estado da Federação pode estipu-
lar as alíquotas e a forma de avaliação dos bens.

27
  LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: sucessões. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014,
p. 63.
28
  GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito civil: sucessões. 2. ed. São Pau-
lo: Atlas, 2008, p. 245.
29
  Há também imposto de renda sobre ganho de capital, no caso de a transmissão
de algum bem se dar por um valor superior ao que constava na Declaração de
Imposto de Renda do de cujus.
30
  Além disso, haverá custos de honorários do advogado, cuja participação é
obrigatória.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 129

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 129 11/12/2020 13:57:39


No que concerne à alíquota do imposto, verifica-se sig-
nificativa diferença entre os Estados. Apenas a título de com-
paração, no Estado de São Paulo a alíquota é única, de 4%,
enquanto no Estado do Rio Grande do Sul a alíquota é pro-
gressiva, podendo chegar, atualmente, a 6%. Todavia, em am-
bos os Estados há projeto de lei31 em tramitação prevendo a
majoração da alíquota máxima, podendo chegar, em caso de
aprovação, a 8%.
Já no que se refere à forma de avaliação dos bens, há mui-
to se discute como deve ser apurado o valor das participações
societárias, que servirá como base de cálculo do imposto de
transmissão incidente.
No Estado de São Paulo, por exemplo, a legislação esta-
belece que a base de cálculo é o valor corrente de mercado da
participação societária, sendo que, nos casos em que a ação,
quota, participação ou qualquer título representativo do ca-
pital social não for objeto de negociação ou não tiver sido ne-
gociado nos últimos 180 dias, admitir-se-á o respectivo valor
patrimonial como base de cálculo. Todavia, o Projeto de Lei
250/2000 propõe uma alteração neste critério que, a preva-
lecer, tornará o procedimento de valoração das participações
societárias extremamente complexo e custoso32.

31
  No Estado de São Paulo, Projeto de Lei nº 250/2000. No Estado do Rio Grande
do Sul, Projetos de Lei nº 184/2020, 185/2020 e 186/2020.
32
  O referido projeto de lei pretende estabelecer que “a base de cálculo será o valor
do patrimônio líquido, apurado nos termos do artigo 1.179 da Lei nº 10.406, de 10 de ja-
neiro de 2002 (Código Civil), ajustado pela reavaliação dos ativos e passivos, incluindo-
-se a atualização dos ativos ao valor de mercado na data do fato gerador”. Para mais
detalhes, cf. SALLABERRY, Fernando Moraes. ITCMD – Imposto sobre heranças e
doações: comentários à legislação paultis, jurisprudência judicial e administrati-
va, respostas a consultas e súmulas – TOMO V, pg. 411.

130 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 130 11/12/2020 13:57:39


No Estado do Rio Grande do Sul, a legislação estadual
estabelece que a base de cálculo do imposto é o “valor venal”
dos bens, apurado mediante avaliação procedida pela própria
Fazenda Estadual. Quanto ao referido valor venal, a legislação
estadual33 prevê que a base de cálculo do imposto será o “Patri-
mônio Líquido atualizado, acrescido de 50% da Receita Líquida
média, anual e atualizada”34. Em decisão proferida em agosto
do presente ano35, a 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, o TJRS, havia decidido que: (a) o mé-
todo de cálculo utilizado pela Fazenda Estadual não se reveste
de caráter científico; (b) é indevida a avaliação da participação
societária com base no patrimônio líquido da sociedade cons-
tante de balanço; e (c) o método do fluxo de caixa descontado
é o mais apto a aferir o valor venal das participações societárias.
Todavia, mais recentemente, em outubro de 2020, foi
publicada a Instrução Normativa nº 076/2020, que passou a
determinar que o valor das participações societárias, para fins
de cálculo do ITCD, “será apurado de acordo com as normas
técnicas que orientam a prática de avaliação de empresas, o qual
poderá considerar, para efeitos de seu cálculo, o ajuste de registro
contábil, quando estiver em desacordo com os valores praticados
pelo mercado na data da avaliação”.

33
  Instrução Normativa DRP nº 45/98.
34
  Pontua-se que, no caso de a sociedade cujas quotas estão sendo inventariadas
se tratar de uma holding de participação, a base de cálculo é apurada a partir da
equivalência patrimonial da sociedade operacional, pelos mesmos critérios refe-
ridos acima.
35
  Apelação Cível nº 70084410463, 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 131

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 131 11/12/2020 13:57:39


Por fim, quanto às despesas para a realização do inventá-
rio, elas variam a depender do procedimento adotado (judicial
ou extrajudicial), sendo certo que, em regra, a realização de
inventário extrajudicial resulta em despesas menores se com-
parado ao inventário judicial.

4 TRANSMISSÃO EM VIDA: VANTAGENS E


DESVANTAGENS

Como alternativa à transferência das participações socie-


tárias realizada apenas no momento do falecimento, pode o
titular da respectiva participação antecipar sua transferência
aos sucessores, desde que respeitadas as limitações e as regras
impostas pela legislação.

4.1 Transmissão de participação societária em vida

A transmissão antecipada da participação societária aos


herdeiros pode ocorrer de duas formas: por meio de doação ou
partilha em vida. Embora sejam semelhantes, a partilha em vida
se diferencia da doação especialmente por se tratar de ato que
envolve todos os herdeiros necessários e todos os bens a serem
distribuídos, e não apenas alguns, dispensando-se, neste caso,
a abertura de inventário e a necessidade de colação dos bens36.
Em ambos os casos, há vedação de que a transmissão seja
feita sem reserva de parte ou renda suficiente para a subsistência

36
  A colação de bens consiste no dever dos herdeiros dos descendentes e cônju-
ges de trazer ao inventário os bens a eles já doados em vida pelo de cujus, estando
prevista no art. 2.002 e seguintes do Código Civil.

132 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 132 11/12/2020 13:57:39


do doador37. Além disso, a antecipação da herança é irrever-
sível, podendo ser revogada apenas na hipótese de ingratidão
do donatário38, ou por inexecução do encargo (no caso de a
doação sujeita a encargo).
Especificamente quanto à doação, é vedada que ela seja
realizada em montante que exceda a parte disponível39. Ade-
mais, a doação de ascendentes a descendentes importa adian-
tamento do que lhes cabe por herança – salvo dispensa expres-
sa por parte do doador em testamento ou no próprio título
de liberalidade –, cabendo aos descendentes trazer à colação40
o valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de
sonegação41.
É ainda igualmente possível, na doação, a inclusão das já
examinadas cláusulas restritivas (inalienabilidade, impenhora-
bilidade e incomunicabilidade) sobre as quotas ou ações a se-
rem transmitidas, com o objetivo de conferir proteção ao pa-
trimônio em relação a terceiros. No bojo de um planejamento
sucessório envolvendo participação societária, é bastante co-
mum a inserção de tais cláusulas no momento da doação.
Conforme se verá a seguir, a opção pela transferência da
participação societária pode trazer vantagens e desvantagens.

37
  Art. 548 do Código Civil.
38
  Nos casos previstos no art. 557 do Código Civil.
39
  De acordo com o art. 549 do Código Civil, é nula a doação quanto à parte que ex-
ceder à que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.
40
  Arts. 544, 2.002, 2.005 e 2.006 do Código Civil.
41
  A consequência da aplicação da pena de sonegados é a de que, aquele que
omitiu a existência de um bem já recebido a título de doação pelo de cujus, perderá
o direito de herança sobre o referido bem (art. 1.992 do Código Civil).

Temas de Direito Empresarial 2021 • 133

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 133 11/12/2020 13:57:39


A transferência das participações societárias em vida tem
como primeira grande vantagem viabilizar que o titular das
quotas ou ações organize antecipadamente a sua sucessão. Essa
organização pode ser fundamental para evitar conflitos entre os
herdeiros, notadamente nos casos em que os negócios da famí-
lia fazem parte desse planejamento. Nesse quesito, um planeja-
mento sucessório poderá incluir uma regulação das relações no
âmbito societário. Tal regulação poderá englobar mecanismos
jurídicos para a mediação da relação pessoal e patrimonial entre
os herdeiros, o que, em regra, pode servir como anteparo à carga
afetiva e emocional das relações familiares.
Mais um ponto de destaque é que antecipação da su-
cessão permite ao titular da participação exercer com maior
plenitude e transparência sua autonomia de disposição so-
bre seu patrimônio, conferindo ao mesmo uma destinação
integral entre os herdeiros necessários (no caso de partilha
em vida), ou de forma parcial (no caso de doação apenas da
parte disponível).
Aliás, há de se pontuar que, no caso de o titular da par-
ticipação societária não ser casado e não conviver em união
estável, a transmissão antecipada aos herdeiros poderá evitar
que, em caso de posterior início de um relacionamento, as
quotas ou ações não integrem a meação e não estejam sujeitas
à participação do cônjuge ou do companheiro na herança.
Outra vantagem é que há uma série de mecanismos que
podem ser utilizados em prol do doador, e que são recomen-
dados em um planejamento sucessório que preveja a transfe-
rência antecipada das quotas ou ações aos sucessores. É o caso,

134 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 134 11/12/2020 13:57:39


por exemplo, da possibilidade de ser estipulado que os bens
doados voltem ao patrimônio do doador, se este sobreviver ao
donatário (denominada cláusula de reversão42). Acresce-se, a
isso, o fato de o titular da participação poder reservar o usu-
fruto em seu favor, de modo a permanecer com direito à pos-
se, uso, administração e percepção dos frutos. Dito de outro
modo, o doador poderá manter para si os direitos de voto e
de recebimento de dividendos, agindo, assim, como se sócio
fosse43, sendo recomendado, nesse sentido, que se especifique
de forma mais clara possível, no respectivo instrumento de
doação, a quem cabe tais direitos44.
Não bastasse isso, em algumas situações, como nos casos
de partilha em vida, ou ainda nos casos em que todo o patri-
mônio está concentrado em uma sociedade, a doação das par-
ticipações societárias pode até mesmo dispensar a realização
de inventário. Tal dispensa não só tende a evitar os eventuais
embaraços que o referido procedimento pode causar aos her-
deiros – seja pela morosidade, seja pelo desgaste emocional e
financeiro que usualmente ocasiona (representando um cam-
po fértil para eventuais desavenças entre os herdeiros) –, como
também elimina os custos a ele relacionados, já detalhados no
capítulo anterior.

42
  Art. 547 do Código Civil.
43
  BAGNOLI, Martha Gallardo Sala. Holding imobiliária como planejamento suces-
sório. São Paulo: Quartirer Latin, 2016, p. 51.
44
  Mormente em se tratando de sociedade anônima, pelo que prevê a Lei da S.A.
em seu art. 114, ao estabelecer que “o direito de voto da ação gravada com usufruto,
se não for regulado no ato de constituição do gravame, somente poderá ser exercido
mediante prévio acordo entre o proprietário e o usufrutuário”.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 135

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 135 11/12/2020 13:57:39


Aliás, no que tange à economia financeira, a transmissão
em vida pode trazer uma outra significativa vantagem. Em al-
guns Estados, o imposto incidente sobre a doação é inferior ao
imposto de transmissão causa mortis. Apenas a título de exem-
plo, no Estado do Rio Grande do Sul, viu-se que a alíquota do
imposto de transmissão causa mortis pode alcançar 6% (a de-
pender do valor do quinhão transmitido), enquanto a alíquota
do imposto de transmissão por doação está limitada a 4%.
Não só, com a transmissão em vida também se garante o
pagamento da alíquota vigente à época da doação, o que con-
fere proteção e eventuais alterações legislativas estaduais que
venham a majorar a alíquota do ITCMD (como as que são
objeto dos já citados projetos de lei em tramitação nos Estados
de São Paulo e do Rio Grande do Sul).
Para que se tenha ideia da diferença, do ponto de vista
financeiro, que a transferência em vida pode gerar na prática,
atualmente a doação de participação societária no Rio Grande
do Sul seria de 4%. No caso de ser aprovado o projeto de lei
em tramitação, e de o titular vir a falecer sem realizar a doação
da participação, a alíquota para a transferência aos herdeiros
poderia chegar a 8%.
Por fim, não se pode deixar de mencionar que os demais
custos envolvidos com a transferência em vida das participa-
ções societárias, tais como as taxas e emolumentos para a ce-
lebração do ato e os honorários advocatícios, também são, via
de regra, menores do que os custos que envolvem a realização
de inventário, seja judicial, seja extrajudicial.
Todavia, é certo que, embora a antecipação da transfe-
rência das participações societárias aos herdeiros possa trazer

136 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 136 11/12/2020 13:57:39


inúmeras vantagens, de outro lado, tal antecipação também é
acompanhada de inconvenientes que, se não bem antevistos e
calculados, podem trazer prejuízos aos herdeiros.
Nesse contexto, um primeiro inconveniente trazido pela
transmissão em vida é retirar do titular da participação a livre
disposição sobre elas. Isso porque, ainda que seja reservado
o usufruto ao doador, todo e qualquer ato de disposição en-
volvendo as quotas ou ações, como a alienação, dependerá da
anuência do nu-proprietário (donatário). E mesmo que não
se cogite de qualquer possibilidade de negativa por parte dos
herdeiros com tais atos de disposição, sempre é possível uma
mudança de rumo ao longo do tempo, seja por novos interes-
ses ou necessidades, seja por fatores externos, como o início de
um relacionamento, por exemplo. Além disso, se não tomadas
as devidas precauções nesse sentido, o transmitente das quotas
pode ficar inclusive sem o controle do negócio, o que pode co-
locar em risco a própria sobrevivência da atividade empresarial.
Não se pode descartar, ainda, mudanças no contexto de
vida de alguns dos envolvidos que podem causar impactos
negativos em caso de antecipação. A título de exemplo, os
próprios genitores que anteciparam a transmissão dos bens
aos herdeiros podem vir a enfrentar algum tipo de problema
que lhes deixe em situação de necessidade, como um infor-
túnio financeiro, um divórcio ou um problema de saúde. Da
mesma forma, mudanças e infortúnios na vida dos herdeiros,
como, por exemplo, a contração de dívidas, podem colocar
em risco os negócios da família, que, por força da transmis-
são antecipada das quotas ou ações, poderão responder pelo
passivo surgido.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 137

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 137 11/12/2020 13:57:39


Por fim, em que pese as consideráveis vantagens no que
toca aos custos envolvidos, a transmissão em vida das partici-
pações societárias tem o ônus de antecipar o recolhimento do
imposto de transmissão (ITCD)45, gerando a necessidade de
um desembolso financeiro que, em tese, não seria necessário
naquele momento. Ressalva-se, todavia, que quando a trans-
missão em vida é realizada com reserva de usufruto, pode ha-
ver uma amenização deste inconveniente, porque alguns Es-
tados segregam o recolhimento do ITCMD entre o usufruto
e a nua-propriedade46. É o caso do Estado de São Paulo, que
atribui o peso de um terço para o usufruto, e dois terços para
a nua-propriedade47 (embora o Projeto de Lei nº 250/2000
preveja alteração nesse tocante, para que o ITCMD seja reco-
lhido sobre o valor integral do bem no momento da doação).
Todavia, a maioria dessas desvantagens pode ser superada
ou relativizada com a utilização das ferramentas jurídicas ade-
quadas, sendo fundamental, nesse sentido, que a transmissão
das participações societárias em vida seja realizada somente
após uma análise minuciosa da situação fática que envolve a
realidade patrimonial e pessoal dos envolvidos.

45
  ROSSI, Alexandre Alves; SILVA, Fabio Pereira da. Holding familiar: visão jurídica
do planejamento societário, sucessório e tributário. São Paulo: Trevisan, 2015. E-
book, p. 159.
46
  BAGNOLI, Martha Gallardo Sala. Holding imobiliária como planejamento suces-
sório. São Paulo: Quartirer Latin, 2016, p. 57.
47
  De acordo com o art. 9º da Lei 10.705/2000, a base de cálculo do imposto
será equivalente a um terço do valor do bem, na instituição do usufruto, por ato
não oneroso, e a dois terços do valor do bem, na transmissão não onerosa da
nua-propriedade.

138 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 138 11/12/2020 13:57:39


5 CONCLUSÃO

No presente artigo, foram elencados, ao lado das inúme-


ras vantagens que podem ser proporcionadas pela antecipa-
ção das participações financeiras, alguns inconvenientes que
podem vir a surgir, especialmente se a situação não for bem
analisada fática e juridicamente pelos interessados.
Com efeito, a antecipação via doação ou partilha em
vida não é uma solução que pode, indiscriminadamente, ser
aplicada para todas as sociedades e famílias. Em alguns casos,
ela pode ser extremamente vantajosa, enquanto, em outros,
pode ser inclusive prejudicial, a depender da sociedade cuja
participação será transmitida, bem como da situação familiar,
emocional e financeira dos envolvidos.
Antes ainda, a antecipação da transmissão aos herdeiros
depende de que haja conforto e confiança entre todos os en-
volvidos. Normalmente, a preparação para o procedimento
demanda não só tempo de reflexão e amadurecimento por
parte de toda a família, mas, antes de tudo, conhecimento da
importância do assunto e das consequências que isso traria
para o negócio da família.
Ademais, mesmo havendo uma predisposição do titular
da participação em antecipar a transmissão e uma confiança
recíproca entre os herdeiros, a transferência em vida, para ser
uma opção bastante vantajosa, deve ser realizada de forma res-
ponsável, com os cuidados necessários, a fim de permitir que
as vantagens sejam potencializadas e os riscos excluídos ou,
no mínimo, amenizados, garantindo que a escolha resulte no
maior benefício possível para os envolvidos.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 139

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 139 11/12/2020 13:57:39


Nesse contexto, a maioria dos inconvenientes envolvi-
dos na antecipação pode ser superada ou minimizada com a
utilização de mecanismos jurídicos adequados, que possam
antecipar eventuais alterações na situação fática pessoal e fi-
nanceira dos envolvidos. Tudo isso depende, contudo, de uma
prévia análise da situação fática pelas partes, recomendando-se
a avaliação por profissionais, que poderão dispor de um rol de
soluções adaptadas às peculiaridades de cada caso.

140 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 140 11/12/2020 13:57:39


RESOLUÇÃO DE DISPUTAS
EMPRESARIAIS NA ATUALIDADE.
O caso da mediação
empresarial e do financiamento
de terceiros na arbitragem

Julie Kelbert Griebler


Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2019),
com período de estudos na Université Paris 1 – Panthéon Sorbonne (2018).
Diplomada em Direito francês e europeu dos contratos pela Université Savoie
Mont-Blanc (2017).

A cast iron case does not exist. All conflicts involve downsides.
The main one is the risk of losing. And that’s not just losing the
case on its substance. What about loss of face, reputation, money,
gain, position, opportunity and of course the costs and wasted
time? Many victories. . . are Pyrrhic, not least because the world
has inevitably moved on since the dispute arose and the judicial
outcome [is] . . . academic.1

1
 LEATHES, Micheal, Leadership – “Key to profitable dispute management”
(unpublished draft 2004), apud STIPANOWICH, Thomas J., NELSON, Nancy.
Commercial mediation in Europe: Better solutions for business. CPR Institute for
Dispute Resolution: 2004.

• 141

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 141 11/12/2020 13:57:39


1 INTRODUÇÃO

Que o Poder Judiciário não acompanha a velocidade do


mercado, não é novidade para ninguém. Que este tem o po-
der de estagnar, suspender ou mesmo encerrar atividades eco-
nômicas, em todas as suas instâncias, também não. Porém,
já acostumados, ou acomodados, com tal realidade; ou, por
outro lado, adaptados e satisfeitos (afinal, não há como se ne-
gar que existem beneficiários de tal morosidade), ainda são
poucos os que olham para os lados em busca de alternativas.
Em momentos de crise, entretanto, a situação muda –
e tem mudado, diante dos impactos extraordinários da atual
crise decorrente da pandemia do coronavírus. As empresas
passam a ver acentuados os seus problemas de caixa, e muitas
vezes a enfrentar novos obstáculos à sua sobrevivência, antes
não tão relevantes ou até inexistentes.
No caso da atual crise decorrente da pandemia do corona-
vírus, em poucos dias do início dos impactos desta, a situação
de muitos setores se viu incerta. E, nesse caso, diferentemente
do “comum” em crises econômicas, somou-se a tudo isso que
a própria manutenção das atividades do Poder Judiciário tam-
bém se viu impactada, em razão da crise sanitária.
A publicação de decretos e resoluções dos tribunais foi ins-
tantânea, e a falta de harmonia entre não apenas os Estados, mas
em todos os eixos do Poder Judiciário, foi impressionante. Listas
e mais listas de onde e o quê estava funcionando rechearam as
newsletters dos escritórios de advocacia. De repente, a falta de
informação sobre como seria o prosseguimento das atividades
se tornou a normalidade.

142 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 142 11/12/2020 13:57:39


A verdade é que não haveria muito que se impressionar
diante desta falta de informação e organização, considerando
que o cenário de “normalidade” já era de dificuldade em esta-
belecer contato com juízes e desembargadores, e o avanço de
questões simples – e por vezes urgentes – nos processos muitas
vezes não era tratado com a devida atenção. Tal realidade, en-
tretanto, não é completamente sem motivos.
O Estudo Justiça em Números 20192 demonstrou que,
nos tribunais de maior porte do Brasil (dentre os quais se en-
contram tanto o Tribunal do Estado de São Paulo quanto o
Tribunal do Rio Grande do Sul), o número de casos para cada
Magistrado deixa evidente a impossibilidade de se esperar algo
diferente de um sistema ineficiente e incompatível com a velo-
cidade do mercado. Conforme tal Estudo, no Tribunal de São
Paulo, para cada Magistrado haveria, em média, 2.011 casos
novos (apenas em 2018) e 7.478 casos em andamento. Isso no
contexto em que, na Apresentação de tal Estudo, o Min. Dias
Toffoli afirma que “Este relatório mostra que, pela primeira vez
na última década, houve redução dos casos pendentes, contrarian-
do a tendência que vinha sendo observada ao longo dos últimos
anos”. Ou seja, esse resultado seria inclusive positivo, sob os
parâmetros da Justiça.
Por enquanto, consegue-se apenas imaginar a avalanche
de novos casos que estão sendo e ainda serão levados ao Poder
Judiciário em decorrência dos efeitos da pandemia do novo

2
 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arqui-
vo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 30/08/2020.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 143

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 143 11/12/2020 13:57:39


coronavírus. Casos estes que certamente impactarão em tais
números de forma significativa3, não apenas em curto mas
também em médio prazo.
Porém, em um cenário em que muitas empresas passam a
ter sua sobrevivência ameaçada, e a demanda por uma eficien-
te gestão de caixa passa a tomar posição ainda mais relevante,
tal ineficiência do Poder Judiciário toma maior visibilidade.
Diante disto, muitas ferramentas já existentes e em evolução
há anos, que trazem soluções mais eficientes às partes que se
veem em um conflito, são revisitadas, e passam a ganhar gran-
de relevância como formas de resolução de conflitos. Nesse
sentido, é já antiga a reflexão no sentido de que:

“Do conjunto de estudos sobre a conciliação, pode-se


concluir que, durante um longo período, os métodos
informais de solução de conflitos foram considerados
como próprios das sociedades primitivas e tribais, ao
passo que o processo jurisdicional representou insupe-
rável conquista da civilização. [...] Mas, como escreveu
um sensível processualista, ‘quando as coisas instituí-
das falham, por culpa de fatores estranhos a nossa von-
tade, convém abrir os olhos às lições do passado para
verificar se, acaso, com mais humildade, dentro das
nossas forças e limites, não podem elas nos ensinar a
vencer desafios do presente’.”4

3
  Reflexões como esta foram trazidas em variadas publicações. Ver: https://www.
correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/07/06/internas_econo-
mia,869666/covid-19-abarrota-a-justica-e-tsunami-de-acoes-e-esperado-pos-
-pandem.shtml; https://www.migalhas.com.br/depeso/323691/impacto-do-co-
vid-19-no-judiciario-de-sao-paulo
4
  GRINOVER, Ada Pellegrini. “Conciliação e juizados de pequenas causas”. In:
Watanabe, Kazuo (coord.), Juizado especial de pequenas causas, Revista dos Tri-

144 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 144 11/12/2020 13:57:39


Tal reflexão, da relevantíssima Profa. Ada Pellegrini Gri-
nover, citando o Prof. Kazuo Watanabe, nos remete aos méto-
dos autocompositivos de resolução de conflitos, em que não
há uma decisão que imponha uma solução às partes. Estes não
são novidade do século XX, e muito menos XXI, entretanto,
passam por períodos de evolução e de utilização maiores e me-
nores, a depender da insatisfação com o Poder Judiciário, ou
mesmo das necessidades de cada época5.
Apesar da citação se referir aos métodos consensuais de re-
solução de conflitos, para fins deste trabalho se abordará de
forma mais restrita os métodos usualmente utilizados em dis-
putas empresariais, principalmente a mediação empresarial e a
arbitragem. Esta última, entretanto, terá sua exposição focada
em outro instituto que, assim como os métodos consensuais
de resolução de conflito, tem ganhado maior notoriedade com
a crise decorrente do coronavírus, qual seja, o financiamento
de terceiros na arbitragem. Tal notoriedade pode ser justifica-
da, como se verá abaixo, pela fato de que este representa um
mecanismo de alívio ao caixa das empresas, no contexto de
instauração ou andamento de um procedimento arbitral.
Tais métodos e/ou instrumentos, em verdade, ganharam
(e vêm ganhando) notoriedade, há muitos anos. Alguns, como

bunais, 1985, p. 159. Apud WATANABE, Kazuo. “Cultura da sentença e cultura da


pacificação”. In: YARSHELL, Flávio Luiz; MORAES, Maurício Zanóide de (org.), Es-
tudos em homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover, São Paulo: DPJ Ed. 2005.
5
  ALVES DA SILVA, Paulo Eduardo. “Resolução de disputas: métodos adequados
para resultados possíveis e métodos possíveis para resultados adequados”. In:
SALLES, Carlos Alberto de; LOPES LORENCINI, Marco Antônio Garcia; ALVES DA
SILVA, Paulo Eduardo (coord.). Negociação, mediação, conciliação e arbitragem: cur-
so de métodos adequados de resolução de conflitos. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense,
2019. P. 17.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 145

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 145 11/12/2020 13:57:39


a negociação, dificilmente são vistos como algo à parte da rea-
lidade empresarial, eis que presente em todas as etapas desta, e
não como instrumento ou conceito vinculado apenas ao está-
gio em que a empresa já se encontra em um conflito. Outros,
mais vinculados ao próprio funcionamento do Poder Judiciá-
rio, como a conciliação, foram sendo impostos aos litigantes,
os quais optam ou não pela sua utilização, por provocação do
próprio órgão julgador6.
Em relação à mediação, o seu crescimento em disputas
empresariais é recente. Esta, no cenário da pandemia, vem ga-
nhando ainda maior reconhecimento, pelo seu grande poten-
cial de resolução rápida e menos custosa dos conflitos, destra-
vando problemas e agregando valor aos negócios.
Todos esses métodos, considerados como prévios ao pro-
cesso judicial, passam a ser então vistos como substitutos a este.
Isso porque, para enfrentar os problemas decorrentes do dia
a dia empresarial, aguardar indefinidamente por uma decisão
judicial, em um cenário em que, dependendo da localidade,
sequer se sabe se será possível o contato com o órgão julgador,
já que a pandemia impediu o simples bater na porta das varas
e câmaras judiciais, se mostra uma alternativa ainda menos
suficiente para satisfazer os anseios do mercado.

