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Stuart B.

Schwart:
EDlSÜc
Edifora <(• Univor*[d«ri* do SagrmJo Coração

Coordenação

Assessoria
Editorial
I r m ã J a c i n t a Tu r o l o G a r c i a

Administrativa
I r m ã Teresa A n a Solialii
Escravos,
roceiros , e n
Assessoria Comercial
J r m ã Á u r e a d e Almcitla N a s c i t n c n i o rebeldes
Coordenação da Coleção História
L u i z E u g ê n i o Véscio

Tradução de
Jussara Simões

V
listravas, roceiros t reheUtes

p a r a d o s para r e c o n h e c e r a p e n e t r a ç ã o e a p e r n i c i o s i d a d e d o capitulo 5
r e g i m e escravagista e s u a s c o n s e q ü ê n c i a s sobre t o d o s os
atingidos p o r ele. A e s c r a v i d ã o foi u m sistema, e n ã o u m REPENSANDO PALMARES:
S RESISTÊNCIA ESCRAVA NA
simples c o n j u n t o d e r e l a ç õ e s e c o n ô m i c a s . N ã o é d e sur-
p r e e n d e r a descoberta d e q u e obrigava a p a d r õ e s d e p e n s a -
m e n t o s e a ç ã o c o m r e l a ç ã o aos escravos da m e s m a m a n e i r a COLÔNIA
q u e fez c o m a q u e l e s c u j a s origens n ã o traziam tal estigma.

O Brasil colonial, q u e t i n h a c o m o base o t r a b a l h o for-


ç a d o d e índios e a f r i c a n o s via-se c o n t i n u a m e n t e a m e a ç a d o
p o r várias f o r m a s de resistência à instituição f u n d a m e n t a l da
escravidão. 1 Nas Américas, o n d e q u e r q u e a escravidão fosse
instituição básica, a resistência d ó s escravos, o m e d o d e re-
beliões d e e s c r a v o s e o p r o b l e m a d o s escravos fugitivos
a t o r m e n t a v a os colonos e os a d m i n i s t r a d o r e s coloniais. Essa
resistência assumia i n ú m e r a s f o r n i a s e era expressa d e diver-
sas m a n e i r a s . A recalcitrância Cotidiana, a l e n t i d ã o n o r i t m o
d e t r a b a l h o e a s a b o t a g e m e r a m , p r o v a v e l m e n t e , as f o r m a s
m a i s c o m u n s de resistência, .ao passo q u e a a u t o d e s t r u i ç ã o
p o r m e i o d e suicídio, i n f a n t i c í d i o o u tentativas m a n i f e s t a s d e
v i n g a n ç a e r a m as m a i s e x t r e m a s n o s e n t i d o pessoal. No Bra-
sil, os e x e m p l o s mais drásticos d e a t o s coletivos f o r a m as
i n ú m e r a s rebeliões d e escravos ocorridas n o início d o século
XIX n a Bahia, p o r é m rebeliões c o m o a dos males, e m 1835,
f o r a m episódios v e r d a d e i r a m e n t e extraordinários. J A f o r m a

1. tísie capítulo foi publicado em português com o título de


"Mocambos, Quilombos e Palmares: A Resistência escrava
no Brasil colonial"; Estudos Econômicos 17, p. 61-88, 1987.
Contém partes de meu artigo anterior "The Mocambo: Sla-
ve Resistance in Colonial Bahia", Journal of Social History ,3
p. 313-33 summer, J 970,
2. A série de rebeliões de escravos na Bailia eaire 1807 e 1835
é ésiutlaün por João José Reis em "Sl.ivc resistance in Brazil,
Bahia, 1808-1835" l.uso-Brazilian Review, v. 25, n. 1, p. 111-
44, summer, 1988. Ver também Stuart B. Schwartz, Sugar

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/:"jcr<m'i, iviWm f rvhehh's KL'jii'iis.imiu raiitwm-s:
Kcsislínría escrava im Colônia

mais c o m u m de resistência escrava no Brasil colonial era a


ce u m a série d e respostas estereotípicas. Por q u e os escravos
fuga e u m dos problemas característicos do regime escravis-
f u g i a m ? Para escapar da escravidão. O n d e se localizavam as
ta brasileiro era a existência c o n t í n u a e generalizada d e co-
c o m u n i d a d e s d e fugitivos? Longe da possível retaliação d o s
m u n i d a d e s de fugitivos, q u e recebiam diversas d e n o m i n a -
brancos. Por q u e os fugitivos a t a c a v a m a sociedade d o s
ções: m o c a m b o s , ladeiras, m a g o t e s ou quilombos.
brancos? Para libertar os c o m p a n h e i r o s e p o r q u e d e t e s t a -
H o u v e u m a época em q u e a historiografia brasileira v a m a escravidão. Havia solidariedade d e ciasse e n t r e os es-
ignorava esse aspecto do passado d o país; c o n t u d o , trabalhos cravos? N a t u r a l m e n t e . Que espécie d e sociedades os fugiti-
realizados d u r a n t e os últimos c i n q ü e n t a anos, especialmen- vos criavam? Mais ò u m e n o s igualitárias, c o m base nas tra-
te sobre a g r a n d e c o m u n i d a d e d e fugitivos de Palmares, m u - dições africanas. N o t a v e l m e n t e a u s e n t e dos e s t u d o s sobre o s
d a r a m b a s t a n t e essa situação.' Não obstante, e m muitos as- q u i l o m b o s brasileiros está o interesse p o r a l g u n s dos p r o b l e -
pectos, tem-se tratado o tema da fuga de escravos de m a n e i - m a s q u e a b s o r v e m os estudiosos desse f e n ô m e n o e m o u t r a s
ra e n g a n o s a m e n t e simples e as análises q u a s e s e m p r e se ba- sociedades escravocratas americanas, o u provas concretas,
seiam n u m c o n j u n t o limitado de questões, às quais se f o r n e - q u e esclareceriam a l g u m a s das q u e s t õ e s m a i s difíceis s o b r e
solidariedades étnicas, metas políticas e estratégias, b e m
c o m o a diversidade d e formas, p o r e x e m p l o , n a historiogra-
Plantations in lhe Formation of Brazilian Society (New York, fia brasileira r a r a m e n t e se faz distinção e n t r e a petit marrom-
1985), em especial o Capítulo 17:"Important Occasions: The ge d e escravos, q u e se a u s e n t a v a m p o r curtos períodos, e
War to End Bahian SIavery*: p. 468-88. Sobre os males, ver aqueles q u e f u g i a m para escapar d e f i n i t i v a m e n t e da escravi-
João José Reis, Rebelião escrava no Brasil (São Paulo, 1986).
dão. 4 As i n t e n ç õ e s dos foragidos têm sido o b j e t o de e s t u d o s
3. Há um panorama geral do assunto em Clóvis Moura, Re- na Jamaica e n o Haiti, porém n ã o n o Brasil, c o m exceção d o
beliões da senzala, 3. ed, (São Paulo, 1981), os quilombos e a
caso de Palmares. Até q u e p o n t o os escravos foragidos o r g a -
rebelião negra, 2. ed. (São Paulo, 1981). Ver também José
Alipio Goulart, Da fuga ao suicídio: aspectos de rebeldia dos nizavam u m a resistência coin ó objetivo consciente de d e s -
escravos do Brasil (Rio de Janeiro, 1972). A historiografia truir, ou pelo m e n o s agredir, a sociedade escravocrata, e m
regional dos quilombos tem evoluído consideravelmente.
Sobre o Pará, por exemplo, há Vicente Salles, 0 Negro no
Pará (Rio de Janeiro 1971); sobre o Rio Grande do Sul, Má-
rio José Mncsiri Filho, Quilombos e quilombolas em terrasgaú- 4. A diferença enire a resistência dos mocambos e a "petite
chas' (Porto Alegre, 1979); sobre Minas Gerais, Waldemar de marronage" foi reconhecida no Brasil. Hm dezembro d e
Almeida Barbosa, Negros e quilombos em Minas Gerais (Belo 1698, em reação a pedido da prefeitura municipal de Olin-
Horizonte, 1972); sobre a Bahia, além do artigo de Schwartz da, a Coroa ordenou que.ps escravos qüé .fugissem dè u m
já mencionado, há muito material em Pedro Tomás Pedrei- engenho para outro não fossem tratados como os que f u -
ra, Os quilombos brasileiros (Salvador, 1973). Muitos outros giam para Palmares., (ANU, Conselho Ultramarino, cod.
trabalhos ijuc tratam da escravidão em geral, no nível local 257, [. 1). Ver a discussão de Gabriel Debien em "Le marro-
* ou regional, contêm informações sobre os quilombos. Ver, nage aux Antilles Françaises ãuxviiie siécíe", Caribbean Stu-
por exemplo, Ariosvaldo Figueiredo, 0 negro e a violência do dies 6:3 ( 1966), 3-44, da quai umà parte foi publicada em Ri-
branco (Rio de Janeiro, 1977) sobre Sergipe. As obras clássi- chard Price, Maroón Societies (New York, 15)73), p. 107-34; e
cas sobre Palmares continuam sendo Edison Carneiro, O qui- o clássico relato de Yvan Debbasch, "Le marronage: essai s u r
lombo dos Palmares (São Paulo, 1947) e M. M. de Freitas, 0 la désertion de l'esclaveantillais", L'Année Sociologique
reino negro de Palmares. 2 v. (Rio de Janeiro, 1954), aos quais (1961), p. 1-112; (.1962), p. 117-92J Gerald W. [Michael]
se deve agora acrescentar Décio Freitas, Palmares: a guerra Mullin, Flight and Rebellion: Slave Resistance in Eighteenth
dos escravos (Porto Alegre, 1973). Century Virginia (Nevv York, 1972) é uni excelente estudo
das motivações, experiências e atos dos escravos foragidos.

258 221
Etcravos. ron.ros e ivIvMes Rq>cnsaiuio mimares:
Resisiciiíia escrava tia Colônia

vez de p r o c u r a r a própria liberdade é u m a q u e s t ã o q u e per-


essa gente tem o costume de fugir para a floresta, a reunir-se
m a n e c e sem resposta n o Brasii, e m b o r a essa resposta p u d e s - em esconderijos onde vivem de assaltos aos colonos, rouban-
se fornecer u m a medida da natureza "revolucionária 1 ' das do gado c arruinando ns safras e os canaviais, o que resulta
c o m u n i d a d e s de escravos foragidos.' E m certo grau, essas em muitos danos e muitos prejuízos, maiores que os da per-
questões são difíceis d e responder, devido h escassez de do- da do trabalho diário. H muitos desses (fugitivos) passam mui-
c u m e n t a ç ã o a p r o p r i a d a , m a s u m a i n t e r p r e t a ç ã o a t e n t a das tos anos na floresta, não retornam nunca e vivem nesses mo-
cambos, que são povoados que eles construíram no meio do
fontes locais e o u s o d e técnicas etno-históricas p o d e m abrir
mato.. E dali que eles partem para seus assaltos, roubando e
c a m i n h o para a l g u m a s respostas provisórias a a l g u m a s das furtando, e muitas vezes matando muitas pessoas, e nesses as-
questões centrais das c o m u n i d a d e s de fugitivos na socieda- saltos eles procuram levar consigo seus parentes, homens e
de escravista brasileira. mulheres, para com eles viver como pagãos.'
Neste capítulo, e x a m i n o aspectos das c o m u n i d a d e s de
fugitivos e m tr£s á r e a s principais d o Brasil colonial: a zona A tabela a seguir, q u e a b r a n g e dois séculos, salienta a
das grandes lavouras na Babia, a região d o g a r i m p o de Mi- freqüência da f o r m a ç ã o de m o c a m b o s e a e x t e n s ã o de sua
nas Gerais è a fronteira inacessível das Alagoas, sítio dos Pal- localização geográfica d e n t r o da capitania.
mares, a m a i o r das c o m u n i d a d e s de fugitivos. O objetivo é C e n a s características da capitania da Bahia contribuí-
e n c o n t r a r p a d r õ e s n a s origens, na criação, na organização r a m garã/Tfuga^de escravos_ea f o p p ^ l . ^ de
interna e na destruição densas c o m u n i d a d e s d e foragidos, fugitivos. À Bahia era u m dos principais terminais do tráfico
c o m o intuito d e m e l h o r c o m p r e e n d e r o r e g i m e escravista e atlântico d e escravos e u m a i m p o r t a n i é zona agrícola d u r a n -
o m o d o c o m o os africanos e os afro-brasileiros reagiam a ele. te toda sua história. S e m p r e m a n t e v e u m a g r a n d e p o p u l a ç ã o
escrava cjue, por volta d o final da era colonial, constituía
u m - t e r ç o da população total. P o r é m , n a s zonas.das g r a n d e s
l a v o u r a s ^ « escravos s e m p r e represeniavanLma.is.de 6 0 % da
BAHIA: UM M U N D O AGRÍCOLA população. Ãs condiçòes de trabalho nos e n g e n h o s e r a m fi-
s i c a m e n t e exaustivas e recebiam a l i m e n t a ç ã o e h a b i t a ç ã o
r Surgiam c o m u n i d a d e s . d e fugitivos e m q u a s e todas as deficientes. Ocasionalmente os escravos t i n h a m de lidar c o m
^ <íreas_da capitania da B a h i a ^ i j f f i õ r a e m a l g u m a s regiões c> s e n h o r e s m u i t o cruéis òu Sádicos, mas, alérti deles, o concei-
^ 1
A problernTfosse i n c o m u m e n i e j r ã v ç . A geografia e a ecologia to geral d e administração de escravos n ã o levava e m conta
" ^ h f J1 f de grande p ã r t ê do litoral baiano favoreciam a fuga e o re- as v a n t a g e n s a longo prazo d o "bom* t r a t a m e n t o e salienta-
sultado foi u m g r a n d e númelro de fugitivos e m o c a m b o s . Um va a e x t r a ç ã o do m á x i m o e m t r a b a l h o pelo m é n o r custo pos-
relato feito p o r u m jesuíta a n ô n i m o e m 1 6 Í 9 d ê s c r e v e o pro- sível. 1 Os escravos t a m b é m t i n h a m poucas o p o r t u n i d a d e s de
constituir família. Os p a d r õ e s do tráfico atlântico de escravos
blema e sua p e r c e p ç ã o pela sociedade branca:

6. O termo "gentios" foi aplicado aos fndíòs que não esta-


5. Este é um tema fundamental estudado de maneira abran- vam sob .o controle português e ainda.eram, portanto, pa-
gente t m Eugene Genovese, From Rebellion to Revolution: gãos. Era um termo pejorativo e tinha o sentido implícito de
Affo-America>t Slave Revolts in the Making of the Modem World "bárbaro", com o qual era sempre ligado. ÁRSI, Bras.8 (StL
(Baton Rouge, 1979), Para n Haiti, o lema tornou-se assun- VFL Rolo 159.
to Importante, como demonstra Leslie li Manigat, "The Re- 7, Há menção a uni senhor exccpdonnlmerue sádico na líahia
lationship between Marrou age and Slave Revolts and Revo- do século XVIII em Luiz R. B. Mòit, "Terror iSa Casa da Torre:
lution In St. Domingue-Haiti", CPSNWI'S, p. 420-39. tortura de escravos na Bahia colonial"; iii Escravidão e invenção
dá Uberdade, ed. João ,losé Reis, (São Paulo, L988), p. 17-32.

