Você está na página 1de 8

O Demônio: sim ou não? 30 de abril de 2013 Artigos de d.

Estêvão Tavares
Bettencourt, osb (+2008).

" Se alguém, em qualquer época, fizer do cristianismo um caminho fácil e cômodo,


não lhe dês ouvido." (São João da Cruz)

Em Síntese: O presente artigo examina os fundamentos bíblicos e tradicionais da crença


na existência e na atividade do demônio, visto que nos últimos tempos se vem negando
com ênfase tal artigo de fé. A negação procede de preconceitos ou também do desejo de
dissipar caricaturas do anjo mau existentes na crendice popular. O assunto não é da área
filosófica, mas é estritamente teológico; portanto a explanação do mesmo depende da
Revelação oral e escrita, que a Igreja, como Mãe e Mestra assistida por Jesus, tem
transmitido aos fiéis.

***

Nos últimos decênios, especialmente nos anos mais recentes, autores cristãos têm
negado a existência do demônio através da imprensa escrita e de outros meios de
comunicação.

Alguns o fazem superficialmente, quase num estilo de impacto e sensacionalismo, como


fez, por exemplo, o Pe. José Fernandes de Oliveira (scj) no Jornal do Santuário de
Aparecida, edição de 15 a 21/08/92: nega gratuitamente, sem argumentar… e com certo
sarcasmo, deixando confusos os leitores despreparados.

Outros pretendem provar que o demônio não existe, mas foi introduzido na Bíblia e na
Tradição cristã por influência do paganismo. Tal é o caso do Pe. Oscar Quevedo em seu
livro “Antes que os demônios voltem” (livro já comentado na Revista Pergunte e
Responderemos nº 323, de 1989, pp. 146-156), onde são apontados preconceitos e
sofismas do autor da obra.

Mais recentemente ainda, Geraldo E. Dallegrave, benemérito aliás por obras de


apologética católica, escreveu a respeito na “Gazeta do Povo” de Curitiba, edição de
23/08/92, um artigo superficial e incorreto, que deixou perplexa uma parte do público. É
possível que as deformações do conceito de demônio tenham levado Dallegrave a uma
posição extrema, posição, porém, muito mal fundamentada e destoante do pensamento
cristão.

Na verdade, nenhum teólogo tem interesse em se deter longamente sobre a existência e


a ação do demônio. Este é “um Cão acorrentado, que pode ladrar violentamente, mas só
consegue morder a quem se lhe chega perto” (S. Agostinho). Todavia, por respeito ao
patrimônio da fé, o teólogo é obrigado a tratar do assunto quando se levantam questões
a respeito. Os critérios para abordar tal tema não são os da Filosofia, mas os da
Revelação Divina, ou seja, a Palavra de Deus oral e escrita (Sagrada Escritura) tal como
nos chega através da Igreja, Mãe e Mestra.

Comecemos, pois, por examinar o testemunho bíblico, levando em conta especial o


artigo de Geraldo E. Dallegrave.
1. O Testemunho Bíblico

1. Geraldo E. Dallegrave dá ao seu artigo um título infeliz: “O termo ‘demônio’ não


aparece uma só vez no original do Velho Testamento”. Ora, o texto original do Antigo
Testamento foi quase todo escrito em hebraico, língua sagrada dos judeus; em grego
temos apenas os livros deuterocanônicos[1]: Tobias, Judite, Baruque, Eclesiástico, 1-
2Macabeus, Sabedoria, além de fragmentos de Daniel 3,24-90; 13,1-14,42; e Ester 10,4-
16,24. Em conseqüência, compreende-se que o texto original (hebraico) do Antigo
Testamento não pode apresentar o vocábulo “daimon” ou “daimonion” (=demônio), que
é grego. Será que Dallegrave não percebeu a incoerência do seu título?