6
  Acerca de tal imposição, muitos são os doutrinadores que a veem como um
avanço dos métodos compositivos e uma forma de disseminação destes. Há, en-
tretanto, posições contrárias, tais como a do Prof. Carlos Alberto de Salles (Nos
braços do Leviatã: os caminhos da consensualidade e o Judiciário Brasileiro. RJLB,
ano 4, n. 3. Lisboa: FDUL, 2018).

146 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 146 11/12/2020 13:57:39


No outro espectro, quando insuficientes tais caminhos,
a arbitragem, já reconhecido e disseminado método de reso-
lução de disputas, tem se mostrado resiliente ao cenário de
pandemia. Além do fato de que praticamente não houve inter-
rupção dos trabalhos, tendo as câmaras arbitrais rapidamente
adaptado os seus procedimentos ao meio virtual, os meios de
financiamento de arbitragem, já presentes no cenário brasilei-
ro desde meados de 2014, com crescimento exponencial desde
então, têm tomado maior notoriedade pelo seu enorme po-
tencial de aliviar os efeitos da condução de uma arbitragem na
gestão de caixa das empresas que se veem em um conflito em
meio a uma crise econômica.
Dessa forma, o presente trabalho explorará os métodos
que têm tomado maior relevância no cenário de pandemia,
mais especificamente, a mediação empresarial e os instrumen-
tos de financiamento de arbitragens, a fim de demonstrar não
apenas a sua funcionalidade, mas como estes podem agregar
valor aos negócios, aliviando ou ao menos diminuindo os efei-
tos danosos ao caixa das empresas decorrentes da instauração
de um litígio.

2 MEDIAÇÃO EMPRESARIAL

Segundo Diego Faleck, a mediação empresarial “consiste


na facilitação, por um terceiro neutro, de negociação para a reso-
lução de disputa, entre partes de relações comerciais”7. Trata-se,

7
  FALECK, Diego. “Mediação empresarial: introdução e aspectos práticos”. Revis-
ta de arbitragem e mediação, Vol. 42/2014, p. 263-278, jul-set, 2014. p. 263.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 147

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 147 11/12/2020 13:57:39


portanto, de pessoa imparcial à disputa, a qual não emite deci-
são vinculante às partes. Ou seja, não há a imposição de uma
solução pelo terceiro, e sim uma facilitação às partes para que
estas mesmas cheguem a um resultado que lhes pareça ade-
quado. O resultado da mediação, então, nada mais é do que
uma transação.
Tal método de resolução de disputas vem ganhando espa-
ço no Brasil nas últimas duas décadas, após, segundo o Prof.
Alves da Silva, a instituição da arbitragem pela Lei 9.307/96
e o seu reconhecimento pelo STF em 20018 terem “quebrado
um primeiro nível de resistência ao uso de MASCs [métodos al-
ternativos de solução de conflitos] no país”9.
Apesar de não depender de previsão legal, a mediação
passou a deter previsão em legislação específica a partir de
2015, com a promulgação da Lei 13.140/201510. Tal legisla-
ção veio para impulsionar o referido método, o qual, segundo
Eleonora Coelho, não haveria alcançado grau de utilização sa-
tisfatório no nosso país (isso ainda em 2015), por motivo da
(i) ausência de cultura do consenso, e, principalmente, por (ii)
uma falta de regulamentação legal11.

8
  STF, SE nº 5206 – Espanha, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 12.12.2001.
9
  ALVES DA SILVA, Paulo Eduardo. “Resolução de disputas: métodos adequados para
resultados possíveis e métodos possíveis para resultados adequados”. In: SALLES,
Carlos Alberto de; LOPES LORENCINI, Marco Antônio Garcia; ALVES DA SILVA, Pau-
lo Eduardo (coord.). Negociação, mediação, conciliação e arbitragem: curso de métodos
adequados de resolução de conflitos. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 21.
10
 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/Lei/L13140.htm#:~:text=Disp%C3%B5e%20sobre%20a%20
media%C3%A7%C3%A3o%20entre,o%20%C2%A7%202%C2%BA%20
do%20art.
11
  COELHO, Eleonora. “Desenvolvimento da cultura dos métodos adequados de
solução de conflitos: uma urgência para o Brasil”. In: ROCHA, Caio Cesar Vieira;

148 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 148 11/12/2020 13:57:39


Na Lei 13.140/2015 foi regulada tanto a mediação judi-
cial (a qual não será objeto do presente trabalho) quanto ex-
trajudicial. Foi ainda conceituada a mediação12 (o que também
foi feito no Novo Código de Processo Civil de 2015, em seu
artigo 166, §3º13) e houve a formalização dos princípios que
a regem ou devem a reger, quais sejam (i) a imparcialidade do
mediador; (ii) a isonomia entre as partes; (iii) a oralidade; (iv)
a informalidade; (v) a autonomia da vontade das partes; (vi) a
busca do consenso; (vii) a confidencialidade; e (viii) a boa-fé.
A partir de tais princípios, é possível visualizar os pressupostos
da mediação empresarial, e como estes auxiliam no objetivo de
ter uma resolução de conflitos mais rápida, eficiente e menos
custosa às partes.
Primeiramente, em relação à imparcialidade do media-
dor, é importante referir que um dos grandes obstáculos para
a maior utilização da mediação é, querendo ou não, a resistên-
cia, ou ceticismo, das partes, ao considerarem que, sendo esta
friamente uma negociação, por que razão um terceiro, alheio
à controvérsia, teria maior capacidade ou sucesso na obtenção

SALOMÃO, Luis Felipe (Coords.). Arbitragem e mediação: a reforma da legislação


brasileira, São Paulo: Atlas, 2015. p. 109.
12
  Art. 1º, Parágrafo único. Considera-se mediação a atividade técnica exercida
por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas par-
tes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para
a controvérsia.
13
  § 3º O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vín-
culo anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as ques-
tões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimen-
to da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem
benefícios mútuos.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 149

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 149 11/12/2020 13:57:39


de uma transação do que as próprias partes, as quais conhecem
muito melhor os seus negócios e a sua controvérsia?14
Tal premissa, entretanto, ignora não apenas a complexi-
dade de uma negociação, mas também as questões psicológi-
cas por detrás da resolução de disputas. Conforme Scavone
Junior, um dos importantes atributos do mediador é neutrali-
zar a emoção das partes. Tal autor afirma ainda que os confli-
tos que desbordam dos interesses financeiros, os quais podem
ser “pretextos para disputas emocionais”, são um cenário fértil à
resolução da disputa por mediação15. Nesse sentido, é ainda a
posição de Faleck16:

“(...) existem diversas outras barreiras que dificultam


a negociação direta, como a desvalorização reativa, ou
seja, o efeito psicológico de não se valorizar a proposta
oferecida pelo mero fato de que esta veio da parte adver-
sa, aversão a risco, aversão à perda e os naturais conflitos
de agência. Em suma, em muitos casos que deságuam
em litígio, ninguém quer ceder, ambas as partes buscam
controlar o processo de negociação e maximizar os seus
ganhos, e não raro, o conflito escala.”

Dessa forma, o terceiro, enquanto mediador, atuará a


fim de neutralizar tais questões alheias à disputa, a exemplo
das questões emocionais. Como forma de preservar a sua

14
  FALECK, Diego. “Mediação empresarial: introdução e aspectos práticos”. Re-
vista de Arbitragem e Mediação, Vol. 42/2014, p. 263-278, jul-set, 2014. p. 263.
15
  SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Manual de arbitragem: mediação e concilia-
ção. 8. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. P. 298?
16
  FALECK, Diego. “Mediação empresarial: introdução e aspectos práticos”. Re-
vista de Arbitragem e Mediação, Vol. 42/2014, p. 263-278, jul-set, 2014. p. 274.

150 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 150 11/12/2020 13:57:39


imparcialidade e garantir maior segurança às partes para fala-
rem livremente sobre seus objetivos e fraquezas, a legislação ga-
rantiu que, durante o prazo de um ano, o mediador fica impe-
dido de assessorar qualquer das partes, bem como que este não
poderá atuar como árbitro nem como testemunha em processos
judiciais ou arbitrais referentes ao conflito no qual tenha atuado
como mediador (arts. 6º e 7º da Lei 13.140/2015).
Outros princípios referidos pela Lei 13.140/2015 que
merecem comentário são a questão da informalidade e da au-
tonomia da vontade das partes. Assim como na arbitragem,
a autonomia das partes é de extrema relevância na definição
sobre como será a condução do procedimento (quais serão os
prazos, que provas poderão ser produzidas, quantas manifesta-
ções de cada parte serão permitidas etc.). Na mediação, pode-se
dizer que tal autonomia ganha ainda mais relevância. Isso por-
que, na mediação, a possibilidade de se adequar o procedi-
mento detém menos relevantes obstáculos legais e formais do
que a arbitragem, na qual os árbitros necessitam se atentar
às hipóteses de invalidação da sentença arbitral, determinada
pela legislação pertinente. Tal questão é de extrema relevância,
e conforme publicação do CPR Institute17:

“Another reason for the growing popularity of


mediation is its extraordinary flexibility. The range
of options for business parties seeking third party
assistance to facilitate negotiations is limited only by
the willingness of the participants and the creativity

17
  STIPANOWICH, Thomas J., NELSON, Nancy. Commercial mediation in Europe:
better solutions for business. CPR Institute for Dispute Resolution: 2004.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 151

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 151 11/12/2020 13:57:39


of the mediator. There are many ways in which
mediation may be tailored to the needs of the parties
and the issues at hand.”

A flexibilidade da mediação, e a ausência de maiores for-


malidades existentes principalmente no Judiciário, mas tam-
bém na arbitragem (considerando que as sentenças arbitrais
em algum grau ainda podem ser questionadas judicialmente),
permite que os procedimentos sejam literalmente moldados às
necessidades das partes.
Nesse sentido, ainda quanto à comparação sobre tal flexi-
bilidade na mediação, há que se atentar ao fato de que, apesar
da arbitragem ser um método de resolução de conflitos reco-
nhecidamente célere, este, ainda assim, pode não se mostrar
rápido o suficiente para a velocidade do mercado, a depen-
der do caso. Conforme estudo realizado em 2019, a média de
tempo que se despende para a resolução da controvérsia em tal
método é de 1 ano e nove meses18.
Há que se abrir um parêntese, no entanto, e principal-
mente em relação à mediação, a fim de referir que tanto as
arbitragens quanto as mediações podem ser realizadas não
apenas no seio das câmaras especializadas, mas também de for-
ma independente, a partir dos procedimentos chamados de ad
hoc, os quais prescindem da utilização de tais câmaras. Tendo
em vista tais procedimentos, os números aqui explorados têm
a fragilidade de considerar apenas os procedimentos realizados
no âmbito destas câmaras – e apenas daquelas que expõem os

18
 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/299336/arbitragem-
-demora-em-media-1-ano-e-9-meses-para-solucionar-conflitos-no-brasil.

152 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 152 11/12/2020 13:57:39


seus números. Ainda assim, pode-se ter uma perspectiva de
como estes procedimentos vêm funcionando.
Dessa forma, prosseguindo com tal análise, e partindo
para um enfoque na celeridade do mecanismo, a fim de se
entender em qual extensão a mediação é mais célere do que
os demais métodos de resolução de conflitos, é válida a análise
comparativa realizada por Daniela Monteiro Gabbay19, a qual
analisou a média de tempo aguardada até o deslinde de uma
mediação empresarial no âmbito das maiores câmaras do país,
elaborando, então, a tabela a seguir:

Câmara de
Centro de
Conciliação, Câmara de
arbitragem e
Mediação e Comércio
mediação da
Arbitragem Internacional
CCBC
Ciesp/Fiesp
2012 4 1 21
2013 3 6 32
Número de
requerimentos 2014 9 4 25
de mediação 2015 2 2 16
por ano
2016 16 3 32
2017 9 6 30
2012 R$ 8.567.426,15 R$ 1.209.776,19 US$ 45.699.310,00
2013 R$ 11.735.575,30 R$ 3.512.060,38 US$ 14.422.780,00
Média 2014 R$ 13.970.961,62 R$ 1.107.844,67 US$ 94.212.746,00
de valor
envolvido 2015 R$ 29.929.401,85 R$ 500.000,00 US$ 22.148.729,00
2016 R$ 96.068.655,03 R$ 125.515.851,77 US$ $45.699.310,00
2017 R$ 327.664.459,83 R$ 35.631.090,48 -
Média de
4 meses e meio 1 mês e 6 dias 3 meses e meio
duração do
(2012-2017) (2012-2017) (2013-2016)
procedimento

19
 Disponível em: https://www.aasp.org.br/em-pauta/mediacao-empresarial-
-em-numeros-onde-estamos-e-para-onde-vamos/

Temas de Direito Empresarial 2021 • 153

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 153 11/12/2020 13:57:39


Posteriormente a tal pesquisa, o Centro de Arbitragem e
Mediação da CCBC (“CAM-CCBC”) divulgou o número de
procedimentos de mediação realizados em 2018 (4) e 2019 (8),
tendo os valores médios envolvidos sido de R$ 300.000,00 e R$
3.125.489.014,00, respectivamente20. Não foram divulgados os
períodos de duração dos procedimentos. Também não foram
encontradas informações sobre as demais câmaras.
Entretanto, a partir de tais informações, já é possível
visualizar que a média de tempo dos procedimentos é bas-
tante inferior à arbitragem, e ainda mais em relação aos li-
tígios judiciais, sobre os quais é quase utópica a tentativa de
se prever o tempo de duração. Tal diferença de tempo de du-
ração é bastante relacionada à possibilidade de se moldar o
procedimento às necessidades das partes. Além de que, tendo
em vista que não é proferida uma decisão vinculante, como
ocorre nos métodos heterocompositivos, tal como o processo
judicial e arbitral, é bastante improvável que vá existir algum
questionamento judicial posterior, e, mesmo que o haja, são
mais limitadas as hipóteses de questionamento (exatamente
pelo resultado do procedimento ser uma transação entre duas
partes experientes).
A partir de tais elementos, o que fica claro é que, ultra-
passadas as resistências iniciais quanto à utilização da media-
ção empresarial, esta pode trazer às partes uma forma de re-
solução de conflitos sobre as quais estas de fato têm controle

20
 Disponível em: https://ccbc.org.br/cam-ccbc-centro-arbitragem-mediacao/
mediacao-estatisticas/

154 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 154 11/12/2020 13:57:39


sobre o seu tempo, custos e desdobramento21. O mesmo não
pode ser dito sobre os métodos heterocompositivos tais como
a arbitragem e o processo judicial.
Assim, a mediação – além do seu crescimento exponen-
cial nos últimos anos, a partir da promulgação do seu diplo-
ma legal – ganhou maior destaque no cenário da pandemia,
por duas razões: (i) os entraves decorrentes da crise sanitária
no poder judiciário; e (ii) esse potencial de controle e mesmo
previsibilidade sobre o tempo, os custos e o desdobramento da
demanda, o qual torna as partes mais empoderadas em relação
a sua gestão de caixa.
Tal destaque no cenário de pandemia é demonstrado, por
exemplo, pelo fato de que, apenas no CAM-CCBC, de março
a julho deste ano já foram iniciados quatro novos procedimen-
tos (contra apenas um neste período em 2019)22. Outros bons
exemplos são a parceria realizada entre a Câmara de Mediação
e Arbitragem Especializada (“CAMES”) e a Caixa de Assistên-
cia da Advocacia do Estado do Rio de Janeiro (“CAARJ”), a
fim de facilitar que os advogados levem os conflitos que se en-
contram no Judiciário para métodos tais como a mediação23, e
a parceria entre a Câmara Brasileira de Mediação e Arbitragem
Empresarial (“CBMAE”) e a Confederação das Associações
Comerciais e Empresariais do Brasil (“CACB”)24.

21
  FALECK, Diego. “Mediação empresarial: introdução e aspectos práticos”. Re-
vista de arbitragem e mediação, Vol. 42/2014, p. 263-278, jul-set, 2014. p. 264.
22
 https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/empresas-recorrem-a-
-mediacao-e-arbitragem-para-resolver-conflitos-ligados-a-covid-19-27072020
23
 Id.
24
 https://cacb.org.br/cbmae-facilita-uso-de-ferramenta-de-resolucao-de-con-
flitos-durante-pandemia/

Temas de Direito Empresarial 2021 • 155

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 155 11/12/2020 13:57:39


Dessa forma, a mediação se mostra como um método de
resolução de conflitos empresariais bastante efetivo, que ad-
mite uma rápida resolução, com custos mais baixos e maior
controle das partes sobre o que está em jogo, tanto em ter-
mos de custos quanto em termos de deslinde da controvérsia.
É, assim, um dos métodos que, existentes há séculos, volta
a ganhar destaque, pela ineficiência da máquina judiciária e
pelo contrassenso que é a cultura do litígio quando ambas as
partes saem perdendo.

3 FINANCIAMENTO DE TERCEIROS NA ARBITRAGEM

Conforme supramencionado, a arbitragem se mostrou


rapidamente adaptável ao cenário de pandemia. Poucos dias
após o início do período de distanciamento social no país, as
mais diversas câmaras de arbitragem nacionais já editaram re-
soluções, adaptando os seus procedimentos ao mundo virtual,
findando com os ainda existentes resquícios de protocolos físi-
cos e passando a realizar as audiências de forma virtual.
O CAM-CCBC, por exemplo, no dia 16 de março,
quando alguns Estados sequer haviam iniciado as medidas de
distanciamento social, já havia emitido a Resolução Adminis-
trativa 39/2020, acerca do funcionamento adaptado à pande-
mia do COVID-1925, com as primeiras orientações acerca do
andamento dos procedimentos. Na mesma linha, no dia se-
guinte, em 17 de março, a Câmara de Arbitragem e Mediação

25
 Disponível em: https://ccbc.org.br/cam-ccbc-centro-arbitragem-mediacao/
ra-39-2020-covid-19/

156 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 156 11/12/2020 13:57:39


Empresarial (“CAMARB”), emitiu a primeira das hoje três re-
soluções relacionadas ao funcionamento adaptado à pandemia
da COVID-1926.
Assim foram as providências tomadas por todas as câ-
maras mais relevantes do país, sendo praticamente imediata a
resposta ao mercado sobre o normal prosseguimento dos tra-
balhos. Nesse sentido, na Câmara de Conciliação, Mediação e
Arbitragem da FIESP (“CIESP/FIESP”), há dados indicando
que, dos 96 casos em andamento, apenas 11 foram suspensos
em razão do distanciamento social27 – o que não se sabe é se
tal suspensão foi por decisão das partes, dos árbitros, ou por
quaisquer outros motivos.
Entretanto, o objeto do presente trabalho tem menos a
ver com este método de resolução de conflitos em si, e mais
com um dos institutos que vem sendo utilizado no mercado
nacional para alterar a lógica econômica usualmente inerente
aos conflitos, e trazer “soluções de mercado ao sistema de re-
solução de controvérsias”28: o financiamento de terceiros na
arbitragem, usualmente conhecido no mercado internacional
como third-party funding. O motivo do enfoque em tal insti-
tuto é simples: assim como a mediação empresarial, tal meca-
nismo tem como uma de suas faces a de desonerar o caixa da
empresa, repassando não apenas os custos como os riscos do

26
  Resoluções 08/20, 9/20 e 10/20, todas disponíveis em http://camarb.com.br/
arbitragem/resolucoes-administrativas/.
27
 https://www.jota.info/tributos-e-empresas/mercado/pandemia-acelera-digi-
talizacao-de-arbitragens-que-quase-nao-tiveram-suspensoes-13072020
28
  ENGHOLM CARDOSO, Marcel. Arbitragem e financiamento por terceiros. São
Paulo: Almedina, 2020, p. 45.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 157

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 157 11/12/2020 13:57:39


resultado do procedimento arbitral para um terceiro, o qual
será o financiador, ou third-party funder.
Como não é de se estranhar (inclusive tendo em vista os
fatos trazidos acima sobre a adaptação da arbitragem a cená-
rios tais como os decorrentes da COVID-19), a arbitragem já
é o meio de resolução de conflitos empresariais preferido para
as maiores disputas comerciais. No âmbito internacional, da-
dos já demonstram que esse é o principal método de resolução
de disputas comerciais internacionais29. Entretanto, isso não
quer dizer que este é livre de problemas.
Um dos pontos tidos como negativos de tal método, que
é agravado pelo cenário de crise econômica, é o dos custos para
a sua utilização30. Tanto no momento da inserção da cláusula
compromissória nos contratos, quanto no advento de eventual
litígio, uma preocupação comum das partes é de quanto estas
irão despender com o procedimento arbitral. Afinal, diferen-
temente do processo judicial, além das custas judiciais, que na

29
  DOS SANTOS, Carolina. Third-Party funding: a wolf in sheep’s clothing? 35 Asa
Bulletin, v. 35, n. 4, p. 218-936, dec. 2017, p. 918.
30
  A partir de dois estudos realizados com os usuários da arbitragem comercial
internacional pela School of International Arbitration da Queen Mary School of
London, intitulados “Improvements and innovations in international arbitration”
e “The evolution of international arbitration”, chegou-se à conclusão de que, a
partir da visão dos entrevistados, o ponto negativo da arbitragem mais frequen-
temente levantado são os custos. (Cf. QMUL. School of international Arbitration.
2015 International Arbitration Survey: Improvements and Innovations in Inter-
national Arbitration. 2015. Disponível em: http://www.arbitration.qmul.ac.uk/
media/arbitration/docs/2015_International_Arbitration_Survey.pdf. Acesso em:
17 nov. 2019.; QMUL. School of international Arbitration. 2018 International Ar-
bitration Survey: The Evolution of International Arbitration. 2018. Disponível em:
http://www.arbitration.qmul.ac.uk/media/arbitration/docs/2018-International-
-Arbitration-Survey---TheEvolution-of-International-Arbitration-(2).PDF. Acesso
em: 17 nov. 2019.

158 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 158 11/12/2020 13:57:39


arbitragem podem ser comparadas às taxas de administração,
há, na arbitragem, o diferencial de pagamento dos honorários
dos árbitros. Além de, é claro, os custos serem despendidos di-
retamente pelas partes, e não com o subsídio do contribuinte.
Dessa forma, levando em consideração não apenas a rea-
lidade do pagamento de custos mais elevados já no início, mas
também que, normalmente, a situação econômico-financeira
da parte sofre alterações em decorrência do lapso temporal
entre a assinatura da cláusula compromissória e a efetiva ne-
cessidade de utilizá-la (seja como demandante, seja como de-
mandada), duas situações poderão advir. A primeira, em que
a parte não detém os recursos financeiros necessários para a
instauração de um litígio arbitral. A segunda, em que a parte
detém meios financeiros para tanto, porém, pelas mais diver-
sas razões, sejam gerenciais, econômico-financeiras, ou de flu-
xo de caixa, prefere não o fazer.
Para tal problemática, então, criou-se um novo mercado
baseado nos procedimentos arbitrais, onde “o que juristas cha-
mam de demandas, para os financiadores são simples ativos”31. Mas
o que é este mercado? Nas palavras de Yves Derains32, no con-
texto internacional, e de Leonardo Beraldo33, autor brasileiro:

“It is a scheme where a party unconnected to a claim


finances all or part of one of the parties’ arbitration costs,
in most cases the claimant. The funder is remunerated

31
  CREMADES, Bernardo M. Concluding Remarks. Third-Party Funding in Inter-
national Arbitration. Dossiers of the ICC Institute of World Business Law, v. 10, p.
153-156, 2013.
32
 DERAINS, Yves. Foreword. Third-Party Funding in International Arbitration.
Dossiers of the ICC Institute of World Business Law, v. 10, p. 5-6, 2013.
33
  BERALDO, Leonardo de Faria. Curso de arbitragem. São Paulo: Atlas, 2014. p. 145.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 159

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 159 11/12/2020 13:57:39


by an agreed percentage of the proceeds of the award, a
success fee, a combination of the two or through more
sophisticated devices. In the case of an unfavourable
award, the funder’s investment is lost.”
“Pode-se conceituar esse negócio como um contrato
pelo qual uma pessoa, quase sempre um terceiro em re-
lação à convenção de arbitragem (financiador), finan-
ciará os gastos de uma outra pessoa (financiado) com
o processo arbitral, tais como taxas de instauração e
de manutenção da arbitragem, honorários do árbitro,
advocatícios (contratuais e sucumbenciais), do perito.
O valor pode ser para cobrir todos esses dispêndios ou
apenas parte deles. Em contrapartida, o financiador
receberá, do financiado, caso este logre êxito na de-
manda arbitral, um percentual ou valor previamente
fixado sobre aquilo que ele vier a receber.”