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Escravas, roceiros e rebelas Kepriittlidti Palmares:
Rcsisiència escrava im Colônia

e a preferência dos s e n h o r e s p o r j o v e n s adultos do sexo m a s - friam c o n s t a n t e a m e a ç a d e a t a q u e dos hostis índios Aimo-


culino resultavam e m escassez de m u l h e r e s , u m desequilí- rés. Esse fato e a distância de possível a j u d a militar vinda de
brio crônico e n t r e ps sexos. Esses problemas originavam Salvador dificultavam a s u p r e s s ã o dos m o c a m b o s . Os ata-
uma população q u e tinha m e n o s a p e r d e r com a fuga ou o u - q u e s dos índios - ou gentios bárbaros - e as d e p r e d a ç õ e s dos
tras formas de resistência, pelo m e n ò s na opinião d e obser- m o c a m b e i r ò s e s t a v a m ligados na cabeça dos colonos q u e to-
vadores n o Brasii d o século dezenove, q u e preconizavam fa- m a r a m várias providências para s u p r i m i r a a m b o s . Partiram\ <:
mílias estáveis e equilíbrio na p r o p o r ç ã o dos sexos e n t r e os expedições para e l i m i n a r essas a m e a ç a s e m 1663,1692, í 697 \ - - ^
escravos c o m o meio de controle." C o n t u d o , tais idéias "pro- e 1723, irias"jãhtas rgpejjgões Iri'dicam o insucesso. Foram ) *
gressistas" n ã o eram, e m geral, partilhadas pelos proprietá- utilizados negros e m u l a t o s libertos,"índiós " m a n s o s " e mi-
rios de escravos da Bahia colonial. As fugas e os m o c a m b o s lícias n e g r a s da Bahia nessas expedições, m a s u m a inovação
c o n t i n u a v a m s e n d o u m a d j i ^ r a ract^xísücas-da-escnmttão n a f u n d a m e n t a l foi o u s o d e guerreiros i n d í g e n à s e b a n d e i r a n -
Bahia ^ d u r a n t e toda~áuã"histor.ta. tes paulistas. 1 " Essa tática, iniciada n a d é c a d a d e 1670 pelo
Embora"fossem as p a r ó q u i a s açucareiras do Recônca- g o v e r n a d o r A f o n s o F u r t a d o d o Castro d o Rio M e n d o n ç a ,
vo Baiano as q u e possuíssem o m a i o r n ú m e r o e a p o r c e n t a - leve a l g u m êxito e f o r a m e m p r e g a d o s c o n t i n g e n t e s paulis-
gem mais alta de escravos, a região da Bahia q u e experi- tas e m o u t r a s p a r t e s d o Nordeste e m o p e r a ç õ e s s e m e l h a n -
Cmentou a m a i o r incidência dc fornuição ife in^Tcambus foj_a tes, s e n d o a m a i s n o t á v e l a destriiição d o g r a n d e q u i l o m b o
•idos distritos sulinos de Cairu, C a m a m u e ilhéus. A m a i o r dos Palmares, e m 1 6 8 4 - 8 5 . "
parte dessas terras e d o s d i s tri tos vizín li oseTTiYTut il i za d a s na
prottliçjio da j n a n d j o ç g , o p r o d u t o agrícola f u n d a m e n t a l de Embora os m o c a m b o s do süi da Bahiai jamaisjjy£s5£jn í '*\ ,v., i v
subsistência n o Brasil, As exigências d e trabalho e r a m . m e - ' alcançado o t a m a n h o e a população de Palmares, a ameaça , , i(
nores q u e nas p r o p r i e d a d e s açucareiras a os escravos viviam q u e r e p r e s e n t a v a m h ã o e r a j u é n o r . Um relato de 1723 dá j
em comumdadesjiie.iioresjri.essa^ região. E n q u a n t o n ã o ha-, conta de u i n m o c a m B t f c ó i n mãi"s r de~400 habitantes, mas o y ' ,ff*Z
via p r e d o m i n â n c i a d e escravos na p o p u l a ç ã o das áreas a ç u - , t a m a n h o n ã o era o ú n i c o d é t e r m i n á f t t e dó periculosidade d o V.. - 1 r
careiras, a p r o p o r ç ã o de escravos na p o p u l a ç ã o dessa z o n a m o c a m b o nessa r e g i ã o . u Em 1692, u m g r u p o de fugitivos li- . _,
sulista ainda perfazia e n t r e 4 0 a 6 0 % . Em outras situações,
presume-se q u e as condições r e l a t i v a m e n t e boas de e x i g ê n -
cias de trabalho, dieta e b e m - e s t a r físico, b e m c o m o u m a
grande p r o p o r ç ã o de escravos na p o p u l a ç ã o t e n h a m sido fa- 10. D. João de Lencastre à Camâra de-Cairu (Í0 dez. 1697),
tores q u e e s t i m u l a v a m a resistência escrava. 1 ' Neste caso, APB, Cartas do governo 150. Em 1667, o Gov. Alexandre de
porém, a n a t u r e z a fronteiriça da região e sua situação mili- Sousa Freire solicitou quarenta milicianos negíos ao gover-
tar instávej f o r a m os faiores mais i m p o r t a n t e s a c o n t r i b u i r nador de Pernambuco para, juntamente com negros e ín-
dios baianos, serem usados na luta contra os quilombos em
para o êxito das f u g a s feém-suced'idas.''*Cairü"ã"CanTãniü só-
Cairu e Camamu. (AHU, Bahia pap. avul. caixa 10, ser.
não catalogado) . . . ' . ' • ' •.,
11. Ver a discussão em Stuart B. Schwartz, ed., A Governor
8. Ver discussão da demografia escrava da Bahia em Sugar and His Image in Baroque Brazil. The Funeral . Eulogy of Afonso
Plantations in the Formation of Brazilian Society (Cambridge, Furtado de Castro do Rio de Mendonça de Jüan Lopes Sierra,
1985), p, 338-78. trad, de Ruth Jones (Minneapolis, 1979), p, 11-14, p. 43-49.
9. Marion D. de B. Kilson, "Towards Freedom; An Analysis Sebastião da Rocha Pilia, História dá America Portugueza
of Slave Revolts in the United Slates"; l'hylon25 (1964), p. (1724) (Lisboa, 1880), p. 192^97.;
175-87; ver também Orlando Patterson, The Sociology of Sla- Í2. Ei-Rei ao Governador Vasco Fernandes Cé/.ar de Mene-
very (London, 1967), p. 274-80. ses, 12 fev. 1723. AHU, Conselho Ultramarino, códice 247.

224 258
R<.'|)t.'ns.imtu Ritmares:
Rcsislêikio tscrava na CulôiitJi
Tabela 12. Lista parcial cios mocambos baianos

Data Tipo. Nome Local Tamanho/ fontes Pontes:


Comentários 1. Leite, História de companhia de 16.Ibíd., 86-88.
Jesus no Brasil, 10 vols, Lisltoa, 17. lbtd., 91-92.
1614 sehão 1 J 938-50), 5:265. 18. AHU, Bahia, p.a. 27.
1629 Rio 2 2. Moura, Rebeliões, 75. 19.OH, 45,
Vermelho 3. ACS, 1:213. 20. Pedreira, Os quilombos, 101-2.
1632 mocambo 3 4. ACS, 1:310-11, 329. 21. bH, 75, 106, 133. 138.
1,636 . ...JlflPiwm . 40+ 4
1640 mocambo Rio Real 5. ACS, 1: 22; ÜH, 75, 298; 76, 20-21.
5
1655 JéremobSo 6 6. Pedreira, Os quilombos, 78. 23.DH. 76, 81.
1666 mocambo Irará Inhambupe 7 7. Documentos do Arquivo Nacio- 24.DH, 76. 335,
1666-67 mocamt/õ Torre 8 XI, 25. 25. AHU, Bahia, cat. 6.456.
1667 n\ocambcf Jaguáripe 9 8. OH. 11:385-86. 26. BNRJ, 11-34,6,32.
1681-91 mocam bo Acaran- Serra de 60+ 10 9. OH, 8:301-2. 27. APB. CaG.
.quanha Jacobina lü. ACS, 124.1. 28. ÀPB, OR 86, f. 242-45.
1687 mocambo Rio Real, 11 11. ACS, 124.1. 29. lbtd.
1692 . J.phiirpÍHjpe 12. Ignacfo Accioli de Cerqueira 30. Pedreira, Os quilombos, 123-24.
Caniamú líder 12 e Silva, Memórias históricas e poli- 31.BNRJ, I, 31; 27, 1: AHU, Ba-
mulato ticos da Província da Bahia. ed. hiá, cat. 29,.815.
Tflij-fj mocambo Ôáiríi Braz do Amara), 6 vols. (Bahia, 32. APB, Ceio G ao SMgd. 177.
1705 .Incuípe 14 I925),2:142. 33. APB, Cao G ao, 218.
1706 JaKiiaríiio 15
1713 mocambo ... Maragogipe 16 13. AP». CdG 150, I. I44v. 34. BNRJ, íl-33, 26, 35.
1714 mocambo "campos de 17 14. Pedreira, Os quilombos, 83-84. 35.Pedreira, Os quilombos, 141-43.
Cachoeira* 15. lliid. :
>722 mocaftibg Calrú 400 . 18
1723 mocambo _Qulrlçós "grande" 19
mocambo.....ÇflroM« ..„;. ; .."velho!.. 20 d e r a d o p o r cinco c o m a n d a n t e s m u l a t o s passou á s a q u e a r as
1733 mocambo Canavelrns "Kfayde" 2!
1734 mocambo Sa/no 22 lavouras p r ó x i m a s a C a m a n ü i c ameaçoti t o m a r posse da , - y,
Amaro, própria cidade. Á i m r a n q ü i l i d a d e atingiu h ã o s o m e n t e o s u l ^
Nazaré da B a h i a j n a s j a m b é m O R e c ô n r a y q , ^ n d e a d e s o r d e m impe-^
1735 Jacotiíria 23 1
1736 mocambo Rio das 24 rou q u a n d o a ey^nú^' senzalas •a0 "
Contas dos e n g e j i i i o s a os senhores' c o m e r a r a m ãTeiner Insurreições
1744-64 quilombo Buraco Itapuã 61 + 25 s e m e l h a n t e s . U m a expedição militar portuguesa e m 1692 fi-
de Tatu nalriièriuTdestruiu o m o c a m b o , sitiando o p o v o a d o protegi-
ÍY4$ Santo Í6 \
Amaro d o por paliçadas. O último grito de guerra dos derrotados foi: c
1789 Santana ilhéus 27 "Morte aos brancos e viva a l i b e r d á d e l " " /,
1791 quilombo Matas do Jacuípe 28
Côncavo
1796 quilombo Serra 29™
de Orohó 13. Consulta, Conselho Ultramarino, 9 nov.,1692, DHÜNR,
1801 qiíiiombp Jacobina 3<f" 89 (1950), 206. A atividade dos quilombolás em Camatnu
1807 mocambo. "cabula" subúrbios "inumerável" 31 na época suscitou o temor de uma revolta generalizada dos
quilombo
1807 quilombo Rio das Ilhéus escravos. O governador António Luiz Gonçalves da Câmara
32
Contas Coutinho escreveu ao Conselho Ultramarino: "...em Cama-
1809 quilombo Cachoeira "Brande" 33 mu se levantarem huns mulatos e convocarem asi grande
1825 mocambo 1 t apa rica muitos 34 quantidade de Negros querendose fazerse Senhores daquel-
1826 quilombo Urtibá suburbias 50+ 35 la villa". Ver BA, 51-IX-30. (Bahia. 23 jun. 1692)

226
227
Escravos, rotxirot <t nktlties Ke)ie>isam1u Palmares:
Resistência escrava iia Colimia

O receio üe q u e cidades como Cairu a C a m a m u , dis- As d e p r e d a ç õ e s p e r p e t r a d a s pelos escravos foragidos


tantes dos centros de a u t o r i d a d e g o v e r n a m e n t a l , p u d e s s e m l e v a r a m as a u t o r i d a d e s coloniais a considerar os fugitivos
realmente ser t o m a d a s n ã o era de todo exagerado, Em_176Z, d o s m o c a m b o s , b e m c o m o os ladrões d e estrada, iguais aos
o capitão iruerUio d e Sergipe de el-Rei relatou depredações criminosos c o m u n s , sujeitos, p o r t a n t o , às p e n a s n o r m a i s da i
còntínü^rpt^ lei. N i ò obstante, osj&(Í3&Jlo&.£$c@yps íugHjyro e r a m mais ' ; (
^.r* ^ tempo d e seu p r e d e c e s s o r / l n f ó r m o u a i n d a ^ u m bando, arnia- q u e simples crimes, pois r e p r e s e n t a v a m u m a agressão à or- » "1
J \" do dc escravos foragidos" marchara cidade a d e n t r o às n o v e d e m social estabelecida,_ e..às\y«es s i i a j n t e n ç ã ó e r a . ú i i } ^ e (. . '"
' horas_da t n a n h j T P & ; t á i > d õ ' ' 5 ã n ^ abeTtainente essa. È m s e n t i d o b a s t a n t e real,-as-depredações
f•V cãSêçã~,~"e exigira q u e o ^ f i c í a l do_r<?i..lhes çonçcdesse ca/tas p r ^ r ^ r a ~ f ê m l > T a n d i t i s m o social, ou cangaço, d o Brasil pós-
,^ d e al!'orrÍárõ"ofÍciàl íocou o alarme, m a s a ausência de tro- colonial. O m o c a m b o r e p r e s e n t a v a u m a expressão d e pro-
y pãs~pePTnltirt aos fugitivos escapar ilesos. 14 testo social n u m a sociedade escravista.
T a m a n h a audácia ressaltava, inclusive, unia realidade
f u n d a m e n t a l . A j m á i ò r i a , d ^ m g ç s a i b ^ ^ a i a n o s e s t a v a m re-
• t < l a t i v s m e m e p r ó x i m o s a centros populacionais ou e n g e n h o s M E D I D A S ANTIMOCAMBO
' t o7 ' ' ' vizinhos^ Embora Palrnares itenha p r o s p e r a d o n o r e m o t o l n -
\ r •>• terior das Alagoas e o u t r a s c o m u n i d a d e s de fugitivos t a m - Os c o l o n o s e as a u t o r i d a d e s da coroa e n g e n d r a r a m
, <- t b é m se e n c o n t r a s s e m e m regiões distantes, a g r a n d e maioria u m a série de m e d i d a s p a r a lidar c o m a f o r m a ç ã o e a ativi-
Çj >
', ./do^ij)ocamboi.da, Bahia e d e ou tras_regi0.es d o Brasil esta - d a d e dos m o c a m b o s . U m a das táticas era c a p t u r a r os fugi- y
o , •/•/ v a m próx^iiios a cidades e plantações, se b e m q u e q u a s e tivos a n t e s d e se j u n t a r e m e m b a n d o s . Já é m i _ 6 ] 2 _ A l c x a n - ( í ^ v«»^
y s e m p r e e m lugares inacessíveis, Com efeito, a l g u m a s das ci- d r e d e M o u r a , d o n a t á r i o de P e r n a m b u c o , solicitava à Co- ,>>
,\ .-y^des atuól rede u r b a n a de Salvador originaram-se de co- roa a n o m e a ç ã o d e u m c a p i l ã o - d e * c a m p ó ein cada u m a das , o
' m u n i d a d e s d e fugitivos. oito p a r ó q u i a s da capitania, o qual, auxiliado p o r vinte í n - .
^v / Diversas são as razões desse p a d r ã o de f o r m a ç ã o dos dlos, perseguiria e r e c a p t u r a r i a escravos f o r a g i d o s . " N ã o se „ . ç
povoados de fugitivos. C e r t a m e n t e , aié o século XVIJI, os ín- sabe a o c e r t o q u a n d o esse, c a r g o foi criado n a B a h i a , m a s V ^
dios hostis c o n s l í t u í a m u m a verdadeira barreira para a p e n e - p o r volta de 1 6 2 1 a c â m a r a m u n i c i p a l d e Salvador já havia v:
/ ÒP tração, tanto de negros q u a n t o de brancos, e m m u i t a s re- d e f i n i d o u m a escala de recoiripènsás pàra esses caçadores . v
^ giões. Mais i m p o r t a n t e , é o fato de q u e a e c o n o m i a interna d e escravos. O capitão-do-carílpò, ou c a p l t ã o - d o - m a t o , -> <? -
t os
(-/•^ ' mocambos fazia da proximidade às áreas colonizadas u m c o m o o posto passou a se c h a m a r , era comissionado, rece-
u
e ^ ' ' pré-requisito para o êxito. A e c o i ^ q t n l a ^ o s j n o c a m b o s , a o i b e n d o u m a r e c o m p e n s a pára cada fugitivo c a p t u r a d o . Esse
^ invés de r e l a m a r às origens pastoris o u agrícolas africanas. sistema foi formalizado è m 1 6 7 6 / ' A câmará d e Salvador
x
V e r a j m á t as _veze s parasitária, d e p e n d e n t e de assaltos nas es -
iradas, rou.bo..de.ga<J!o^Ínyaspesje^xLQJSlo. Essas atividades
t o ^ o l X K ' i a n i combinar-se à agricultura, mas raros e r a m os casos
4
o<v / de mocambos q u e se tornassem auto-suficientes e completa-
J 15. BI, correspondência dé Alvaro a Gaspar, de Souza, (17
t/ ^ x m e n t e isolados da sociedade colonial q u e , ao m e s m o t e m p o , ago. 1612), f. 81. :•<; .
•v<•••'• \ v os gerava e os temia.
16. AC8,1, 4. .Os tèhuos capltãp-dó-eanípo é do-mato eram
\j r J (>
usados permutavelmente. Por volta de íins do século XVII
: concediam-se cartas de paiefite pára postos como o de capi-
i/ í y
tão-mor das entradas das mocambos, Ver, por exemplo, ACS,
- yr \4. Jose Lopes da Cruz, capitão interino de Sergipe ao gover- 124.1 f. 126 (10 nov. 1687) e AKU, Bahia pap. avul. caixa
<J nador da Bahia, 26 set. 1767, APB, Cartas ao governo 198. 26, não cai., ( j u L 1718). O governador Peruando José