Se não existe a palavra grega “daimon” nos escritos hebraicos do Antigo Testamento,
existem palavras hebraicas equivalentes, como são:

a) Satã = Adversário. Este é um anjo que aparece no livro de Jó como detrator do


homem e causador das suas desgraças; cf. Jó 1,7; 2,2; ver também 1Reis 22,19-23. Mais
nitidamente ainda ocorre em 1Crônicas 21,1, onde Satã é tido como aquele que instiga o
homem ao pecado;

b) Belial, beliyya’al (=sem utilidade?) é o anjo malvado, mencionado em 2Samuel 23,6:


“OS homens de Belial são todos como a espinha rejeitada…”; Jó 34,18: “Deus, que diz
a um rei: ‘Belial!…'”. São Paulo designa como Belial o chefe dos espíritos maus, que se
opõe a Cristo e se manifesta na vida dos pagãos: “Que acordo há entre Cristo e Belial?
Que relação há entre o fiel e o incrédulo?” (2Coríntios 6,15).

c) Asmodeu (=Extermínador) é o anjo mau, que deu morte sucessivamente aos sete
pretendentes de Sara, filha de Raguel; cf. Tobias 3,8; 6,14.

d) Baalzebub (=Senhor das moscas) era o nome de uma divindade filisteia (ou de
Acaron); cf. 2Reis 1,2?16. Os judeus, após o exílio (586-538 a.C.), evitavam pronunciar
o nome de Satã (Berakot 60,1); por isto, em seu lugar, usavam o nome Baalzebub,
deformação de Baalzebul (=dono da casa, isto é, Príncipe da Moral Infernal).
Finalmente os rabinos, querendo escarnecer os ídolos, modificaram o nome para
Baalzebel (=Senhor do Esterco). Ver no Novo Testamento Marcos 3,20.

e) Serpente Tentadora, que induziu os primeiros pais ao pecado: Gênesis 3,1-6. O texto
grego do livro da Sabedoria apresenta essa Serpente como sendo “ho diábolos” (=o
diabo); ver Sabedoria 2,24.

2. Ouanto ao exorcismo ou ao rito aplicado para expulsar o demônio, encontramo-lo


entre os judeus do tempo de Cristo. Assim o historiador judeu Flávio Josefo (37-95
d.C.), no seu livro “Antiguidades Judaicas” 8,45s, apresenta a descrição do exorcismo
efetuado na época; além disto, refere que foram atribuídas ao rei Salomão “sentenças
adequadas para obter a cura de doenças, e fórmulas de exorcismo mediante as quais se
podiam subjugar e rechaçar os espíritos, de modo que não conseguissem retornar”.

O Novo Testamento dá testemunho de que os judeus praticavam o exorcismo — o que


supõe a crença na existência do demônio. Tenham-se em vista:
– Atos 19,13: “Alguns dos exorcistas judeus ambulantes começaram a pronunciar, eles
também, o nome do Senhor Jesus sobre aqueles que tinham espíritos maus. E diziam:
‘Eu vos conjuro por Jesus, a quem Paulo proclama!'”.

O próprio Jesus se referia aos exorcistas judeus:

– Mateus 12,27s: “Se eu expulso os demônios por Beelzebu, por quem os expulsam os
vossos adeptos? (…) Mas se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demônios, então
o Reino de Deus já chegou a vós”.

Jesus mesmo praticava exorcismos, como se depreende deste texto e de outros, quais
Mateus 9,32-34; 12,22-24; 15, 21-28; Marcos 1,23-28; Lucas 8,28s; 13,10.17.

Notemos, aliás, que os evangelistas distinguem entre possessos e doentes, embora


alguns dos casos de possessão, no Evangelho, se assemelhem a doenças. Ver Marcos
1,34; Mateus 8,16s; Lucas 6,18 e especialmente Lucas 4,40s:

– “Ao pôr do sol, todos os que tinham doentes atingidos de males diversos, traziam-nos
e Jesus curava-os. De um grande número saiam também demônios, gritando: ‘Tu és o
Filho de Deus!'”.