A partir de tais definições, entende-se o financiamento


de terceiros na arbitragem como um negócio entre a parte no
procedimento arbitral e um terceiro, financiador, em que este
arca com todos os custos do procedimento arbitral, em troca
de um percentual do êxito da demanda. Trata-se, nada mais,
nada menos, de um investimento por parte do terceiro em
uma demanda. Como regra geral, no caso em que a demanda
seja exitosa, o financiador receberá uma parte dos ganhos; no
caso em que a demanda seja inexitosa, o financiador arcará com
todas as perdas34. Não há dever da parte de recompensá-lo ou
reembolsá-lo. Assim, conforme Renato Berger35:

34
  SARAIVA, Mariana de Souza. O financiamento de terceiros na arbitragem e o
acesso à justiça. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 77.
35
  BERGER, Renato. “Financiamento de arbitragens em litígios societários”. In:
YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (org.). Processo Societário
III. São Paulo: Quartier Latin, 2018. p. 649.

160 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 160 11/12/2020 13:57:39


“Para o financiador, o investimento mostra-se como
uma forma de investimento com risco desvinculado
das flutuações de mercado (uma vez que o risco decor-
re exclusivamente de entendimentos sobre questões
jurídicas e fáticas).”

Entretanto, até a efetiva celebração do financiamento,


como em qualquer outro investimento, alguns passos são ne-
cessários. O primeiro destes geralmente é a assinatura de com-
promissos de confidencialidade, entre potencial financiador e
potencial financiado, a fim de que sejam compartilhadas pelo
potencial financiado todas as informações necessárias à análise
da demanda, esteja esta já em andamento ou anteriormente ao
requerimento de arbitragem.
A partir disso, é realizada uma auditoria (“due diligence”)
sob todos os aspectos da demanda. Não se restringindo, então,
ao mérito da demanda em si, mas abarcando também a (i) re-
dação da cláusula compromissória firmada entre as partes; (ii)
a câmara de arbitragem escolhida; (iii) os árbitros que possam
vir a ser (ou que já tenham sido, a depender da fase em que
se encontra o procedimento) designados para a composição
do tribunal arbitral; e (iv) os recursos da parte requerida, e se
estes podem garantir o pagamento de eventual condenação,
e todas as demais informações que possam ser apuradas de
alguma forma. Tal due diligence, entretanto, poderá variar ex-
tensamente a depender do tipo de financiamento acordado.
A análise pelo financiador, no âmbito da due diligence,
tem duas finalidades principais: (i) a de avaliar a probabilidade
de êxito na demanda; e (ii) qual será a lógica econômica de

Temas de Direito Empresarial 2021 • 161

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 161 11/12/2020 13:57:39


gasto x ganho por parte do financiador. Nesse sentido, Leo-
nardo Viveiros, atual head da Leste Litigation Finance, já
afirmou que36:

“As arbitragens que buscamos não têm valor pequeno,


então existe um valor significativo de investimento
de ticket médio de R$ 3,5 a R$ 4 milhões. Se vou
investir R$ 4 milhões, eu tenho que entender todos os
riscos que estou assumindo. E isso é bem interessante.
Não vamos analisar só o contrato, a cláusula
compromissória; analisamos as trocas de e-mail, qual
o conjunto probatório que já está disponível; analisa-
mos se ele está bem feito. Às vezes nós fazemos uma
verdadeira due diligence.”

Nesse sentido, vale ressaltar que a análise do ticket varia


de financiadora a financiadora, e que se altera ao longo do
tempo – principalmente tendo em vista a rápida evolução do
instituto. Apesar de não haver uma numerosa gama de finan-
ciadores no mercado brasileiro, a chegada de novos players e a
ainda não tão grande demanda (justificada, na visão de Rena-
to Berger, pelo desconhecimento do instituto)37 influenciarão
tais condições financeiras.
Ademais, prosseguindo com as etapas da negociação do
financiamento, após a realização da auditoria, é comum a

36
 VIVEIROS, Leonardo. “Novas perspectivas sobre a prática da arbitragem”.
[Entrevista cedida a] INOVARB. INOVARB, [s.d.]. Disponível em: https://www.
amcham.com.br/o-que-fazemos/arbitragem-emediacao/inovart-area-de-arti-
gos-e-publicacoes-da-inovarb.
37
  BERGER, Renato. “Financiamento de arbitragens em litígios societários”. In:
YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (org.). Processo Societário
III. São Paulo: Quartier Latin, 2018. p. 651.

162 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 162 11/12/2020 13:57:39


assinatura de memorando de entendimentos ou term sheet, a
fim de regular os deveres e obrigações de ambas as partes. Res-
salva é feita ao que pode ser uma dúvida frequente no sentido
de perda de autonomia da parte em relação ao seu próprio
litígio. Em verdade, os financiadores não têm a praxe de inter-
ferir no litígio38, podendo impor apenas condições anteriores
ao investimento (como, por exemplo, a troca de estratégia ou
mesmo de escritório de advocacia) ou mesmo apenas servir
como uma consultoria, tendo em vista o alto grau de especia-
lização e experiência em procedimentos arbitrais39.
Atualmente, os players mais conhecidos no mercado bra-
sileiro são a suprarreferida Leste Litigation Finance, pioneira
deste mercado no Brasil, tendo iniciado as suas atividades no
financiamento de litígios em 2014, a peruana LexFinance, e,
desde 2019, a inglesa Harbour Litigation Funding. Existem ou-
tros fundos que realizam tal operação no Brasil, apesar de não
possuírem um escritório ou contato baseado no país, como, por
exemplo, a suíça Nivalion AG, além de existirem “corretores”
dos financiamentos, que fazem a intermediação entre o poten-
cial financiado e o financiador, como a Rockmond Litigation

38
  BACELO, Joice. “Fundos nacionais e estrangeiros decidem apostar em arbitra-
gem”. Valor Econômico, 20 out. 2019. Disponível em: valor.globo.com/legislacao/
noticia/2019/10/20/fundos-nacionais-e-estrangeiros-decidem-apostar-emar-
bitragem.ghtml.
39
  Conforme o Prof. Arnoldo Wald: “A direção do processo pode ter uma interfe-
rência maior ou menor do financiador, que pode nomear o advogado que vai fun-
cionar no caso, ou aceita o indicado pelo financiado, estabelecendo-se neste caso,
em geral, um modus vivendi para a colaboração entre o causídico que representa a
parte no processo e o advogado do financiador, embora também possa não haver
qualquer ingerência por parte da empresa financiadora.” (WALD, Arnoldo. “Al-
guns aspectos positivos e negativos do financiamento da arbitragem”. Revista de
arbitragem e mediação, v. 49, [s.p.], abr./jun. 2016. p. 36.)

Temas de Direito Empresarial 2021 • 163

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 163 11/12/2020 13:57:40


Funding Advisors. A partir dos serviços oferecidos por tais
players, se analisará então as formas de financiamento de ar-
bitragens no Brasil, a par do formato mais tradicional já men-
cionado.
Como primeiro exemplo, a LexFinance indica três mo-
dalidades de financiamento: (i) financiamento de arbitragens,
(ii) financiamento de arbitragem por meio de dívida e (iii)
compra do laudo arbitral40. A primeira destas seria então a
hipótese já mencionada, na qual o financiador arca com todos
os custos do procedimento em vistas de receber percentual
do êxito da demanda. A segunda seria um empréstimo de di-
nheiro “em troca de juros mais bônus de performance (success
fee) dos ganhos obtidos de um laudo favorável ou transação”.
A terceira, com uma distinção maior das demais, seria o caso
em que o fundo adquire os direitos creditórios da parte me-
diante a compra da sentença arbitral com um deságio, mone-
tizando o laudo e assumindo o risco de execução.
Em comparação com estes três produtos, além do pri-
meiro destes ser comum a todos os players trazidos, há ainda
informação de que tanto a Leste quanto a Nivalion AG tam-
bém realizam a compra do laudo arbitral. Entretanto, consi-
derando que não há uma regra fixa, não há de se descartar a
possibilidade de oferecimento destes e outros produtos pelos
financiadores no mercado.
Para a operacionalização de tal financiamento, que tam-
bém pode ser chamado de investimento, também são diversas

40
 https://www.lex-finance.com/BR/#about-us

164 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 164 11/12/2020 13:57:40


as possibilidades. Desde a realização de mero contrato atípico
de investimento, em que há o aporte de valores em contrapar-
tida à expectativa de recebimento de percentual de êxito da
demanda, até a constituição de Sociedade em Conta de Parti-
cipação, os contratantes são livres para estipular o método de
operacionalização do financiamento de terceiros mais adequa-
do às suas necessidades. Para os casos mais específicos de em-
préstimo com juros ou de compra do laudo arbitral, eventual-
mente serão mais adequados os contratos de empréstimo e de
cessão de direitos creditórios, respectivamente. Entretanto, tal
questão é bastante flexível, eis que o instituto de financiamen-
to de terceiros na arbitragem, além de ser importado, ainda
é bastante recente no Brasil, não tendo sequer sido objeto de
análises judiciais até o momento.

4 CONCLUSÃO

Em tempos como o presente, em que as empresas pre-


cisam se reinventar, e a gestão de caixa necessita ser feita de
forma mais consciente, há que se analisar quais alternativas já
existem e são mais adequadas à gestão dos conflitos empresa-
riais. Querendo ou não, os conflitos são inerentes à ativida-
de empresarial, e não há uma “cast iron” capaz de impedi-los
100% das vezes. Entretanto, já existem possibilidades mais
adequadas à sua solução.
Assim, este trabalho teve como proposta a de brevemen-
te demonstrar como, em um primeiro momento, a mediação
empresarial deve ser desmistificada e utilizada de forma mais
frequente nos conflitos empresariais. Tanto pela sua evidente

Temas de Direito Empresarial 2021 • 165

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 165 11/12/2020 13:57:40


celeridade, quanto pela maior segurança concedida às partes,
que passam a ter controle sobre o quanto irão gastar com tal
procedimento, e sobre o que de fato será decidido – eis que
estes serão partes ativas de tal processo decisório. Em um se-
gundo momento, apresentar o financiamento de terceiros na
arbitragem, a fim de demonstrar que, mesmo em um cenário de
litígios, existem soluções de mercado para que as partes optem
por “terceirizar” os riscos dos litígios, investindo o seu caixa em
sua atividade principal, e não na solução de controvérsias.

166 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 166 11/12/2020 13:57:40


OPERAÇÃO SOCIETÁRIA ENTRE
FIBRIA CELULOSE S.A. E SUZANO
PAPEL E CELULOSE S.A.:
A “De Facto Merger Doctrine”
e suas aplicações no Brasil

Rafael Brunati
Especialista em Direito Societário (LL.M) pelo Instituto de Ensino e Pesquisa –
INSPER (2019). Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
(2016).

1 CONTEXTUALIZAÇÃO

Em janeiro de 2019 a Suzano Papel e Celulose S.A. (“Su-


zano” ou “Incorporadora”) anunciou a conclusão da operação
de incorporação de ações da Fibria Celulose S.A. (“Fibria” ou
“Incorporada”), iniciada em março de 2018. Referida opera-
ção foi submetida à aprovação de todos os órgãos regulado-
res, nacionais e internacionais, sendo a última etapa concluí-
da em 14 de janeiro de 2019, com o pagamento de cerca de
R$ 27,8 bilhões aos acionistas da Incorporada1.

1
 Disponível em: <https://istoe.com.br/suzano-confirma-conclusao-de-fusao-
-com-a-fibria/>. Acesso em: 09 de setembro de 2020.

• 167

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 167 11/12/2020 13:57:40


Não obstante ter sido aprovada em todos os órgãos re-
guladores competentes, a operação gerou grande repercussão
na mídia especializada – assim como no mercado em geral
– além de diversas discussões, especialmente entre os acio-
nistas da Incorporada, os quais, em parte, foram contrários à
operação societária desenhada. Isso se deu por conta de suas
particularidades, vez que foi dividida em múltiplas etapas, e
gerou especulações de ter sido moldada especificamente com
a finalidade de diluir a participação dos acionistas minori-
tários, bem como de evitar uma oferta pública de aquisição
de ações (“OPA”), conforme disposto no art. 254-A da Lei
n.º 6.404/76 (“LSA”).
Em uma análise esmiuçada na modelagem adotada no
caso em discussão2, verifica-se que se optou por uma opera-
ção societária complexa, dividida em quatro etapas ocorridas
simultaneamente, na qual: (i) a Suzano aportou o dinheiro
que os acionistas da Fibria estavam aptos a receber, sob forma
de aumento de capital, em uma holding criada especificamen-
te para a operação, denominada de Eucalipto Holding S.A.
(“Eucalipto” ou “Holding”); (ii) todas as ações da Fibria foram
incorporadas pela Eucalipto, ou seja, a Incorporada passou a
ser uma subsidiária integral da Holding. Nesse contexto, para
cada ação da Fibria, foram entregues ações ordinárias (0,4613
ação ordinária) e ações preferenciais resgatáveis, ambas da
Eucalipto, com uma proporção de 20% de ações ordinárias
e 80% de ações preferenciais; (iii) foi efetuado o resgate das

2
 Disponível em: <http://www.cvm.gov.br/decisoes/2018/20180904_
R1/20180904_D1150.html>. Acesso em: 09 de setembro de 2020.

168 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 168 11/12/2020 13:57:40


ações preferenciais pela Holding, pagando o valor de R$ 50,20
por ação; e, por fim, (iv) houve a incorporação da Eucalipto
pela Suzano, pelo valor patrimonial da Holding, com o recebi-
mento, pelos antigos acionistas da Fibria, da quantia supraci-
tada, transformando a Fibria em subsidiária integral da Suza-
no ao final da operação (“Operação”).
O principal motivo de discussão no presente caso se deu
na relação de troca utilizada na Operação, parte em ações e
parte em dinheiro, uma vez que as ações preferenciais emitidas
pela Eucalipto foram resgatadas no mesmo dia, corresponden-
do – segundo os acionistas insatisfeitos – essencialmente ao
pagamento em pecúnia. Assim, parte dos acionistas da Fibria
argumentou que a Operação teria sido modelada com a finali-
dade de, a partir de etapas legais, alcançar um resultado ilegal,
qual seja, a exclusão substancial e sumária dos acionistas da Fi-
bria, que teriam meramente cerca de 20% (vinte por cento) de
sua participação societária representada no capital da Suzano,
não tendo sido concedido sequer OPA obrigatória por conta
da troca de controle na Fibria.
Em discussão do caso na Comissão de Valores Mobiliá-
rios (“CVM”), os diretores Gustavo Gonzalez, Pablo Rente-
ria e Henrique Machado não encontraram irregularidades na
Operação, ficando vencido o voto do diretor Gustavo Borba.
Segundo os votos vencedores, não houve qualquer ilega-
lidade na utilização de ações preferenciais resgatáveis na rela-
ção de troca em uma operação societária, bem como entende-
ram que a divisão da Operação em quatro etapas serviu para
“permitir, por meio da conjugação de efeitos jurídicos, atingir um

Temas de Direito Empresarial 2021 • 169

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 169 11/12/2020 13:57:40


fim que não poderia ser alcançado por meio de um único negócio
típico”3.
Em contrapartida, o voto vencido do diretor Gustavo
Borba considerou que a Operação seria “uma espécie de squee-
ze-out parcial dos acionistas da incorporada, uma vez que eles
seriam, no percentual correspondente a 80% de suas participa-
ções, excluídos de sua potencial participação na incorporadora em
virtude da operação integrada”4.
No contexto apresentado acima, a CVM decidiu pela
legalidade da Operação. Isso porque, ao estudar o regime ju-
rídico aplicável às reorganizações societárias elaboradas por
múltiplas etapas, como ocorrido in casu, o colegiado da CVM
vem considerando que cada uma das etapas deve, a princípio,
ser avaliada de maneira independente, primando a forma so-
bre a essência, diferente do estabelecido pela de facto merger
doctrine, desenvolvida nos Estados Unidos e, por outro lado,
indo de encontro ao disposto pela independent legal significan-
ce doctrine.
Dessa maneira, a CVM tem jurisprudência no sentido de
que se deve examinar a estrutura de uma operação societária
sob uma perspectiva formal, especialmente quando há veros-
similhança entre a descrição da operação e os fins almejados
por esta, não devendo a referida autarquia federal exigir que a
operação em si produza efeitos jurídicos atípicos de qualquer

3
 Disponível em: <http://www.cvm.gov.br/decisoes/2018/20180904_
R1/20180904_D1150.html>. Acesso em: 09 de setembro de 2020.
4
 Disponível em: <http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/ane-
xos/2018/20180904/1150__Voto_DGB.pdf>. Acesso em 09 de setembro de
2020.

170 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 170 11/12/2020 13:57:40


uma de suas etapas, e cuja determinação dependeria da análise
das diversas etapas como um negócio jurídico único.
Em suma, a análise da forma deve ser privilegiada em de-
trimento da substância apresentada em uma operação societá-
ria no Brasil. Entretanto, seria esse um entendimento perigoso
para os acionistas minoritários no Brasil?

2 CASO PRÁTICO E SUAS DISCUSSÕES

A principal polêmica da Operação se deu na terceira eta-


pa, na qual foi efetuado o resgate das ações preferenciais pela
Holding, pagando-se o valor de R$ 50,20 por ação.
O resgate de ações está previsto no art. 44, da LSA, e re-
presenta um modo legítimo de extinção da ação, desde que res-
peitados os seus requisitos legais, no qual a companhia paga aos
acionistas (de determinada classe ou classes de ações) o valor de
suas ações, removendo-as definitivamente de circulação5.
De forma sucinta, o professor Fábio Konder Comparato6
deslinda o tema:

Como as ações preferenciais autênticas, nas diferentes


legislações, têm o privilégio de receberem, com prio-
ridade sobre as ações ordinárias, dividendos fixos ou
mínimos, cumulativos ou não, o legislador reservou
à companhia emissora a possibilidade de estatuir uma

5
  FLAKS, Luís Loria. “Aspectos societários do resgate de ações”. Revista de direito
mercantil, industrial, econômico e financeiro. São Paulo, v.123, jul-set, 2001.
6
  COMPARATO, Fábio Konder. “Funções e disfunções do resgate acionário”. Re-
vista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro. São Paulo. vol. 73, jan./
mar. 1989.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 171

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 171 11/12/2020 13:57:40


compensação de defesa do patrimônio social, contra
esse privilégio; qual seja, a aquisição compulsória das
ações privilegiadas.

No mais, como bem explicado pelo professor Osmar Bri-


na Corrêa Lima7, as ações preferenciais resgatáveis podem ser
uma forma de autofinanciamento de capital de giro, por meio
do mercado de capitais, com a comodidade de ser dispensada
assim que alteradas as condições de mercado, ou mesmo as
condições financeiras da própria companhia.
No caso em questão, as ações resgatáveis foram utiliza-
das como relação de troca na operação societária, o que gerou
grande discussão por parte de alguns acionistas da Incorpora-
da, como se verá adiante.
Os principais argumentos dos acionistas insatisfeitos fo-
ram no sentido de que a relação de troca estabelecida na Ope-
ração se deu, na prática, com o pagamento em pecúnia, o que
seria proibido pelo disposto no artigo 223, § 3º da LSA8.
Alguns acionistas alegaram, ainda, que seria um direito es-
sencial de qualquer acionista o de manter o status socii, ou seja,
de permanecer sócio da companhia e que o resgate de 80% das
ações seria, portanto, incompatível com a legislação pátria.

7
  LIMA, Osmar Brina Corrêa. “Resgate de ações de sociedade anônima”. Revista
de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro. São Paulo: RT. vol. 68, out./
dez. 1987.
8
  Art. 223, § 3º. “Se a incorporação, fusão ou cisão envolverem companhia aber-
ta, as sociedades que a sucederem serão também abertas, devendo obter o res-
pectivo registro e, se for o caso, promover a admissão de negociação das novas
ações no mercado secundário, no prazo máximo de cento e vinte dias, contados
da data da assembleia geral que aprovou a operação, observando as normas per-
tinentes baixadas pela Comissão de Valores Mobiliários.”

172 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 172 11/12/2020 13:57:40


Sobre o assunto, importante destacar o artigo 109 da
LSA, que dispõe sobre os direitos essenciais dos acionistas,
dentre eles o direito de: (i) participar dos lucros; (ii) fiscali-
zar a gestão dos negócios da sociedade; (iii) preferência para a
subscrição de ações, partes beneficiárias conversíveis em ações,
debêntures conversíveis em ações e bônus de subscrição; e (iv)
retirar-se da sociedade.
Logicamente, é manifesto que os direitos essenciais acima
elencados, principalmente o de participar dos lucros, decor-
rem da condição de sócio da companhia. Não obstante, isso
não se equivale ao “direito essencial de permanecer sócio” da
companhia em toda e qualquer situação.
Nesse sentido, segundo Nelson Eizirik:

A LSA vigente, repetindo o sistema anterior, e sob evi-


dente inspiração no modelo constitucional dos direi-
tos individuais dos cidadãos, estabeleceu determina-
dos direitos essenciais dos acionistas, que funcionam
como limite ao poder majoritário, uma vez que deles
não podem ser privados por deliberação da assembleia
geral ou por dispositivo estatutário. Tais direitos in-
tegram as bases essenciais do controle da sociedade,
que não podem ser alteradas por deliberação da assem-
bleia, posto que decorrem do “estado de acionista”.

Destarte, a LSA objetiva, ao garantir aos acionistas al-


guns direitos essenciais, assegurar a estabilidade nas relações
internas da companhia que, em relação aos poderes dos con-
troladores, não podem ser exercidos de forma ilimitada, e,
em relação aos minoritários, não podem prejudicar a evolu-
ção da companhia.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 173

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 173 11/12/2020 13:57:40


Outrossim, cabe destacar o art. 5º, inciso XX, da CF, o
qual dispõe sobre a liberdade de associação, estabelecendo que
“ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer as-
sociado”.
Por conseguinte, em casos específicos, a exclusão com-
pulsória de um grupo de acionistas do quadro social da com-
panhia pode, de fato, ser caracterizada como um abuso por
parte dos controladores.
Não obstante, isso não torna o direito de permanecer sócio
um direito inviolável e universal, ou seja, que haveria um direito
de manter o status socii independentemente da situação.
Tal entendimento seria incompatível com o próprio
art. 44, § 4º, da LSA9, o qual estipula que o resgate deve, em
regra, abranger a totalidade de ações de uma mesma espécie
ou classe e, caso ocorra o resgate parcial, este deve ser realizado
por meio de sorteio. Seria conflitante, ainda, com o próprio
instituto da incorporação, que prevê a migração obrigatória da
base acionária de uma companhia para outra.
A Operação, ao que parece, é baseada em uma negociação
entre partes privadas e independentes. Por conseguinte, é de
se imaginar que as partes tenham considerado as participações
que teriam após o término da Operação e, por consequência,
a diluição que estariam dispostas a se submeter em contrapar-
tida aos benefícios esperados.

9
  “art. 44, § 4º. O resgate e a amortização que não abrangerem a totalidade
das ações de uma mesma classe serão feitos mediante sorteio; sorteadas
ações custodiadas nos termos do artigo 41, a instituição financeira especificará,
mediante rateio, as resgatadas ou amortizadas, se outra forma não estiver
prevista no contrato de custódia.”

174 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 174 11/12/2020 13:57:40


Nesse contexto, o direito de permanecer sócio, implícito
na legislação societária, não foi violado no caso em discussão,
uma vez que o resgate de ações é uma das formas previstas em
lei para a extinção de determinada classe de ações, como se
destacará a seguir.

3 RESGATE DE AÇÕES

3.1 Conceito, finalidades e modalidades de resgate

O resgate de ações é previsto pelo art. 44 da LSA e nada


mais é do que uma forma de extinção da ação por parte da
companhia, que paga aos acionistas de determinada classe (ou
classes) o valor respectivo de suas ações e, após, as remove de-
finitivamente de circulação.
Destarte, uma das principais funções do resgate de ações
é a de atrair novos investimentos para a companhia por meio
de emissão de ações que concedam ao acionista a opção de ter
suas ações resgatadas. Dessa forma, o investidor teria a opção
de se retirar da companhia por meio do recebimento do capi-
tal por ele investido após um determinado período, ou poste-
riormente a um evento.
Nesse sentido, a CVM emitiu o parecer de n.º 091/8210
reconhecendo o benefício que as ações com resgate “compul-
sório” podem promover às companhias:

10
  Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=juris_
cvm_wi&pagfis=4789>. Acesso em 09 de setembro de 2020.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 175

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 175 11/12/2020 13:57:40


Por outro lado, o resgate que chamamos de “compul-
sório”, ou seja, o resgate pré-estabelecido [sic] pela
empresa, pode funcionar até mesmo como uma atra-
ção extra para a aquisição daquele determinado papel,
em vista da possibilidade de, em uma data futura e
conhecida, poder o acionista optar entre conservar a
ação ou resgatá-la, dentro das condições estabelecidas,
conforme considere mais vantajoso na época fixada
para resgate.

Não obstante, com a concessão de atração extra às ações


resgatáveis, mencionada no referido parecer, surge outra fun-
ção importante do referido instituto, qual seja, o de permitir
à sociedade remover determinada classe de ações, por deterem
demasiadas condições privilegiadas, por exemplo, e que, por-
tanto, se tornam prejudiciais ou indesejáveis à companhia.
Sobre tal função, Carlos Israels leciona11, in verbis:

[...] na medida em que a empresa cresce e prospera, o


capital privilegiado pode não ser mais necessário, ou
pode ser substituído em condições mais vantajosas,
com taxa menor de juros ou de dividendos preferen-
ciais. No reconhecimento desse fato, é usual que os
valores mobiliários privilegiados sejam “recuperáveis”
ou “resgatáveis” à opção da Companhia.

Em contrapartida, em grande parte dos casos, esses in-


vestidores obrigam as companhias a outorgar condições muito
vantajosas, principalmente sobre o recebimento de dividendos.

11
  ISRAELS, Carlos L. “Corporate practice.” Apud LAMY FILHO, Alfredo & PEDREI-
RA, José Luiz Bulhões. A Lei das S.A. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. p. 156.