228 229
iííffrtvoí, roceiros e reMtfcs Rcpt-iusaudo Palmares:
Kesisiíiicia escrava lia Colônia

definia o preço da r e c o m p e n s a d e a c o r d o com a distância constituíam u m m e i o l e l á i i v a m è m e eficiente d e recapturar


envolvida. Por volta d e . 1637 as r e c o m p e n s a s f o r a m e s t e n - fugitivos, e m b o r a , e m geral, estivesse a l é m d e sua capacida-
didas a q u a l q u e r pessoa q u e c a p t u r a s s e u m fugitivo, n ã o d e controlar os p r o b l e m a s de revoltas d e escravos ou das ati-
mais s e n d o restritas aos c a p i t ã e s - d o - m a l o . C o m o v e r e m o s , vidades dòs m o c a m b o s já formados.
foi a d o t a d o sistema s e m e l h a n t e e m M i n a s Gerais e o u t r a s O u t r o m é t o d o , ainda h ã o e s t u d a d o , d e càpiura d e es-
partes do Brasil. O c a p i t ã o - d o - m a t o t o r n o u - s e e l e m e n t o cravos era o uso p l a n e j a d o de índios c ò m o caçadores de es-
o n i p r e s e n t e n o Brasil r u r a l . " cravos e e m contraposição a m o c a m b o s e possíveis revoltas
Mas n ã o era u m sistema fácil. Para receber as r e c o m - dos cativos. No século XVI, os s e n h o r e s de e n g e n h o e os do-
pensas oferecidas, ps c a p i t ã e s - d o - m a l o exagerados n ã o resis- natários absenteístas p r o c u r a v a m transferir os índios do in-
tiam à t e n t a ç ã o d e p r e n d e r escravos q u e h a v i a m simples- terior para servirem c o m o força de defesa c o n t r a possíveis le-
m e n t e saído para c u m p r i r ordens. Os proprietários de escra- v a n t e s escravos, b e m coniõ para servir d e p á r a - c h o q u e nos
vos às vezes r e l u t a v a m m u i t o e m p a g a r pela captura d e es- a t a q u e s d ê tribos selvagens d o interior. 1 9 N o século XVII, os
cravos velhos ou d o e n t e s q u e n ã o m a i s lhes e r a m úteis. E m colonos dá Bahia t e n t a r a m , sem êxito, transferir aldeias in-
várias ocasiões o excesso d é fugitivos idosos n ã o reclamados dígenas para as proximidades de Suas fazendas. Òs jesuítas se
de volta pelos senhores, m a n t i d o s n a prisão municipal d e o p u n h a m , t e m e n d o q u e os colonos e x p l o r a s s e m os índios
Salvador, obrigava a câmara m u n i c i p a l a leiloámos para pa- c o m o mão-de-obra; e n t r e t a n t o , os religiosos reconheciam
gar as despesas. O posto de c á p i l ã o - d o - m a t o quase s e m p r e q u e os aliados índios e r a m "as m u r a l h a i e Os baluartes da co-
atraía indivíduos de certa f o r m a marginais, ex-escravos e lônia". Já e m 1614, os índios da missão jesuíta da aldeia de
mestiços libertos, olhados com desconfiança pelos s e n h o r e s São J o ã o foram usados para destruir u m m o c a m b o . Talvez a
e odiados pelos escravos." Ainda assim, os capitães-do-mato declaração mais explícita sobre, à utilidade dos aliados índios
contra a p o p u l a ç ã o escrava indócil foí feita e m 1633 por
Duarte G o m e s de Silveira/colono dá Paraíba, q ú e escreveu:
de Portugal escreveu em 1788 sobre a necessidade de capi- "Não resta dúvida de q u e sem os índios n o Brasil n ã o pode
tães-das-entradas e salientou que o tesouro da Coroa não ti- h a v e r negros da Guiné, ou melhor, h ã o p o d e h a v e r Brasil,
nha despesa alguma para mantê-los, já que eram os proprie- pois sem eles (negros) h ã o Se pode fazer n a d a , e eles são dez
tários de escravos que pagavam por seus serviços, conforme vezes mais n u m e r o s o s q ú e os b r a n é o s f é se h o j e é difícil do-
uma lei dç 28 dc janeiro de 1676. {"a fazenda real nada dis-
miná-los còm os índios, qtie são teinidos p o r m u i t o s . . . o q u e
pende com estes postos pois os senhores dos negros que fo-
gem são os que satisfazem as diligencias em virtude de hum
regimento dado aos capitães de assaltos em 28 jan. 1676*),
Portugal a Martinho de Melo e Castro (30 abr. 1788), inven-
tários de documentos relativos ao. Brasil, ed. Eduardo Castro e ã seus atos e hábitos, era "ítidigno do uniforme que usava"
Almeida, 8 vols. (Rio de Janeiro, 1914), III, doe. 12.917. (só para ingrosar mais seos despotismos pois lie de numero
17. BGUC, cod. 706 (7 mar. 1703); cod. 709, (5 niat. 1703), dòs valentes daquele e de eusttimes péssimos à continua-
I. 140; cod. 711, (5 mar. 1744), f. 123; e ACI), l, (13 fev. mente ántís inbriegâiio, á se fas pelo seu pròcklimentos e
1637): 328-29. cusiumes indigno da farda que tras.] Ver APB, Camas ao
Governo 208 (Sergipe,-16 nov. 1806).,;
18. ACB, 1 326 (27 jan. 1637. Há muitos exemplos de capi-
tães do mato excedendo seus direitos ou provocando pro- 19. No século XVÍ o Duque de Aveiro e o Conde de Unha-
blemas. O capitão-mor de Sergipe de fil-Rey queixo li-se em res, ambos propl1eiáríoS'ab'se , Iiiic^a^'pt^u^rám trazer ín-
1806 de um certo Daniel Dias, que estava tentando comprar dios para suas propriedades p<irá fms deU.rahalho e defesa.
a patente de "capitão das entradas", simplesmente para ter Ver AGS, sec. prov. 1487, 7 oui 1603; ANTT, CSJ, maço 8,
mais poder e que circulava bêbado pela capitania e, devido doe. 9 (28 ago. I585); maço 16, provisão, 1586.

230 231
Escravos, nw;7ví t rebeldes fte|iciisaiuii> Palmares;
Resistindo escrava na CotQiila

aconteceria sem os índios? files se revoltariam n o dia seguin- tribos indígenas não-domesticãdas havia o objetivo c o m u m
te e é m u i t o arriscado resistir a inimigos internos/' 1 " da oposição a o regime escravista imposto pelos e u r o p e u s .
Era f r e q ü e n t e o e m p r e g o b e m - s u c e d i d o de soldados, Também n o cativeiro os índios e os africanos m a n t i n h a m
índios clandestinos, c o m a n d a d o s por oficiais p o r t u g u e s e s ou contatos f r e q ü e n t e s e íntimos. Os índios c o n t i n u a v a m a p e r -
capitães, contra m o c a m b o s , por todo o Brasil, n a época colo- fazer u m a g r a n d e , embora decrescente, parcela da força d e
nial. A destruição de p r a t i c a m e n t e todos os m o c a m b o s , des-
trabalho d o s e n g e n h o s n o p e r í o d o d e 1580 e 1650, e n ã o
de Palmares aos esconderijos m u i t o m e n o r e s da Bahia, d o
e r a m i n c u m u n s os casamentos e n t r e negros e índios. A l g u n s
Rio de J a n e i r o e de Goiás, dependia em g r a n d e medida de
observadores, c o m o o padre jesuíta Belchior Cordeiro, a c h a -
tropas e auxiliares indígenas.
vam q u e os escravos africanos se t o r n a v a m mais tratáveis
P a r a d o x a l m e n t e , . h a t a m b é m muitas m e n ç õ e s h incor- q u a n d o postos e m c o n t a t o c o m índios cristãos, m a s fosse
poração d e escravos africanos o afro-brasíleiros a aldeias in- qual fosse a n o r m a , os contatos aYro-indfgenas.de fato a c o n -
dígenas e á índios residentes ein c o m u n i d a d e s d e fugitivos. teciam. D u r a n t e todo o p e r í o d o colonial os índios f o r a m ,
As autoridades portuguesas t e m i a m a n a t u r e z a destruidora e
t a n t o os m e l h o r e s aliados em potencial, q u a n t o os m a i s efi-
perigosa de tais contatos. Em 1706, a Coroa o r d e n o u q u e se
cazes o p o n e n t e s dos escravos foragidos.'"
impedisse a p e n e t r a ç ã o de negros, mestiços e escravos n o in-
A principal tática e m p r è g à d a contra os m o c a m b o s
terior, o n d e poderiam j u n t a r - s e a g r u p o s i n d í g e n a s hostis.
consistia s i m p l e s m e n t e e m destruí-los e m a t a r òu reescravi-
Apesar dessas medidas, era c o m u m a cooperação e n t r e afri-
zar seus h a b i t a n t e s , é fácil explicar á oposição dos p o r t u g u e -
canos e índios contra e u r o p e u s , t a n t o n o Brasil p o r t u g u ê s
ses às c o m u n i d a d e s d e fugitivos. Os a t a q u e s e os assaltos dos
q u a n t o n o h o l a n d ê s . Na Bahia, u m f a m o s o e x e m p l o é a sin-
crctica e d u r a d o u r a religião messiânica d e n o m i n a d a Santi- m o c a m b e i r o s a m e a ç a v a m as cidades, o b s t r u í a m a p r o d u ç ã o ,
dade, q u e surgiu nas áreas a o sul da capitania, e n t r e g r u p o s i n t e r r o m p i a m vias d e c o m u n i c a ç ã o è viagens." A d e m a i s ,
indígenas, n o final d o século XVi. Por volta d e 1613, relata- t a n t o p o r m e i o dos a t a q u e s d u da a t r a ç ã o q u e exerciam, os
va-se q u e escravos foragidos h a v i a m se u n i d o a o m o v i m e n - m o c a m b o s a r r a s t a v a m o u t r o s escravos pára fora do cativei-
to, participando em suas incursões e m e s m o f u r t a n d o escra- ro. M u i t o s observadores perceberam, os efeitos dos m o c a m -
vos de Salvador. Até 1627, apesar das expedições punitivas, bos sobre às senzalas e uni relato d e 1692 c o m e n t a q u e " n e -
os fiéis da Santidade ainda realizavam a t a q u e s . "
Isso nos c o n d u z a o até e n t ã o ignorado p r o b l e m a dos
contatos e das relações sociais aíro-indígenas, Apesar das 22. Serafim Leite, "Informação dalgiimaS cousas do Brasil
tentativas dos portugueses no sentido d e t r a n s f o r m a r os ín- por Belchior Cordeiro", Anais da Academia Portuguesa da His-
dios em aliados contra possíveis resistências escravas, alguns tór/d 2â ser. 15 (1965), p.. 175-202.: '
fatores contribuíram pára a a p r o x i m a ç ã o de escravos africa- 23. Numa dissertação provocante, Tho/nas Flory afirma que
nos e índios. Tanto para os escravos foragidos q u a n t o para as 6 desejo pelas terras desbravadas e trabalhadas pelos mo-
caihbeiros, também era iím importante/ incentivo aos ata-
ques da sociedade tojònial. ãuas j>ròvas foram extraídas
principalmente <lo càsó de. ÍPâlniares; Ademais, o fato de
20. "Information q. hize por mandado de VMg. sobre unos muitos mocambos ..estarem em áreas inacessíveis e, em ge-
capítulos q. Duarte Gomez de Silveira Vezino de Parabiba ral, não se localizarem etti téríás que se destinavam às prin-
embio a la Mesa de Consciência", AGS, sec. prov. lib. 1583, cipais culturas de exjíortação pode contradizer tal hipótese,
fs.382-9. embora o desejo dè obter terras com ihèjliórias seja certa-
mente plausível erri alguns casos. Ver Thomas Flory, "Fugi-
21. Discorri sobre o movimento Santidade em alguns deta-
tive Slaves and Free Society: The Case of Ürazil, Journal of
lhes em Sugar Plantations, p. 47-9.
Negro History, v. 54, n. 2, p. i 16*30, spring 1979.