Os exorcismos realizados por Jesus eram o sinal de que se ia destruindo o império de


Satanás e se inaugurava o Reino de Deus: Mateus 12,28; João 12,31. Ver Lucas 10, 17-
20:

– “Os setenta e dois voltaram com alegria, dizendo: ‘Senhor; até os demônios se nos
submetem em teu nome’. Ele lhes disse: ‘Eu via Satanás cair do céu como um
relâmpago! Eis que eu vos dei o poder de pisar serpentes, escorpiões e todo o poder do
inimigo, e nada vos poderá causar dano. Contudo não vos alegreis porque os espíritos se
vos submetem; alegrai-vos, antes, porque os vossos nomes estão inscritos nos céus”.

À vista deste texto e de outros, não se pode dizer, com Dallegrave, que “Cristo nunca
fez exorcismo, nem tampouco recomendou que os apóstolos o fizessem”. Na verdade,
Jesus não fingiu estar diante do Maligno nem exerceu uma arte teatral ao exorcizá-lo,
como se não houvesse possessão diabólica. Adaptando-se a uma crença “errônea” dos
seus contemporâneos, Jesus teria confirmado os judeus no seu “erro” e teria transmitido
aos cristãos a falsa noção de possessão diabólica. Ora, Jesus veio justamente para a
missão de dissipar os erros e dar testemunho da verdade ? o que não se compatibiliza
com fingimento e teatralidade vazia:

– João 18,32: “Para isto nasci e para isto vim ao mundo: para dar testemunho da
verdade. Quem é da verdade, escuta a minha voz”.

Por conseguinte, é forçoso admitir que Jesus, Mestre da verdade, não “fez palhaçadas”,
mas confirmou a crença na possessão diabólica e efetuou exorcismos.

Após Jesus Cristo, a Igreja durante vinte séculos (até hoje) afirmou e afirma a
possibilidade da possessão diabólica; Ela tem também um Ritual de Exorcismo Solene,
a ser utilizado em casos precisos. Todavia o diagnóstico de possessão diabólica hoje em
dia é mais minucioso do que outrora, pois se sabe que vários fenômenos então
inexplicáveis eram atribuídos à ação do Maligno, ao passo que atualmente são
reconhecidos como fenômenos meramente humanos ou psicológicos. Em consequência,
recomenda-se cautela a fim de não se admitir precipitadamente a possessão diabólica.

Ainda se pode notar no artigo de Dallegrave uma grave imprecisão: a história do Antigo
Testamento teria durado 5.000 anos, quando na verdade a vocação de Abraão, que dá
origem a tal história, ocorreu no século XIX a.C.!

Examinemos agora as declarações do magistério da Igreja, ao qual Jesus prometeu a


infalível assistência do Espírito Santo (cf. João 14,26; 16,1.3.15).

2. O Magistério da Igreja

A Igreja nunca sentiu a necessidade de definir a existência do demônio como tal. A


razão disto é que as definições do Magistério supõem sempre a negação de alguma
verdade revelada por Deus. Ora nunca na Antiguidade e na Idade Média foi negada a
existência do demônio. Os erros respectivos versaram sobre a natureza, a atividade, o
pecado, a condenaç?o… do Maligno[2]. Por isto as intervenções do Magistério
versaram somente sobre aspectos da ação do Maligno no mundo, dando sempre por
certa a existência do mesmo.

Percorramos, pois, algumas declarações do Magistério da Igreja.

1) O Credo niceno?constantinopolitano ou uma Profiss?o de Fé da Igreja do século IV


começa afirmando:

– “Creio em um só Deus, Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis”.

O sentido desses seres invisíveis foi posteriormente explicitado: trata-se dos anjos, dos
quais alguns pecaram e assim se tornaram anjos maus. Foi o que o Concílio do Latrão
IV (1215) declarou:

– “O diabo e os demais demônios foram certamente por Deus criados bons em sua
natureza, mas por si mesmos se tornaram maus” (DS 800).[3]

Este esclarecimento, ao qual se poderiam acrescentar outros semelhantes, de data


anterior ou posterior, tinha em vista o dualismo, que admitia dois Princípios coeternos:
o do Bem e o do Mal, Deus e o Diabo.