176 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 176 11/12/2020 13:57:40


Após este período de necessidade de investimentos mais
acessíveis, quando a companhia já conseguiu se estabilizar fi-
nanceiramente, aquelas ações emitidas com privilégios exces-
sivos se tornam um grande inconveniente e, por muitas vezes,
atrapalham na sequência de crescimento da sociedade.
Visando à proteção do patrimônio social, o legislador
concedeu à companhia a possibilidade de aquisição compul-
sória de uma (ou várias) classe de ações, desde que se observe
a existência de lucros ou reservas.
Importante destacar, ainda, as modalidades de resgate de
ações, que são divididas em compulsórias e voluntárias. O res-
gate de ações voluntário é aquele em que a companhia pode,
a qualquer tempo, estabelecer por meio de determinação em
seu estatuto social ou de deliberação em assembleia extraordi-
nária. Todas as ações da companhia estão sujeitas a este tipo
de resgate.
Já o resgate de ações compulsório é aquele predetermi-
nado desde a emissão da ação, no qual a companhia se obriga
a resgatar determinada classe de ações, criada especificamente
com esta finalidade, desde que detenha os fundos necessários
para tanto.
Cabe destacar, ainda, a necessidade de as ações resgatadas
estarem completamente integralizadas previamente ao efetivo
resgate, independente da sua modalidade. Isso porque, caso
contrário, se estaria diante de um caso de favorecimento do
acionista que não aportou seu capital na sociedade em detri-
mento dos que corretamente o fizeram, além de ser enqua-
drado como possível fraude a credores, pois o resgate de ações

Temas de Direito Empresarial 2021 • 177

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 177 11/12/2020 13:57:40


subscritas, mas que não foram integralizadas, acarretaria em
uma diminuição de capital social.
Sobre o assunto, destaca o saudoso ministro Carlos Ful-
gêncio da Cunha Peixoto12 que “não se pode resgatar ação ainda
não paga totalmente. Resgatada uma ação em tal situação, haverá
forçosamente desfalque no capital, que não tem possibilidade de
ser completado”.

3.2 Resgate de ações como relação de troca em uma


operação societária

Após a análise do instituto do resgate de ações e tra-


zendo-o ao caso concreto, surge outra questão: É possível que
as ações resgatáveis possam, também, ser utilizadas como rela-
ção de troca em uma operação societária?
A LSA não trata diretamente deste tema, mas a análise de
diversos dispositivos da lei societária pode ajudar a responder
tal questão.
O art. 19 da LSA prevê que: “O estatuto da companhia
com ações preferenciais declarará as vantagens ou preferências
atribuídas a cada classe dessas ações e as restrições a que ficarão
sujeitas, e poderá prever o resgate ou a amortização, a conversão
de ações de uma classe em ações de outra e em ações ordinárias, e
destas em preferenciais, fixando as respectivas condições”.
No mais, convém compulsar o art. 223, § 2º da LSA, o
qual dispõe que “os sócios ou acionistas das sociedades incorporadas,

12
  PEIXOTO, Carlos Fulgêncio da Cunha. Sociedades por ações. São Paulo: Saraiva,
1972. v. 1. p. 184.

178 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 178 11/12/2020 13:57:40


fundidas ou cindidas receberão, diretamente da companhia emis-
sora, as ações que lhes couberem”.
Ademais, o art. 224, inciso I, da LSA, trata das informa-
ções que deverão constar no protocolo da operação, dentre as
quais serão “o número, espécie e classe das ações que serão atribuí-
das em substituição dos direitos de sócios que se extinguirão e os
critérios utilizados para determinar as relações de substituição”.
Já o art. 252, § 3º da LSA indica que “aprovado o laudo
de avaliação pela assembleia geral da incorporadora, efetivar-se-á
a incorporação e os titulares das ações incorporadas receberão dire-
tamente da incorporadora as ações que lhes couberem”.
Sobre o assunto, Lamy e Bulhões13 ensinam:

[Os acionistas] não praticam ato de disposição das


ações como elementos de seus patrimônios e a incor-
poradora não adquire as ações por efeito de alienação,
quer da companhia cujas ações devam ser incorpo-
radas, quer dos seus acionistas: as ações incorpora-
das são substituídas por ações da incorporadora por
sub-rogação real – como efeito legal do negócio jurídi-
co societário de incorporação de ações.
Do ponto de vista dos interesses de direitos de partici-
pação dos acionistas da companhia que são partes da
operação, a estipulação do negócio mais importante é
a relação de substituição das ações extintas, ou seja, a
quantidade (ou fração) de ações da companhia incor-
poradora que os acionistas da companhia cujas ações
são incorporadas receberão em substituição destas.

13
  LAMY FILHO, Alfredo & PEDREIRA, José Luiz Bulhões (org). Direito das compa-
nhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 1.994.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 179

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 179 11/12/2020 13:57:40


A simples leitura dos dispositivos mencionados acima
deixa claro o entendimento de que a incorporação de ações,
ou mesmo a de sociedades, não compreenderia o pagamento
em pecúnia como parte de sua relação de troca.
Não obstante, veja-se, após a análise sistemática dos dis-
positivos supramencionados, que a lei societária em nenhum
momento impede ou faz qualquer ressalva ao recebimento de
ações resgatáveis nas operações societárias. Pelo contrário, a
LSA deixa claro que a relação de troca deve consistir na en-
trega de ações de emissão da companhia incorporadora, sem
restringir de nenhuma forma sua espécie ou classe.
Como se sabe, o direito brasileiro consagra a autonomia
privada, ou seja, a oportunidade de autorregulação dos inte-
resses privados por meio de negócios jurídicos que respeitem
os limites estipulados pela lei14.
Importante observar que, nessa lógica, o que se observa no
presente caso é uma incorporação que acarreta a troca das ações
da Incorporada por ações ordinárias e preferenciais resgatáveis
da Holding. Por conseguinte, o resgate das ações é que leva à
conversão em pecúnia e não a fixação da relação de troca.
Mesmo realizando ambos os atos de forma simultânea – o
que não é proibido por lei, ressalta-se –, estes devem ser consi-

14
  Conforme estabelece o princípio da legalidade, expresso no art. 5º, II, da Cons-
tituição Federal de 1988 (“CF”), in verbis: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estran-
geiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualda-
de, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em vir-
tude de lei”.

180 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 180 11/12/2020 13:57:40


derados dois atos distintos, sendo ambos amparados pela LSA
e realizados em obediência ao princípio do majoritário15. Não
há, portanto, qualquer impedimento legal ao uso das ações
resgatáveis como relação de troca em uma operação societária.

4 REGIME JURÍDICO APLICÁVEL ÀS OPERAÇÕES


SOCIETÁRIAS POR MÚLTIPLAS ETAPAS

Com o desenvolvimento do mercado de capitais e da eco-


nomia como um todo no país (e no mundo), as reorganizações
societárias elaboradas em múltiplas etapas vêm sendo cada vez
mais utilizadas.
Como destacado na introdução, o colegiado da CVM
estabeleceu uma jurisprudência já pacificada de que cada
uma das etapas deve, a princípio, ser avaliada de maneira
independente.
Nesse sentido, o Processo Administrativo CVM
n.º RJ2011/1177016, julgado pelo então diretor Otavio
Yazbek, em fevereiro de 2012, criou jurisprudência para pri-
mar a forma sobre a substância.
Ainda, o mesmo julgado considera que, em regra, deve-se
examinar a estrutura de uma operação sob uma perspectiva
formal, principalmente quando há verossimilhança entre a
descrição da operação e os fins almejados por esta, não de-
vendo a CVM exigir que a operação em si produza efeitos

15
  Em especial conforme determinado no art. 136, incisos II e IV, da LSA.
16
  Disponível em: <http://www.cvm.gov.br/decisoes/2012/20120216_R1.html>.
Acesso em 09 de setembro de 2020.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 181

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 181 11/12/2020 13:57:40


jurídicos atípicos de qualquer uma de suas etapas, e cuja de-
terminação dependeria da análise das diversas etapas como um
negócio jurídico único.
Diante deste cenário, a CVM entende que a operação em
múltiplas etapas deve ser considerada regular se: (i) cada uma
das fases obedecer a seu determinado regime jurídico; e (ii) a
operação, em sua totalidade, não ocasionar um resultado proi-
bido por lei, o que ocorreu na Operação. Tal entendimento é
diametralmente oposto ao encontrado em diversos tribunais
norte-americanos, que tendem a primar a substância em rela-
ção à forma de uma determinada operação, conforme enten-
dimento da de facto merger doctrine.
Por óbvio que em uma operação societária realizada em
múltiplas etapas, além da observação da operação como um
todo, é necessário que cada parte da operação individualmente
implementada obedeça às condições e procedimentos indica-
dos na lei e na regulamentação em vigor sobre determinada
matéria. Assim, entende-se que o cumprimento das regras
específicas para cada etapa não autoriza a aplicação de uma
somatória de atos objetivando atingir efeitos vedados na legis-
lação, sob pena de incorrer em fraude a lei.
A LSA prevê em seu ordenamento diversas operações so-
cietárias, tais como incorporação, fusão, transformação, cisão,
aumento ou redução de capital, entre outros, tendo cada uma
a sua finalidade, efeitos e ritos próprios.
Obviamente, não seria possível ao legislador conceber
expressamente institutos para acolher todas as operações que
podem suceder de uma negociação em que se busque uma

182 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 182 11/12/2020 13:57:40


conjunção de negócios. Não haveria também, na mesma li-
nha de raciocínio, proibição para que os institutos previstos na
LSA fossem usados conjuntamente, de acordo com a vontade
das partes e das características do negócio.
No caso concreto, o resultado da Operação poderia ter
sido obtido por meio de uma reestruturação diversa da ocor-
rida, mediante outras operações, e, por consequência, ocasio-
nando efeitos diferentes para as sociedades envolvidas.
Em contrapartida, não parece ser justo concluir que um
modelo de operação estabelecido legitimamente tenha sido es-
colhido exclusivamente com o objetivo final de fraudar uma
regra que seria aplicável, eventualmente, caso fosse utilizado
modelo diverso, também legítimo, para se obter resultado
igual na Operação. Este é o entendimento da independent legal
significance doctrine.
O caso concreto utiliza uma série de operações para
tornar viável a operação final, qual seja, a incorporação das
ações da Fibria mediante contrapartida em dinheiro e ações
de emissão da Suzano. Ainda que alguns possam considerar a
OPA como meio correto para a realização da Operação, não
implica, necessariamente, a ilegalidade da adoção de um outro
modelo de reestruturação.

5 DE FACTO MERGER DOCTRINE (DOUTRINA DA


FUSÃO DE FATO)

Conforme já abordado, as operações societárias estão se


tornando cada vez mais elaboradas e, com isso, demandando

Temas de Direito Empresarial 2021 • 183

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 183 11/12/2020 13:57:40


estruturas extremamente complexas para atingir o propósito
desejado pelos controladores das companhias envolvidas.
Em muitos casos, os acionistas controladores utilizam es-
sas estruturas complexas que, de um ponto de vista formal,
são totalmente lícitas, para supressão de direitos aos acionistas
minoritários, que acabam sendo prejudicados.
Nesse contexto surgiu a de facto merger doctrine, traduzi-
da como “doutrina da fusão de fato”, inicialmente na Suprema
Corte da Pensilvânia, Estados Unidos, mas que se espalhou por
outros estados norte-americanos e adotou diversos formatos17.
Basicamente, a de facto merger doctrine sustenta, segundo
Danilo Borges dos Santos Gomes de Araújo18, que a análise
da substância de uma operação é mais importante do que a
sua forma adotada, ou seja, para os que utilizam esta teoria

17
  Conforme explicado por Danilo Borges dos Santos Araújo, in verbis: “Pode-se
aliás considerar que, historicamente, foi a Supreme Court of Pennsylvania quem,
pela primeira vez, no julgamento do caso Lauman v. Lebanon Valley R.R., 30 Pa.
42, 49, 72 Am. Dec. 685 (1858), concedeu um ‘appraisal remedy’ para um acio-
nista descontente com uma operação de ‘merger’, mesmo sem que tal remédio
estivesse previsto em lei.
Ocorreu que, tendo a legislatura da Commonwealth of Pennsylvania autorizado
uma “merger” entre duas ferrovias, um acionista dissidente procurou a proibição
do negócio. O tribunal entendeu que, se o acionista dissidente fosse forçado a
aceitar de outra companhia, a lei o estaria inconstitucionalmente prejudicando.
Esforçando-se, ao mesmo tempo, para manter a ‘merger’, o tribunal alegou que
a legislatura pretendia ter oferecido ao dissidente um ‘appraisal remedy’, mas que
houvera se esquecido de fazê-lo. O tribunal, então, proibiu o prosseguimento da
‘merger’ até que uma garantia fosse concedida ao acionista dissidente de que a ele
seria pago o valor de sua participação acionária, após a devida avaliação. O dissi-
dente foi pago em dinheiro e a ‘merger’ prosseguiu, e tudo isso sem qualquer pre-
visão em lei.” (ARAUJO, Danilo Borges dos Santos Gomes de. “A ‘De Facto Merger
Doctrine’ (Doutrina da Fusão de Fato)”, In Walfrido Jorge Warde Jr. (coordenador),
Fusão, cisão, incorporação e temas correlatos, São Paulo, 2009, p. 188/189.).
18
  ARAUJO, Danilo Borges dos Santos Gomes de. “A ‘De Facto Merger Doctrine’
(Doutrina da Fusão de Fato)”. In: Walfrido Jorge Warde Jr. (coordenador), Fusão,
cisão, incorporação e temas correlatos, São Paulo, 2009, p. 194.

184 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 184 11/12/2020 13:57:40


deve-se observar a operação como um todo e verificar se a sua
finalidade é alcançar um resultado que, mesmo seguindo uma
forma lícita, se deu para que houvesse a remoção de um (ou
mais) direito(s) garantido(s) a determinado grupo de acionis-
tas, sendo que poderia ter sido estruturado de forma a garantir
esses direitos, obtendo o mesmo fim almejado.
No caso do direito norte-americano, é muito utilizada quan-
do há uma operação estruturada como venda de ativos (“asset ac-
quisition”), por exemplo, mas que conduz ao mesmo resultado
que uma operação de combinação societária (“statutory merger”).
Assim, devem ser concedidos aos acionistas das companhias en-
volvidas na operação de venda de ativos os mesmos direitos que
teriam se a operação fosse estruturada como uma combinação
societária (tal como na incorporação ou fusão).
Nesse sentido, uma fusão ou incorporação (de ações ou
de sociedade) oferece maior proteção para acionistas e credo-
res, além de conceder o direito de avaliação das companhias
envolvidas na operação e exigir o voto de seus acionistas. Ade-
mais, todos os passivos da companhia-alvo, incluindo os des-
conhecidos ou que ainda não foram provisionados, são assu-
midos pela companhia adquirente.
Ocorre que, em determinadas circunstâncias, essa prote-
ção é vista como indesejável para os que planejam uma opera-
ção de incorporação e, havendo técnicas alternativas – como
venda de ativos – que evitem essas proteções e não alterem a
substância da transação, essas alternativas provavelmente serão
adotadas19.

19
  GILSON, Ronald J.; BLACK, Bernard S. The Law and Finance of Corporate Acquisi-
tions. 2nd ed. Westbury, NY, 1995. p. 673.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 185

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 185 11/12/2020 13:57:40


Para se evitar ao máximo qualquer tipo de supressão de
direitos aos acionistas minoritários em circunstâncias como
a supracitada que a de facto merger doctrine foi desenvolvida
pelos tribunais norte-americanos, reorganizando a operação
societária para que os acionistas não sejam prejudicados.
A de facto merger doctrine, basicamente, busca detectar
operações estruturadas de forma fraudulenta para impedir que
as companhias evitem a concessão de direitos aos acionistas
minoritários em uma operação de venda de ativos, por exem-
plo, enquanto desfrutam de todos os benefícios de uma com-
binação societária (fusão ou incorporação).
A regra firmada pela de facto merger doctrine não foi seguida
por todos os estados americanos, tendo como contraposição,
sobretudo, posicionamento firmado pela Suprema Corte
de Delaware, conforme se observa no julgamento do caso
Hariton v. Arco Electronics, Inc.20.
Em suma, a Suprema Corte de Delaware estabeleceu,
neste caso, a chamada “independent legal significance doctrine”,
ou “doutrina de significado legal independente”, conforme
tradução literal.
Por meio desta doutrina, entende-se que todos os dispos-
itivos legais detêm a mesma dignidade para alcançar resulta-
dos iguais, ou, em outras palavras, “if a transaction is effected in
compliance with the requirements of one section of the Delaware
General Corporate Law, Delaware Courts will not invalidate the
transaction for failing to comply with the requirements of another
20
  FOLK, Ernerst L. “De Facto Mergers in Delaware: Hariton V. Arco Electronics,
Inc.”, In Virginia Law Review Association, 49, Charlottesville, VA. 1963. p. 1272/1296.

186 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 186 11/12/2020 13:57:40


section of the Delaware General Corporate Law – even if the sub-
stance of the transaction is such that it could have been structured
under the other section”21.
Nesse contexto, ao que parece, o entendimento da Su-
prema Corte de Delaware é muito semelhante ao da CVM
no caso concreto (e em outros semelhantes), privilegiando a
forma sobre a substância da operação, desde que essa forma
esteja de acordo com os parâmetros estabelecidos por lei e não
cause um resultado ilícito.
Como visto, foram identificados dois entendimentos an-
tagônicos no âmbito das análises de uma operação societária
no que tange à dicotomia da forma x substância.
De um lado, temos a percepção da de facto merger doc-
trine, na qual deve prevalecer a essência da operação em de-
trimento da sua forma. Ou seja, deve-se fazer uma análise da
operação societária como um todo e concluir se ela foi elabo-
rada com a intenção de prejudicar os acionistas minoritários,
ou credores, independente se a sua construção respeitou a le-
gislação competente.
De outro, temos o entendimento da independent legal sig-
nificance doctrine, adotada pela Suprema Corte de Delaware,
referência no direito societário norte-americano, a qual expli-
ca que um dispositivo legal não pode ter um peso maior que
o outro em uma operação societária, caso os dois alcancem

21
  BINGLER, C. S.; ROHRBACHER, B. “Form or substance? The past, present, and
future of the doctrine of independent legal significance”. The business Lawyer, Chi-
cago, IL. V. 63. 2008. p. 1/24. Apud ARAUJO, Danilo Borges dos Santos Gomes
de. Op. Cit., p. 209/210.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 187

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 187 11/12/2020 13:57:40


o mesmo resultado, concedendo liberdade aos operadores do
mercado de capitais no momento da modelagem de uma ope-
ração societária.
Ou seja, se uma operação for realizada em conformida-
de com os requisitos de uma seção da lei societária, a mesma
não deve ser invalidada por não cumprir com os requisitos
de outro dispositivo desta mesma lei, mesmo que a forma da
operação pudesse ter sido estruturada sob o outro dispositivo,
de maneira a garantir direitos aos acionistas minoritários.
É o que ocorre com o entendimento da CVM no presente
caso. Conforme analisado, a CVM entende que se cada uma das
fases da operação obedecer a seu determinado regime jurídico;
e se a operação, ao final, não causar um resultado proibido por
lei, esta deve ser considerada legítima, mesmo que haja outra
formatação de operação que leve ao mesmo resultado.

5.1 Aplicabilidade no Brasil

A de facto merger doctrine foi apresentada no Brasil pelo


saudoso professor Osmar Brina Corrêa Lima22, que viu de for-
ma positiva a disseminação da doutrina nos Estados Unidos,
mesmo ressaltando que a aplicação não se dava de maneira
unânime pelos tribunais do país norte-americano.
O renomado professor elogia a referida doutrina pelo
fato de que ela se conduziria por uma abordagem baseada
na compreensão dos interesses práticos e no encalço dos fins

22
  LIMA, Osmar Brina Corrêa. Incorporação de Empresas. Belo Horizonte: Del Rey,
1993. p. 27/34.

188 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 188 11/12/2020 13:57:40


sociais da legislação e de finalidades eticamente valiosas, como
a proteção ao acionista e aos credores.
Não obstante, prevaleceu no direito brasileiro e, especial-
mente, no âmbito da CVM, exceto em casos de clara fraude
à lei, algo mais parecido com a independent legal significance
doctrine.
Nesse sentido, em memorando interno de 17 de setem-
bro de 200823, dispondo a respeito de fatos relevantes relativos
a diversas reorganizações societárias, dentre elas a da Constru-
tora Tenda S.A. (“Tenda”) e Gafisa S.A. (“Gafisa”), a CVM, se
manifestou expressamente contrária à aplicação do art. 254-A,
da Lei das S.A., em casos de incorporações.
No caso supracitado, as companhias acordaram uma or-
ganização na qual uma empresa subsidiária da Gafisa (deno-
minada Fit Residencial Empreendimentos Imobiliários Ltda.
– “Fit Residencial”) seria incorporada pela Tenda.
Na prática, ao final da operação, a Gafisa passou a ser
titular de ações representativas de 60% (sessenta por cento) do
capital social da Tenda. Ou seja, houve alteração de controle
acionário ao final da operação.
O resultado da operação poderia ter sido obtido por uma
aquisição de controle por meio de compra e venda de ações,
nos termos do art. 254-A, da LSA, por exemplo, o que re-
sultaria na obrigatoriedade de realização de uma OPA. Em
ambos os casos, o controle da Tenda passaria à Gafisa ao final
da operação.

23
  MEMO/SRE/GER-1/Nº 214/2008. Disponível em: <http://www.cvm.gov.br/
export/sites/cvm/noticias/anexos/2008/20081006-1-memo-sre.pdf>. Acesso
em: 09 de setembro de 2020.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 189

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 189 11/12/2020 13:57:40


Nesse contexto, a área técnica da CVM entendeu que,
mesmo tendo a obrigação de proteger os investidores, “a lei
instituiu ambas as operações, não cabendo a esta CVM definir
que uma operação deságua necessariamente na outra”.
O mesmo entendimento pode ser aplicado à operação
ora analisada, uma vez que a maioria do colegiado da CVM
destacou que como as suas etapas obedeceram aos critérios
estabelecidos por lei, bem como que o resultado da Operação
não foi contrário ao disposto na LSA, a operação deveria ser
considerada legal, não cabendo à CVM determinar os moldes
da Operação.
Insta salientar, no entanto, que a CVM tem um entendi-
mento claro no sentido de que, se a incorporação da compa-
nhia tenha sido utilizada com o único intuito de evitar a reali-
zação de uma OPA, o caso deve ser entendido como fraude à
lei, nos termos do art. 166, VI, do Código Civil.

6 CONCLUSÃO

Conforme analisado, a Operação se deu em múltiplas


etapas e culminou com a incorporação de todas as ações da
Fibria pela Suzano, transformando a primeira em subsidiária
integral da segunda ao final da operação.
Não obstante os argumentos dos acionistas que se senti-
ram prejudicados pela Operação, argumentando uma diluição
de 80% na sua participação acionária, o presente negócio ju-
rídico foi organizado em quatro operações societárias correla-
cionadas, porém distintas, na busca por um desfecho que não

190 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 190 11/12/2020 13:57:40


foi enfrentado de forma direta na lei societária, mas que, por
outro lado – e mais importante em um negócio privado firma-
do entre particulares –, não encontra vedação legal.
Por óbvio, existem outros modelos de reestruturação so-
cietária capazes de atingir o mesmo objetivo, tal como a trans-
ferência de controle da Fibria para a Suzano, obrigando a In-
corporadora a realizar uma OPA nos termos do art. 254-A da
LSA. Tal obviedade, no entanto, não implica a ilegalidade da
Operação.
Assim, após um exame detalhado e a consequente verifi-
cação de que as etapas, individualmente, não contrariam ne-
nhuma norma cogente, bem como o resultado alcançado tem
amparo legal na LSA, a única forma de concluir pela ilegalida-
de da Operação seria por meio da comprovação de um abuso
de poder de controle, estabelecido nos arts. 116 e 117 da LSA.
Para tanto, há que se comprovar que a operação foi con-
trária ao interesse social da companhia ou mesmo que esta
represente um ato desleal do controlador em relação aos mi-
noritários. Ocorre que, pela análise das informações dispo-
níveis, pode-se chegar a duas conclusões: (i) há evidências
concretas de que a Operação está alinhada com o interesse
social de ambas as companhias; e (ii) houve um tratamento
igualitário entre os acionistas controladores e os minoritários
da Incorporada.
Destarte, verifica-se que o controlador teve o mesmo tra-
tamento dos demais acionistas da companhia, respeitando-se
o princípio da equivalência material, o qual busca manter o
equilíbrio entre as partes da sociedade.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 191

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 191 11/12/2020 13:57:40


Ainda com relação ao assunto, importante destacar que
nos últimos anos foram realizadas relevantes operações socie-
tárias similares a ora estudada24, diversas aprovadas pela una-
nimidade de seus acionistas e sem que houvesse qualquer tipo
de reclamação dos minoritários, mais um grande indicativo de
que a Operação não é necessariamente danosa aos acionistas
minoritários.
Além disso, me parece que a CVM consolidou de ma-
neira clara o seu entendimento privilegiando a forma sobre
a substância de uma operação societária, assemelhando-se ao
disposto na independent legal significance doctrine, posiciona-
mento firmado pela Suprema Corte de Delaware, em detri-
mento da de facto merger doctrine, que visa a dar uma proteção
maior aos acionistas minoritários.
Tal posicionamento parece acertado, uma vez que con-
cede maior liberdade aos envolvidos no mercado de capitais
para modelarem as operações societárias de maneira criativa,
gerando a possibilidade de novos negócios e, portanto, de um
desenvolvimento ainda maior no mercado de ações no Brasil,
desde que, por óbvio, sejam respeitados os parâmetros estabe-
lecidos na LSA.
Claro que existem casos específicos de fraude à lei, nos
quais os acionistas controladores modelam uma operação

24
  (i) incorporação da Company S.A. pela Brascan Residential Properties S.A. em
2008; (ii) incorporação da Datasul S.A. pela TOTVS S.A. em 2008; (iii) incor-
poração da Bovespa Holding S.A. pela Bolsa de Mercadorias & Futuros – BM&F
em 2008; (iv) incorporação da Bematech S.A. pela TOTVS S.A. em 2015; e (v)
incorporação da Cetip S.A. pela BM&F Bovespa – Bolsa de Valores, Mercadorias
e Futuros em 2016.