258
233
Eséravos, nwires t* reMitrs Kt?|MMis.iiult> Palmares:
Rcsistiiida escrow na Colônia

n h u m c o l o n o terá seguros seus escravos", e n q u a n t o p e r d u - Tal e x t e r m í n i o era g e r a l m e n t e e x e c u t a d o por expedi-


rarem os m o c a m b o s . " Òs m o c a m b o s r e p r e s e n t a v a m u m a ções militares conduzidas p o r civis com apoio local ou por
ameaça à e s t r u t u r a econômica e social do regime escravista. tropas d o governo. Firmavairi-se às vezes contratos particula-
Para a maioria das a u t o r i d a d e s coloniais era simples- res com bandeirantes, estipulando-se r e c o m p e n s a s para cada
m e n t e i m p e n s á v e l a a d a p t a ç ã o e n t r e os h a b i t a n t e s b r a n c o s e escravo capturado. Capirães-do-mato, auxiliares indígenas e
os mocambos. Aò c o n t r á r i o da Jamaica, o n d e f i n a l m e n t e se colunas militares patrocinadas pelo g o v e r n o eram, todos,
assinou u m a c o r d o c o m os marrons: fugitivos, as táticas s e m e - convocados para e n f r e n t a r a ameaça q u e as c o m u n i d a d e s de
lhantes e r a m a s p e r a m e n t e repelidas, q u a n d o sugeridas h o escravos foragidos r e p r e s e n t a v a m para o regime escravista.
Brasil. Em 3640 o Vlèe-Rel Jorge d e Mascarenhas, M a r q u ê s
de Montalvão, sügeriu, c o m o m e d i d a d e t e m p o s d e guerra,
q u e se enviasse á certo m o c a m b o , e m missão d e paz, u m je-
suíta lingüista e H e n r i q u e Dias, líder d e u m r e g i m e n t o n e g r o ETNOGRAFIA DOS M O C A M B O S :
pró-Portugál. A m i s s ã o teria o objetivo de oferecer liberdade o CASO DO BURACO DE TATU
aos foragidos, c o n t a n t o q u e passassem a servir n o r e g i m e n -
to negro e c o n c o r d a s s e m e m n ã o abrigar n o v o s fugitivos. Os d o c u m e n t o s , variados e bastante díspares, q u e
Essa sugestão r e c e b e u d u r a réplica da c â m a r a de Salvador, m e n c i o n a m as atividades dos escravos foragidos n o Brasil,
dominada p o r senhores, de e n g e n h o . " E m circunstância ne- p o u c o revelam sobre a organização social e política dessas
n h u m a é a p r o p r i a d o p r o c u r a r reconciliação c o m escravos ou c o m u n i d a d e s . Por esse m o t i v o , òs d o c u m e n t o s relativos à
ceder para t e n t a r aplacá-los. O certo é e x t e r m i n á - l o s e sub- destruição d o q u i l o m b o c o n h e c i d o como B u r a c o de Tatu são
jugá-los d e m o d o q u e os q u e ainda estão domesticados n ã o d e singular importância, pois, e m b o r a Incompletos, eles per-
se j u n t e m a eles e n ã o se incentive os q u e ainda estão rebe- m i t e m vislumbrar o q u e p o d e ter sido a história d e u m típi-
lados a c o m e t e r m a i s delitos...*" co m o c a m b o baiano.*" ' •
O Vice-Rei, C o n d e de Óbidos, ecoava a m e s m a opi- Em 1763, u m a e x p e d i ç ã o militar, c o m a n d a d a por por-
nião em i 6 6 3 na Bahia; ele queria a destruição d o g r a n d e re- tugueses, destruiu o B u r a c o d e TítUt, localizado a leste-nor-
d u t o d e fugitivos dos Palmares c o m o ' p u n i ç ã o exemplar, deste dá cidade de Salvador, p r ó x i m o à a t u a l praia de ltapoã.
para pôr fim às esperanças dos o u t r o s escravos". Ele n ã o a d - Èm resposta às q u e i x a s e: i n c o m o d a d o com as atividades dos
mitia clemência aos q u e resistissem e exigia q u e o p o v o a d o m o c a m b o s . Dom M a r c o s dé N o r o n h a , C o n d e de Arcos e
fosse reduzido a cinzas, para q u e n a d a restasse, a n ã o ser "a Vice-Rei do Brasil, iniciou é m 1760 u m a c a m p a n h a para eli-
recordação d e sua destruição para d e s e n g a n o definitivo dos m i n a r as c o m u n i d a d e s d e fughiyos. N a q u e l e ario, n o m e o u
escravos" d e P e r n a m b u c o e da Bahia.* 1 J o a q u i m da Costa Cardoso Capitão-mor da conquista dos
gentios bárbaros e, a o q u e l u d o indica, encairregou-o de pre-
parar lintà expedição punitiva'." Embora a incumbência d e

24. BA, 51-ÍX-30 <23 jun. 1692), f. 13v.; Diogo de Campos


Moreno, 'Report of the State of Brazil, 1612*; editado por 27. Lucinda Coutinhò de Mello Coelho, "Ò quilombo Buraco
Engel Slulter, HAHR, 29, p. 518-62, 1949. de Tatu", Mensário dó Arqútip Mdómí. y, 1Õ, h. 4, p. 4-8,
1979. Pedro Tornas Pedreira ácrèsceiiioii mais alguns detalhes
25. yiCß 1 (25 nov. 1640), p. 477-8. étn "Sobre o Quilombo Buraco de Tatu", M.Â.N,, v. 10, n, 7 p.
26. Óbidos ao Gov. Francisco de Brito Freyre <9 set. 1663), 7-10, 1979.
BN RJ, 8, 1, 3, fs. 3v-4. 28. ANTT, Chancelaria D. José l,'livro 7Ü, f: 257v. ( l i jan.
1762).

235 231
Ri-peusaiiitu ralmarcs:
Escravos, roceiros e rc/icldcs
Resistência escrava na Colónia

Cosia Cardoso indicasse q u e seu principal objetivo e r a m os n ã o era. o ú n i c o a fazê-lo. Os negros dã cidade d e S a l v a d o r
índios hostis, havia l a m b e m considerável interesse e m des- auxiliavam o quilombo, a j u d a n d o os fugitivos a e n t r a r na ci-
truir "vários quilombos de negros nas cercanias da cidade".' 1 " d a d e à n o i t e para c o m p r a r pólvora e c h u m b o . Tal c o n t a t o era
Não e possível d e t e r m i n a r n ú m e r o e localização, m a s além i n q u i e t a n t e para os proprietários de. escravos e as a u t o r i d a -
de ftapoã, t a m b é m havia, m o c a m b o s e m Cairu a Ipilanga, des da Coroa, q u e temiam b a u m e n t o das fugas ou u m a re-
O Buraco d e Tatu tinha vinte a n o s de existência. À se- belião generalizada. Assim, c o m o e m ' ò u t r o s exemplos, os
melhança da maior parte dos m o c a m b o s baianos, sua e c o n o - brancos t a m b é m cooperavam c o m o quilombo, nesse caso
mia era essencialmente parasitária, a m p a r a d a e m furto, ex- para evitar d a n o s à vida òu propriedade..
torsão e assaltos esporádicos. As principais vítimas, contudo, Ta} cooperação, e m b o r a forçada, indica q u e os fugiti-
n ã o eram os brancos s e n h o r e s de e n g e n h o , m a s os negros vos d o B u r a c o de Tatu n ã o t e n c i o n a v a m travar guerra total
q u e " v i n h a m todos os dias à cidade (Salvador) para v e n d e r d e libertação contra oi s e g m e n t o s da p o p u l a ç ã o q u e e r a m
os alimentos q u e p l a n t a m e m seus terrenos"." 1 As m u l h e r e s proprietários d e escravos. Nà v e r d a d e , òs quilombos p o d e -
mais atraentes t a m b é m e r a m levadas para o m o c a m b o . A es- riam ser p o n t o s d e c o n c e n t r a ç ã o das rebeliões de escravos
cassez crônica de m u l h e r e s e n t r e os escravos brasileiros era mais generalizadas, c o m o a c o n t e c e u n a Bahia n o início d o
reproduzida e exacerbada n o s m o c a m b o s . Os fugitivos pre- século XIX; c o n t u d o , e m geráí, os objetivos dás c o m u n i d a d e s
feriam levar m u l h e r e s negras o u mulatas e há alguns relatos d e fugitivos p a r e c e m ter sido os mais imediatos e práticos re-
de raptos de m u l h e r e s européias. Tal acusação n ã o foi apre- lativos à sobrevivência fora d o controle da sociedade branca.
sentada contra os habitantes d o Buraco d e T a t u . " A resistência escrava, ein todas 'as; süás formas, p o d e ter sido
Apesar dos atos dos fugitivos, havia libertos e escravos u m a a m e a ç a a o escravismo, p o r é m , a p e s a r das c o n s e q ü ê n -
que, por necessidade ou solidariedade, c o o p e r a v a m com o cias do exislência d e q u i l o m b o s pára a "classe" escrava, os
Buraco de Tatu. J o ã o Baptista, u m agricultor m u l a t o , traba- agricultores e as autoridades coloniais percebiam divisões
lhava com os fugitivos e lhes fornecia l e n h a , " Evidentemente, e n t r e os escravos, suficientes pára arriscàr-sé a a r m a r os es-
cravos dos e n g e n h o s , a fim de c o m b a t e r òs fugitivos, c o m o
a f i r m o u é m 1807 o Conde do P o n t e , "
29. AHU, Bahia pap. avui. n. 6451. O b u r a c o de Tatu foi d e s t r u í d o e m 2 de setembro de
3f), lbid. n. 6449. Há uma cópia do documento em IHGU, 1763 e, c o m o auxfiío das descrições militares da c a m p a n h a
1,119 (Correspondência do governador da Bailia 1751-82). e d e u m a planta d e s e n h a d a pela;tropa d e a t a q u e para ilus-
Também está impresso em Inventário dos documentos relativos trar os relatórios, t o r n a m - s e possíveis diversas deduções so-
ao Brasil, ed. Eduardo Castro de Almeida, 8 v. (Rio de Janei- bre a vida interna dessa c o m u n i d a d e . Ò q u i l o m b o era u m
ro, 1914), 2 (Bahia 1763-86), p. 44-45.
p o v p â d o b e m organizado; disposto e m p l a n ò linear de seis fi-
3 1 . 0 resgate de três irmãos, duas moças e um rapaz paulis-
tas, de um quilombo em Minas Gerais é objeto de um rela- leiras d e casas, divididas jior unia g r a n d e rúa central (ver fi-
tório de 1737, no qual o autor rescreveu: "foy hum lastimo- gura 4 ) . Havia 32 unidades residenciais retangulares (B) e,
so acto ver as lágrimas .e lamentações com q. (sua mãe) as conio havia a p r o x i m a d a m e n t e <S5 a d u l t o s n o quilombo, po-
recebeo misturando ao mesmo tempo a alegria com o pe- d e m o s s u p o r q u e essas u n i d a d e s r e p r e s e n t a v a m casas, e n ã o
zar". Ver ANTT, Ms. do Brasil II, I53-I54v. (9 ja». 1737); cortiços. A estreita correlação d e dois a d u l t o s por casa suge-
ms. do Brasil 4, (8 mar. 1737): O temor aos escravos quan- re Um p a d r ã o de monogamia, riiás os indícios h ã o são claros.
to ao aspecto sexiial parece ter papel relativamente peque-
no nas campanhas contra os quilombos, embora haja, às ve-
zes, vestígios desse sentimento.
32. "Certidão da sentença condemnatoria dos negros do 33: Conde do Ponte áo Visconde de Anadia (27 abr. 1807),
quilombo Buraco de Tatu (12 jan 1764)*. AHU, Bahia pap. APB. Cartas do Governo 177,,
avul. n. 6456.

236
Reprnsaiiilt) Palmares:
Estritws, roceiros t rebíhhrs Ht-sisU'iirla t s n a v a na Cnlôiiia

já que os d p c u r n e n l ò s n ã o fazem m e n ç ã o a crianças. Q u a n -


d o se c a p t u r a v a m crianças nascidas e m quilombos, era co-
m u m q u e se t o r n a s s e m propriedade d o s c o m a n d a n t e s da ex-
pedição e isso talvez expjique sua a u s ê n c i a dos registros j u -
diciais." De fornia,global, o p a d r ã o m o n o g â m i c o , o f o r m a t o
retangular e as fileiras regulares de casas d e n o t a m a r e p r o -
dução de unia senzala de e n g e n h o , e n ã o a cópia d e a l g u m
modelo africano específico. I n v e r s a m e n t e , a ampla rua c e n -
tral que s e p a r a v a ; i g u a l i t a r i a m e n t e as casas retangulares e a
existência do q u e poderia ter sido u m a casa cerimonial ou d e
"debates" e m f r e n t e a u m a piraça (H) são e l e m e n t o s e n c o n -
tradlços e n t r e g r u p o s Baiitü d o n o r o e s t e , c o m o òs Koko,
Teke (Anzico) á M a b e a . ^ Òs d o c u m e n t o s r e m a n e s c e n t e s for-
necem p o u c a s indicações acerca da o r i g e m étnica dos habi-
tantes d o B u r a c o d e Tatu. Uni deles, pelo m e n o s , era criou-
lo; outro era m e n c i o n a d o c o m o m a n d i n g u e i r o , t e r m o q u e
e m meados do século XVÍ11 significava s i m p l e s m e n t e feiticei-
ro, mas q u e t a m b é m poderia indicar q u e esse fugitivo fosse
originário de M a n d i n g a . À hipótese mais razoável é á de q u e
n e n h u m g r u p o a f r i c a n o habitava esse m o c a m b o .
À s e m e l h a n ç a de muitas c o m u n i d a d e s d e fugitivos d o
Brasil, o Buraco de.Tatu era e n g e n h o s a m e n t e protegido. A
p e n e t r a ç ã o n o m o c a m b o era dificultada p o r u m a e x t e n s a
r e d e defensiva, À: r e t a g u a r d a era p r o t e g i d a p o r u m canal
p a n t a n o s o da altura a p r o x i m a d a d e u m h o m e m . Os três la-
dos do p o v o a d o e r a n i protegidos p o r u m labirinto de esta-
cas p o n t i a g u d a s (L), fincadas e m nível a b a i x o d o c h ã o e,co-
bertas pára n ã o s e r e m detectadas p o r intrusos; Essa defesa
era ampliada p o r 21 covas (D) repletas d e espetos aliados e
camufladas p o r a r b u s t o s e m a t o . Havia u m a falsa triiíiá con-
d u c e n t e á o m o c a m b o , m u i t o b e m - p r o t e g i d a por lanças e ar-
madilhas c a m u f l a d a s . S o m e n t e q u a n d o os vigias (N) coloca-
v a m p r a n c h a s (C, O, M) sobre a l g u n s dos obstáculos é q u e

34. ACB, v. 1, n. 119, (24 jan. 1629).


35. Ver George P. Murdock, Africa: Its Peoples and Their Cul-
ture History (New York, 1959, 276. Ver também Richard W
Hull African Cities and Towns before the European Conquest
(New York, 1976), p. 33-49.