2) O Sínodo Regional de Constantinopla em 543, tendo em vista os origenistas, afirma


que a punição dos demônios não tem fim e não se pode admitir a restauração
(reintegração) dos mesmos na graça de Deus. Cf. DS 411.

3) O Concílio de Braga (561) determinou:

– “Se alguém diz que o diabo não foi primeiramente um anjo bom, criado por Deus, e
que sua natureza não foi obra de Deus, mas, ao contrário, diz que emergiu do caos e das
trevas e que não tem autor, pois é ele mesmo o princípio e a substância do mal, como
afirmaram Maniqueu e Prisciliano, seja anátema”.
– “Se alguém crê que o diabo fez no mundo algumas criaturas e que por sua própria
autoridade continua produzindo os trovões, os raios, as tempestades e as secas, como
disse Prisciliano, seja anátema” (DS 457s).

4) O Concllio de Florença, em seu Decreto para os Jacobitas (1441), declara:

– “A Igreja firmemente crê, professa e ensina que ninguém concebido de homem e de


mulher foi jamais libertado do domínio do diabo a não ser pela fé no Mediador entre
Deus e os homens, Jesus Cristo, Nosso Senhor” (DS 1347).

5) O Concílio de Trento afirma, no Decreto sobre a justificação (1547), que os homens,


em consequência do pecado original, “estavam sob o poder do diabo e da morte” (DS
1521). Ao falar da perseverança, observa que, depois da justificação, “os homens ainda
têm que enfrentar a luta contra o diabo” (DS 1541). Os que pecam após o Batismo,
entregam-se “à servidão do pecado e ao poder do demônio” (DS 1668).

Referindo-se à Unção dos Enfermos, diz o mesmo Concilio em 1551:

– “Ainda que o nosso adversário (o demônio), durante toda a vida, procure e aproveite
ocasiões para poder de um modo ou de outro devorar nossas almas (cf. 1Pedro 5,8), em
tempo algum ele é mais astuto para nos perder totalmente do que no término iminente
da nossa vida” (DS 1694).

– “Graças a este sacramento, o enfermo resiste melhor às tentações do demônio” (DS


1696).

6) Pio XII, na encíclica “Humani Generis” (1950), censura a atitude daqueles que
perguntavam “se os anjos (e, portanto, também o diabo) são criaturas pessoais” (DS
3891). O Papa tinha em vista os que pretendiam negar a existência do demônio,
reduzindo-o a figura literária.

7) O Concílio do Vaticano II afirma que o “FiIho de Deus, por sua morte e ressurreição,
nos livrou do poder de Satanás” (Sacrosanctum Concilium 6); (…) “o Pai enviou seu
Filho a fim de por Ele arrancar os homens do poder das trevas e de Satanás” (Ad Gentes
3); (…) “Cristo derrotou o império do diabo” (Ad Gentes 9). Aludindo a Efésios 6,11-
13, o Concllio fala das “ciladas do demônio” (Lumen Gentium 48).

8) Paulo VI, em várias ocasiões, referiu-se à existência e à atividade maléfica do


demônio. Em sua homilia de 29/06/1972 pronunciou famosa frase:

– “Através de uma brecha penetrou a fumaça de Satanás no templo de Deus”.

Aos 15/11/1972 estendia-se sobre a realidade do demônio:

– “É o inimigo número um, o tentador por excelência. Sabemos também que este ser
obscuro e perturbado existe de verdade e que com pérfida astúcia é atuante; é o inimigo
oculto que dissemina erros e infortúnios na história dos homens (…) É o pérfido e
astuto encantador que sabe insinuar-se em nós por meio dos sentidos, da fantasia, da
concupiscência, da lógica utópica ou dos desordenados contatos sociais no exercício das
nossas atividades, para nestas introduzir desvios, muito mais nocivos porque
aparentemente conformes com nossas estruturas físicas ou psíquicas ou com as nossas
instintivas e profundas aspirações (…)
Poderemos supor que esteja atuando sinistramente onde a negaç?o de Deus se faz
radical, sutil e absurda; onde a mentira se afirma hipócrita e poderosa contra a verdade
evidente; onde o amor é eliminado por um egoísmo frio e cruel; onde o nome de Cristo
é impugnado com ódio consciente e rebelde (…); onde o espírito do Evangelho é
mistificado e contraditado; onde se afirma o desespero como última palavra.
Deixa o quadro do ensinamento bíblico e eclesial quem se recusa a reconhecer a
existência do demônio, ou quem faz do demônio um princípio que existe por si e não
tem, como as demais criaturas, a sua origem em Deus, ou ainda quem explica o
demônio como sendo uma pseudo-realidade, uma personificação conceitual e fantástica
das causas desconhecidas de nossas desgraças” (ver L’Osservatore Romano de
16/11/1972).

Podemos agora condensar a doutrina do Magistério em cinco proposições:

1) Os documentos citados convergem em supor a existência do demônio como ser real,


ontologicamente bom, dotado de inteligência e vontade, capaz de agir no mundo. Este é
um dado de fé.

2) O diabo depende de Deus Criador. Foi criado por Deus; por conseguinte, foi criado
bom. A maldade do diabo se deve ao fato de que pecou. Afastou-se livremente de Deus,
condenando-se a estar privado de Deus para sempre, pois os seres espirituais (no caso,
os anjos) são imortais por sua própria natureza.

3) Por permissão de Deus, o diabo atua astuciosamente, tentando levar o homem ao mal,
sem poder anular a liberdade humana. O homem, ao pecar, entrega-se à influência do
Maligno.

4) Cristo Redentor nos resgatou do domínio do diabo.

5) O Magistério da Igreja não se compromete com outras afirmações, como aquelas


atinentes ao tipo de pecado dos demônios, ao número e à hierarquia dos anjos maus, às
modalidades de sua atuação no mundo.

3. A atividade do demônio

Por ser um espírito sem corpo, o demônio não pode ter relações sexuais com mulheres,
como pensavam os antigos. Por ser espírito, goza de conhecimento mais perspicaz do
que o do homem; a sua intelecção não passa pelos sentidos, que são sempre muito
limitados em sua apreensão. Todavia os anjos maus não são todo-poderosos; estão sob a
regência de Deus, que não lhes permite tentar o homem acima das suas forças
(1Coríntios 10,13).

A atividade ordinária do Maligno consiste em tentar os homens ao pecado. A Sagrada


Escritura lhe atribui a tentação dos primeiros pais (Cf. Gênesis 3,1-5) e acrescenta que
Jó (Jó 1-2), Jesus (Mateus 4,1-11), São Paulo (2Coríntios 12,7-9), os Apóstolos todos
(cf. Lucas 22,31s) foram tentados. Por isto Jesus nos ensinou a pedir:
– “Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai?nos do mal (ou Maligno)” (Mateus
6,13).

Segundo o desígnio de Deus, a tentação deve contribuir para acrisolar e fortalecer a


virtude do homem.

Os teólogos observam que o tentador não pode agir diretamente sobre o conhecimento e
a vontade do homem, nem mesmo os pode penetrar. Por conseguinte, só indiretamente
pode tomar conhecimento do que o homem pensa e quer, e só indiretamente, mediante
objetos externos, pode influir sobre o conhecimento e o querer do homem. O demônio
nunca pode anular a liberdade e a responsabilidade de alguém; não há pecado sem
consentimento voluntário e livre.