192 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 192 11/12/2020 13:57:40


societária com o único intuito de retirar direitos essenciais dos
acionistas minoritários. Nestes casos, por óbvio, as operações
devem ser anuladas, remodeladas ou, ainda, rejeitadas pelos
órgãos competentes (como a CVM) e os controladores devi-
damente responsabilizados, nos termos do art. 117, da LSA.
Porém, casos como estes são exceção no âmbito do direito so-
cietário brasileiro e, ao que parece, não foi o ocorrido no caso
ora analisado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANAN JUNIOR, Pedro. Fusão, cisão e incorporação de socieda-


des – Teoria e prática. 2ª Ed. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

ARAUJO, Danilo Borges dos Santos Gomes de. “A ‘De Facto


Merger Doctrine’ (Doutrina da Fusão de Fato)”. In: Walfrido
Jorge Warde Jr. (coordenador). Fusão, cisão, incorporação e te-
mas correlatos. São Paulo, 2009, pp. 179-220.

ASCARELLI, Tullio. Problemas das Sociedades Anônimas e Di-


reito Comparado. São Paulo: Saraiva, 1969.

BINGLER, C. S.; ROHRBACHER, B. Form or substance?


The past, present, and future of the doctrine of independent
legal significance. The business lawyer, Chicago, IL. V. 63.
2008.

CHIARA, José Tadeu de. “Resgate de ações”. Revista de direito


mercantil, industrial, econômico e financeiro. São Paulo, v.48,
out-dez, 1987.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 193

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 193 11/12/2020 13:57:40


COMPARATO, Fábio Konder. “Funções e disfunções do res-
gate acionário”. Revista de direito mercantil, industrial, econô-
mico e financeiro. São Paulo. vol. 73, jan./mar. 1989.

EIZIRK, Nelson. A Lei das S.A. comentada. São Paulo: Quar-


tier Latin, 2015.

FLAKS, Luís Loria. “Aspectos societários do resgate de ações”.


Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro.
São Paulo, v.123, jul-set, 2001.

FOLK, Ernerst L. “De Facto Mergers in Delaware: Hariton V.


Arco Electronics, Inc.”. In: Virginia Law Review Association,
49, Charlottesville, VA. 1963.

GILSON, Ronald J.; BLACK, Bernard S. The law and finance


of corporate acquisitions. 2nd ed. Westbury, NY, 1995.

ISRAELS, Carlos L. “Corporate practice”. Apud LAMY FI-


LHO, Alfredo & PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A Lei das
S.A. Rio de Janeiro: Renovar, 1992.

LAMY FILHO, Alfredo & PEDREIRA, José Luiz Bulhões


(org). Direito das companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

LIMA, Osmar Brina Corrêa. “Resgate de ações de sociedade


anônima”. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e
financeiro. São Paulo: RT. vol. 68, out./dez. 1987.

LIMA, Osmar Brina Corrêa. Incorporação de empresas. Belo


Horizonte: Del Rey, 1993.

PEIXOTO, Carlos Fulgêncio da Cunha. Sociedades por ações.


São Paulo: Saraiva, 1972. v. 1.

194 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 194 11/12/2020 13:57:40


O PROGRAMA DE GOVERNANÇA
DA PRIVACIDADE E A LGPD

Rodrigo Azevedo
Integrante da primeira geração de advogados especializados em Internet Law e
Proteção de Dados, Rodrigo Azevedo há mais de duas décadas lidera a área de
Propriedade Intelectual e Direito Digital da Silveiro Advogados. Reiteradamen-
te reconhecido como referência no Brasil e na América Latina por publicações
como Chambers & Partners, Legal 500 e Leaders League, Azevedo foi o primeiro
advogado atuante no Brasil a ter a sua prática em proteção de dados certificada
– com distinção – pelo European Institute of Public Administration – EIPA, em
Maastricht, an Holanda. Além disso, possui formação profissional e acadêmica
internacional, passando por Estados Unidos (Gestão de Crises no Massachussets
Institute of technology – MIT; Propriedade Intelectual na Franklin Pierce Law Cen-
tre); Itália (LL.M. em Propriedade Intelectual, com láurea, na Universidade de Tu-
rim); Suíça (onde atuou junto à Organização Mundial da Propriedade Intelectual);
e Argentina (Direito Autoral na Universidade de Buenos Aires). No Brasil, ainda
possui especialização em Direito Internacional, pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, e em Direito Econômico e Empresarial, pela Fundação Getúlio
Vargas. Atualmente, Azevedo coordena mais de 50 projetos de adequação à Lei
Geral de Proteção de Dados em grandes empresas brasileiras e multinacionais.

Lucca Domingues Roth


Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com pe-
ríodo de estudos na Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg (2019).

• 195

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 195 11/12/2020 13:57:40


Um Javali estava afiando suas presas roçando-as contra
o tronco de uma árvore.
A Raposa, sempre procurando uma oportunidade
para ridicularizar seus vizinhos, se aproximou fazen-
do pantomimas, fingindo estar com medo de alguma
coisa, olhando preocupada para todos os lados, como
se temesse, algum inimigo escondido, oculto em meio
ao mato.
Mas, o Javali, sem lhe dar importância, continuou a
realizar seu trabalho.
Então ela não se conteve e lhe perguntou com ar de
descaso: “Por que você está fazendo isso? Afinal de
contas, nesse momento, não vejo nenhuma situação
de perigo por perto”.
E respondeu o Javali: “Você está completamente certa.
Mas, quando o perigo se apresentar, não terei tempo
para me preparar e minhas armas não estarão prontas
para uso, e, por isso mesmo, poderei sofrer as conse-
quências por ter sido descuidado”.
“O Javali e a Raposa”, Fábulas de Esopo

Em um mundo cada vez mais complexo, a atividade em-


presarial pressupõe a conformidade com inúmeras normas,
seja para segurança dos seus colaboradores e da sua clientela,
seja para a prevenção à corrupção ou a proteção ao meio am-
biente, dentre muitos outros contextos. Não basta meramente
estar de acordo com os novos parâmetros normativos, é preci-
so ter meios para evidenciar as medidas preventivas adotadas,
os resultados obtidos e os esforços adequados de remediação
quando um incidente se apresenta. Assim se desenvolveu e
consolidou a disciplina de Compliance.

196 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 196 11/12/2020 13:57:40


Em 2020, mais um campo de adequação compulsória
se impôs, no Brasil, a partir da entrada em vigor da chama-
da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (Lei
13.709/2018). Refletindo tendência global, a norma traz mais
de uma centena de novos requisitos para o tratamento de da-
dos pessoais e demanda, em especial a necessidade da devida
justificação prévia e do enquadramento legal de qualquer roti-
na empresarial que se valha de informações relacionadas a uma
pessoa natural, identificada ou identificável.
Nesse contexto, adquire protagonismo a estruturação de
um Programa de Governança da Privacidade (“Programa” ou
“PGP”), um conjunto estruturado e documentado de esforços
que inauguram a trajetória de adequação de uma empresa à
LGPD. Mais do que sinalizar um compromisso com a prote-
ção de dados pessoais, o PGP passa a ser condição para a reali-
zação de determinados negócios em tempos pós-LGPD, além
de fator determinante na aferição do valor de multas even-
tualmente aplicadas pelas autoridades fiscalizatórias. Através
da desmistificação de conceitos trazidos pela lei, da análise de
casos práticos ocorridos na Europa e do contexto atual brasi-
leiro, a proposta deste artigo é apresentar ao leitor os princi-
pais itens que devem ser cobertos por um PGP efetivo.

1 PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS E LGPD

Nas últimas décadas, fenômenos como a digitalização das


relações sociais, sua interconexão global, a redução dos custos
de processamento e armazenamento de dados e, mais recente-
mente, a disseminação de ferramentas de big data e a inteligên-

Temas de Direito Empresarial 2021 • 197

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 197 11/12/2020 13:57:40


cia artificial, propiciaram a coleta e exploração de um volume
nunca antes imaginado de dados pessoais, não apenas por entes
públicos ou grandes corporações, mas mesmo por startups ainda
no nascedouro. Essas circunstâncias trouxeram benefícios ine-
gáveis aos cidadãos da chamada sociedade da informação, no que
se refere a acesso a serviços digitais – aparentemente – gratuitos
e a experiências cada vez mais personalizadas.
Nunca, porém, estivemos tão expostos. Inúmeras empre-
sas sabem mais a nosso respeito do que nós mesmos. Onde
estivemos neste exato instante há uma semana ou um mês;
para onde provavelmente iremos; qual a probabilidade de ad-
quirirmos determinados produtos ou de sermos influenciados
por determinadas abordagens promocionais ou mesmo cam-
panhas eleitorais.
Para as empresas, de outro lado, possibilitou o melhor co-
nhecimento dos seus públicos, a tomada de decisões negociais
fundamentadas, maior produtividade e investimentos mais
eficientes. Todo um novo segmento da economia se estabele-
ceu a partir da exploração desses dados, alçando empresas de
dados ao topo das maiores empresas do mundo, na atualidade.
Os dados passaram a ser “o novo petróleo”, como cunhou
Clive Humby em 2006 e consagrou a capa da revista The Eco-
nomist, em 2017. Atualmente, contudo, tal ideia já é inclusive
apontada como defasada, eis que os dados, ao contrário de
combustíveis fósseis, não são recursos escassos, e muito menos
demoram milhões de anos para adquirir valor econômico.
Os riscos e as responsabilidades, para as empresas, ad-
vindos da posse de um volume tão expressivo de informações,

198 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 198 11/12/2020 13:57:40


também logo passaram a se evidenciar. Vazamentos de dados
viraram manchete frequente nos jornais de ampla circulação,
arranhando imagens corporativas. Escândalos internacionais
provocaram a intervenção de autoridades públicas, preocupadas
com a concentração de poder nas mãos de poucas empresas, o
combate às chamadas fake news e a ausência de parâmetros cla-
ros e específicos para a exploração de dados pessoais. O furto ou
vazamento de dados passou a integrar as principais listas anuais
de ameaças aos empreendimentos empresariais, como é o caso
do Global Risks Report, do Fórum Econômico Mundial1.
Como consequência, novas normas começaram a sur-
gir nesse campo, com destaque para o Regulamento Geral de
Proteção de Dados (“GDPR” ou “Regulamento”) da União
Europeia, berço da regulação do tratamento de dados pessoais,
prevendo duras penalidades para as empresas desconformes.
Importante destacar que o dito Regulamento, além de erguer
a régua a um nível de exigência até então inédito para permitir
a coleta e uso de dados pessoais, inovou ainda ao estender a
sua aplicabilidade mesmo para empresas sediadas em outros
países, alheios à União, quando ofertam produtos ou serviços
voltados para aquele mercado, por exemplo. Assim, impulsio-
nou a tendência global de revisão das legislações nesse campo,
inclusive como forma de evitar perdas comerciais nas relações
com o Velho Continente.
Nesse contexto, não por coincidência, pouco mais de
dois meses após o GDPR entrar em vigor, foi sancionada a

1
 https://www.weforum.org/reports/the-global-risks-report-2020, acessado
em 18/10/2020.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 199

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 199 11/12/2020 13:57:40


LGPD, no Brasil, em agosto de 2018, prevendo-se período
para adequação inicial das empresas, esgotado em setembro
2020. Até então, no país, à exceção dos provedores de cone-
xão ou de aplicações de internet (já regulados nesse tocante,
mesmo que de forma mais abrangente, pelo chamado Marco
Civil da Internet – Lei 12.965/2014), as empresas eram basi-
camente livres para criarem produtos ou serviços que se vales-
sem de dados pessoais, desde que não violassem a privacidade
ou a intimidade desses indivíduos (conceitos estes presentes
na Constituição Federal e no Código Civil, e dependentes da
futura interpretação judicial, em análise caso a caso).
Contudo, logo em seus primeiros artigos, a LGPD já
deixa claro que a regulação do tratamento de dados pessoais
agora vai além da mera proteção à privacidade e à intimidade,
elencando, junto a estes direitos, outros mais, como:
a autodeterminação informativa, a liberdade de expressão,
o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação, a
livre iniciativa e os direitos humanos. Assim, logo de início,
percebe-se o quão abrangente podem se tornar as discussões
sobre proteção de dados pessoais, encobrindo desde as relações
com os próprios colaboradores da empresa, com seus parcei-
ros, fornecedores, clientes e com o mercado em geral.
Tal qual o GDPR, a LGPD deixa claro aplicar-se a qual-
quer operação de tratamento realizada por pessoa física ou ju-
rídica, de direito público ou privado, independentemente do
meio, do país de sua sede ou do país onde estejam localizados
os dados. Basta que a operação de tratamento seja realizada
no território nacional; ou que a atividade de tratamento tenha
por objetivo a oferta ou o fornecimento de bens ou serviços ou

200 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 200 11/12/2020 13:57:40


o tratamento de dados de indivíduos localizados no território
nacional; ou, ainda, que os dados pessoais objeto do tratamen-
to tenham sido coletados no território nacional.
Nesse contexto, qualquer atividade de tratamento de
dado pessoal precisa adequar-se aos seus requisitos. Entende-se
por dado pessoal aquele dado associável a uma pessoa natural,
ou, dito de outra forma, qualquer informação relacionada à
pessoa física identificada ou identificável. Basta que o dado se
refira a um indivíduo, o chamado titular de dados, o qual, por
sua vez, passa a contar com uma série de direitos, passíveis de
exercício frente aos agentes de tratamento (você, empresário,
que realiza atividades de tratamento de dados pessoais).
A figura do agente de tratamento inclui tanto aquele que
define como vai se dar o tratamento de dados, chamado con-
trolador, quanto quem executa essa atividade a mando do pri-
meiro, conceituado como operador. A responsabilidade entre
estes é solidária, ou seja, pode o titular eleger frente a quem
exercerá os seus direitos.
Mas o que configura uma operação de tratamento de da-
dos? A LGPD lista nada menos do que vinte exemplos para
defini-la. Na prática, daqui para frente qualquer uso (ativo,
como coletar, reproduzir ou transmitir; ou mesmo passivo,
como manter armazenado ou receber de terceiros) de dados
pessoais precisa estar adequado a essa nova norma.
Para tanto, cada rotina/operação de tratamento de dados
da empresa (como, por exemplo, os processos de seleção, de
admissão ou de gestão de benefícios, na área de Recursos Hu-
manos) precisa atender a três estágios de um ciclo de vida:

Temas de Direito Empresarial 2021 • 201

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 201 11/12/2020 13:57:40


(i) o nascimento, através do enquadramento numa das
dez hipóteses para coleta e tratamento de dados pes-
soais listadas na LGPD;
(ii) a vida, com o tratamento unicamente do mínimo
de dados necessários para cada finalidade (ex.: para
enviar newsletter, como justificar outros dados além
do endereço de e-mail e nome do destinatário?); e
(iii) a morte, com a exclusão dos dados ao final do res-
pectivo prazo de guarda, a partir da interpretação da
sua finalidade ou da legislação aplicável.
Dessa forma, em essência, a LGPD visa a “resgatar a dig-
nidade dos titulares de dados e seus direitos básicos relaciona-
dos à autodeterminação informativa”2, ou seja, a deixar mais
transparente a relação dos agentes de tratamento com os titu-
lares de dados pessoais e a indicar requisitos objetivos para a
sua concretização. Assim, demanda efetiva mudança cultural
na empresa, com impactos em todas as suas frentes.
Em especial, faz-se necessário atender a novos princípios,
como a segurança, traduzida na ideia de que devem ser utiliza-
das medidas técnicas e administrativas aptas a proteger dados
pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais
ou ilícitas (como destruição e perda de dados); e prevenção,
a qual atrai o dever de adoção de medidas para buscar evi-
tar a ocorrência de danos em virtude do tratamento de da-
dos. Empreender e documentar essa mudança cultural, com

2
  FRAZÃO, Ana. “Objetivos e alcance da Lei Geral de Proteção de Dados”. Em
FRAZÃO, Ana. TEPEDINO, Gustavo. DONATO, Milena. Lei Geral de Proteção de
Dados Pessoais e suas repercussões no direito brasileiro. 1ª Edição. São Paulo. Revista
dos Tribunais.

202 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 202 11/12/2020 13:57:40


atendimento a tantos requisitos e princípios, são justamente
objetivos centrais de um efetivo Programa de Governança da
Privacidade, tema do nosso próximo capítulo.

2 O PROGRAMA DE GOVERNANÇA EM PRIVACIDADE

A LGPD traz diversos deveres para as empresas que uti-


lizam dados pessoais (os agentes de tratamento), incluindo
a necessidade de adotarem medidas de segurança, técnicas e
administrativas aptas a protegê-los de acessos não autoriza-
dos e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda,
alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento
inadequado ou ilícito. Tais medidas se concretizam mediante
análises de riscos, revisão de processos e criação de políticas,
consubstanciadas em programas de compliance e mecanismos
de autorregulação que, ao identificar os novos desafios regu-
latórios, preparam o terreno para efetivar os direitos dos ti-
tulares, atender aos seus deveres de agente de tratamento e
garantir a minimização de riscos de vazamentos ou incidentes
envolvendo dados pessoais3.
A efetividade do Programa de Governança em Privacida-
de será determinada pelo nível de comprometimento adotado
pela empresa. Não existe uma fórmula mágica para atender

3
  Conforme lecionam Frazão, Oliva e Abilio (2019), “a implementação de boas
práticas no tratamento de dados pessoais possui estrondoso potencial para auxi-
liar no atendimento aos comandos gerais da lei de acordo com as particularidades
de determinados agentes econômicos (...)”. Em FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena;
ABILIO, Viviane. “Compliance de dados pessoais”. Em FRAZÃO, Ana; TEPEDINO,
Gustavo; DONATO, Milena. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercus-
sões no direito brasileiro. 1ª Edição. São Paulo. Revista dos Tribunais.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 203

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 203 11/12/2020 13:57:40


aos quase 150 itens de adequação, entre deveres, obrigações
e ônus, estabelecidos pela LGPD. A norma reconhece os seus
limites práticos e, não à toa, oferece um verdadeiro bônus
para agentes que implementarem as melhores práticas: no
caso de aplicação de multas administrativas, serão conside-
rados critérios abonatórios, isto é, de diminuição do valor,
a adoção de mecanismos e procedimentos internos capazes
de minimizar o dano, a adoção de política de boas práticas e
governança e a pronta adoção de medidas corretivas (art. 52,
§1°, incisos VII a X).
Passamos, então, a demonstrar, em linhas gerais, como se
estrutura um programa de governança em privacidade. Nesse
tocante, vale destacar que a própria LGPD, no seu art. 50, §
2°, inciso I, já apresenta as características de programa efetivo,
nesse campo:
a) demonstrar o comprometimento do controlador em
adotar processos e políticas internas que assegurem
o cumprimento, de forma abrangente, de normas e
boas práticas relativas à proteção de dados pessoais;
b) ser aplicável a todo o conjunto de dados pessoais
que estejam sob seu controle, independentemente
do modo como se realizou sua coleta;
c) ser adaptado à estrutura, à escala e ao volume de suas
operações, bem como à sensibilidade dos dados tra-
tados;
d) estabelecer políticas e salvaguardas adequadas com
base em processo de avaliação sistemática de impac-
tos e riscos à privacidade;

204 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 204 11/12/2020 13:57:40


e) ter o objetivo de estabelecer relação de confiança
com o titular, por meio de atuação transparente e
que assegure mecanismos de participação deste;
f ) estar integrado a sua estrutura geral de governança
e estabelecer e aplicar mecanismos de supervisão in-
ternos e externos;
g) contar com planos de resposta a incidentes e reme-
diação; e
h) estar constantemente atualizado com base em infor-
mações obtidas a partir de monitoramento contínuo
e avaliações periódicas.
É de se notar que os termos acima utilizados se referem
não apenas a normas de conduta corporativa, que deverão
ser criadas, mas também, e tão importante quanto, à adoção
de procedimentos técnicos voltados a oferecer segurança aos
processos que envolvam o tratamento de dados pessoais.
Ou seja, na forma da LGPD, o tratamento irregular de dados
pessoais é tanto aquele que não se mostra conforme com os
seus requisitos quanto o que não confere a segurança que o
titular poderia esperar.
Por onde começar? Nossa experiência recomenda que o
primeiro passo na jornada de adequação da empresa seja a sen-
sibilização/ conscientização das lideranças e a estruturação de
uma equipe multidisciplinar interna focada em acompanhar o
projeto. Dessa forma, alinham-se os conceitos, preocupações e,
principalmente, as expectativas dos diversos setores da empresa,
além de despertar o interesse do grupo para tema que muito
provavelmente irá impactar as rotinas de cada departamento.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 205

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 205 11/12/2020 13:57:40


Logo após, entra em cena a identificação de fatores de risco
que possam apresentar perigo à continuidade de negócios, gerar
passivos e exigir medidas de compliance mais custosas e severas.
Este processo será composto pela análise de diversas situações e
práticas da empresa, a partir de uma matriz composta por três
vetores: impacto ao negócio, probabilidade de ocorrência e grau
de “detectabilidade” (de acordo com a técnica disponível no
momento). Alguns exemplos de riscos relacionados à matéria
da LGPD são a coleta de dados desnecessários, o tratamento de
dados pessoais sensíveis (como dados de saúde ou biométricos)
e de dados de crianças e adolescentes, ou, ainda, a transferência
internacional de dados. Para cada risco deve se estabelecer um
plano de ação adequado para que estes sejam devidamente en-
dereçados ao longo do trajeto.
Em seguida, o foco volta-se para o mapeamento e a justi-
ficação do tratamento de dados pessoais realizado pela empre-
sa. Aqui, existem duas principais abordagens: a partir da busca
dos dados propriamente ditos (análise granular ou bottom-up)
ou a partir da análise dos processos que utilizam dados (análise
macro ou top-down).
Optamos, preferencialmente, pela segunda opção, que
foca nas rotinas que envolvem tratamento dos dados pessoais,
listando-as, caracterizando-as detalhadamente e, posterior-
mente enquadrando-as nas hipóteses legais (arts. 7° e 11°).
Para cada operação de tratamento de dados identificada, é ela-
borado um relatório de impacto, contendo a justificação legal
da sua prática, os itens de atenção, as devidas recomendações
jurídicas e o respectivo prazo referencial de guarda. Assim, no

206 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 206 11/12/2020 13:57:40


caso de eventual fiscalização, reclamação ou processo, dito do-
cumento servirá como prestação de contas da adequação das
práticas da empresa.
Outro eixo do programa de adequação está na avaliação
da base de contratos estabelecidos pela empresa que possam
envolver atividades de tratamento de dados. Com a LGPD
em vigor, existe uma série de responsabilidades que passam a
incorporar as relações jurídicas estabelecidas entre a empresa e
seus fornecedores, prestadores de serviço, colaborares e clientes,
demandando a criação de um capítulo de cláusulas que resguar-
dem adequadamente a empresa e impulsionem toda a cadeia
de produção à conformidade. Além disso, é necessário revisar
contratos de trabalho, políticas internas e códigos de conduta,
a fim de que a nova postura da empresa seja institucionalizada
por documentos vinculativos a colaboradores e parceiros.
Por fim, mas não menos importante, ganha destaque a
necessidade de empreender verdadeira mudança cultural na
empresa, a partir da apuração do nível de atendimento aos
numerosos requisitos legais para cada setor da empresa (como
a capacidade da TI em extrair todos os dados de uma pessoa
em especial; ou a adoção de certas formalidades, pelo Jurídico,
em contratos envolvendo dados pessoais de menores de idade;
ou mesmo a nomeação de um Encarregado do tratamento de
dados pessoais, pela Gestão etc.). A correta aferição do cum-
primento desses múltiplos itens proporciona parâmetro obje-
tivo (percentual) de atendimento da norma e, com o passar
do tempo, sinaliza a evolução da jornada de conformidade.
Os requisitos porventura atualmente não contemplados são
desdobrados em planos de ação, com a indicação de responsá-
vel interno, eventual orçamento e prazo de execução.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 207

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 207 11/12/2020 13:57:40


Todas essas etapas demandam vários meses de trabalho.
Somente após o mapeamento é possível enquadrar as práticas
da empresa; somente após enquadrar-se o tratamento de da-
dos é possível saber em quais contextos será necessário coletar
o consentimento do titular do dado, quais as cláusulas con-
tratuais necessárias ou a política adequada de privacidade...
Nem sempre se tem todo esse tempo. Assim, com a lei em
vigor, diversas dessas etapas precisam ser antecipadas, mesmo
que em formatos provisórios, sem falar na necessidade de gerir
eventuais crises com vazamento de dados que se apresentem.
Tudo sob o risco de requerimentos individuais ou proces-
sos por parte de titulares, da fiscalização de entes como o Mi-
nistério Público ou o Procon, sem falar nas futuras sanções da
Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD, as quais
restaram prorrogadas para a partir de agosto de 2021. Nesse
ponto, considerando a precedência da regulação europeia, sua
experiência até aqui pode indicar um pouco do que veremos
nos próximos anos.
Recentemente, a Hamburgische Beauftragte für Datens-
chutz und Informationsfreiheit (Autoridade de Proteção de
Dados Pessoais de Hamburgo, na Alemanha) impôs a quarta
maior sanção já aplicada por violações ao GDPR (aproxima-
damente 35 milhões de euros). No caso, a empresa de moda
H&M possuía a prática de realizar “Welcome Back Talks” após
períodos de ausência de colaboradores, como férias ou por
doenças. Assim, registravam-se informações extremamen-
te pessoais e até sensíveis, como diagnósticos e sintomas de
doenças. Essas conversas eram armazenadas e ficavam dispo-

208 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 208 11/12/2020 13:57:40


níveis para gerentes que as utilizavam para obter um perfil
do colaborador e auxiliar na tomada de decisões. Após uma
falha de sistema, o conteúdo desses encontros ficou disponível
para todos da empresa, resultando em inúmeras violações de
direitos à proteção de dados e à intimidade dos colaboradores.
Além do conteúdo “educativo” deste exemplo, é de se res-
saltar que a empresa, em meio ao cenário de crise, cooperou com
a investigação e tomou medidas guiadas pela transparência para
retomar a confiança de seus colaboradores, que, por sua vez,
foram reconhecidas e elogiadas pela autoridade. Resta imaginar
o valor que teria sido aplicado caso o controlador (H&M) não
adotasse providências alinhadas aos princípios do Regulamento.
O Judiciário também exercerá papel decisivo na valida-
ção das medidas preventivas integrantes de efetivos progra-
mas de governança da privacidade. Ainda que a temática da
proteção de dados e a aplicação da LGPD seja incipiente nos
Tribunais, o Supremo Tribunal Federal (STF) já deu sinais
claros da relevância da matéria. Na oportunidade de declara-
ção de inconstitucionalidade da MP 954/2020, em maio de
2020, reconheceu a existência de um direito constitucional à
proteção de dados pessoais, independente da LGPD e diverso
do direito à privacidade ou à intimidade. É importante ressal-
tar que, à época, a LGPD não estava em vigor, isto é, o STF
consagrou entendimento de que o ordenamento jurídico da
época era suficiente para conferir proteção a dados pessoais e
proibiu o seu compartilhamento indevido.
Por todo o exposto, resta demonstrada a relevância da
implementação de um efetivo Programa de Governança em

Temas de Direito Empresarial 2021 • 209

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 209 11/12/2020 13:57:40


Privacidade frente à LGPD, de forma alinhada às demais me-
didas de conformidade legal da empresa. A sua devida estru-
turação prepara a empresa para a nova realidade e age tanto
na prevenção de passivos, quanto como fator abonatório para
aplicação de multas administrativas quando o incidente se
mostrar inevitável.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AESOP. Aesop’s Fables. Traduzido por R. Worthington. The


Floating Press, 2009. “The wild boar and the fox”. p. 257

FRAZÃO, Ana. “Objetivos e alcance da Lei Geral de Proteção


de Dados”. Em FRAZÃO, Ana. TEPEDINO, Gustavo. DO-
NATO, Milena. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas
repercussões no direito brasileiro. 1ª Edição. São Paulo. Revista
dos Tribunais.