238
Kc|ii'ii!n)iuli> Patinares:
£s<ríHví, roivirvs <•' aiwhUs Rt-iisiíiicia tíscravo .ns'CtijAnta

Havia n o v e casas (X) separadas da p a r t e principal do p o v o a -


se tornava possível a e n t r a d a ou a saída. Os p o r t u g u e s e s
do; tal separação p o d e indicar s i m p l e s m e n t e r e c é m - c h e g a -
perceberam a eficácia desse m é t o d o d e defesa e e s f o r ç a v a m -
dos ou a liderança política dividida.. T a m b é m há a possibili-
se p o r a p o n t a r os p r o b l e m a s q u e ele criava para. a Coroa.
dade d e q u e fossem r e s i d ê n c i a s d e . u n i a linhagem q u e n ã o
Era u m tipo d e defesa b a s t a n t e d i f e r e n t e d a q u e l a dos q u i -
podia viver n o p o v o a d o principal, o ú m e s m o u m g r u p o d e
lombos angolanos, cercados p o r paliçadas, descritos peio pa-
j o v e n s d o sexo m a s c u l i n o aos q u a i s se exigisse q u e v i v e s s e m
dre A n t o n i o Gavazzi e m 1680." 1 A i n d a assim, utilizavam-se
separados d o resto d o g r u p o . C o n t u d o , esta última possibili-
armadilhas cobertas e estacas p o n t i a g u d a s para a p r o t e ç ã o
d a d e é duvidosa, u m a vez q u e os p o r t u g u e s e s teriam consi-
de p o v o a d o s na África, da Nigéria e m direção sul a t é o a n -
d e r a d o tal s i t u a ç ã o digna de m e n ç ã o , m á s os registros n a d a
tigo reino do C o n g o e t a m b é m e m Palmares e o u t r a s c o m u -
indicam. A religião dos h á b i i a h t é s é. desconhecida. Dois i n -
n i d a d e s d e fugitivos."
divíduos f o r a m m e n c i o n a d o s c a m o feiticeiros, u m deles s e n -
A agricultura n ã o era u m a atividade i m p o r t a n t e na d o , u m a m u l h e r idosa (R). Tradicionalmente, são m u l h e r e s
economia predatória d o B u r a c o de Tatu. A planta m o s t r a as líderes dos cultos iorúba ( c a n d o m b l é ) , ainda hoje pratica-
u m a treliça de m a r a c u j á (Q) e a l g u m a s h o r t a s p e q u e n a s (F), dos na Bahia, m a s as datas desse m o c a m b o (1743-63) p r e c e -
equivalentes, talvez, a h o r t a s d o Congo, m a s estás p a r e c e m d e m a i m p o r t a ç ã o e m larga escala d e escravos iorubá.
ter sido dedicadas a ò cultivo de ervas, e n ã o a p r o d u t o s agrí-
colas básicos. Não há indicação d e roças nas áreas ao r e d o r O B u r a c o de Tatu foi d e s t r u í d o e m 2 de s e t e m b r o d e
do m o c a m b o . Os fugitivos, p r o v a v e l m e n t e , e x t o r q u i a m ali- 1763. Sób o c o m a n d o de J o a q u i m da Çosta Cardoso, e m -
m e n t o s dos vizinhos, í» título d e tributos, e p o d e m ter s u - p r e e n d e u o a t a q u e u m a força d e d u z e n t o s h o m e n s , q u e c o n -
p l e m e n t a d o a dieta c o m p e i x e , já q u e o p o v o a d o ficava tava c o m u m a tropa d e gratiadeiròs, liiás èrá composta prin-
p r ó x i m o ao litoral." A partir d o relatório da destruição d o cipalmente d e u m a milícia auxiliar d e índios e de índios d e
q u i l o m b o p o d e - s e deduzir a l g u n s aspectos da sua vida inter- u m p o v o a d o e m Jaguaripe. Sitas o r d e n s dé batalha e r a m
na. Politicamente, o Buraco de Tatu possuía dois caudilhos p e r m a n e c e r e m c a m p o alé q u e "o q u i l o m b o t e n h a sido des-
ou capitães. A n t o n i o d e Sousa era u m capitão-de-guerra e truído, os negros capturados, os q u e resistirem mortos, a flo-
segundo n o c o m a n d o ; T h e ò d o r o , governava o q u i l o m b o resta revistada, às cabanas a as defesas q u e i m a d a s e as trin-
p r o p r i a m e n t e dito ("tive a d m i n i s t r a ç ã o d o q u i l o m b o " ) . Cada cheiras cobertas".'"' Antes d ó a t a q u e - q u e sè d e u provavel-
caudilho tinha u m a consorte, à qual c h a m a v a m de r a i n h a . m e n t e a partir d o lado costeiro desprotegido do povoado -
guias índios fizeram o r e c o n h e c i m e n t o das defesas d o qui-
lombo.- O fator surpresa foi uiha v a n t a g e m para a ofensiva,
até q u e u m a v e l h a h a b i t a n t e (T).deu o alarínc. A defesa, q u e
36. Antonio Cavazzi de Montecuccolo, htoria descrizione de contava com a l g u n s m e m b r o s a r m a d o s c o m arcos (P), foi es-
ire Regni: Congo, Matamba, ei Angola (Bolonha, 16S7), p.
magada pela superioridade n u m é r i c a dos adversários. Seu
205-7.
herói foi José Lopes, q u e disparou d u a s vezes contra os ata-
37. Georges Balandíer, La vie quotidienne au Rayaume de Kon-
cantes e b r a d o u , e m desafio, q u é era preciso hiais d e d u z e n -
go du xvi au xviii siècle (Paris, 1964); J. Van Wing, Éiudes Ba-
kongo (Louvain, 1921), p. 148. Raymond Kent, "Palmares: tos h o m e n s p a r a c a p t u r a d o ; Estava e n g a n a d o . M o r r e r a m
An African Kingdom in Brazil"; Journal of African Hisloiy, 6 q u a t r o fugitivos e 6Í fóráip aprisionados. Não há registro d e
p. 161-75, 1961. baixas n a tropa expedicionária.,
38. Sabe-se, com certeza, que alguns mocambos praticavam
a agricultura. Isso é indicado em vários documentos, tais
como os de 1796 sobre o quilombo de O robô, reimpressos
em Donald Pierson, Negroes in Brazil, 2. cd, (Carbondale, 111.
39. ÀHU, Bahia pap. avul., n.,6649: .
1967), p. 49. Tais práticas, entretanto, eram difíceis, a me-
nos qiie o mocambo fosse isolado a relativamente estável.

241 231
Rrpi'iuantlo Palmares:
Estravút. realm < r/Mtks Resistência escrava na Colônia

Após a c a p t u r a o s fugitivos f o r a m e n c a r c e r a d o s e m M I N A S GERAIS: ECONOMIA MINERADORA


Salvador. 31 deles, c u j o ú n i c o crime fora escapar da escravi-
dão, foram m a r c a d o s c o m a letra F (fugido), s e g u n d o m a n - Os padrões d e f o r m a ç ã o d o s q u i l o m b o s e as reações
d a d o régio dé 3 de m a r ç o de 1741. 40 Depois q u e os proprie- da sociedade colonial a t é agora e x a m i n a d o s n o caso da Ba-
tários pagaram a o t è s ò ú r o real as custas d a c a p t u r a , os escra- hia se reproduziram, ein g r a n d e parte, nas áreas de g a r i m p o
vos foram reconduzidos iiò cativeiro. A l g u n s deles, c o n t u d o , d o centro-sul do Brasil, enibora com certas diferenças, c o m o
l o r a m escolhidos para castigos e x e m p l a r e s . A n t o n i o d e Sou- se poderia esperar, dada a d i f e r e n t e f o r m a ç ã o social e eco-
sa, capitão do q u i l o m b o , foi c o n d e n a d o a a ç o i t a m e n t o públi- n ô m i c a da região. A descoberta d e ricas jazidas d e o u r o na
co a sentenciado p e r p e t u a tiiente às galés. Seu a m i g o Mjgiiet região n i o t u a n h o s a q u e sé t o r n o u conhecida c o m o Minas
Cosme, " c o n h e ç i d ò conto g r a n d e ladrão", recebeu a s e n t e n - Gerais e o s u b s e q ü e n t e d e s e n v o l v i m e n t o de u m a sociedade
ça de a ç o j t a m e b t ó é s e i s a n o s ' a o r e m o . T h e o d o r o e José Lo- escravocrata g e r a r a m condições, q u e f a v o r e c i a m especial-
pes foram açoitados p u b l i c a m e n t e e c o n d e n a d o s a dez anos m e n t e os escravos fugitivos e a f o r m a ç ã o de mocambos. 1 1 Os
n a s galés. José Piahuy, " g r a n d e sertanista e ladrão", recebeu escravos perfaziam e n t r e u m terço e m e t a d e da população
d u z e n t a s chibatadas e q u a t r o a n o s nas galés, e n q u a n t o q u e total da capitania d u r a n t e a m a i o r parte do século XVIII, e
o crioulo L e o n a r d o recebeu igual n ú m e r o de chicotadas. os pardos livres c o n s t i t u í a m , 4 0 % do total p o r volta d e
J o ã o Baptista, o agricultor m u l a t o q u e era cúmplice dos f u - 1 8 2 1 . " É m c o n j u n t o , p o r t a n t o , a p o p u l a ç ã o afro-brasileira
gitivos, foi c o n d e n a d o a cinco a n o s de exílio penal e a pagar escrava e livre perfazia cerca de três q u a r t o s dos habitantes,
u m a alta multa. 4 1 As d u a s rainhas r e c e b e r a m s e n t e n ç a s rela-
tivamente brandas.
0 Buraco de Tatu é u m e x e m p l o q u e permite a p r e e n - 42. Rxtstè atualmente iíterattírá significativa sobre os qui-
der muitos aspectos da história das c o m u n i d a d e s d e fugitivos lombos de Minas Gerais.: Além de Almeida Barbosa, Negros
n o Brasil. De t a m a n h o relativamente p e q u e n o {menos de e quilombos em: Mhw.Geiais,citado acintò, ver também A. J,
100 habitantes), localizadas nas cercanias d e c e n t r o s popula- R. Russell- Wood, The Black Man in Slavery and Freedom in Co-
cionais e vivendo à custa dos vizinhos, essas c o m u n i d a d e s lonial Brazil, (New York,: i'982); Julio Piiiio Vallejos, "Slave
criaram tradições sincréticas, f u n d i n d o e l e m e n t o s brasileiros Control and Resistance iiï Colonial Minas Gerais"; Journal of
latin American Studies, L7; p. 1-34, J985. Carlos Magno Giii-
e africanos. Parece q u e seus habitantes t a m b é m p r o v i n h a m
txíaràes, A negação da ordem escravista (São Paulo, 1988), tem
de várias origens, crioulos e africanos de diversas etnias. E m - Valor especial porque conténí uma lista de quilombos de Mi-
b o r a roubassem t a n t o de escravos e de mestiços livres q u a n - nas Gerais e cartas patentes para cavadores de escravos. Ver
to de brancos, havia a l g u n s libertos dispostos a colaborar com também seu artigo resumido "tis Quilombos do século do
os fugitivos. A expedição militar punitiva e o uso d e índios re- ouro", Eilttdot Bcàhâttifàis • p!;' 7-$5> 1988. Algumas de
presentavam a reação usual dos colonialistas aos m o c a m b o s . suas descobertas, e outros materiais novos são apresentados
Vivendo d e astúcia e ousadia, os fugitivos d o Buraco d e Tatu por Kathleeivjòan ijiggíris eiri ."Thé Slave. Society in Eigh-
m a n t i v e r a m sua i n d e p e n d ê n c i a p o r vinte anos, a t é q u e seus teenthCenltiry .Sábárá: /A Cúmiiuínity Study in Colonial
Brazil" (dissertação de ^doutorado; Yale University, 1987)
atos e a ameaça à própria existência das a u t o r i d a d e s coloniais 258-307. Também importante é C. R. Boxer, The Golden Age
resultaram no e x t e r m í n i o da c o m u n i d a d e . E m m u i t o s aspec- of Brazil: 1695-1750 (Berkeley, 1962).
tos, a história d o B u r a c o d e Tiitu parece ser u m e x e m p l o típi-
co da hisiófia das c o m u n i d a d e s de fugitivos d o Brasil. 43. A. J. R. Riisseli-VVood. vTechnol<sgy án"d Society: The Im-
pact of Gold Mining on tlié . Inst i juïion olSIavery in Portu-
guese America"; Journal of Economic History, v. 34, n. 1, j>. 59-
83, Mar. 1974. A. estrutura demográfica dê Minas Gerais foi
40. BGUC, cod. 707, Livro de registro da Relação. analisada por Iraci dei Nero da Costa numa série de estudos.
41. AHU, iJahia pap. aviil. ». 6649.

242
RepensaiHlo Palmarei:
Esttaws. roceiros e rebeldes Resistência escrava na Colônia

Os escravos e x e c u t a v a m q u a s e todas as tarefas, m a s faziam e 1756, m a s o p r o b l e m a principal a i n d a e r a m os m o c a m b o s .


p r i n c i p a l m e n t e a m a i o r p a r t e d o trabalho d e m i n e r a ç ã o . D u r a n t e t o d o o século x y i l í , governadores, m i n e r a d o r e s ,
Seus preços e r a m altos e e r a m m u i t o valorizados. C o n t a n t o a u t o r i d a d e s d a Coroa e c â m a r a s municipais q u e i x a v a m - s e
q u e fossem produtivos e e n t r e g a s s e m aos s e n h o r e s o o u r o d e r o u b o s , assassinatos, r a p t o s e o u t r o s crimes, c o m e t i d o s
e n c o n t r a d o , os escravos t i n h a m , com freqüência, c o n s i d e r á - pelos "calhambolás", os h a b i t a n t e s dós m o c a m b o s . A r e a ç ã o
vel liberdade d e m o v i m e n t o n a região d o garimpo.-" O vas- e m M i n a s a s s e m e l h o u - s e à das regiões costeiras dos e n g e -
to mar de escravos e mestiços livres era u m a m b i e n t e sim- nhos. E m Minas, coihò na Bahia, as tentativas de usar í n d i o s
pático aos fugitivos. A n a t u r e z a d e s c o n t í n u a dos p o v o a d o s e livres c o m o caçadores d e escravos e a instalação de p o v o a -
a topografia m o n t a n h o s a f o r n e c i a m g r a n d e s tratos inacessí- dos indígenas e, níais tarde, d e tropas régias com o m e s m o
veis, próprios para os e s c o n d e r i j o s e, m e s m o e m m u i t a s propósito, t i v e r a m pouca repercússão. Ademais, M i n a s ti-
c o n c e n t r a ç õ e s urbanas, a g r a n d e p o p u l a ç ã o mestiça livre di- n h a o u t r o s p r o b l e m a s : a indocilldade de sua p o p u l a ç ã o li-
ficultava a descoberta tios fugitivos. Ademais, c o m o os fugi- vre. Nos p r i m e i r o s a n o s da colonização, h o u v e u m a b r e v e
tivos q u a s e s e m p r e pociiaín f o r n e c e r o u r o r o u b a d o ou en-, guerra civil n a área è i n ú m e r o s levarités contra os i m p o s t o s
contrado, a l g u n s brancos se d i s p u n h a m a c o o p e r a r c o m os d o g o v e r n o . Os mineiros t a m b é m se recusavam a p a g a r u m
m o c a m b o s ou proteger foragidos. Por fim, n a s c o n d i ç õ e s i m p o s t o p e l o controle dos fugitivos."' Foi só e m 1744 q u e os
t u r b u l e n t a s e sem lei d a . j o y e m Minas Gerais, o$ s e n h o r e s juízes da Coroa e m Minas Gerais t i v e r a m autorização p a r a
c o s t u m a v a m fornecer a r m a s aos escravos para q u e partici- l e v a n t a r verba (cerca d e 300 oitavas d e ouro) para p a g a r as
passem d e vários m o v i m e n t o s contra o g o v e r n o e na G u e r - o p e r a ç õ e s a n t i q u i l o m b o . " ',:-.
ra dos 13 m boa bas." . O ativista c racista C o n d e dcvAsSumar ( 1 7 1 7 - 2 1 ) fez
Tlido isso contribuía pára u m a situação Instável q u a n - do c o n t r o l e dos m o c a m b o ? u m a p r e o c u p a ç ã o central d e seu
to no c o n t r o l e dos escravos « gerava u m a sensação de inse- g o v e r n o . Assim c o m ó setí antecessor, sugeriu a r m a r í n d i o s
gurança e m e d o e n t r e as a u t o r i d a d e s da Coroa, as câmaras e usá-los c o n t o caçadores dç escravos. Em 1717 p r o p ô s a
municipais e a p o p u l a ç ã o branca e m geral. Circularam ru- n o m e a ç ã o de c a p i t ã e s - d o - m a t o e, p o r volta de 1722, o s pos-
mores d e revoltas p l a n e j a d a s petos escravos e m 1719, 1725 tos já t i n h a m sido criados e fora estabelecido u m c o n j u n t o
de r e g i m e n t o s , c o m .unia escala m ó v e l d é r e c o m p e n s a s pela
d e v o l u ç ã o d e escravos foragidos, d e p e n d e n d o da d i s t â n c i a
que, o capitão tivesse de percorrer. 41 ' A diíiculdade d e r e c u -
tais como Populações mineiras {São Paulo, 1981); Vila Rica: jjerar escravos dos m o c a m b o s está expressa n o fato d e u m
População (1719-1826), (São Paulo, 1979) e por Francisco
Vidal I.una, Minas Gerais: Escravos e senhores (São Paulo,
1981). Ver lambem, Minas colonial: economia e sociedade
(São Paulo, 1982) de autoria de ambos. 46. Consulta, Conselho Ultramarino (22 Dez. 1718) IHGÜ,
44. Ponto salientado por Higgins, "The Slave Society", p. Arq. 1.1,25. j'/! v"; j.':
258-307. Creio, porém, que o alto número de fugitivos e de
quilombos pode ser tanto características de regiões de fron- 47.-Provisão (2 Dez; ; AN&J • Còd. 542, í. 24-25.

teira em geral quanto resultado da estrutura incomum de 48. Acerca da çàíiipàníiá de ÁSSumar t'oriira os quilombos,
Minas Gerais. Há indicações de que a freqüência de forma- ver Francisco Antônio Lòpes, ."Çârnàra e cadeia de Villa
ção de quilombos começou a cair quando a população escra- Rica*; Anuário do Museu da Inconfidência {Wi), p. 103-251,
va tornou-se demograficamente mais estável e houve um que reimpriHKVdocumehtos impqi lanxcíi". O comentário de
deslocalinento do garimpo para a agricultura mista. Assumar Sobre o fracasso dos íiulios iiit tentativa de impedir
a formação de quilombos éncoiitra-se em AHU, Minas pap.
45. Vallejos, "Slave Control"; 6-8; Russell-Wood, The Black avul. Coroa áo Çoiicíe de Assiimár (12 jan. 1719).
Man, p. 42.