O demônio não é a única fonte de tentações. Existem duas outras, que são as próprias
paixões existentes no homem e as influências negativas do mundo (ou do mundanismo).
Em consequência, é difícil dizer de onde provém alguma tentação. Na prática, não se
deveria atribuir tanta importância ao demônio; os afetos desregrados que toda criatura
humana traz dentro de si, são, muitas vezes, suficientes para explicar tal ou tal tentação.
Acima de tudo, importa ao cristão não dar ocasião ao pecado, afastando-se de todas as
situações que a ele possam levar direta ou indiretamente. De resto, será sempre possível
ao cristão vencer o mal, pois Deus não preceitua coisas impossíveis, mas, ao preceituar
algo, Ele nos admoesta a fazer o que podemos e a pedir o que não podemos; além disto,
ajuda-nos para que o possamos cumprir, como declarou o Concílio de Trento (1547),
retomando palavras de Santo Agostinho (+ 430); cf. DS 1535.

4. “65% dos Teólogos não aceitam…”

No final do seu artigo, o Sr. Dallegrave afirma:

– “Dentre os 65% dos teólogos católicos que não aceitam a existência absoluta do
demônio, cito no momento dois, entre outros, de certa importância, por serem muito
conhecidos: o Dr. Boaventura Kloppenburg e Oscar G. Quevedo (sj), que escreveram
numerosas obras, todas com aprovações eclesiásticas”.

A propósito observamos:

1) Donde recebeu o Sr. Dallegrave uma estatística tão precisa, a ponto de saber que 65%
dos teólogos católicos não aceitam a existência do demônio? Pode-se perguntar se a
fonte seria o livro muito obscuramente citado: “Diabo, Demônios, Possessões”, de
Walter Karper e K.L.; K.K. e J.M. “Página 111 ? Edições Loyola, dirigida pelos padres
jesuítas” (sic!). Realmente tal modo de citar é muito pouco científico ou pouco apto a
suscitar crédito.

2) Diante da referência a D. Boaventura Kloppenburg, a revista Pergunte e


Responderemos escreveu a este teólogo, que também é o Bispo de Novo Hamburgo
(RS), pedindo-lhe a eventual confirmação dos dizeres de Dallegrave. Em resposta
declarou D. Boaventura Kloppenburg:

– “Novo Hamburgo, 09/09/92


O artiguinho do Sr. Geraldo E. Dailegrave, na Gazeta do Povo, 23/08/1992, Curitiba,
sobre o demônio, não tem nenhum valor, nem exegético, nem teológico, nem histórico.
Tem ‘dalle grave errori’. Que eu alguma vez tenha negado a existência do diabo, é pura
invenção. Tentei resumir a doutrina cristã católica sobre o diabo e seus demônios nas
pp. 794 e seguintes do meu livro “Espiritismo” (Edições Loyola). O que lá está, é a
expressão de minha fé cristã católica.
(assinado) Frei Boaventura Kioppenburg, OFM”

Donde se vê quanto é necessário tenha o leitor um pouco de senso crítico ao percorrer as


páginas dos jornais, especialmente quando tratam de religião.

_________
NOTAS

[1] Os deuterocanônicos são livros que os judeus não aceitam precisamente por terem
sido escritos em grego ou em aramaico e não em hebraico. Os católicos, porém, os
aceitam, baseados na própria Tradição dos judeus de Alexandria (Egito).
[2] Entre outras coisas, os antigos acreditavam que houvesse demônios íncubos e
demônios súcubos. Demônio íncubo seria o demônio masculino que viria de noite
copular com uma mulher, causando-lhe pesadelos. Demônio súcubo seria o demônio
feminino que, de noite, copularia com um homem, causando-lhe pesadelos. ? É claro
que a cópula de demônios e seres humanos é impossível mas tal crença era transmitida
de geração em geração no povo de Deus desde os tempos pré-cristãos; sim, os rabinos
julgavam que os filhos de Deus que se uniram às filhas dos homens, conforme Gênesis
6,1, eram anjos que copularam com mulheres. Segundo bons exegetas, haveria alusão a
esta concepção em Judas 6 e 2Pedro 2,4.
[3] A sigla DS designa: “Enquirídio de Símbolos, Definições e Declarações da Igreja”.

Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 367, págs. 552-561, dez./1992.

Você também pode gostar