FRAZÃO, Ana. OLIVA, Milena. Abilio, Viviane. “Com-


pliance de dados pessoais”. Em FRAZÃO, Ana; TEPEDINO,
Gustavo; DONATO, Milena. Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais e suas repercussões no direito brasileiro. 1ª Edição. São
Paulo. Revista dos Tribunais.

Sobre os conceitos de controlador e operador: Opinion 1/2010


on the concepts of “controller” and “processor”: https://ec.europa.
eu/justice/article-29/documentation/opinion-recommenda-
tion/files/2010/wp169_en.pdf (Acesso em out/2020)

Fonte: https://datenschutz-hamburg.de/pressemitteilungen/
2020/10/2020-10-01-h-m-verfahren# (Acesso em out/2020)

210 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 210 11/12/2020 13:57:41


“QUANDO O PATRIMÔNIO
DO SÓCIO CORRE RISCO”
Hipóteses de repercussão
sobre a pessoa do sócio das
obrigações inadimplidas pela
sociedade empresária com
responsabilidade limitada

Ricardo Fortes
Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
– PUCRS (1999), tem cursos de especialização na Fundação Getúlio Vargas em
Direito da Economia e da Empresa, e no INSPER em Recuperação Judicial de Em-
presas. Foi Vice-Presidente jurídico da ADVB/RS (biênio 2004 – 2005).

Sumário: 1 – Introdução; 2 – Da insuficiência patri-


monial da sociedade empresária, ainda que não de-
clarada sua insolvência, como elemento propulsor do
direcionamento das dívidas sociais ao patrimônio do
sócio; 3 – Da desconsideração da personalidade jurí-
dica da sociedade empresária; 3.1 – Da existência de
duas teorias (“menor” e “maior”) para a desconsidera-
ção da personalidade jurídica; 3.2 – Do rito proces-
sual introduzido pelo novo Código de Processo Civil
à desconsideração da personalidade jurídica; 3.3 – Da

• 211

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 211 11/12/2020 13:57:41


desconsideração da personalidade jurídica da socieda-
de empresária frente à obrigação de natureza trabalhis-
ta; 3.4 – Da desconsideração da personalidade jurídica
da sociedade empresária frente à obrigação de nature-
za tributária; 3.5 – Da desconsideração da persona-
lidade jurídica em cenário de Recuperação Judicial e
de Falência; 4 – Da ação própria de responsabilização
civil do sócio; 5 – Conclusão.

1 INTRODUÇÃO

Essencial ao desenvolvimento econômico, fator de gera-


ção de empregos, renda e arrecadação de tributos, o ato de
empreender, na visão de Hisrich & Peter1, é o “processo de criar
algo diferente e com valor, dedicando o tempo e o esforço necessá-
rios, assumindo os riscos financeiros, psicológicos e sociais corres-
pondentes e recebendo as consequentes recompensas da satisfação
econômica e pessoal”. De fato, não há como navegar em busca
de novos mercados sem perder contato com a terra firme, e,
ao largar a segurança do solo, o empreendedor é alguém ciente
dos desafios e riscos que enfrentará em sua jornada.
Assim, ao empreender sob a organização de um tipo
societário, dentre outros motivos, o empresário usualmente
busca a constituição de uma sociedade empresária em que o
direito resguarde responsabilidade limitada aos sócios frente
ao capital aportado na sociedade. Por esse motivo, verifica-se a
utilização em maior escala da sociedade por quotas de responsa-

1
  HISRICH, Robert D., PETERS; Michael P. Empreendedorismo. 5 ed. Porto Alegre:
Bookman, 2004.

212 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 212 11/12/2020 13:57:41


bilidade limitada2 (“LTDA”) para o desenvolvimento de ati-
vidades econômicas de pequeno e médio porte, e da sociedade
por ações3 (“S/A”) para a exploração de atividades econômicas
de maior dimensão.
Por meio desses tipos societários, o empresário visa não
somente a limitar sua responsabilidade ao capital aportado na
sociedade via integralização de quotas ou subscrição de ações4,
mas também que os riscos inerentes da atividade comercial
fiquem circunscritos ao patrimônio social, haja vista a regra
geral de separação patrimonial entre sócio e sociedade. Tal,
aliás, restou agora positivado no art. 49-A do Código Civil,
por ocasião da Lei nº 13.874/2019, que instituiu a Declaração
de Direitos da Liberdade Econômica:

“Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus


sócios, associados, instituidores ou administradores.
Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas
jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segrega-
ção de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de
estimular empreendimentos, para a geração de empregos,
tributo, renda e inovação em benefício de todos.”

2
  Art. 1.052 do Código Civil: “Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada só-
cio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela inte-
gralização do capital social”.
3
  Art. 1º da Lei das Sociedades por Ações (nº 6.404/76): “A companhia ou so-
ciedade anônima terá o capital dividido em ações, e a responsabilidade dos sócios ou
acionistas será limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas”.
4
  Em nosso Direito, a responsabilidade dos sócios frente às obrigações da so-
ciedade é subsidiária (art. 1.024 do Código Civil). E nos tipos de sociedade com
responsabilidade limitada, essa responsabilidade subsidiária se dá apenas até o
limite do capital já aportado na sociedade.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 213

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 213 11/12/2020 13:57:41


Como bem explica Fábio Ulhoa Coelho5,

(...) “esse é o princípio da autonomia patrimonial, ali-


cerce do direito societário. Sua importância para o de-
senvolvimento de atividades econômicas, da produção e
circulação de bens e serviços, é fundamental, na medida
em que limita a possibilidade de perdas nos investimen-
tos mais arriscados. A partir da afirmação do postulado
jurídico de que o patrimônio dos sócios não responde por
dívidas da sociedade, motivam-se investidores e empreen-
dedores a aplicar o dinheiro em atividades econômicas
de maior envergadura e risco. Se não existisse o princípio
da separação patrimonial, os insucessos na exploração da
empresa poderiam significar a perda de todos os bens par-
ticulares dos sócios, amealhados ao longo do trabalho de
uma vida ou mesmo de gerações, e, nesse quadro, menos
pessoas se sentiriam estimuladas a desenvolver novas ati-
vidades empresariais. No final, o potencial econômico do
País não estaria eficientemente otimizado, e as pessoas em
geral ficariam prejudicadas, tendo menos acesso a bens e
serviços”.

Entretanto, mesmo protegido sob essa personalidade ju-


rídica própria da sociedade empresária com autonomia patri-
monial, não raras vezes pode ocorrer de recair sobre a pessoa
do sócio as dívidas contraídas exclusivamente pela pessoa jurí-
dica, ainda que de responsabilidade limitada.
Desconsiderando, então, as hipóteses de tipos societários
com responsabilidade ilimitada, bem como, as sociedades que

5
  COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito comercial. Volume 2, 5ª edição rev. e
atual. de acordo com o novo Código Civil e alterações da LSA – São Paulo: Saraiva.
2002. pp. 15-16.

214 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 214 11/12/2020 13:57:41


se encontrem em situação irregular, como, por exemplo, em
caso de ausência de registro na Junta Comercial (cuja con-
sequência também implica responsabilidade ilimitada aos só-
cios), em geral, a responsabilidade pelas obrigações da socieda-
de empresária com responsabilidade limitada (como a própria
“LTDA” e a “S/A” supracitadas) só poderá vir a ser exigida
diretamente frente ao sócio que integralizou o capital e subs-
creveu suas ações, respectivamente, em caso de desconsidera-
ção da personalização da pessoa jurídica, ou, ainda, quando o
mesmo for diretamente demandado a responder civilmente
por alguma obrigação sob alegação de ter cometido ato ilíci-
to. Nesse último caso, contudo, a pretensão ganha contornos
indenizatórios, e não de cobrança da obrigação social original.
Cabe salientar que, salvo determinadas exceções – como
as envolvendo obrigações consumeristas e trabalhistas, ou ain-
da tributárias em que o sócio figure como corresponsável na
certidão de dívida ativa, que serão analisadas mais abaixo –, o
enfoque legislativo e jurisprudencial para autorizar o direcio-
namento da dívida social para a pessoa física do sócio tem sido
a configuração de conduta apontada como ilícita (contrária
à lei ou ao contrato social e estatuto), em especial quando se
entende que houve desvio de finalidade ou confusão patrimo-
nial entre sócio e sociedade. Isso porque, conforme a doutrina
do comercialista Rubens Requião6: “A limitação da responsabi-
lidade do sócio não equivale à declaração de sua irresponsabili-
dade em face dos negócios sociais e de terceiros. Deve ele ater-se,

6
  REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. Vol 1. 29ª ed. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 130.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 215

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 215 11/12/2020 13:57:41


naturalmente, ao estado de direito que as normas legais traçam,
na disciplina do determinado tipo de sociedade de que se trate.
Ultrapassando os preceitos da legalidade, praticando atos como
sócio, contrários à lei ou ao contrato, tornam-se pessoal e ilimita-
damente responsáveis pelas consequências de tais atos”.
É a figura do ato ilícito, legal ou contratual, seja ele puro
ou equiparado (abuso de direito), que legitima a remoção do
véu da personalidade jurídica.
Todavia, na prática, o que se vê, é a utilização dessas fer-
ramentas jurídicas para atingir bens dos sócios frente a obri-
gações da sociedade empresária quando o credor identificar
indícios de não solvabilidade da sociedade (insuficiência patri-
monial) para quitar seu crédito decorrente dessas obrigações.
O inadimplemento da obrigação e a dificuldade de encontrar
ativos livres da sociedade para fazer frente à dívida faz com
que o credor especule sobre o seu estado de insolvência (ainda
que não apta à falência), exsurgindo, a partir daí, a perspectiva
de utilização da desconsideração da personalidade jurídica ou
ainda da propositura de ação de responsabilização do sócio.
Ou seja, em que pese atualmente haja entendimento con-
solidado nos Tribunais Superiores de que para que haja o di-
recionamento da dívida social frente ao sócio seja suficiente a
demonstração de prática de ato ilícito, sendo desnecessária a de-
monstração de ausência de solvabilidade7, em geral os credores

7
  “RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
CPC/2015. PROCEDIMENTO PARA DECLARAÇÃO. REQUISITOS PARA A INS-
TAURAÇÃO. OBSERVÂNCIA DAS REGRAS DE DIREITO MATERIAL. DESCONSI-
DERAÇÃO COM BASE NO ART. 50 DO CC/2002. ABUSO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA. DESVIO DE FINALIDADE. CONFUSÃO PATRIMONIAL. INSOLVÊN-

216 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 216 11/12/2020 13:57:41


só lançam mão dessas ferramentas quando não conseguem
buscar frente aos ativos sociais a satisfação de seu crédito. É no
cenário de insuficiência patrimonial da sociedade empresária,
em que se especula sua insolvência (esteja ela já submetida ou
não ao procedimento recuperatório ou falimentar previstos na
Lei nº 11.101/05), que esses institutos são usualmente aplica-
dos para alcançar o patrimônio pessoal do sócio.
Assim, esse trabalho se propõe a analisar esses dois prin-
cipais institutos jurídicos que descortinam a autonomia patri-

CIA DO DEVEDOR. DESNECESSIDADE DE SUA COMPROVAÇÃO. 1. A desconsi-


deração da personalidade jurídica não visa à sua anulação, mas somente objetiva
desconsiderar, no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em
relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem, com a declaração de sua
ineficácia para determinados efeitos, prosseguindo, todavia, incólume para seus
outros fins legítimos. 2. O CPC/2015 inovou no assunto prevendo e regulamen-
tando procedimento próprio para a operacionalização do instituto de inquestioná-
vel relevância social e instrumental, que colabora com a recuperação de crédito,
combate à fraude, fortalecendo a segurança do mercado, em razão do acréscimo
de garantias aos credores, apresentando como modalidade de intervenção de ter-
ceiros (arts. 133 a 137) 3. Nos termos do novo regramento, o pedido de desconsi-
deração não inaugura ação autônoma, mas se instaura incidentalmente, podendo
ter início nas fases de conhecimento, cumprimento de sentença e executiva, op-
ção, inclusive, há muito admitida pela jurisprudência, tendo a normatização em-
preendida pelo novo diploma o mérito de revestir de segurança jurídica a questão.
4. Os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica continuam a
ser estabelecidos por normas de direito material, cuidando o diploma processual
tão somente da disciplina do procedimento. Assim, os requisitos da desconside-
ração variarão de acordo com a natureza da causa, seguindo-se, entretanto, em
todos os casos, o rito procedimental proposto pelo diploma processual. 6. Nas
causas em que a relação jurídica subjacente ao processo for cível-empresarial, a
desconsideração da personalidade da pessoa jurídica será regulada pelo art. 50
do Código Civil, nos casos de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo
desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial. 7. A inexistência ou não loca-
lização de bens da pessoa jurídica não é condição para a instauração do procedi-
mento que objetiva a desconsideração, por não ser sequer requisito para aquela
declaração, já que imprescindível a demonstração específica da prática objetiva
de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. 8. Recurso especial provido”.
(STJ, REsp 1.729.554/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TUR-
MA, julgado em 08/05/2018, DJe 06/06/2018).

Temas de Direito Empresarial 2021 • 217

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 217 11/12/2020 13:57:41


monial da sociedade empresária de responsabilidade limitada
nos cenários em que são mais utilizados e impõem risco ao
patrimônio pessoal do empresário titular de participação so-
cial em sociedade por quotas de responsabilidade limitada ou
por ações.
Inicia-se, então, pelo foco propulsor dos pedidos de des-
consideração da personalidade jurídica e de responsabilização
pessoal dos sócios pelas dívidas sociais, qual seja: o cenário de
insuficiência patrimonial, passível de declaração de insolvên-
cia empresária.

2 DA INSUFICIÊNCIA PATRIMONIAL DA SOCIEDADE


EMPRESÁRIA, AINDA QUE NÃO DECLARADA
SUA INSOLVÊNCIA, COMO ELEMENTO PROPULSOR
DO DIRECIONAMENTO DAS DÍVIDAS SOCIAIS
AO PATRIMÔNIO DO SÓCIO

Conforme mencionado, de regra, uma vez inscrita re-


gularmente, com o capital aportado pelos sócios em quotas
ou ações totalmente integralizado, as obrigações contraídas
exclusivamente pela sociedade empresária de responsabilida-
de limitada competem a ela, com o que cabem aos seus ati-
vos (na definição do art. 91 c/c art. 391 do Código Civil8),
responder por essas obrigações. Segundo Gladston Mamede9,

8
  “Art. 91. Constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de
uma pessoa, dotadas de valor econômico”.
“Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do de-
vedor”.
9
  MAMEDE, Gladston. Falência e recuperação de empresas, 10ª edição – São
Paulo: Atlas, 2019. pp. 4-5.

218 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 218 11/12/2020 13:57:41


prevalece em nosso Direito o princípio da solvabilidade jurídi-
ca, pelo qual, “as obrigações – legais ou convencionais – devem ser
voluntariamente cumpridas, ou o Estado deverá aplicar as con-
sequências jurídicas previstas para o descumprimento, exercendo
seu poder de coerção. No plano das relações jurídicas econômicas
(faculdades com expressão pecuniária), a ideia de cumprimento
das obrigações leva à afirmação de uma necessária solvabilidade
do patrimônio do devedor: é preciso haver bens e direitos em valor
suficiente para permitir o pagamento das obrigações (as dívidas),
no momento em que estejam vencidas”.
Assim, o titular de crédito contra a sociedade empresária
cujo adimplemento não se deu no vencimento, superadas as
tratativas consensuais na tentativa de receber (quando isso é
factível), costuma buscar judicialmente frente ao patrimônio
dessa a cobrança dos valores que entende lhe serem devidos.
Esse inegavelmente é o caminho judicial mais fácil e rápido
para a satisfação de seu crédito.
Todavia, pode ocorrer que nessa cobrança judicial pela
via executiva (incluindo-se o cumprimento de sentença após
reconhecimento de crédito em processo de conhecimento),
venha a se verificar que o patrimônio da sociedade não é capaz
de saldar suas obrigações, cabendo, então, ao credor, a prerro-
gativa de suscitar ou não o estado de insolvência empresária.
Nesse caso, o titular de crédito contra a sociedade pode op-
tar (a) por insistir na cobrança em sede de execução individual,
buscando outras alternativas para recebimento, como o pedi-
do de desconsideração da personalidade jurídica (caso presente
os requisitos legais para tanto), ou, ainda, (b) demonstrando

Temas de Direito Empresarial 2021 • 219

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 219 11/12/2020 13:57:41


a incidência das práticas do art. 94 e seus incisos da Lei nº
11.101/200510, instaurar processo de execução coletiva, por
meio do pedido de decretação de falência da sociedade deve-
dora, sendo declarada sua insolvência.
A esse respeito ensina Fábio Ulhoa Coelho11 que “a in-
solvência que a lei considera como pressuposto da execução por
falência é, por assim dizer, presumida. Os comportamentos dis-
criminados pelo dispositivo da Lei de Falências aqui comentado
são, em geral, praticados por quem se encontra em insolvência
econômica, e esta é a presunção legal absoluta que orienta a dis-
ciplina da matéria. Se o empresário é solvente – no sentido de

10
  “Art. 94. Será decretada a falência do devedor que:
I – sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida
materializada em título ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse
o equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data do pedido de falência;
II – executado por qualquer quantia líquida, não paga, não deposita e não nomeia
à penhora bens suficientes dentro do prazo legal;
III – pratica qualquer dos seguintes atos, exceto se fizer parte de plano de recu-
peração judicial:
a) procede à liquidação precipitada de seus ativos ou lança mão de meio ruinoso
ou fraudulento para realizar pagamentos;
b) realiza ou, por atos inequívocos, tenta realizar, com o objetivo de retardar pa-
gamentos ou fraudar credores, negócio simulado ou alienação de parte ou da to-
talidade de seu ativo a terceiro, credor ou não;
c) transfere estabelecimento a terceiro, credor ou não, sem o consentimento de
todos os credores e sem ficar com bens suficientes para solver seu passivo;
d) simula a transferência de seu principal estabelecimento com o objetivo de bur-
lar a legislação ou a fiscalização ou para prejudicar credor;
e) dá ou reforça garantia a credor por dívida contraída anteriormente sem ficar
com bens livres e desembaraçados suficientes para saldar seu passivo;
f) ausenta-se sem deixar representante habilitado e com recursos suficientes
para pagar os credores, abandona estabelecimento ou tenta ocultar-se de seu
domicílio, do local de sua sede ou de seu principal estabelecimento;
g) deixa de cumprir, no prazo estabelecido, obrigação assumida no plano de re-
cuperação judicial”.
11
  COELHO, Fabio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Em-
presas. 11ª edição, rev., atual. e ampl. São Paulo. Revista dos Tribunais. 2016. p. 351.

220 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 220 11/12/2020 13:57:41


que os bens do ativo, se vendidos, alcançariam preço suficiente
para pagamento das obrigações passivas –, mas está passando por
problemas de liquidez, não tem caixa para pagar os títulos que
se vencem, então ele não se encontra em insolvência econômica,
mas jurídica. Se ele não conseguir resolver o problema (por meio
de financiamento bancário, securitização ou capitalização), sua
quebra poderá ser decretada”.
Cabe lembrar, ademais, que a opção pela falência, consi-
derando suas repercussões sociais, só deve ser postulada quan-
do o credor verificar efetivos indícios da inviabilidade da con-
tinuidade da atividade empresária e permanência do estado
de insolvência do devedor, pois do contrário deve perseguir
na sua execução individual12. Ensina Ecio Perin Junior13 que “a
falência não tem como objetivo nuclear a tutela de direito indivi-
dual do credor. Seu objetivo é coletivo. Visa à liquidação da em-
presa em estado de insolvência irreversível, evitando a injustiça de
uma execução individual, porque nela só receberia aquele credor
oportuno, ferindo o princípio da paridade de créditos”.

12
  É farto o posicionamento jurisprudencial em inadmitir o uso do pedido de fa-
lência como meio de cobrança, valendo destacar o célebre julgamento do Superior
Tribunal de Justiça de relatoria do ex-Ministro Ruy Rosado de Aguiar: “FALÊNCIA.
Cobrança. Incompatibilidade. O processo de falência não deve ser desvirtuado
para servir de instrumento de coação para a cobrança de dívidas. Considerando
os graves resultados que decorrem da quebra da empresa, o seu requerimento
merece ser examinado com rigor formal, e afastado sempre que a pretensão do
credor seja tão somente a satisfação do seu crédito. Propósito que se caracteri-
zou pelo requerimento de envio dos autos à Contadoria, para apurar o valor do
débito, pelo posterior recebimento daquela quantia, acompanhado de pedido de
desistência da ação. Recurso conhecido e provido”. (REsp 136.565/RS, Rel. Minis-
tro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 23/02/1999, DJ
14/06/1999, p. 198)
13
  PERIN JUNIOR, Ecio. Curso de Direito Falimentar e Recuperação de Empresas.
4ª edição. São Paulo. Saraiva. 2011. p. 68.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 221

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 221 11/12/2020 13:57:41


De todo modo, como visto, a detecção do quadro de
insolvência da sociedade devedora, ou ainda indícios nesse
sentido, salvo determinados casos, não determina, de plano,
o direcionamento da cobrança para os seus sócios. É preciso
que se instaure procedimento próprio para tanto (de modo a
apurar a prática ilícita que justifique o direcionamento), sendo
na grande maioria das vezes utilizado o mencionado incidente
de desconsideração da personalidade jurídica, tanto frente a
dívidas cobradas judicialmente na esfera cível, como na esfe-
ra de ações trabalhistas e tributárias, bem como em sede de
procedimento de recuperação judicial e falimentar, havendo,
no entanto, pequenas diferenças entre essas acerca do nível de
exigência do cumprimento dos requisitos para tanto.
Outra medida judicial utilizada, mas em menor escala, é
a ação de responsabilização cível do sócio pelas dívidas sociais,
a qual será aqui analisada em cenário de falência.
Acerca das diferenças em relação a cada instituto jurídico
e sua aplicabilidade em cenários de insolvência, é esclarecedor
o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no REsp
1.180.191/RJ, cuja ementa se transcreve abaixo:

“(...) 1. A desconsideração da personalidade jurídica


não se assemelha à ação revocatória falencial ou à ação
pauliana, seja em suas causas justificadoras, seja em suas
consequências. A primeira (revocatória) visa ao reconhe-
cimento de ineficácia de determinado negócio jurídico
tido como suspeito, e a segunda (pauliana) à invalidação
de ato praticado em fraude a credores, servindo ambos
os instrumentos como espécies de interditos restitutórios,
no desiderato de devolver à massa, falida ou insolvente,

222 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 222 11/12/2020 13:57:41


os bens necessários ao adimplemento dos credores, agora
em igualdade de condições (arts. 129 e 130 da Lei n.º
11.101/05 e art. 165 do Código Civil de 2002).
2. A desconsideração da personalidade jurídica, a sua
vez, é técnica consistente não na ineficácia ou invalida-
de de negócios jurídicos celebrados pela empresa, mas na
ineficácia relativa da própria pessoa jurídica – rectius,
ineficácia do contrato ou estatuto social da empresa –,
frente a credores cujos direitos não são satisfeitos, mercê
da autonomia patrimonial criada pelos atos constitutivos
da sociedade.
3. Com efeito, descabe, por ampliação ou analogia, sem
qualquer previsão legal, trazer para a desconsideração
da personalidade jurídica os prazos decadenciais para o
ajuizamento das ações revocatória falencial e pauliana.
4. Relativamente aos direitos potestativos para cujo exer-
cício a lei não vislumbrou necessidade de prazo especial,
prevalece a regra geral da inesgotabilidade ou da per-
petuidade, segundo a qual os direitos não se extinguem
pelo não uso. Assim, à míngua de previsão legal, o pedido
de desconsideração da personalidade jurídica, quando
preenchidos os requisitos da medida, poderá ser realizado
a qualquer momento.
5. A superação da pessoa jurídica afirma-se como um
incidente processual e não como um processo incidente,
razão pela qual pode ser deferida nos próprios autos da
falência, nos termos da jurisprudência sedimentada do
STJ.
6. Não há como confundir a ação de responsabilidade dos
sócios e administradores da sociedade falida (art. 6º do
Decreto-lei n.º 7.661/45 e art. 82 da Lei n.º 11.101/05)
com a desconsideração da personalidade jurídica da em-
presa. Na primeira, não há um sujeito oculto, ao con-
trário, é plenamente identificável e evidente, e sua ação

Temas de Direito Empresarial 2021 • 223

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 223 11/12/2020 13:57:41


infringe seus próprios deveres de sócio/administrador, ao
passo que, na segunda, supera-se a personalidade jurídica
sob cujo manto se escondia a pessoa oculta, exatamente
para evidenciá-la como verdadeira beneficiária dos atos
fraudulentos. Ou seja, a ação de responsabilização socie-
tária, em regra, é medida que visa ao ressarcimento da
sociedade por atos próprios dos sócios/administradores, ao
passo que a desconsideração visa ao ressarcimento de cre-
dores por atos da sociedade, em benefício da pessoa oculta.
7. Em sede de processo falimentar, não há como a des-
consideração da personalidade jurídica atingir somente
as obrigações contraídas pela sociedade antes da saída
dos sócios. Reconhecendo o acórdão recorrido que os atos
fraudulentos, praticados quando os recorrentes ainda fa-
ziam parte da sociedade, foram causadores do estado de
insolvência e esvaziamento patrimonial por que passa a
falida, a superação da pessoa jurídica tem o condão de
estender aos sócios a responsabilidade pelos créditos habi-
litados, de forma a solvê-los de acordo com os princípios
próprios do direito falimentar, sobretudo aquele que im-
põe igualdade de condição entre os credores (par conditio
creditorum), na ordem de preferência imposta pela lei.
8. Recurso especial parcialmente conhecido e não pro-
vido.” (REsp 1180191/RJ, Rel. Ministro LUIS FE-
LIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em
05/04/2011, DJe 09/06/2011)

Observe-se, ademais, que tanto o incidente de desconsi-


deração da personalidade jurídica, como a ação própria de res-
ponsabilização do sócio, são medidas judiciais com garantia de
ampla defesa e contraditório, que consomem tempo com de-
bate envolvendo o direito ao direcionamento da dívida social
para a pessoa do sócio (a primeira inclusive prevê suspensão

224 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 224 11/12/2020 13:57:41


do processo principal em que se cobra a dívida14), com o que,
na prática, geralmente só são utilizadas quando o credor veri-
ficar que a sociedade devedora realmente não tem bens livres
para saldar a obrigação executada, demonstrando insuficiência
patrimonial (ausência de solvabilidade). Do contrário, havendo
bens capazes de saldar a dívida executada, ainda que presentes
os requisitos que autorizam a utilização de medidas de direcio-
namento à pessoa do sócio (prática de ilícito legal ou contra-
tual), é mais proveitoso insistir na execução individual contra
a sociedade. Com efeito, a experiência forense indica que é a
verificação de insuficiência patrimonial da sociedade empresária
(esteja ou não com sua insolvência declarada) o elemento pro-
pulsor para a utilização da desconsideração da personalidade ju-
rídica da sociedade empresária ou ainda da proposição de ação
de responsabilidade do sócio pela dívida social.
As características de cada instituto jurídico, com as pecu-
liaridades da natureza das dívidas sociais em que são aciona-
dos, serão analisadas no capítulo subsequente.