245 231
RepcuiamUi Palmares:
Escravos. roceiros « rebeldes Resistência escrava na Colônia

m o d e tal preocupação, m a s n ã o o único. As câmaras m u n i -


fugitivo c a p t u r a d o n u m r a i o d e u m a légua da residência do
cipais de Minas t a m b é m p r o c u r a v a m eliminar as ameaças à
c a p l t ã o - d o - m a t o valer a r e c o m p e n s a de 4 oitavas de o u r o , o r d e m social por i n t e r m é d i o de vários decréios q u e visavam
a o passo q u e o c a p t u r a d o e m q u i l o m b o (definido c o m o c o n t r o l a r a população negra iivre e várias providências con-
a c a m p a m e n t o de mais d e q u a t r o n e g r o s c o m casas erigidas) tras os fugitivos, d e n t r e as quais i n ú m e r a s operações anti-
valia 2 0 oitavas. 40 U m e s i t i d o m o d e r n o d e f o n t e s ipcais con- n t o c a m b o . Em 1735 a c â m a r a de Vila Rica m a n d o u decepar
seguiti identificar 1 17 q u i l o m b o s c o n h e c i d o s na região an- u m a das m ã o s c o m o p u n i ç ã o p a r a escravos fugitivos.'"' Talvez
tes d e 1800 e a n o t a ç õ e s d e q u a s e 5 0 0 c a ç a d o r e s d e escravos a mais i n f a m e das ações foi a bárbara r e c o m e n d a ç ã o da câ-
d u r a n t e o século XylIl. , , , mara de Mariana para q u e cortassem o tendão de Aquiles
Assumar e várias c â m a r a s m u n i c i p a i s d e M i n a s Gerais dos fugitivos, q u a n d o c a p t u r a d o s , o q u e lhes permitiria tra-
p r e o c u p a v a m - s e t a n t o c o m o problema d o c o n t r o l e dos es- balhar claudicando, m a s tornaria a f u g a q u a s e impossível.
cravos e dos m o c a m b o s q u e estavam dispostos a Sugerir ou Tal r e c o m e n d a ç ã o foi rispidaiííente rejeitada pelo Vice-Rei, o
e x p e r i m e n t a r u m a série d e m e d i d a s severas e e x t r a o r d i n á - C o n d e d e Arcos, c o m o ato indigno de cristãos, mas é óbvio
rias, visando n ã o s o m e n t e b s fugitivos, m a s t a m b é m òs q u e ele n ã o vivia e m M i h à s Gerais. Vale n o t a r q u e essa su-
crioulos livres. A s s u m a r foi o responsável p o r u m a tentativa gestão da câmara de Mariana, f r e q ü e n t e m e n t e citada p o r
de limitar o n ú m e r o d e m a n u m i s s õ e s na região, c o m 0 argu- historiadores, fazia parte d e ü m apelo mais geral, cujo argu-
m e n t o de q u e a concessão da liberdade conduzia os escravos, m e n t o era q u e os crioulos livres daquela capitania, a j u d a -
ao r o u b o e à prostituição. T a m b é m salientou q u e o g r a n d e v a m os escravos foragidos e m seus crimes e q u e se d e v i a m
n ú m e r o de negros livres q u e c o n t r o l a v a m p r o p r i e d a d e s na i m p o r medidas q u e liúiitasSem ás m a n u m i s s õ e s e a movi-
região ameaçava a h i e r a r q u i a social e m a n d o u proibir os ne- m e n t a ç ã o da população, negra livre e os proibissem de por-
gros livres de possuir escravos e de ser p a d r i n h o de escravo. tar, ou m e s m o d e possuir artrias.A'
Era impossível p ô r e m prática tais medidas, m a s elas de-
Essas posturas e t e m o r e s g e r a v a m , às vezes, conse-
m o n s t r a v a m q u e A s s u m a r teinia u m a o r d e m social e m q u e
q ü ê n c i a s deploráveis. E m 1716 u m q u i l o m b o c o m 8 0 a 100
as fronteiras e n t r e classes e raças se tornassem indistintas. negros, òs quais v i n h a m a s s a l t a n d o ás estradas p r ó x i m a s a
Para a ameaça dos m o c a m b o s o C o n d e t i n h a o u t r o s r e m é - Vila Real e Vila Nova da R a i n h a , foi. atacado sem êxito por
dios, Ao contrário da Bahia, o n d e as operações a n t i q u l l o m - titná expedição punitiva. AS d u a s cidades Organizaram u m a
b o e r a m deixadas a c a r g o dos c a p i t ã e s - d o - m a t o o u d e expe- segunifá força, de 150 h o m e n s , q u e destruiu o quilombo as-
dições oficialmente patrocinadas, n o g o v e r n o d e Assumar sassinando e m fúria vários d e séús habitantes m e s m o após a
q u a l q u e r u n i q u e desejasse a t a c a r u m q u i l o m b o poderia rendição. Ó juiz da Coroa recusou-se a processar os culpa-
fazê-lo, com ás a r m a s q u e fossem necessárias. 4 1 dos, t e m e n d o q u e f u t u r a m e n t e n i n g u é m mais aderisse a tais
Tais m e d i d a s i n d i c a m u m nível d e i n s e g u r a n ç a e m e d o expedições.' 4 O Conselho U l t r a m a r i n o e m Lisboa l a m e n t o u
nas zonas do g a r i m p o q u e parece exceder o das regiões das esses "excessos", mas apoiou o juiz. embora n o regimento
grandes lavouras, A s s u m a r talvez fosse u m e x e m p l o extre- dos capilâes-dO-mato SC advertisse coiitra o uso excessivo da
f o r ç a . " Além disso, h a maioria d a s vezes os q u i l o m b o s e os

49. O regimento dos capitães do mato foi publicado em


1715 e republicado em 1722. A versão que permaneceu em 52. Russell-VVoòd, The fl/áírt Man, p. 42-3.
vigor foi a de 17 de dezembro de 1724. Ver ANTT, Mss. do
Urasll 2 8 , 3 Ü 7 - 3 0 9 V . 53. A PU, Ordens régias 55, i,99-9<) v.
50. Guimarães, A negação cia ordem escravista, p. 129-71. 54. "Ouvidor do Ríò das Veilías dá Conta...", IHGB, Ara.
1.1.24. ' ... ; ; /
51. Ver a documentação pertinente em Lopes, "Câmara e
cadeia", e também em Russell-Wood, The Black Man, p. 42.

246
247
i
Repensando Pai mares;
Escravos. mviroí e ftbehies Rcsislfinla estrava na Colônia

Os dois ntaioreS quilortibqs de Mlhas Gerais, o d e A m b r ó s i o ,


escravos fugitivos e s t a v a m fora do alcance das n o r m a s da so-
d e s t r u í d o c m 1746, e o Q u i l o m b o Grande, a t a c a d o e elimi-
ciedade civil. Em 1738, u m pedido dos residentes de Vila
n a d o e m 1759,. a b r i g a v a m giatide n ú m e r o de fugitivos, este
Rica para q u e n ã o fossem processados pela m o r t e d e c a l h a m -
último c o n t e n d o talvez rriais d e mil h a b i t a n t e s / " Esses qui-
bolas recebeu resposta favorável d o governador. v >
lombos, p o r é m , e r a m e x c e p c i o n a l m e n t e g r a n d e s .
Todos os m é t o d o s tradicionais d e c o n t r o l e d e m o c a m -
bos e fugitivos f o r a m e x p e r i m e n t a d o s c m M i n a s Gerais e, M i n a s Gerais, p o r t a n t o , a p e s a r da diferença e m base
além deles, a l g u n s o u t r o s e x t r a o r d i n á r i o s . A g r a n d e p o p u - ecoriôniica e c o n f i g u r a ç ã o social e racial, r e p r o d u z i u e in-
lação d e n e g r o s livres na capitania e os m u i t o pobres "va- tensificou m u i t a s das c o n d i ç õ e s ' q u e c o n d u z i r a m ü f o r m a ç ã o
dios" e r a m u m a ameaça à o r d e m social, q u e , c o n t u d o , p o - d e m o c a m b o s n a s z u n a s . d e agricultura d e e x p o r t a ç ã o . As
deria ser e f i c a z m e n t e mobilizada c o n t r a os q u i l o m b o s . E m condições primitivas, a considerável Uberdade d e m o v i m e n -
várias ocasiões h o u v e esforços para e n g a j á - l o s nas ativida- to permitida a o s escravos n o g a r i m p o , a r e d e u r b a n a e a
des antiquilombo,*' m a s tais t e n t a t i v a s p o u c o c o n t r i b u í r a m composição racial da règião c o n t r i b u í r a m para a f o r m a ç ã o
para erradicar o p r o b l e m a . Tanto os p o b r e s livres q u a n t o os d e c o m u n i d a d e s d e fugitivos n a regiâó. As r e a ç õ e s d o g o v e r -
escravos f u g i d o s eráin m a n i f e s t a ç õ e s das c o n d i ç õ e s i n e r e n - n o colonial a o p r o b l e m a e m M i n a s Gerais e as técnicas uti-
tes àquela sociedade. lizadas p a r a c o m b a t ê - l o t a m b é m f o r a m S e m e l h a n t e s à s apli-
cadas e m o u t r o s locais da colônia. E s u r p r e e n d e n t e o f a t o d e
Os q u i l o m b o s e r a m , n a época, u m problema e n d ê m i -
q u e o t e r m o q u i l o m b o fosse m u i t o m a i s u s a d o e m M i n a s d o
co e m M i n a s Gerais. Eram n u m e r o s o s e às vezes a t i n g i a m ta-
q u e n a Bahia, o n d e o t e r m o preferido era m o c a m b o , e m b o -
m a n h o considerável, embora t a m b é m nesse caso seja difícil
ra a m b a s as designações estivessem e m u s o p o r v o l t a d e
conhecer m u i t a coisa acerca d e sua organização i n t e r n a ,
m e a d o s do' século XVIIÍ.
u m a vez q u e d e v e m o s nos basear n a s descrições d e destrui-
ções de quilombos. Por exemplo, o relato de u m a e x p e d i ç ã o A p a l a v r a quilombo, n a v e r d a d e , p a s s o u a significar
q u e resgatou algumas crianças b r a n c a s d e u m q u i l o m b o , co- a c a m p a m e n t o d e q u a l q u e r g r u p o de foras-da-lei, t a n t o q u e
m e n t a v a q u e " u m m u l a t o intitulado rei, u m a c o n c u b i n a e u m f u n c i o n á r i o d e Vila Rica relatou, e m Í 7 3 7 , p r e p a r a t i v o s
q u a t r o escravos" p e r m á n e r a m à solta. 5 * O g o v e r n a d o r Go- para destruir " u m q u i l o m b o d e b r a n c o s omíziados p o r cri-
m e s Freire d e Andrada descreveu u m a t a q u e contra litn "pe- m e s a t r o c e s V C o n t u d o , o termo- foi u s a d o p r i n c i p a l m e n t e
queno" q u i l o m b o c o m mais de J 0 0 negros e m 1746. Obser- jjârá designar c o m u n i d a d e s d e escravos fugidos, t o r n a n d o -
vou que f o r a m necessários três a t a q u e s para v e n c e r a resis- Se símbolo da resistência; escrava n o Brasil e, e m é p o c a s
tência e q u e m o r r e r a m cerca de 20, c a p t u r a d o s mais d e 7 0 e rriais aluais, d e u n i m o v i m e n t o péla i g u a l d a d e para os ne-
t a m b é m u m g r a n d e n ú m e r o d e m u l h e r e s . Esse " p e q u e n o " gros neste país. • •. :',..•
q u i l o m b o d e v e ter abrigado e n t r e c e m a d u z e n t a s pessoas.'" A diferença liffjjüístiçá.entre Bahia e Minas G e r a i s é
a t é certo p o n t o cronojógica e relaciona-se à história da g r a n -
d e c o m u n i d a d e d e fugitivos de Palmares, q u e resistiu q u a s e
55. Regimento dos capitães do mato, ANTT Mss. do Brasil Um século, a t o d a s as tentativas de desiruí-la. Para os a d m i -
28, fs. 307-309 v. nistradores régios, Palmares tornou-se o símbolo de c o m o
q u a l q u e r c o m u n i d a d e d e fugitivos poderia tornar-se u m a
56. Laura de Mello e Souza, Desclassificados da Oura. (Rio de
Janeiro,1982), p. 113.
57. Mello e Souza, Desclassificados, 72.84.
60. Almeida Uarhosa, Negros e quilombos, p. 31-53.
58. ANTT, Mss. do Brasil 11, fs. 153-54.
61. Assumar à Coroa (20 al>r. 1719) citado em Vallejos "Sla-
59. Conselho Ultramarino a Gomes Freire (6 mai 1747),
ve Control", p. 15.
AHU, Rio de Janeiro pap. avul. caixa 22.

258 249
Ki-jiMisaiidu Palmares:
.I?»r<m>í, roceiros e rebeldes Resistência escrava na Oilôm.i

do, m a s isso n ã o i m p e d e q u e p r o c u r e m escrever sua histó-


ameaça real à sociedade civil eiii u m a sociedade tão d e p e n -
ria o u romantizá-la c ò m o u m a "Tróia Negra" ou u m a " r e p ú -
d e n t e da escravidão. O C o n d e de Assurnar, ao escrever e m
blica". Mais r e c e n t e m e n t e , Palmares assumiu i m p o r t â n c i a
1719 que "os negros (de Minas) p o d e m ser t e n t a d o s a repe- simbólica para os negros brasileiros e m sua luta p o r igual-
tir as ações d e Pajmares e m P e r n a m b u c o , incentivados p o r d a d e racial e social. M
seu gráride n ú m e r o " , estava d e c l a r a n d o u m t e m o r verdadei-
Há m u i t o se r e c o n h e c e q u e Palmares tinha raízes em
r o . " Embora Palmares fosse atfpíco e m t a m a n h o e d u r a ç ã o ,
alg utnas f o r m a s tradicionais africanas de organização políti-
n ã o se p o d e separar sua história da d e outras c o m u n i d a d e s y
ca e social, e m b o r a , c o m o a maioria das c o m u n i d a d e s d e fu-
d e fugitivos, c o n s i d e r a n d o , n o m í n i m o , sua influência sobre
a forma pela qual os proprietários d e escravos é as a u t o r i d a - gitivos, combinasse tais f o r m a s c o m aspectos da cultura eu-
des da Coroa e n c á r a v d m ò p r o b l e m a . Além disso, devido a ropéia e adaptações e s p e t i f i c a m e n t e locais." Palmares não
sua longevidade e m a g n i t u d e é a p longo c o n t a t o q u e a socie- era u m a c o m u n i d a d e - ú n i c a , nias u m a série de m o c a m b o s
d a d e colonial m a n t e v e cdtii ele, Palmares oferece a l g u m a s unidos e m u m único reino nèoaíricano.' , * , Os relatos de várias
o p o r t u n i d a d e s d e p e n e t r a ç ã o n a dinâmica i n t e r n a d e u m a t e s t e m u n h a s oculares revelam m u i t o sobre a organização in-
c o m u n i d a d e d e fugitivos.