3 DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA

A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica


tem origem no Direito Anglo-Americano, no precedente ju-
risprudencial que virou leading case “Salomon x A. Salomon
& Co”, em que o sócio Aaron Salomon foi condenado a res-
ponder pelas obrigações da sociedade A. Salomon & Co, em

14
  Art. 134, § 3º, do Código de Processo Civil.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 225

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 225 11/12/2020 13:57:41


face do reconhecimento de confusão patrimonial entre am-
bos. Trata-se de uma exceção à regra de que pessoa jurídica é
distinta da dos indivíduos que a compõem (universitas distat
a singuli), de modo a ser afastada a autonomia patrimonial
entre sócio e sociedade. Quando se busca a desconsideração
da personalidade jurídica da sociedade empresária, pode estar
se alcançando tanto o sócio pessoa física, como jurídica, eis
que é bastante comum que no quadro social figurem outras
sociedades. Tal se dá especialmente em casos em que há socie-
dade constituída como holding para exercício do controle da
sociedade operativa, havendo interesse de se atingir os bens
que estão no ativo da controladora e não da controlada.

3.1 Da existência de duas teorias (“menor” e “maior”)


para a desconsideração da personalidade jurídica

No Direito Brasileiro, tanto a doutrina, como a jurispru-


dência dos nossos Tribunais reconhecem que há duas teorias
da desconsideração da personalidade jurídica, a “teoria maior”
e a “teoria menor”, cuja diferença está mais relacionada ao ní-
vel de rigor que é dado na análise da situação em que compor-
taria o afastamento da personalidade jurídica.
O Superior Tribunal de Justiça, na ementa do acórdão
que julgou o Recurso Especial nº 279.273/SP, bem explicita
como se dá a caracterização das referidas teorias “maior” e “me-
nor” para fins de desconsideração da personalidade jurídica:

“Responsabilidade civil e Direito do consumidor. Re-


curso especial. Shopping Center de Osasco-SP. Explosão.

226 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 226 11/12/2020 13:57:41


Consumidores. Danos materiais e morais. Ministério
Público. Legitimidade ativa. Pessoa jurídica. Desconsi-
deração. Teoria maior e teoria menor. Limite de respon-
sabilização dos sócios. Código de Defesa do Consumidor.
Requisitos. Obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causa-
dos aos consumidores. Art. 28, § 5º. – Considerada a pro-
teção do consumidor um dos pilares da ordem econômica,
e incumbindo ao Ministério Público a defesa da ordem
jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis, possui o Órgão Ministerial le-
gitimidade para atuar em defesa de interesses individuais
homogêneos de consumidores, decorrentes de origem co-
mum. – A teoria maior da desconsideração, regra geral
no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com
a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente
para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui,
para além da prova de insolvência, ou a demonstração
de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconside-
ração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teo-
ria objetiva da desconsideração). – A teoria menor da
desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico
excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito
Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da
pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, in-
dependentemente da existência de desvio de finalidade ou
de confusão patrimonial. – Para a teoria menor, o risco
empresarial normal às atividades econômicas não pode
ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa ju-
rídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda
que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto
é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de iden-
tificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/
ou administradores da pessoa jurídica. – A aplicação da
teoria menor da desconsideração às relações de consumo
está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28,

Temas de Direito Empresarial 2021 • 227

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 227 11/12/2020 13:57:41


do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não
se subordina à demonstração dos requisitos previstos no
caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar,
a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressar-
cimento de prejuízos causados aos consumidores. – Re-
cursos especiais não conhecidos.” (REsp 279.273/SP, Rel.
Ministro ARI PARGENDLER, Rel. p/ Acórdão Ministra
NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado
em 04/12/2003, DJ 29/03/2004, p. 230)

Observa-se, assim, que em determinadas situações obri-


gacionais em que há certa vulnerabilidade ou hipossuficiência
do credor (que pode ser uma coletividade) frente à socieda-
de reconhecida como devedora da obrigação (por exemplo,
art. 28, § 5º, do Código Consumerista, e, art. 4º, da Lei
nº 9.605/98, que dispõe sobre sanções por condutas e ativida-
des lesivas ao meio ambiente), ainda que entendimento passível
de crítica, mostra-se despicienda a prova da conduta ilícita para
se aplicar a desconsideração da personalidade jurídica, bastan-
do a prova de que a mesma não apresenta solvência para fazer
frente à obrigação, indicando obstáculo para ressarcir o credor.
Todavia, casos como esses são exceção, haja vista que, em
sede de obrigações de natureza cível, o mesmo Superior Tribu-
nal de Justiça reconhece a prevalência da “teoria maior” para a
grande maioria das obrigações assumidas pela sociedade em-
presária, defendendo, então, que a desconsideração da perso-
nalidade jurídica depende da demonstração de atos contrários
à probidade e à legalidade, quais sejam o desvio de finalidade
ou a confusão patrimonial, observando-se a regra insculpida
no art. 50 do Código Civil, que dispõe:

228 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 228 11/12/2020 13:57:41


“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica,
caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão
patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do
Ministério Público quando lhe couber intervir no pro-
cesso, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e deter-
minadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens
particulares de administradores ou de sócios da pessoa
jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de
finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o
propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos
de qualquer natureza.
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de
separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações
do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas
contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente
insignificante; e
III – outros atos de descumprimento da autonomia pa-
trimonial.
§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo
também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou
de administradores à pessoa jurídica.
§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença
dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autori-
za a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão
ou a alteração da finalidade original da atividade
econômica específica da pessoa jurídica”.

Há julgados do Superior Tribunal de Justiça defendendo


que a “teoria maior” para a desconsideração da personalidade

Temas de Direito Empresarial 2021 • 229

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 229 11/12/2020 13:57:41


jurídica se divide em uma vertente objetiva e outra subjetiva
para configuração da conduta tida como abusiva. No campo
de análise dos elementos para a desconsideração decorrente
de confusão patrimonial (§2º, do art. 50 do Código Civil),
caberia sua configuração objetiva quando se constatar que há
bens dos sócios registrados em nome da sociedade e bens das
sociedades registrados em nome dos sócios, ou, ainda, quando
se identifica que as receitas da sociedade são utilizadas para
quitar dívidas pessoais dos sócios, ou, então, quando o sócio
efetua o pagamento de dívidas da sociedade diretamente com
valores oriundos de sua conta pessoal (ao invés de emprestar
valores para a sociedade para esta pagar). Ditas práticas,
objetivamente identificadas, são apontadas como de confusão
patrimonial, haja vista que torna difícil identificar claramente
o que é patrimônio da sociedade e o que é dos sócios, sendo
necessário, entretanto, que referidas práticas tenham se dado
em prejuízo aos credores para a desconsideração. Já no campo
da análise subjetiva para a desconsideração estaria a prática
de desvio de finalidade (§1º, do art. 50 do Código Civil), a
qual exige a presença do elemento intencional dos sócios no
ato caracterizado como abusivo, praticado para lesar credores
(terceiros).
O voto da Ministra Nancy Andrighi do Superior Tribu-
nal de Justiça, no julgamento do REsp nº 1.325.663/SP15, é

15
 “PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE FALÊNCIA.
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDA-
DE. NÃO OCORRÊNCIA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDI-
CA. INVIABILIDADE. INCIDÊNCIA DO ART. 50 DO CC/02. APLICAÇÃO DA
TEORIA MAIOR DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. AL-
CANCE DO SÓCIO MAJORITÁRIO. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DO

230 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 230 11/12/2020 13:57:41


elucidativo acerca da aplicação desse instituto, valendo a trans-
crição do trecho abaixo:

“A jurisprudência do STJ, em diversos precedentes, já se


manifestou no sentido de não ser suficiente a condição
de sócio, ainda que majoritário ou controlador, para que
contra ele se imponha os efeitos da desconsideração da
personalidade jurídica. Nesse sentido: REsp 370.068/
GO, de minha relatoria, 3ª Turma, DJ 14/03/2005;
REsp 968.564/RS, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima,
5ª Turma, DJe 02/03/2009; AgRg no REsp 762.555/
SC, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, DJe
25/10/2012; entre outros. Isso porque a regra geral
adotada em nosso ordenamento, prevista no art. 50 do
CC/02, recepciona e consagra a Teoria Maior da Des-
consideração, tanto na sua vertente objetiva quanto na
subjetiva. Portanto, mesmo no caso de grupos econômicos,
a desconsideração deverá ser reconhecida em caráter ex-
cepcional, o que ocorre quando diversas pessoas jurídicas
do grupo exercem suas atividades sob unidade gerencial,

PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. 1. Ausentes os vícios do art. 535


do CPC, rejeitam-se os embargos de declaração. 2. A ausência de decisão acerca
dos argumentos invocados pelo recorrente em suas razões recursais impede o co-
nhecimento do recurso especial. 3. A regra geral adotada no ordenamento jurídico
brasileiro, prevista no art. 50 do CC/02, consagra a Teoria Maior da Desconside-
ração, tanto na sua vertente subjetiva quanto na objetiva. 4. Salvo em situações
excepcionais previstas em leis especiais, somente é possível a desconsideração
da personalidade jurídica quando verificado o desvio de finalidade (Teoria Maior
Subjetiva da Desconsideração), caracterizado pelo ato intencional dos sócios de
fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica, ou quando evi-
denciada a confusão patrimonial (Teoria Maior Objetiva da Desconsideração),
demonstrada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação entre o patri-
mônio da pessoa jurídica e os de seus sócios. 5. Os efeitos da desconsideração
da personalidade jurídica somente alcançam os sócios participantes da condu-
ta ilícita ou que dela se beneficiaram, ainda que se trate de sócio majoritário ou
controlador. 6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido.”
(REsp 1325663/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado
em 11/06/2013, DJe 24/06/2013)

Temas de Direito Empresarial 2021 • 231

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 231 11/12/2020 13:57:41


laboral e patrimonial, ou, ainda, quando se visualizar a
confusão de patrimônio, fraudes, abuso de direito e má-
-fé com prejuízo a credores. Cumpre, entretanto, acrescer
a esse entendimento que, mesmo nas situações em que se
verifique o preenchimento desses requisitos legais, os efei-
tos da desconsideração deve alcançar apenas aqueles sócios
ou diretores que efetivamente participaram ou se benefi-
ciaram com o ato ilícito ou abusivo. Isso porque a teoria
da desconsideração da personalidade não é instituto que
impõe a solidariedade do sócio em relação à sociedade,
tampouco o responsabiliza de forma objetiva por atos ilí-
citos. Aliás, tanto as hipóteses de solidariedade quanto
as de responsabilização objetiva são tratadas pelo nosso
ordenamento jurídico de forma excepcional, exigindo-se,
portanto, a expressa previsão em lei ou contrato”.

Como será visto, não apenas nas obrigações de natureza


cível, mas também nas de natureza fiscal e trabalhista, ainda
que com menor rigor em relação a essas duas últimas, tem
se perquirido, em observância ao citado art. 50 do Código
Civil, pela prática de atos apontados como ilícitos (utiliza-
ção abusiva da personalidade jurídica) para que se dê ensejo
à desconsideração da personalidade jurídica. O mesmo ocorre
quando a desconsideração da personalidade jurídica é postula-
da no curso do processo de recuperação judicial ou falimentar.
A diferença é que nas execuções singulares os efeitos da des-
consideração beneficiam exclusivamente o titular do crédito
proponente, já em sede de falência, os efeitos da desconside-
ração com alcance de ativos, quando postulados pela Massa
Falida, refletem em favor da coletividade de credores.
Reitera-se que, na esteira da posição jurisprudencial
do Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.729.554/SP), a

232 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 232 11/12/2020 13:57:41


desconsideração da personalidade jurídica tem por base para
ser acolhida o preenchimento dos requisitos do art. 50 do Di-
ploma Civil, sendo que a demonstração de insuficiência patri-
monial ou ainda insolvência da sociedade é elemento motiva-
cional para o pedido, mas não requisito condicional para sua
conferência.
Vale ainda salientar que a aplicação da desconsideração
da personalidade jurídica, seja pela teoria “maior” ou “menor”
se dá estritamente em relação ao ato em que restou apontado
o abuso da personalidade ou ainda causador da insolvência
(retirando a eficácia da autonomia patrimonial entre sócio e
sociedade naquela situação), não anulando, assim, a própria
personalidade jurídica da sociedade, a qual tem seus efeitos
preservados frente a outros entes e obrigações. Dita medida
não comporta efeitos genéricos, sendo preciso indicar sobre
quem recai diretamente a desconsideração da personalidade
jurídica, bem como quais obrigações restarão por ela atingidas.

3.2 Do rito processual introduzido pelo novo


Código de Processo Civil à desconsideração
da personalidade jurídica

Com a entrada em vigor do novo Código de Processo


Civil (Lei 13.105/15), passou a ser disciplinado o incidente
processual de desconsideração da personalidade jurídica em
seus arts. 133 a 137, garantindo-se ao sócio para o qual se
busca o direcionamento da dívida, o direito à ampla defesa
e ao contraditório, previamente ao julgamento da desconsi-
deração (anteriormente era comum o sócio ser comunicado

Temas de Direito Empresarial 2021 • 233

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 233 11/12/2020 13:57:41


posteriormente à desconsideração e ter de ingressar com em-
bargos de terceiro). No curso do referido incidente é cabível
pleito de tutela de urgência cautelar, de modo a se realizar a in-
disponibilidade ou até mesmo apreensão de bens do sócio para
assegurar o direito do credor e o resultado da medida, desde
que preenchidos os requisitos legais para tanto (arts. 300 e 301
do Código de Processo Civil). Outra consideração importante
é que, se por acaso o sócio já constar como obrigado no título
em cobrança e não for incluído inicialmente na demanda, este
pode vir a questionar a utilização do instituto da desconside-
ração da personalidade jurídica da sociedade empresária para
lhe atingir por força da preclusão.
O rito incidental previsto no atual Código de Processo
Civil prevalece inclusive para os pleitos de desconsideração
realizados perante justiça especializada, observando-se al-
gumas particularidades em relação à natureza da causa que
envolve o crédito detido contra a sociedade empresária cuja
personalidade jurídica se pretende (em relação à aludida obri-
gação) o afastamento. A esse respeito vale transcrever trecho
do voto do Ministro Luis Felipe Salomão do Superior Tri-
bunal de Justiça, por ocasião do julgamento do mencionado
REsp n 1.729.554/SP16:

“Noutras palavras, os requisitos da desconsideração va-


riarão de acordo com a natureza da causa, devendo ser
apurados nos termos da legislação própria. Segue-se, en-
tretanto, em todos os casos, o rito procedimental proposto
pelo diploma processual.

16
  REsp 1729554/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA,
julgado em 08/05/2018, DJe 06/06/2018.

234 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 234 11/12/2020 13:57:41


‘Frisa-se que tal constatação tem funda-
mento, ainda, na própria redação dos arts.
133, § 1.º e 134, § 4.º, do NCPC, segun-
do os quais, o requerimento de instauração
do incidente deve observar e demonstrar o
preenchimento dos pressupostos legais espe-
cíficos para a desconsideração da persona-
lidade jurídica. É evidente, portanto, que
estes dispositivos estão se referindo às nor-
mas de direito substancial, as quais conti-
nuarão regulando os pressupostos exigidos
em cada caso concreto, seja ele submetido
ao Código Civil, seja ele submetido ao Có-
digo de Defesa do Consumidor ou à Lei
de Crimes Ambientais. (FILHO, Heleno
Ribeiro P. Nunes. A desconsideração de ofí-
cio da personalidade jurídica à luz do inci-
dente processual trazido pelo novo Código
de Processo Civil Brasileiro. Revista de
Processo. vol. 258. ano 41. p.103-122.
São Paulo: Ed. RT, ago. 2016)’.
Na linha desse raciocínio é que se pode afirmar que, nas
causas em que a relação jurídica subjacente ao processo
for cível-empresarial, caso dos autos, a desconsideração da
personalidade da pessoa jurídica será regulada pelo art.
50 do Código Civil, que assim dispõe:
‘Art. 50. Em caso de abuso da personali-
dade jurídica, caracterizado pelo desvio de
finalidade, ou pela confusão patrimonial,
pode o juiz decidir, a requerimento da par-
te, ou do Ministério Público quando lhe
couber intervir no processo, que os efeitos
de certas e determinadas relações de obri-
gações sejam estendidos aos bens particula-
res dos administradores ou sócios da pessoa
jurídica’.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 235

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 235 11/12/2020 13:57:41


Noutro ponto, baseando-se a causa numa relação jurí-
dica de consumo, incidirão as disposições do CDC; nas
de direito ambiental, a norma prevista no art. 4º da Lei
n. 9.605/1998 e, também assim, as causas trabalhistas
e tributárias, se orientarão pelas respectivas legislações
de regência.”

Considerando que no presente trabalho se busca dar um


panorama mais amplo dos riscos práticos que está sujeito o
empresário na condição de ser atingido por dívida de socie-
dade empresária de responsabilidade limitada da qual é sócio,
importante tecer algumas considerações sobre os cenários da
desconsideração da personalidade jurídica frente a dívidas de
natureza trabalhista e tributária, bastante comuns, já que com
relação às de natureza cível e consumerista os critérios para a
desconsideração já foram abordados acima.

3.3 Da desconsideração da personalidade jurídica


da sociedade empresária frente à obrigação de
natureza trabalhista

Antes da reforma trabalhista e da inclusão na CLT do


art. 855-A17, era comum ser realizada a desconsideração da

17
  “Art. 855-A. Aplica-se ao processo do trabalho o incidente de desconsideração
da personalidade jurídica previsto nos arts. 133 a 137 da Lei nº 13.105, de 16 de
março de 2015 – Código de Processo Civil.
§ 1º Da decisão interlocutória que acolher ou rejeitar o incidente:
I – na fase de cognição, não cabe recurso de imediato, na forma do § 1º do art. 893
desta Consolidação;
II – na fase de execução, cabe agravo de petição, independentemente de garantia
do juízo;
III – cabe agravo interno se proferida pelo relator em incidente instaurado origi-
nariamente no tribunal.

236 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 236 11/12/2020 13:57:41


personalidade jurídica, com utilização, por analogia, da dispo-
sição do artigo 28, § 5º, do Código do Consumidor (pela qual
a mera insuficiência financeira da empresa implicaria o dire-
cionamento da execução frente aos seus sócios), sendo, então,
esses sócios citados diretamente para pagar a dívida e não para
se defender do pedido de desconsideração, o que prejudicava
bastante o direito ao contraditório.
Atualmente, comenta Valentin Carrion18: “O incidente
de desconsideração da personalidade jurídica do novo CPC, art.
133, poderá ser utilizado no processo do trabalho, assim o art.
855-A e assim já indicava o TST (IN 39/16, art. 6º). Pode ser
instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando
lhe couber intervir nos processos. É cabível em qualquer fase do
processo, inclusive pode ser pedido na petição inicial”.
Assim, com o acolhimento do procedimento previsto
no Código de Processo Civil, restou, ao menos formalmen-
te, garantido ao sócio o exercício do direito ao contraditório,
permitindo que ele possa se defender da causa apontada para
a desconsideração. Tal ganha importância em razão das pe-
culiaridades da relação societária que por vezes precisam ser
ressaltadas antes do sócio ter seus ativos atingidos pela descon-
sideração da personalidade jurídica da sociedade.
Outrossim, vale se atentar também que por muitas vezes
a sociedade da qual o sócio faz parte figura na ação trabalhista

§ 2º A instauração do incidente suspenderá o processo, sem prejuízo de conces-


são da tutela de urgência de natureza cautelar de que trata o art. 301 da Lei nº
13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).”
18
  CARRION, Valentin. Comentários à consolidação das leis trabalhistas: legisla-
ção complementar, jurisprudência. Valentin Carrion; atualizado por Eduardo Car-
rion. 43.ª edição, São Paulo: Saraiva, 2019, p. 766.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 237

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 237 11/12/2020 13:57:41


como devedora subsidiária, enquanto tomadora de serviço
frente à outra sociedade prestadora, da qual o trabalhador é
funcionário. E, não obstante até que se discuta a possibilidade
de se exigir que o direcionamento da execução contra a toma-
dora de serviço (devedora subsidiária) se dê somente depois
de esgotadas as tentativas de promover a execução contra a
prestadora de serviço (devedora principal), inclusive median-
te desconsideração da sua personalidade jurídica, a orientação
mais recente do Tribunal Superior do Trabalho19 é de que o
“benefício de ordem, na hipótese de responsabilização subsidiária,
não enseja a necessidade de frustrada a execução contra a forne-
cedora de mão de obra, desconsiderar-se a personalidade jurídica
desta última para direcionar a execução contra os sócios, para só
então executar o devedor subsidiário”.
De todo modo, não obstante os avanços legislativos pro-
cessuais, na prática, tem sido defendida alguma incompatibi-
lidade de se seguir estritamente o procedimento previsto no
Código de Processo Civil, haja vista existir no processo do tra-
balho, por exemplo, os princípios da celeridade e do impulso
oficial, com a que a suspensão da execução trabalhista enquan-
to se discute a desconsideração resulta em conflito, inclusive
por força do art. 6º da Instrução Normativa nº 39 do Tribunal
Superior do Trabalho20. As decisões mais recentes têm sido no
sentido da aceitação do incidente de desconsideração nos ter-

19
  ARR nº 7122320125090671, Relator: Walmir Oliveira da Costa, Data de Jul-
gamento: 27/02/2019, 1ª Turma do TST, Data de Publicação: DEJT 01/03/2019.
20
  “Art. 6°. Aplica-se ao Processo do Trabalho o incidente de desconsideração da
personalidade jurídica regulado no Código de Processo Civil (arts. 133 a 137), asse-
gurada a iniciativa também do juiz do trabalho na fase de execução (CLT, art. 878).”

238 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 238 11/12/2020 13:57:41


mos da novel lei processual civil, assegurando-se, entretanto, a
iniciativa do Juiz do Trabalho:

“INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PER-


SONALIDADE JURÍDICA – APLICAÇÃO NO
PROCESSO DO TRABALHO. O incidente de des-
consideração da personalidade jurídica previsto nos
arts. 133 a 137 do CPC, é aplicável no processo do
trabalho, assegurada a iniciativa do Juiz do Trabalho
(artigo 878 CLT). Incidência do artigo 6º da Instru-
ção Normativa 39/2016 do Colendo TST”. (AP nº
01559201303903002 0001559-12.2013.5.03.0039,
Rel. Jales Valadão Cardoso, 2ª Turma do TRT da 3ª
Região, publicado em 02.03.2018)

No que tange aos requisitos a serem considerados para a


desconsideração da personalidade jurídica, de modo a alcan-
çar o sócio da reclamada, a posição dos Tribunais do Trabalho
em muitos casos, em especial envolvendo litígios anteriores
à reforma da legislação trabalhista, é ainda no sentido de ser
adotada a “teoria menor”, face sua aproximação ideológica e
principiológica com o Direito do Consumidor do qual ema-
na, bem como, em razão da presunção de hipossuficiência do
trabalhador, tal qual do consumidor. Desse modo, muitas das
decisões para a desconsideração da personalidade jurídica se-
guem tomando por base a verificação de mero obstáculo para
a satisfação do crédito, na esteira da previsão do §5º, do art.
28 do Código Consumerista.
Com a entrada em vigor da reforma da lei trabalhista
(bastante recente) pode vir a se perceber uma adequação da ju-
risprudência. Não obstante, considerando o caráter alimentar

Temas de Direito Empresarial 2021 • 239

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 239 11/12/2020 13:57:41


das verbas trabalhistas, o que se vê mais recentemente, são de-
cisões que, sem entrar na análise de insuficiência de ativos ou
dificuldade para satisfação do crédito, concedem a desconside-
ração por entenderem que o não recolhimento correto das ver-
bas salariais do empregado configura ilícito contratual a justi-
ficar a remoção do véu da personalidade jurídica da devedora.

“AGRAVO DE PETIÇÃO. INSTAURAÇÃO DO IN-


CIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DE PERSO-
NALIDADE JURÍDICA. É possível a desconsideração
da personalidade jurídica tendo sido verificada a existên-
cia de abuso da personalidade jurídica, no que incorre-
ram os sócios da executada principal no momento em que
deixaram de efetuar o pagamento de verbas trabalhistas
de caráter alimentar. Agravo desprovido”. (TRT da 4ª
Região, Seção Especializada em Execução, 0020988-
67.2014.5.04.0017 AP, em 17/08/2020, Desembarga-
dora Simone Maria Nunes)

3.4 Da desconsideração da personalidade jurídica da


sociedade empresária frente à obrigação de
natureza tributária

As dívidas da sociedade empresária de caráter tributá-


rio também são motivo de preocupação aos sócios, haja vista
os inúmeros mecanismos que o “Fisco” vem se valendo para
cobrar seus créditos frente a eles. Em verdade, pode ser dito
que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica
na grande maioria das vezes é despiciendo à Fazenda Pública,
para que essa consiga atingir os ativos do sócio para satisfa-
zer a dívida tributária da sociedade empresária. Há inclusive

240 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 240 11/12/2020 13:57:41


julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo21 defendendo a
sua inaplicabilidade, o que também foi reconhecido em alguns
julgados do Superior Tribunal de Justiça, mais especificamente
da 2ª Turma22, com ampliação das hipóteses admitidas para
redirecionamento da execução fiscal ao sócio sem necessidade
do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
Portanto, uma das práticas mais adotadas pelo “Fisco”
é o redirecionamento direto (sem necessidade de instauração
do incidente de desconsideração da personalidade jurídica)
da execução fiscal em face do sócio, com base nos arts. 134
e 135 do Código Tributário Nacional23, em especial quando

21
 Agravo de Instrumento nº 2246501-33.2019.8.26.0000; Rel. Des. Rezende
Silveira; 15ª Câmara de Direito Público do TJSP; data do julgamento: 14/11/2019.
22
  REsp nº 1.786.311/ PR, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TUR-
MA, julgado em 09/05/2019, DJe 14/05/2019.
23
  “Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obri-
gação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos
em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:
I – os pais, pelos tributos devidos por seus filhos menores;
II – os tutores e curadores, pelos tributos devidos por seus tutelados ou curate-
lados;
III – os administradores de bens de terceiros, pelos tributos devidos por estes;
IV – o inventariante, pelos tributos devidos pelo espólio;
V – o síndico e o comissário, pelos tributos devidos pela massa falida ou pelo
concordatário;
VI – os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício, pelos tributos de-
vidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício;
VII – os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas.
Parágrafo único. O disposto neste artigo só se aplica, em matéria de penalidades,
às de caráter moratório”.

“Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obri-


gações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou in-
fração de lei, contrato social ou estatutos:
I – as pessoas referidas no artigo anterior;
II – os mandatários, prepostos e empregados;
III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado”.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 241

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 241 11/12/2020 13:57:41


ele consta como corresponsável na CDA (certidão de dívida
ativa) que goza de presunção de legitimidade. Na realidade,
atualmente o “Fisco” vem inclusive se valendo de ação cautelar
prévia à propositura de execução fiscal, pela qual tem conse-
guido atingir o patrimônio dos sócios em tutela provisória e
quando há apenas indícios de dilapidação dos ativos da socie-
dade empresária.
O incidente de desconsideração da personalidade jurídi-
ca em sede de dívida tributária somente é utilizado quando
o redirecionamento não decorre, naturalmente, das previsões
expressas na lei. Esse foi o entendimento recente do Superior
Tribunal de Justiça no AREsp 1173201/SC24, quando o “Fis-
co” buscou o redirecionamento da dívida tributária a terceiro
(pessoa jurídica que integrava o mesmo grupo econômico da
sociedade empresária originalmente executada) que não estava
indicado como corresponsável na CDA, sequer participando
também do processo administrativo que a formalizou. Con-
siderando que o fundamento utilizado para o direcionamen-

24
  “(...) 2. A atribuição, por lei, de responsabilidade tributária pessoal a terceiros,
como no caso dos sócios-gerentes, autoriza o pedido de redirecionamento de
execução fiscal ajuizada contra a sociedade empresária inadimplente, sendo des-
necessário o incidente de desconsideração da personalidade jurídica estabelecido
pelo art. 134 do CPC/2015. 3. Hipótese em que o TRF da 4ª Região decidiu pela
desnecessidade do incidente de desconsideração, com menção aos arts. 134 e 135
do CTN, inaplicáveis ao caso, e sem aferir a atribuição de responsabilidade pela
legislação invocada pela Fazenda Nacional, que requereu a desconsideração da
personalidade da pessoa jurídica para alcançar outra, integrante do mesmo grupo
econômico. 4. Necessidade de cassação do acórdão recorrido para que o Tribunal
Regional Federal julgue novamente o agravo de instrumento, com atenção aos
argumentos invocados pela Fazenda Nacional e à natureza e à origem do débito
cobrado. 5. Agravo conhecido. Recurso especial provido. (AREsp 1.173.201/SC,
Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/02/2019,
DJe 01/03/2019)

242 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 242 11/12/2020 13:57:41


to não advinha das hipóteses legais dos arts. 134 e 135 do
Código Tributário Nacional, mas sim de alegação de respon-
sabilidade solidária fulcrada no art. 124 do mesmo Código
Tributário Nacional, o qual não reflete hipótese de redirecio-
namento direto, restou entendido pelo Superior Tribunal de
Justiça que seria obrigatório, nessa hipótese, a instauração do
procedimento de desconsideração da personalidade jurídica
para fins de comprovação do abuso de personalidade, caracte-
rizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, com
base no art. 50 do Código Civil.
Fato é que a utilização da desconsideração da personalida-
de jurídica em sede de execução fiscal ainda está sendo discu-
tida pelos tribunais pátrios, cabendo destacar a instauração de
Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Tribunal
Regional Federal da 3ª Região (tramitando sob o nº 0017610-
97.2016.4.03.0000), de modo a consolidar e uniformizar o en-
tendimento sobre a matéria a ser aplicada nos demais processos
executivos fiscais submetidos a sua jurisdição.
A tendência a nível nacional, pelo que se observa, é de
permitir o redirecionamento direto da dívida ao sócio dentro
das hipóteses do arts. 134 e 135 do Código Tributário Na-
cional, utilizando-se do incidente de desconsideração da per-
sonalidade em situações outras, cabendo, para esses casos, a
comprovação dos requisitos do art. 50 do nosso Código Civil.

3.5 Da desconsideração da personalidade jurídica em


cenário de Recuperação Judicial e de Falência

Conforme adiantado acima, o instituto da desconsidera-


ção da personalidade jurídica também pode ser utilizado em

Temas de Direito Empresarial 2021 • 243

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 243 11/12/2020 13:57:41


sede de processo recuperatório e falimentar, haja vista que há
legitimidade inclusive do Ministério Público e do Adminis-
trador Judicial para tanto. Os requisitos são os previstos no
art. 50 do Código Civil já explicitados acima, e a medida faz
sentido quando visar a atrair ativos para auxiliarem no desen-
volvimento da atividade econômica da recuperanda, ou para
auxiliar no pagamento do passivo da falida.
Todavia, em cenário de recuperação judicial ou falência,
é mais comum ver os credores postulando a desconsideração
em sede das suas ações individuais, com o que se discute, por
vezes, conflito de competência a esse respeito, entre o juízo da
ação singular e o juízo universal do processo de recuperação
judicial ou falência. O entendimento jurisprudencial25 é de
que a competência é do juízo individual da ação movida pelo
credor, quando se trata de desconsideração da personalidade
jurídica postulada pelo mesmo para atingir bens de terceiros
(que não os da sociedade submetidos a plano de recuperação
ou concurso falimentar), sendo que a consequência, em vindo
ele a saldar seu crédito em face do direcionamento ao sócio,
é a sua exclusão do quadro geral de credores da sociedade em
recuperação judicial ou falência.

25
 “(...) 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, “não configura conflito
positivo de competência a apreensão, pela Justiça Especializada, por aplicação
da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine), de
bens de sócio da sociedade em recuperação ou de outra sociedade do mesmo
grupo econômico, porquanto essas medidas não implicam a constrição de bens
vinculados ao cumprimento do plano de reorganização da sociedade empresária,
tampouco interferem em atos de competência do juízo da recuperação” (AgRg
no CC 121.487/MT, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em
27/06/2012, DJe 01/08/2012). (...)” (AgInt nos EDcl no CC 143.924/MT, Rel.
Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em
25/10/2017, DJe 31/10/2017)

244 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 244 11/12/2020 13:57:41


Por fim, cabe explicitar que, nas palavras do Juiz Marcelo
Barbosa Sacramone26, “o abuso da utilização da personalidade
jurídica, embora possa gerar sua desconsideração no caso concre-
to, apenas provoca a responsabilização secundária do sócio e do
administrador pelas obrigações contraídas pela pessoa jurídica. A
desconsideração permite apenas a extensão da responsabilidade
por certas e determinadas relações de obrigações aos bens parti-
culares dos administradores ou dos sócios que praticaram o abu-
so, participaram ou se beneficiaram deste”. Não é por meio da
constatação de prática de ilícito que levou a desconsideração
da personalidade jurídica que a falência se estende aos sócios
de responsabilidade limitada. Há por vezes a ferramenta da
extensão dos efeitos da falência em face de outras sociedades
do mesmo grupo econômico, seja sócia ou não da falida, mas
a falência será da pessoa jurídica, não do sócio pessoa física.
Este, como visto, pode apenas vir a ter de responder com seu
patrimônio pessoal pelas obrigações da sociedade empresária,
ainda que de responsabilidade limitada, inclusive por força de
ação própria contra ele, como será tratado abaixo.

4 DA AÇÃO PRÓPRIA DE RESPONSABILIZAÇÃO


CIVIL DO SÓCIO

A utilização de ação própria para fins de responsabilização


civil do sócio pelas dívidas sociais, em cenários de insolvência
de sociedade empresária limitada, costuma ocorrer no âmbito

26
  SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários completos à Lei de Recupe-
ração de Empresas e Falências, Vol. III. Coord. COSTA, Daniel Cárnio. Ed. Juruá,
2015, p. 205.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 245

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 245 11/12/2020 13:57:41


do processo falimentar. Para tanto, a Lei de Falências e Re-
cuperação Judicial, aprimorando disposição da lei anterior27,
trouxe no seu art. 82, a possibilidade de o sócio de sociedade
empresária de responsabilidade limitada vir a ser demandado
em sede de ação ordinária proposta perante o juízo falimentar,
independentemente da realização do ativo social ou prova de
sua insuficiência para fazer frente ao passivo reclamado:

“Art. 82. A responsabilidade pessoal dos sócios de respon-


sabilidade limitada, dos controladores e dos administra-
dores da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis,
será apurada no próprio juízo da falência, independen-
temente da realização do ativo e da prova da sua insufi-
ciência para cobrir o passivo, observado o procedimento
ordinário previsto no Código de Processo Civil.
§ 1º Prescreverá em 2 (dois) anos, contados do trânsito
em julgado da sentença de encerramento da falência, a
ação de responsabilização prevista no caput deste artigo.
§ 2º O juiz poderá, de ofício ou mediante requerimento
das partes interessadas, ordenar a indisponibilidade de
bens particulares dos réus, em quantidade compatível
com o dano provocado, até o julgamento da ação de
responsabilização”.

Dita medida, vale salientar, é justamente a mesma previs-


ta no direito societário para responsabilizar o administrador

27
  Art. 6º do Decreto Lei nº 7.661/45: “A responsabilidade solidária dos diretores
das sociedades anônimas e dos gerentes das sociedades por cotas de responsa-
bilidade limitada, estabelecida nas respectivas leis; a dos sócios comanditários
(Código Comercial, art. 314), e a do sócio oculto (Código Comercial, art. 305),
serão apuradas, e tornar-se-ão efetivas, mediante processo ordinário, no juízo da
falência, aplicando-se ao caso o disposto no art. 50, § 1°.
Parágrafo único. O juiz, a requerimento do síndico, pode ordenar o sequestro de
bens que bastem para efetivar a responsabilidade”. (revogado)

246 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 246 11/12/2020 13:57:41


(sócio ou não), que tenha praticado ato ilícito (legal ou con-
tratual), atuando contra interesses sociais e em prejuízo aos
credores da sociedade. Tratando-se de responsabilidade subjeti-
va, caberá sempre a prova da conduta que seria ilícita e apon-
tada como lesiva aos interesses dos credores (sendo no caso,
também causa da insolvência).
Como bem explicita Carlos Abrão28, “não se trata de res-
ponsabilidade derivada da desestimação da personalidade jurídi-
ca ou de matéria que pudesse ensejar conotação objetiva, mas sim
de se exteriorizar procedimento com o fim específico de se buscar
dos administradores, gerentes e controladores, o aspecto culposo
dos atos ruinosos ou prejudiciais que impliquem o ressarcimento,
entrando o numerário para o ativo da massa falida”.
A título exemplificativo, em caso de sociedade por quotas
de responsabilidade limitada em processo falimentar, o sócio
que já integralizou o capital pode vir a ser chamado a res-
ponder pessoalmente quando participar de deliberação social
infringente da lei ou do contrato social (art. 1.080 do Código
Civil29), ou ainda, quando administrador, descumprir o de-
ver de diligência previsto no art. 1.011 do Código Civil30, de
modo a prejudicar a sociedade.
Já nos casos de sociedade por ações em regime falimentar,
o acionista controlador também está sujeito à responsabilização

28
  ABRÃO, Carlos Henrique. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e
Falência / coordenadores Carlos Henrique Abrão e Paulo F. C. Salles de Toledo. 6ª
ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva 2016, p. 327.
29
  “Art. 1.080. As deliberações infringentes do contrato ou da lei tornam ilimitada
a responsabilidade dos que expressamente as aprovaram.”
30
  “Art. 1.011. O administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas fun-
ções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar
na administração de seus próprios negócios”.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 247

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 247 11/12/2020 13:57:41


pessoal, quando atuar com abuso no exercício do poder de
controle (art. 117 da Lei das S/A31).
Vale ressaltar, aqui deve ser demonstrado que o sócio ou
acionista detinha poderes de gestão e participou do ato ilíci-
to suscitado como lesivo para ser imputado responsável pelo
dano, haja vista que essa responsabilização é excepcional, sen-
do que o sócio ou acionista que atua com zelo e diligência na
condução dos negócios sociais, sem infração à norma ou ainda
ao contrato social ou estatuto, não pode vir a responder pes-

31
  “Art. 117. O acionista controlador responde pelos danos causados por atos pra-
ticados com abuso de poder.
§ 1º São modalidades de exercício abusivo de poder:
a) orientar a companhia para fim estranho ao objeto social ou lesivo ao interes-
se nacional, ou levá-la a favorecer outra sociedade, brasileira ou estrangeira, em
prejuízo da participação dos acionistas minoritários nos lucros ou no acervo da
companhia, ou da economia nacional;
b) promover a liquidação de companhia próspera, ou a transformação, incorpo-
ração, fusão ou cisão da companhia, com o fim de obter, para si ou para outrem,
vantagem indevida, em prejuízo dos demais acionistas, dos que trabalham na em-
presa ou dos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia;
c) promover alteração estatutária, emissão de valores mobiliários ou adoção de
políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse da companhia e visem
a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos que trabalham na empresa ou aos
investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia;
d) eleger administrador ou fiscal que sabe inapto, moral ou tecnicamente;
e) induzir, ou tentar induzir, administrador ou fiscal a praticar ato ilegal, ou, des-
cumprindo seus deveres definidos nesta Lei e no estatuto, promover, contra o in-
teresse da companhia, sua ratificação pela assembleia geral;
f) contratar com a companhia, diretamente ou através de outrem, ou de socieda-
de na qual tenha interesse, em condições de favorecimento ou não equitativas;
g) aprovar ou fazer aprovar contas irregulares de administradores, por favoreci-
mento pessoal, ou deixar de apurar denúncia que saiba ou devesse saber proce-
dente, ou que justifique fundada suspeita de irregularidade.
h) subscrever ações, para os fins do disposto no art. 170, com a realização em
bens estranhos ao objeto social da companhia.
§ 2º No caso da alínea e do § 1º, o administrador ou fiscal que praticar o ato ilegal
responde solidariamente com o acionista controlador.
§ 3º O acionista controlador que exerce cargo de administrador ou fiscal tem tam-
bém os deveres e responsabilidades próprios do cargo.”

248 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 248 11/12/2020 13:57:41


soalmente com seu patrimônio em face de passivo gerado pela
sociedade perante a qual tem autonomia patrimonial (obriga-
ção é de meio, não de resultado).
Importante também ser observado que mesmo não mais
integrando o quadro social da falida, o sócio pode vir a ser
demandado caso o ato apontado como ilícito e fraudulento
tenha sido praticado enquanto ainda figurava como sócio ou
acionista.
A ação de responsabilidade civil do sócio para responder
pelas obrigações sociais no curso do processo falimentar tem
como proponentes possíveis tanto os credores interessados,
como o administrador judicial da Massa Falida e até o Minis-
tério Público.
É bastante comum que (com base no §2º, do art. 82
da Lei nº 11.101/05) no ajuizamento da referida ação seja
postulada a indisponibilidade de bens pessoais dos sócios (ou
administradores), em quantidade compatível com o dano
reclamado e até o julgamento da ação, sendo, entretanto,
possível ser discutida quando se evidenciar longa demora
na tramitação processual e ainda houver notória fragilidade
da alegação de responsabilidade do sócio. A eventual
responsabilização civil do sócio sempre será no limite de seu
patrimônio.
Cabe suscitar, também, que há prazo prescricional de
2 anos a contar do trânsito em julgado da sentença que de-
cretou o encerramento da falência (§ 1º, do art. 82 da Lei
nº 11.101/05) para a propositura da referida ação de respon-
sabilidade.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 249

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 249 11/12/2020 13:57:41


5 CONCLUSÃO

Conforme explanado acima, ainda que empreendendo


sob o manto de sociedades que conferem o benefício da limi-
tação da responsabilidade aos sócios, o empresário fica sujeito
ao risco de ver seu patrimônio pessoal ser chamado a respon-
der por dívidas da sociedade empresária da qual é titular de
participação social.
Para obrigações de determinadas naturezas, como con-
sumerista, trabalhista e fiscal, sendo as duas últimas bastante
comuns às empresas, é difícil ao sócio se resguardar de uma
eventual responsabilização, haja vista que, na maioria dos ca-
sos, o fator preponderante para o direcionamento ao sócio é a
incapacidade patrimonial da sociedade de saldá-las, o que, em
cenários de crise econômica, por força de uma conjuntura de
fatores de mercado, foge ao controle total do gestor a manu-
tenção da solvabilidade social. Ainda que existam requisitos
regulando a necessidade de determinadas práticas apontadas
como ilícitas à lei ou ao contrato social e estatuto, que confi-
gurem uso abusivo da personalidade jurídica, para o direcio-
namento da obrigação ao sócio, na prática se percebe que o
elemento preponderante é a situação de insolvência, declara-
da, ou não, da sociedade, enquanto devedora da obrigação.
De todo o modo, face às hipóteses de o sócio vir a respon-
der pelas obrigações da sociedade tratadas acima, cabe sempre
um alerta para se buscar proteção dentro das práticas de boa
governança e regular atuação à frente da empresa. Como vis-
to, em geral a responsabilização está intrinsicamente ligada a

250 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 250 11/12/2020 13:57:41


contemporaneidade da condição de sócio em relação à dívida
contraída pela sociedade, bem como de que o mesmo detinha
poderes de gestão ou ainda participou de ato ou deliberação
considerada ilícita e que motivou o direcionamento.
Portanto, mostra-se importante a atenção ao conteúdo
das deliberações sociais formalizadas em atas, as práticas junto
ao caixa e ativos da empresa (o que pode configurar confu-
são patrimonial), bem como em relação à formalização das
obrigações contraídas em nome da sociedade, inclusive no que
tange ao passivo tributário, muitas vezes objeto de parcela-
mento com confissão de dívida. Cabe ao sócio da sociedade
empresária limitada que pretende se proteger de pleitos de re-
direcionamento de obrigações sociais um zelo maior sob esse
aspecto, em especial durante o período que exercer cargos de
gestão, ou ainda em deliberações que importem movimenta-
ções de ativos que possam reduzir a solvabilidade da empresa.
A esse respeito, importante frisar que muito se discute
acerca do limite temporal da responsabilidade do sócio reti-
rante da sociedade, que nos termos do art. 1.032 do Código
Civil32, é de até 2 (dois) anos contados da averbação do instru-
mento de alteração contratual.
Por fim, cabe salientar que há claramente um movimento
atual legislativo visando a trazer mais segurança ao empreen-
dedor. Acredita-se que com o advento da Lei nº 13.874/2019,
que instituiu a Declaração de Direitos da Liberdade

32
  “Art. 1.032. A retirada, exclusão ou morte do sócio, não o exime, ou a seus
herdeiros, da responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até dois anos
após averbada a resolução da sociedade; nem nos dois primeiros casos, pelas
posteriores e em igual prazo, enquanto não se requerer a averbação”.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 251

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 251 11/12/2020 13:57:41


Econômica, positivando no Código Civil o princípio da auto-
nomia patrimonial entre sócio e sociedade, somado à reforma
da lei trabalhista, a jurisprudência possa ser construída sob um
cenário de estimular o empreendedorismo, permitindo que o
empresário assuma riscos com maior segurança jurídica em
relação à proteção de seus ativos pessoais.
De outro lado, também cumpre salientar que atualmente
cada vez se verificam ferramentas jurídicas mais sofisticadas
para rastreamento de ativos (asset tracing) tanto da sociedade
como dos sócios, havendo empresas especializadas nesse esco-
po de atuação, sem falar nas próprias evoluções dos sistemas
do Poder Judiciário (como o Renajud33 e recente Sisbajud34),
e da própria Receita Federal, que cada vez mais ampliam o
banco de dados utilizado para localização de ativos vinculados
ao CNPJ ou CPF do devedor.
Operações com offshore companies igualmente têm sido
visadas quando identificado que praticam atos ou titularizam
ativos estranhos as suas atividades empresariais.

33
  “O Renajud é um sistema on-line de restrição judicial de veículos criado pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que interliga o Judiciário ao Departamento
Nacional de Trânsito (Denatran).
A ferramenta eletrônica permite consultas e envio, em tempo real, à base de da-
dos do Registro Nacional de Veículos Automotores (Renavam), de ordens judi-
ciais de restrições de veículos — inclusive registro de penhora — de pessoas con-
denadas em ações judiciais”. (fonte https://www.cnj.jus.br/sistemas/renajud-4/)
34
  “(...) o Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário (SisbaJud), nova pla-
taforma eletrônica para rastreamento e bloqueio de ativos de devedores com
dívidas reconhecidas pela Justiça. Com novas funcionalidades para dar maior ce-
leridade no cumprimento das decisões judiciais, o SisbaJud foi desenvolvido pelo
CNJ em parceria com o Banco Central e a Procuradoria Geral da Fazenda Nacio-
nal (PGFN) e irá substituir o BacenJud, em operação desde 2005. (fonte https://
www.cnj.jus.br/sisbajud-melhorar-efetividade-da-execucao-judicial/)

252 • Silveiro Advogados

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 252 11/12/2020 13:57:42


A verdade é que a informatização e evolução dos sistemas
on-line de busca estão dia após dia mais abrangentes, sendo
isso um caminho inexorável.
Considerando todos os fatores acima, somado ao fato de
que os mercados estão cada vez mais sensíveis a movimentos
globais imprevisíveis, trazendo crises econômicas que afetam a
capacidade das empresas de fazer frente às suas obrigações, cabe
ao sócio que pretende ver preponderar o princípio da autono-
mia patrimonial se atentar às situações onde essa regra é descon-
siderada, como se buscou explicitar neste trabalho. Ainda que
em um ambiente onde é natural a assunção de riscos e a tomada
de decisões que impliquem endividamento, não apenas para
crescimento da empresa, mas por vezes essenciais à continuida-
de da empresa, nunca é demais observar, dentro do possível, a
máxima de que é melhor previnir do que remediar.

Temas de Direito Empresarial 2021 • 253

Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 253 11/12/2020 13:57:42


Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 254 11/12/2020 13:57:42
Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 255 11/12/2020 13:57:42
Miolo_Temas-Direito-Empresarial-2020.indd 256 11/12/2020 13:57:42

Você também pode gostar