de 1982 e originalmente publicado em espanhol como Pal-


REPENSANDO PALMARES mares - la guerra negra (Montevidéu, 1971). Há o trabalho de
M. M. de Freitas, mais antigo porém ainda útil, O reino negro
Ao t r a t a r da q u e s t ã o das c o m u n i d a d e s d e fugitivos n o cie Palmares 2 v. (Rio de Janeiro, Í954).
Brasil é necessário ter-se e m m e n t e o q u i l o m b o d o s Palma- 64. Há indicações do significado simbólico de Palmares em
res. Localizado n o i n t e r i o r das Alagoas, Palmares foi a mais trabalhos como os de Clóvis Moura, Brasil: as raízes do protes-
to negro (São Paulo .1983); Abdias do Nascimento, O negro re-
longeva e a m a i o r d a s c o m u n i d a d e s de fugitivos. Persistiu
voltado (Rio de. Janeiro,. 1968), e seu mais recente Quiloin-
d u r a n t e q u a s e todo ò s é c u l o XVII (16057-1694), a p e s a r das bismo (Petropoiis, 1980). Dois. filmes, "Ganga Zumba*
tentativas enérgicas de e l i m i n á - l o , t a n t o dos g o v e r n o s locais (1963) e "Quilombo!" (1984)/ ambos dirigidos por Carlos
h o l a n d ê s e p o r t u g u ê s q u a n t o dos residentes das capitanias Üiegues, trai a rain deste tema. Em 1984, houve um congres-
vizinhas. Devido a seu s u p o s t o t a m a n h o (mais d e 2 0 . 0 0 0 so em Alagoas para comemorar a história e a importância de
habitantes), l o n g e v i d a d e e c o n t a t o c o n t í n u o c o m a socieda- Palmares.
d e colonial, c o n h e c e - s e m a i s s o b r e sua e s t r u t u r a Interna 65. Os aspectos africanos de, Palmares fascinam os estudio-
q u e sobre a maioria d o s . m o c a m b o s . Ainda assim, a d o c u - sos desde que Nina Rodrigues escreveu em 1906 sua ainda
m e n t a ç ã o sobre Palmares n ã o é extensa e se c o n c e n t r a , e m útil descrição daquela comunidade. Ver Os africanos no Brasil
geral, na ú l t i m a década d e suà existência a na d e s t r u i ç ã o fi- (São Paulo, 1933). A téníáüva mais sólicía de identificar os
n a l . " Por c o n s e g u i n t e , m u i t o ainda p e r m a n e c e d e s c o n h e c l - aspectos africanos de Palmares fora in aS de Raymond Kent,
'Palmares: ÂirAÍrftàii State; In Bráiíil". Journal of African His-
tory 6 (1965), p. 1(51-75, mas, embora Kent trate de muitos
temas importantes; nem serripre se pode confiar em suas
62. Ver a discussSo em Higgins, "The Slave Society in Eigh- traduções e diseuksfíés eihográficas,
teenth Century Sabará", p. 258-62. 66. O antropólògò alemão Stephan Paírnié assinalou que a
63. Os relatos clássicos sobre Palmares são: Edison Carnei- estrutura do "reino" de Palmares se igualava à dos Estados
ro, O quilombo dos Palmares, ed. (Rio de Janeiro, 1966), baniu contemporâneos, conio o reino do Congo. Stephan
originalmente publicado em espanhol como Guerras de los Pal mie, "African States in tile. New. World? ? Remarks on
Palmares (Cidade do Me'xico, 1946); Décio Freitas, Palmares: the Tradition of Transatlantic Resistance" (ms., 1988).
A guerra dos escravos (Porto Alegre, 1971), agora na 4. ed.

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KcpcMiuimt» Palmares:
Escravos, roceiros t rebeldes Uesistêiiria escrava «a Colônia

posto e m o r t o pelo s o b r i n h o Z u m b i / " A guerra c o n t i n u a v a .


t e m a de Palmares, embora d e v a m o s r e c o n h e c e r q u e esse
Na década d e 1680, q u a s e todo a n o , jíartiam expedições
quilombo teve t a m b é m u m a história e q u e a organização e
contra os fugitivos, m a s c ò m p o u c o ê*ito.. Os defensores de
as instituições observadas n o final do século XVII n ã o e r a m
Palmares t o r n a r a m - s e s e n h o r e s da a r t e dá guerrilha, peritos
obrigatoriamenie as m e s m a s d o p e r í o d o inicial. Além disso,
n o uso da c a m u f l a g e m e e m emboscadas. Frustrados, os a d -
o t a m a n h o de Palmares t a m b é m m u d o u c o m o decorrer d o
ministradores coloniais p o r t u g u e s e s a d o t a r a m n o v a tática.
tempo. Um relato de m e a d o s d o século XVII descreve Palma-
Implacáveis guerreiros índlòs e escravos cie São Paulo, q u e
res dividida e m dois a g r u p a m e n t o s principais e vários outros
t i n h a m sido usados na Bahia para desbravar o sertão, f o r a m
menores, e s t i m a n d o a população dos diversos a g r u p a m e n t o s
c o n t r a t a d o s para e l i m i n a r Palmares. O a t á q u e teve Início e m
e m cerca de o n z e mil habitantes. Uma estimativa posterior e
1692 e, d u r a n t e dois anos, com a j u d a de tiropas locais e d o s
f r e q ü e n t e m e n t e repetida a u m e n t a v a para 30.000 esse n ú -
indispensáveis aliados índios, l e n t a m e n t e rcduziú-se o perí-
mero, que parece exagerado. D u r a n t e a m a i o r p a r t e dó sécu-
m e t r o das defesas d o m o c a m b o principal: A batalha f i n a l
lo XVII, P e r n a m b u c o e as. capitanias a d j a c e n t e s possuíam
d e u - s e e m fevereiro de 1694; M o r r e r a m 2 0 0 fugitivos, 5 0 0
200 engenhos, com u m a média de 100 escravos e m cada
f o r a m capturados e o u t r o s 200, s e g u n d o relatos, p r e f e r i r a m
u m . Em o u t r a s palavras, a estimativa d e 20 a 30 mil habitan-
c o m e t e r suicídio a render-se. Zumbi, f u g i n d o após ter sido
tes em Palmares Igualaria o n ú m e r o total de escravos na eco-
ferido, loi traído, c a p t u r a d o è decapitado.: PaImares n ã o m a i s
nomia açucareira da região/ 7 Embora pareça u m n ú m e r o
existia; mas até 1746 á i h d á f u g i a m escravos para o local
improvável. Palmares foi, i n d u b i t a v e l m e n t e , a maior c o m u -
o n d e se situara e n o v a m e n t e f o r m a v a m g r u p o s d e fugitivos.
nidade de fugitivos existente no Brasil.
D u r a n t e sua longa história Palmares foi c o n s t a n t e - Os o b s e r v a d o r e s . e u r o p e u s néiii s e m p r e e n t e n d i a m o
m e n t e atacado. Os h o l a n d e s e s o r g a n i z a r a m três expedições q u e viam, mas de suas descrições liça claro q u e Palmares e r a
contra o q u i l o m b o e, depois q u e Portugal r e c u p e r o u o c o n - u m estado organizado sob ò controle de u m rei, com c h e f e s
trole do nordeste e m 1654, a guerra prosseguiu. Entre 1672 subordinados e m p o v o a d o s apartados. Embora existam al-
e 1680 h o u v e u m a expedição p r a t i c a m e n t e a cada a n o . Os g u n s rejatos q u e m e n c i o n a m Um p r o t é s s o d e eleição, a lide-
fugitivos resistiam b r a v a m e n t e , mas a p r e s s ã o constante os rança de u m p o v o a d o pela m ã e d e Ganga Z u m b a e a subida
levou a pedir a paz a u m g o v e r n a d o r d e P e r n a m b u c o recém- d e Zumbi - s o b r i n h o dele - a ò trório, indicam a existência
chegado c m 1678. O "rei" de Palmares, Ganga Zumba, h a - d e u m a linhagem real/".As.posturas cerimoniais e d e m o n s -
via, na verdade, t e n t a d o essa política a cada n o v o governa- trações de obediência erigidas h a presença d o rei i n d i c a m
dor. À semelhança dos m a r r o n s da Jamaica, havia p r o m e t i - f o r m a s de m o n a r q u i a africana, p s fugitivos d e Palmares v i -
do lealdade à coroa portuguesa e a d e v o l u ç ã o de novos fugi-
tivos cm troca do r e c o n h e c i m e n t o da liberdade do quilom-
bo. Os portugueses aceitaram tais condições, m a s logo as vio- 68. Décio Frei tas, [Palmares a prese n lá uma biografia fasci-
laram, e d e n t r o da própria Palmares d e u - s e u m a revolta na nante de Zumbi, mpstràndo-p-CompJiphiem notável, captu-
qual Ganga Z u m b a , o chefe a favor da a c o m o d a ç ã o , foi de- rado na infância erri um ataque a Palmares, criado e educa-
do em latim e poríugiies pór úin padre em Porto Calvo, E m
í 670, aos quinze anps de idade, o jovem foge de volta para
Palmares e posteriormente se loriia seu líder. No trabalho de
Freitas não estãò;ci.árai as fònies exatas clessa biografia.
67. Francisco de Brito Freyre, Nova Lusitânia. História da guer- 69. Também existem relatos,de ^eleições" em quilombos d e
ra brasílica (Lisboa, 1675), p. 280-82. (Usei o facsímile da se- Angola. Ver Antonio de Oliveira Cadornega, História das
gunda edição. Recife, 1977). guerras angolanas,/} v. (Lisboa; 1940), II, 221.

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Repensando Calmares:
Esativot, roceiros e rebeldes
Resistência escrava na Colônia

viam da agricultura, embtíra, c o m o nos outros m o c a m b o s , e x p e r i ê n c i a c o m u m a série de instituições para a i n t e g r a -


t a m b é m negociassem a r m a s e o u t r o s p r o d u t o s c o m os h a b i - ção de p o v o s d i f e r e n t e s e a geração d e solidariedades e n t r e
tantes b r a n c o s das r e d o n d e z a s e assaltassem à p r o c u r a d e l i n h a g e n s étnicas"'.
mulheres, g a d o e alijrtemos. C o m o e m multas sociedades Existe, creio, u m a história m a i s p r o f u n d a e m Palma-
africanas, existia escravidão e m Palmares, Os q u e para lá iam res, com significativas implicações para a história s u b s e -
por opção e r a m considerados livres,.mas os c a p t u r a d o s n o s q ü e n t e da resistência escrava n o Brasil. F u n d a m e n t a l n e s s e
assaltos e r a m escravizados. Os p o v o a d o s de Palmares e r a m p r o b l e m a é a etimologia da palavra " q u i l o m b o " . Esse t e r m o
protegidos por palitadas, a m u r a d a s , o u p o r u m á r e d e d e ar- passou a significar 110 Brasil q u a l q u e r c o m u n i d a d e de escra-
madilhas ocultas, irjuítò s e m e l h a n t e s às descritas e m o s t r a d a s vos fugidos, e l a u t o o significado u s u a l q u a n t o a origem são
acima na descrição d o m o c a m b o b a i a n o Buraco d e Tatu. A dados pela palavra Mbuttdu, usáda para designar a c a m p a -
religião nos a c a m p a m e n t o s era ú m a fusão de e l e m e n t o s cris- m e n t o d e g u e r r a i Por voítá d o século XVIII o t e r m o era d e
tãos e africanos, émiptora t a m b é m nesse aspecto é possível uso geral 110 Brasil, mas s e m p r e p e r m a n e c e u s e c u n d á r i o a o
q u é t e n h a m exjstidò m u i t o mais características africanas d o t e r m o m o c a m b o , mais antigo, ou seja; u m a palavra Mbunctu
q u e p e r c e b e r a m os observadores. q u e significa esconderijo. Na v e r d a d e , a palavra q u i l o m b o
Em vários aspèctqs, Palmares parece ter sido u m a só a p a r e c e u e m d o c u m e n t o s c o n t e m p o r â n e o s n o final d o
adaptação d e f o r m a s á t h u r a i s áfrtcanas à situação d o Brasii- século XVII, á n ã o ser q u a n d o utilizada, em m e a d o s d a q u e -
colônia, o n d e escravos cie várias origens, africanos e crioulos, le século, p e l o poeta Gregório de Mattos, q u e a e m p r e g o u
u n i r a m - s e e m suá oposição c o m u m à escravidão. E m P a l m a - com o significado d e q u a l q u e r jocáí o n d e . o s negros se c o n -
res as pessoas t r a t a v a m - s e d e n i a l u n g o , ou c o m p a d r e , t e r m o g r e g a v a m . O p r i m e i r o t l o c u m c í u o q u e vi com o t e r m o qui-
d e parentesco adotivo t a m b é m u s a d o e n t r e os escravos q u e lombo, s e n d o usado para designar. unia c o m u n i d a d e d e fugi-
h a v i a m c h e g a d o j u n t o s n o m e s m o navio negreiro. tivos é d a t a d o d e 1691 e trata especificamente de Palma-
Em P a l m a r e s p o d e m o s p e r c e b e r a t e n t a t i v a d e f o r - res." A cronologia c á c o n e x ã o c o m Palmares n ã o são aci-
m a r u m a c o m u n i d a d e com p e s s o a s d e origens d í s p a r e s . Tal dentais. No t e r m o q u i l o m b o está codificada u m a história
tentativa era necessária e m t o d a s as c o m u n i d a d e s d e fugi- n ã o escrita, q u e s o m e n t e agora, d é v i d o a pesquisas recentes
tivos, mas n o caso de P a l m a r e s h á a l g u m a s características sobre á história africana, p o d e ser, ao m e n o s parcialmente,
específicas q u e a j u d a m a e x p l i c a r sua história, b e m c o m o a compreendida.
d e toda a resistência escrava n o Brasil colonial. A p r o c u r a
d e e l e m e n t o s "africanos" e m P a l m a r e s e nas " s o b r e v i v ê n -
cias* culturais dos escravos o u fugitivos t e m - s e c o n c e n t r a -
70. PdImie, "African states"; p: 10-11. Ver também "Ethno-
d o d e m a i s e m i d e n t i d a d e s é t n i c a s o u c u l t u r a i s específicas. geneiic Processes and Cultural Transfer in Afro-American
De fato, g r a n d e p a r t e d o q u e se fazia passar p o r " e t n i a " Slave Populations" (iris.," I08?!' Palinie insplrou-se bastante
africana n o Brasil e r a m i n v e n ç õ e s . c o l o n i a i s . As c a t e g o r i a s ém Igor Kopytoff, "The Internal African Frontier: The Ma-
ou a g r u p a m e n t o s c o m o " C o n g o " ou " A n g o l a " n ã o t i n h a m king of African Political Culture", em The African Frontier, ed.
teor étnico e m si e q u a s e s e m p r e c o m b i n a v a m p e s s o a s p r o - Igor Kopytoff (Bloomington, Ind.; 1987), p. 3-84.
venientes de amplas áreas africanas, que pouco comparti- 71. A ausência da palavratjuttomboreferindo-se a comuni-
l h a v a m e m i d e n t i d a d e ou r e l a c i o n a m e n t o s . O f a t o d e se- dades de fugitivos aiíferiorès é observada éiii Kcht, "Palma-
r e m essas categorias, às vezes a d o t a d a s pelos p r ó p r i o s es- rés", p, 162-63. Vér também Mário Jose Maestri Filho, "Em
cravos indica n ã o só a a d a p t a b i l i d a d e dos escravos, m a s torno ao quilombo", Hislória.em Cadernos, (Mestrado de His-
t a m b é m q u e as sociedades a f r i c a n a s t i n h a m c o n s i d e r á v e l tória-Universidade Federal dü'Rio de Janeiro), v. 2, 11. 2, p.
9-19, 1984.

254
Estraws, meeiros e rebeldes RcpfHsjiuUi Palmares:
Rosisit'iida escrava nà Cotftiila

Embora P a l m a r é s combinasse i n ú m e r a s tradições cul- a l g u m t e m p o , mas a l g u n s aspectos da sociedade i m b a n g a -


turais africanas e incluísse e n t r e seus h a b i t a n t e s crioulos, ia/Jaga, de interesse d i r e t o para historiadores da resistência
mulatos, índios e m e s m o a l g u n s brancos m a r g i n a i s e mesti- escrava n o Brasil e e s p e c i a l m e n t e para os i n t e r e s s a d o s e m
ços, a l é m de africanos, as tradições de Angola e r a m clara- Palmares, foram m e n c i o n a d o s p o r observadores c o n t e m p o -
m e n t e p r e d o m i n a n t e s . Os h a b i t a n t e s r e f e r i a m - s e a Palma- r â n e o s . " E m p r i m e i r o lügari os invasores i m b a n g a l a s viviam
res c ó m o angola janga ( p e q u e n a Angola), e m reconheci- e m p e r m a n e n t e estado de g u e r r a . Dizia-se q u e m a t a v a m os
m e n t o a tal fato e, n u m a queixa de 1672, a câmara d e Sal- bebês gerados p o r suas m u l h e r e s , riiâs i n c o r p o r a v a m crianças
vador sé referiu à "opressão q u e todos s o f r e m o s dos bárba- a d o t a d a s às suas fileiras, d è m o d o qüé, com o passar do t e m -
ros de Angola q u e v i v e m e m P a l m a r e s " . " Mas, n o c o n t e x t o po, eles se t o r n a r a m u h i a força composta c o m u m g r a n d e
da história a n g o l a n a , qual e . a i m p o r t â n c i a dessa ligação n ú m e r o d e pessoas d e várias origens étnicas u n i d a s p o r u m a
para a história de Palmares? e s t r u t u r a militar o r g a n i z a d a . Essa organização e sua feroci-
O reino de N d o n g o , q u e os p o r t u g u e s e s passaram a d a d e militar t o r n a v a m - n o s o flagelo da região, eficientíssi-
c h a m a r d e Angola n o final do século XVI, era u m a terra em m o s e e x t r e m a m e n t e temidos. As relações e n t r e i m b a n g a l a s
turbulência, invadida, pelo litoral por p o r t u g u e s e s e pelo in- e p o r t u g u e s e s se a l t e r n a v a m e n t r e hostis e amistosas. E n t r e
terior por b a n d o s de guerreiros salteadores da África Cen- 1611 a 1619 senhores; imbangalas serviram d e m e r c e n á r i o s
tral. 7 ' A dissolução do antigo reino d o Congó e d o estado de para os g o v e r n a d o r e s portugueses, foriieòendo m u l t i d õ e s de
Luanda e m Kitanga resultou n u m período de luta militar e cativos aos traficantes d e esérávos e m L u a n d a . " Os n o v o s es-
perturbações q u e d e s t r u í r a m povoados e desterraram povos. tados e r a m f o r m a d o s p o r f u s ã o dos imbangalas c o m l i n h a -
Poderosos grupos de guerreiros desterrados q u e se d e n o m i - gens nativas, à m e d i d a q u e os imbangalas c o n q u i s t a v a m ou
n a v a m Imbangala ou Yaka, e e r a m c h a m a d o s d e Jaga pelos criavam vários r e i n o s e n i r e os povos M b ü n d u da região c o n -
portugueses, invadiram a atual Angola d e s t r u i n d o os estados g o - a n g o l a n a . Dois desses estados e r a m ó r e i n o de K a s a n j e e
existentes e, por fim, criando u m a série de n o v o s regimes. 74 o r e i n o d e M a t a m b a , g o v e r n a d o pela rainha Nzinga, c o m o
As origens e as tradições culturais precisas dos i m b a n - q u a l os p o r t u g u e s e s l u t a r a m até m e a d o s d o século XVII, fa-
galas, c m e s m o a relação entre as designações jaga, itnban- z e n d o e n t ã o u m a aliança. Essés estados l u t a r a m e n t r e si p e l o
gala e yaka, t ê m sido a s s u n t o de debate e n t r e africanistas há controle da bacia d o rio K w a n g o , o ique deu m a r g e m a escra-
vização cada vez m á i o r h a região,"

72. Livro das Atas da Câmara do Salvador (1669-84), 23, ci-


tado em Pedro Tomás Pedreira, "Os quilombos dos Palmares
e o senado da câmara da cidade do Salvador"; M.A.N., v. 11, 75. Sobre o debate; ver Joseph C. Miller, "The lmbangala
11.3, p. 14-7, 1980.
and the Chronology of Early Centrai African History", Jour-
73. David Uirmlngbain, 'D-acte and Conflict in Angola (Oxford, nal of African History, v.; 1 i i , 4, p. 549-74, 1972; "Requiem
1966), apresenta uma descrição detalhada desses aconteci- for the ia^"iCiihfers d'etúdes africaineSi V^ n. 1, p. 121-
mentos. Ver também sua síntese em "Central Africa from 49, 1 'J73; Join» Thorn ion, "A Resurrection for the Jaga",
Cameroon lo the Zambezi", em Cambridge History of Africa, Cahiers d'etudesufticaines, 18, p. 223-8, Í978.
eds. J. D. Fage e Roland Oliver 5 v. até a presente daia 76. Beatrix Hintze, "Angola nas garras do tráfico de escra-
(Cambridge, 1975-), 4, (1975), p. 325-83. Ver também Jan vos", Revista International de Hsiudos'Africanos, v. 1, n. 1, p. I I -
Vansina, Kingdoms of the Savanna, (Madison, 1968, p. 64-7U, 60, 1984. '
p. 124-38.
77. Ver Roy Glasgow, Nzinga (São,Paulo, 1982); Joseph C.
74. Joseph C. Miller, Kings and Kinsmen: Early Mbundit States Miller, "Kings, Lists, and History in Kisanje", History in Afri-
in Angola, (Oxford, 1976), contém uma excelente descrição ca, 6, p. 51-94, 1979.
dos Imbangala e de suas instituições.

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Escrows, roceiros e rebeldes K(.*|icnsaiiclo Palmares:
iu-sistêium t'saavft ti A CulíViila

Ao deslocarçm-se para o sul, e n t r a n d o e m Angola, n o bo era o nganga a zumba, i i m sacerdote cuja responsabilidade
início d o século XVII, os imbangalas e n c o n t r a r a m c m r c o era lidar com o espírito dos mortos. O Ganga Zumba d e Pal-
povo M b u n d u u m a instituição q u e a d o t a r a m para seus pro- m a r e s era p r o v a v e l m e n t e o d e t e n t o r desse cargo, q u e n ã o
pósitos." Tratava-se d o ki-lombo, Mina sociedade de iniciação era d e fato u m n o m e próprio, mas ú m título. Há outros ecos
ou c a m p o d e Circuncisão, o n d e os j o v e n s d o sexo m a s c u l i n o das descrições de Angola q u e p a r e c e m sugestivos. No qui-
e r a m p r e p a r a d o s para o status d e a d u l t o s e guerreiros. Os l o m b o imbangala a liderança dependia d e a l g u m tipo d e
imbangalas a d a p t a r a m essa instituição a seus próprios desíg- aclamação ou eleição popular, e x a t a m e n t e c o m o a f i r m a m
nios. A r r a n c a d o s das terras. e dos deuses ancestrais, sem alguns dos relatos brasileiros. w É b a s t a n t e curiosa a observa-
compartilhar l i n h a g e m c o m u m , v i v e n d o de conquistas e, se- ção de A n d r e w Batell, q u e viveu e n t r e os imbangalas e rela-
g u n d o observadores e u r o p e u s , r e j e i t a n d o a agricultura, a tou q u e seu m a i o r luxo era o v i n h o de p a l m a e q u e suas ro-
base tradicional dás sociedades da região, os imbangalas ne- tas a a c a m p a m e n t o s e r a m influenciados pela disponibilidade
cessitavam de unia instituição q u e desse coesão aos e l e m e n - de palmeiras. Seus comentários fazem c o m q u e a associação
tos étnicos díspares q u e c o m p u n h a m seus b a n d o s . O ki-lom- e n t r e á c o m u n i d a d e dos m a r r o n s e a região dos Palmares pa-
bo, uma sociedade militar à q u a l q u a l q u e r h o m e m podia p e r - reça mais do q u e coincidência.""
tencer p o r m e i o de t r e i n a m e n t o e iniçiação, servia à q u e l e
Se os f u n d a d o r e s de Palmarés inspiraram-se n o ki-
propósito. Criada para a g u e r r a , essa instituição gerou u m
lombo Imbangala para a f o r m a ç ã o d e sua sociedade, sua ver-
poderoso culto guerreiro ao receber grandes n ú m e r o s d e es-
são dele era incompleta ou, pelo m e n o s , u m a variante do
trangeiros sem ancestrais c o m u n s . O kí-lombo imbangala se
m o d e l o original, i n ú m e r a s características associadas aos ki-
distinguia devido a suas leis rituais. A linhagem e o p a r e n -
lombos Imbangala n ã o t i n h a m paralelo n ó Brasil. Em primei-
tesco, tão i m p o r t a n t e s para òs o u t r o s povos e s s e n c i a l m e n t e
ro lugar, os imbangalas e r a m s e m p r e m e n c i o n a d o s c o m o ca-
mairitineares da região, e r a m n e g a d o s d e n t r o d o ki-lombo e,
nibais q u e p r a t i c a v a m á antropofagia e sacrifícios h u m a n o s
embora os observadores e u r o p e u s m e n c i o n a s s e m infanticí-
para aterrorizar os inimigos. Esses c o s t u m e s e r a m rigida-
dio, as m u l h e r e s , e s t r i t a m e n t e falando, p o d i a m deixar os li-
m e n t e controlados, b e m c o m o a p r e p a r a ç ã o de ma$ia samba,
mites do ki-lombo para dar à luz. O q u e se proibia era u m laço
üiha pasta feita d e gordura h u m a n a e o u t r a s substâncias q u e
matrilinear legal d e n t r o d o ki-lombo q u e pudesse prejudicar
s u p o s t a m e n t e tornava invencívéis os guerreiros do ki-lombo.
o conceito d e u m a sociedade e s t r u t u r a d a p o r iniciação e m
Havia n o ki-lombo uni rígido c o n j u n t o d e leis rituais (kijila).
vez de parentesco. O historiador J o s e p h Miller acredita q u e
As m u l h e r e s eram'proibidas dé e n t r a r iib terreiro interno do
o "assassinato" imbangala dois próprios filhos era u m a m e t á -
ki-lontbot havia prescrições rituais rigorosas contra m u l h e r e s
fora da eliminação cerimonial dos laços d e parentesco e sua
m e n s t r u a d a s . N e n h i i m desses c o s t u m e s é m e n c i o n a d o na
substituição pelas leis e prescrições d o ki-lombo.
d o c u m e n t a ç ã o r e m a n e s c e n t e de Palmares.
A criação de u m a organização social baseada em asso-
O uso d o t e r m o "quilombo" com referência a Palma-
ciação gerava riscos. Os h a b i t a n t e s d o ki-lombo incorriam em
res n ã o significa q u e todos os aspectos rituais daquela insti-
especial perigo espiritual, u m a vez q u e lhes faltava a linha-
tuição, tal c o m o e r a m praticados e m Angola, estavam pre-
g e m n o r m a l d e ancestrais q u e p u d e s s e m interceder p o r eles
sentes n o Brasil n e m q u é os f u n d a d o r e s e líderes s u b s e q ü e n -
j u n t o aos deuses. Assim, u m a figura f u n d a m e n t a l 110 ki-lom-

78. Miller, Kings and Kinsmen, 151-75, 224-64, oferece uma 79. Cadornega, Histor'ia, II, p. 221.
análise intensa. As fontes clássicas sobre o Jaga ki-lombo são 80. E. G. Ravenstein, The Strange Adventures of Andrew Battel
Cadornega e Gavazzi de Montecuccoío. of Leigh in Angola and Adjoining Regions (London, 1901).

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list ra ws, roivims t ifMiies Kepciisamto Palmares:
Kesisiêiiría escrava na Colônia

tes d e Palmares fossem, o b r i g a t o r i a m e n t e , i m b a n g a l a s . " Ha- m a r e s n ã o c o m o "sobreviventes" afastados de seu m e i o cul-


via m u i t o s aspectos d o ki-lombo i m b a n g a l a c m o u i r a s insti- t u r a l original, m a s c o m o u m uso m u i t o m a i s d i n â m i c o a tal-
tuições da África central, c o m o p o r e x e m p l o , os a e a m p a - vez i n t e n c i o n a l d e u m a instituição africana q u e fora e s p e c i -
n i e n t o s ' d e iniciação secreta kimpasi, d o C o n g o , q u e t a m b é m f i c a m e n t e criada para g e r a r u m a c o m u n h ã o e n t r e p o v o s d e
criavam n o v o s laços sociais p o r a s s o c i a ç ã o . " Q u e m n ã o era o r i g e n s díspares e ser u m a o r g a n i z a ç ã o militar e f i c i e n t e . Cer-
iiíibangaia e n t e n d e r i a m u i t o d o q u e era i n e r e n t e a o ki-lom- t a m e n t e os escravos fugitivos d o Brasil a d e q u a v a m - s e a essa
bo. C o n f o r m e o b s e r v a d o , as dinastias e instituições i m b a n g a - descrição e os a t a q u e s q u e s o f r i a m dos g o v e r n o s coloniais
las e r a m i n c o r p o r a d a s e m u m a série de e s t a d o s M b u n d u e o t o r n a v a m a o r g a n i z a ç ã o militar d o q u i l o m b o essencial para
q u i l o m b o passou a simbolizar a s o b e r a n i a desses estados. a sobrevivência. O êxito dos q u i l o m b o s variava t a n t o q u a n -
Nossa m e l h o r f o n t e a esse respeito é A n t o n i o de Oliveira Ca- to d i f e r i a m e n t r e si e m t a m a n h o , g o v e r n o , l o n g e v i d a d e e o r -
dornega, o principal cronista de Angola n o século XVII. Ca- g a n i z a ç ã o i n t e r n a . Considerados c o m o u m todo. P a l m a r e s e
dornega u s o u o t e r m o q u i l o m b o para d e s c r e v e r b a n d o s jagas as c o m u n i d a d e s m e n o r e s d e fugitivos c o n s t i t u í a m u m c o n t í -
("quilombos d c jagas* ou g e n t e e q u i l o m b o s d e jagas"), mas n u o c o m e n t á r i o sobre o r e g i m e escravista brasileiro.
t a m b é m c o m o t e r m o descritivo dos reinos d e M a t a m b a e
K a s a n j e . " O e m p r e g o da e x p r e s s ã o " r e i n o e q u i l o m b o " d e
M a t a m b a era u m u s o descritivo geral de q u i l o m b o , q u e se
referia à q u e l a s f o r m a s políticas de influência i m b a n g a l a , m a s
não chegava a a f i r m a r a existência plena da instituição ori-
ginal n e m d e suas práticas rituais, " Q u i l o m b o " estava se t o r -
n a n d o s i n ô n i m o d e d e t e r m i n a d o tipo d e r e i n o e m Angola.
Dada a escassez de d o c u m e n t a ç ã o sobre Palmares, ad-
mite-se q u e m u i t a s das hipóteses acima m e n c i o n a d a s são
frágeis, m a s a c r e d i t o q u e h a j a indícios suficientes para se
a f i r m a r q u e a i n t r o d u ç ã o d o t e r m o " q u i l o m b o " n o Brasil e m
fins d o século XVII n ã o foi a c i d e n t a l e r e p r e s e n t a m a i s d o
q u e u m simples e m p r é s t i m o lingüístico, Caso isso seja verda-
de, d e v e m o s e n t ã o c o n s i d e r a r os aspectos a f r i c a n o s d e Pal-

81. As origens Jaga de Palmares têm sido de interesse para


os estudiosos há muitos anos. Nina Rodrigues contentou-se
em mostrar a origem Bantu dos títulos, nomes próprios e to-
ponomía de Palmares. M. M. de Freitas deduziu que os Pai-
marinos eram guerreiros tão inveterados que devem, por-
tanto, ter sido jagas. Argumenta Freitas: "o primeiro fugiti-
vo era da casta sagrada dos jagas e o fundador da dinastia
palmarina", (1,278). Kent, "Palmares", afirma que os jagas
talvez não tenham sido os criadores de Palmares.
82. John K. Thornton, Tlw Kingdom of Kotujo (Madison,
1983), p. 61, p. 107,
83. Cadornega, História, 1, 89; 2, 222.

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